10/28/2022

O futuro Presidente (Conto), de Júlia Lopes de Almeida


O FUTURO PRESIDENTE 

Uma... duas... três... quatro... e as horas foram soando numa lentidão de relógio velho, até a décima pancada. 

Era noite; pela janelinha aberta, do sótão, via-se um pedaço do céu estrelado, e nada mais. 

No interior, havia um lampião de querosene sobre uma mesa de pinho; um armário sem vidros, com cortinas de chita; cabides, máquina de costura e uma ruma de caixas de papelão empilhadas num canto. 

Junto à mesa uma mulher maltratada, magra, de olheiras fundas e dedos calejados, curvava-se para diante, pregando botões numa camisa para o Arsenal. 

Ao pé dela, num berço de vime, dormia regaladamente um pequerrucho, gordo e trigueiro, com a cabeça enterrada na almofada e as mãozinhas papudas e abertas, espalmadas sobre a colcha vermelha. 

Além do tic-tac do relógio, só se ouviam os estalidos da agulha e a respiração regular da criança. 

A mãe de vez em quando tirava da costura o seu olhar cansado e deixava-o cair sobre o filho. Os seus olhos verdes perdiam então pouco a pouco a névoa de tristeza que os tornava sombrios, até irradiarem com a limpidez das esmeraldas sem jaça. 

O marido tardava; talvez passasse a noite toda fora, vigiando a linha dos bondes, com a sua lanterna de cores, e ela aproveitaria o tempo para coser e adiantar serviço; a vida é tão cara e eles ganhavam tão pouco... 

Pensando na dificuldade de se sustentarem, lembrava-se do bom tempo em que o marido era forte e ativo; agora o desgraçado tinha só uma perna e o juízo já não era como antes... enfim, ajudava-o ela; e daí a alguns anos haveria mais alguém a auxiliá-los. 

Esse mais alguém continuava a dormir tranquilamente, com as duas mãozinhas abertas sobre a colcha. 

Entretanto, a imaginação da mãe ia-lhe abrindo um caminho florido e largo através do misterioso e impenetrável futuro. 

Com a costura caída nos joelhos, a cabeça voltada para o berço, ela dizia mentalmente: 

– Ele há de ser bom, há de ser amado por toda a gente... haverá alegria nos olhos que o virem, e todas as mãos se estenderão para apertar a sua mão honesta! Meu filho! Como ele dorme! Como ele é bonito! Hei de ensiná-lo a ser caritativo... mas como? se nós somos tão pobres... Não faz mal, há de se arranjar um meio de o fazer dar esmolas! Será abençoado assim pelos infelizes! Coitadinho! chorou tanto hoje!... faltou-me o leite, talvez... com esta vida de trabalho, não admira! E tão manso que ele é! pobre criança!... Pobre... pobre! É preciso que ele seja rico, para ter completa a felicidade! Isso é que há de ser mais difícil... e daí, quem sabe? talvez não... 

O pensamento ficou-lhe suspenso nessa ideia; com um suspiro de desalento voltou à costura, e os seus olhos foram-se enturvando. Também o marido tinha tido grandes esperanças de fazer fortuna; também ele arquitetara castelos de ouro e cristal, e deitara-se ao trabalho com amor e coragem; também ele era probo, e digno, e leal, e aí estava agora quase inutilizado, desde que a maldita máquina de um trem lhe esmigalhara uma perna, mudando-lhe o seu gênio desembaraçado e viril, por aquela atual inércia, doentia e triste! 

A que está sujeita a gente de trabalho rude! Ela que, desde pequena, se mostrava tímida, encolhida pelos cantos, séria e franzina, era quem mais lidava e com maior ânimo, agora! O seu esforço seria compensado? poderia levar ao fim a criação do filho? Chegaria a vê-lo homem, bem educado, poderoso, feliz? 

Lembrava-se de que, da última vez que tinha levado roupa ao Arsenal, ouvira num bonde, entre dois sujeitos velhos e bem vestidos, uma conversa que lhe causara impressão. 

Falavam de pessoas de condição humilde quase desprezíveis muitas vezes, mas cuja inteligência, atividade e esforço conquistaram coisas estupendas no mundo das artes, no mundo da ciência e no mundo da política! Aludiam encomiasticamente a um rachador de lenha, que foi chefe de estado; a um filho de um tanoeiro que chegou a marechal de França e a príncipe; a um tecelão, nascido num subterrâneo, que foi um grande botânico... e a outros assim. 

Essa gente toda era apontada na História pelo seu valor extraordinário, tendo alcançado, a par de grandes fortunas, o respeito universal! 

Enquanto esperava que lhe recebessem o número, no Arsenal, ia repetindo de si para si a conversa dos velhos, a tal ponto que a chamaram de distraída... 

Distraída! O que ela estava era cogitando no futuro do filho! 

Interrompeu de novo a costura, deu mais luz ao candeeiro, dobrou umas camisolas já prontas, e recostou-se um pouco, descansando as costas que lhe doíam. O pequenito moveu-se; ela arranjou-lhe a coberta delicadamente, para o não acordar, e pôs-se a olhar para ele num êxtase. 

– Há de ser formoso, há de ser amado! virá um dia em que o solicitem outros amores, em que a paixão de uma mulher o atraia a ponto de esquecer-me! O sacrifício que eu faço, as dores que sofri, as forças que eu esgoto amamentando-o, tendo-o ao colo, perdendo com ele as noites, serão coisas ignoradas, ou de que ele não faça senão uma ideia incompleta! Meu filho! como eu já tenho ciúmes dessa outra que lhe há de absorver toda a intensidade do seu afeto! Mas não; ela será toda meiguice e amor, ela ajudar-me-á a fazê-lo feliz!... Ele é inteligente... ele terá mesmo um talento notável! Será grande; será respeitado... chegará aos cargos mais altos... meu filho! como ele é inocente! como ele é puro! Qual será o meu orgulho ouvindo chamarem-no: “Senhor doutor!” e vendo-o deputado, a falar nas câmaras, com muita nobreza e distinção, correto, simpático e justo! Depois... se isto chegar a ser República, como andam a dizer por aí, por que não será meu filho o presidente? 

Neste ponto os olhos da pobre mulher lampejaram de alegria; as suas grandes pupilas verdes tornavam-se verdadeiramente luminosas, atravessadas por uma alegria ofuscante, como se a sua alma fosse um intenso foco de luz! 

Presidente! ... presidente!... Sim, ele será presidente! Quando passar pelas ruas toda a gente o cumprimentará; e os ministros, fardados e veneráveis, curvar-se-ão diante dele com o respeito devido a um superior, nos grandes salões do um palácio onde ele habite. Terá carros luxuosos, cavalos e criados... À sua voz abrir-se-ão as prisões, os hospitais, os asilos, todos os edifícios onde a desgraça more! Clemente, consolará os tristes, levando-lhes no seu conselho ou no seu perdão a esperança e a ventura! As mães atirarão flores a seus pés; os moços saudá-lo-ão alegremente e as crianças cantarão hinos agradecendo a sua proteção, o seu amparo, a sua simpatia. A todos os recantos escuros descerá o seu olhar luminoso! para cada chaga terá um bálsamo, para cada mágoa um consolo, para cada vício uma reabilitação! A cadeira de veludo que lhe destinarem em todos os lugares em que tenha de comparecer, quer seja um lugar de festa, quer seja um lugar de dor, será sempre cercada de flores, atiradas aí pela multidão compacta do povo, que o proclamará, unanimemente, o melhor dos homens! Sim! meu filho será o melhor dos homens! Triunfante, poderoso, altivo, belo, adorado, há de levar-me pelo braço, a mim, velha, cansada, trêmula, e dirá à vista de toda a gente, sem se envergonhar da minha figura nem da minha ignorância: “Esta é minha mãe!” 

A costura do Arsenal caíra no chão; a visionária mulher tinha lágrimas nas faces, lágrimas de júbilo que aqueles pensamentos lhe davam. Nervosa, histérica, doente, deixara-se embalar de tal maneira pelas douradas quimeras daquele sonho irrealizável, que o julgava já exequível, certo. 

Voava pelo azul de sua fantasia, quando ouviu na escada os passos irregulares do marido, batendo nos degraus com a sua perna de pau. Correu a abrir a porta. 

O homem entrou carrancudo, confessando logo, à queima-roupa, estar sem emprego... Implicâncias e queixas de um fiscal... guardava as explicações para o outro dia; estava cansado. Deitou-se e adormeceu. 

A esposa, arrefecida, gelada por semelhante notícia, voltou para a costura; duplicaria o seu esforço, faria serão até mais tarde, talvez toda a noite... 

No entanto o relógio cansado ia batendo, uma... duas... três... quatro... até a décima segunda pancada da meia-noite; e no bercinho de vime dormia regalado o futuro presidente, com a cabeça enterrada na almofada e as mãozinhas papudas espalmadas sobre a colcha de cor.

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