10/28/2022

O véu (Conto), de Júlia Lopes de Almeida

 

O VÉU
(DAS MEMÓRIAS DE UM ESTUDANTE) 

... nas férias desse mesmo ano, decidi visitar a família, meu pai e duas irmãs, na pequena vila do meu nascimento, em São Paulo. 

Revoltado pela injustiça dos lentes, que me reprovaram no meu quarto ano de medicina, resolvi ir para o mato escrever em sossego contra eles. A vingança seria tremenda. 

Parti num dia de muito calor; ia indisposto e sonolento. Dando um puxão ao meu boné para os olhos, dispunha-me a adormecer quando vi sentarem-se na minha frente duas senhoras. 

Uma era alta, a outra baixa; uma esbelta, a outra atarracada. 

A baixa levava sobre o vestido de merinó preto um guarda-pó de linho com reversos de cor, chapéu de palha havana e luvas de meia pardas. Era mulher de uns quarenta e poucos anos, morena, luzidia e de lunetas de aro: tipo vulgar, burguês. A esbelta trajava com elegância um vestido simples de riscadinho cinzento, sem folhos nem fitas, guarnecido de pespontos, com um casaco justo que lhe denunciava a formosa linha do corpo e um colarinho à inglesa, muito unido ao pescoço. Chapéu do mesmo tom que pareceria mais um chapéu de homem se não lhe tivessem pespegado na frente uma grande ave de asas abertas. 

Desço a essas minudências de toilette porque elas constituíram logo para mim um ponto de estudo. A maneira de vestir indica fatalmente a maneira de pensar de uma mulher. E entre aquelas duas... 

que abismo! que extraordinária diferença! Era caso realmente para meditação. Eu observava ora uma, ora outra. 

As luvas de meia de algodão pardas da baixa faziam-me adivinhar mãos curtas, grossas, ágeis, afeitas à vassoura, à agulha, calejadas da tesoura, marcadas por queimaduras de calda ou água a ferver; as luvas de pelica da alta, justas e bem abotoadas, faziam-me sonhar com umas finas mãos muito macias e brancas, acostumadas a correr pelo teclado de um piano de Erard, a folhear os livros de Bourget, ou dos Goncourt, e a acariciar um angorá de preço, no aconchego tépido de um divã de seda. Os sapatos de entrada baixa da gorda, mostrando-lhe as meias cruas engelhadas nos tornozelos grossos, faziam declarações terrivelmente indiscretas: que aqueles pés tinham calos e unhas encravadas, que se punham assim à vontade pela obrigação de longas caminhadas enfadonhas e cansativas. As botinas de pelica da outra, lustrosas e estreitas, diziam o contrário. Estavam ali dentro pés mimosos, acetinados, habituados à valsa e à fábrica Ferry. 

Na larga cara da morena, úmida de suor e salpicada do carvão da máquina, li como num livro aberto: atividade, despretensão, pouca inteligência e uma pontazinha de gênio. Na cara da companheira é que não pude ler nada! levava-a encoberta por um largo véu claro, que passava e repassava em torno da cabeça, escondendo-lhe totalmente as feições. 

Era clara, loira, trigueira, rosada ou pálida? Não o podia eu então saber. 

Devia ser loira, que é o tipo requintadamente aristocrático. Aquela singularidade mesmo de um véu tão espesso, coisa perfeitamente explicável numa viagem em trem de ferro em tempo de seca e de pó, contribuiu para tornar mais curiosa e interessante a figura patrícia daquela senhora. Eu estudava-a e, à proporção que a estudava, ia-me apaixonando! Ah! não se riam! Que diabo há de fazer um rapaz de dezenove anos durante um dia inteiro de viagem, quando o acaso lhe atira para diante dos olhos uma estampa tão sedutora? Apaixonei-me, sim; mas não foi também tão subitamente como à primeira vista pode parecer! Fui-me apaixonando minuto a minuto, lentamente, primeiro pelos pezinhos, depois pelas mãos, depois pela distinção do porte, e finalmente pelo rosto que eu não via, o que não obstava a que o soubesse de uma brancura de leite e rosas, iluminado por um par de olhos rasgados, úmidos, prometedores de inefáveis doçuras. E, assim como eu percebera o caráter da outra pela cara, percebi, pelo conjunto gracioso desta, o seu gênio também. Era recatada, tímida, honesta, altiva, indolente – tanto quanto o exigisse a sua alta posição na sociedade –, rica e solteira. Encobria-se assim (e já eu fazia as minhas conjecturas!) porque, viajando sem o pai, acanhava-se de se dar a conhecer a toda a gente, evitando comentários; uma prudência louvável. Seria casada? Também podia ser; o papel de pai identificava-se com o de marido, sem que por isso o dela sofresse alterações: irmã ou filha da outra é que não era; isso jurava eu. 

O meu olhar fixava-se por tal forma na sua gentilíssima figura, que ela principiava a inquietar-se. 

“Sou um grosseiro”, dizia eu de mim para mim; mas não conseguia desviar a vista. 

Ali mesmo formei logo tenção de escrever um livro a que poria o título – as mulheres; livro esquisito, original, farfalhante como as sedas de Lyon. Era essa desconhecida quem me suscitava tão boa ideia. Abençoada fosse ela! Propunha-me (julgava-me habilitado para isso) a descrever os caracteres das mulheres que eu daí por diante encontrasse, só pelas suas manifestações exteriores. Na missa, no baile, em casa, no teatro, na maneira de ajoelhar, de abrir o livro, de dançar, de mover o leque, de receber uma visita ou de assistir a um drama, julgava eu, ainda inexperiente das suas dissimulações, que as poderia definir clara e positivamente, estampando-as depois com todos os cambiantes nas páginas do meu volume. Seria dedicado o meu trabalho à bela e misteriosa companheira de viagem, de quem então eu já deveria saber o nome. 

O nome! Como se chamaria ela? E andei à procura de um nome de mulher loira: Laura... Matilde... Alice... Lúcia... Aurora! 

Entretanto, chegamos a São Paulo. Anoitecia; os lampiões de gás espalhavam pontinhos de ouro pela cidade. Acabava-se o meu romance tristemente... não me podia resignar a isso. E, apanhando à pressa a minha mala, acompanhei as duas senhoras através da gare

Um sujeito aproximou-se delas, e curvando-se diante da mais alta, recebeu algumas ordens, rapidamente, depois acompanhou-as à rua, abriu a portinhola de um carro particular e voltou. Elas partiram, e eu, numa resolução digna dos meus dezenove anos, acompanhei-as noutro carro, até vê-las entrar numa casa apalaçada, ao lado de um jardim. 

A minha vila que me perdoe, e que me perdoe a minha família e que se regozijem os meus lentes ameaçados! esqueci-os e instalei-me por largos dias no Grande Hotel! As manhãs e as tardes gastava-se ou em passeio diante daquela grande casa sempre fechada, misteriosa como o véu, aristocrática como a dama. Por fim, num desespero de namorado infeliz, encostava-me à grade e ficava horas esquecidas olhando para dentro, sem medo de me tornar suspeito para a criadagem ou para a polícia, a ver cair lentamente, como lágrimas de sangue, as pétalas carnudas das camélias vermelhas. Tanto maior era a obstinação daquela senhora em se não mostrar, quanto mais veemente era o meu desejo de a ver. Passados não sei quantos dias, lobriguei numa manhã a companheira de viagem, a gorda, a sacudir um tapete numa janela; cumprimentei-a, sorri-me, fiquei atrapalhado, com vontade de perguntar alguma coisa, mas evitando praticar semelhante asneira. Ela compreendeu-me de certo, porque teve a amabilidade de convidar-me para descansar.

 – A senhora baronesa ainda está recolhida, disse com malícia; mas isso não o priva de entrar e tomar uma canequinha de café. 

Recusei e segui. 

Para encurtar razões: escrevi um dia à baronesa, e mandei-lhe a carta. Nessa tarde recebi um cartão dela consentindo que eu lhe fosse beijar a mão. 

Entrei na sua casa transportado de júbilo e já com o prólogo do meu livro feito para lhe mostrar... Nessa parte da minha obra, escrita em noites de febre um tanto romanesca, pusera eu, entre muitos adjetivos e frases modernas perfeitamente desconexas, num estilo à la diable40, toda a minha alma e aspiração de glória! 

Tinha antíteses medonhas, quadros terríveis em que a dúvida se divertia a queimar um pobre coração, revolvendo-o nas chamas de um amor intensíssimo! E por sobre isso tudo, uns salpicos de opoponax, que era o aroma em voga, e uns sonhos ideais, cheios de coisas mansas e doces melancolias, com que eu contava apossar-me do coração da bela baronesa. 

E era só imaginar o brilho dos seus olhos lânguidos quando me dissesse entusiasmada e feliz: 

– Como é belo! 

Fizeram-me esperar numa sala, em que ocupava a principal parede um barbaças condecorado. Estava ali havia uns bons dez minutos quando um criado veio dizer-me que a senhora baronesa rogava-me o obséquio do ir ter com ela a uma outra sala. 

Fui. 

Estava de pé e veio receber-me sorrindo com tristeza, e talvez também com um pouco de ironia... 

Ai de mim! Por que tirara ela o longo véu piedoso?! Era velha, a baronesa, velha e feia; mas bem velha e bem feia! 

Fiquei atônito, tendo a estupidez de deixar transparecer na fisionomia a minha amarga decepção; e ela, para vingar-se daquele imperdoável movimento, deixou-me logo cair no ouvido estas palavras agudas como punhais: 

– Meu menino, não se canse jamais em seguir as mulheres... que usarem véus muito espessos!

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