1/05/2023

6 rocks matutos & 1 romance rasgado (Poesia), de Salomão Rovedo

 

6 ROCKS MATUTOS & 1 ROMANCE RASGADO
(LIVRO 1)
Para dois amigos:
Beth – para ler e gostar(de novo)!
Pontes – cadê a viola de entremeio?

SAMBARRANCHO DO BAR JANGADEIRO
(LIVRO 2)
Para os amigos do Bar Jangadeiro dos anos ’80.
 


OS ROCKS MATUTOS

1
Ô Betinha
Não aguento apartamento
Nem fumaça nem barulho
Que hoje tem em Belo
Vida besta, ô.

Ô Betinha
Tou largando essa vida
Vou comprar uma picape
E fugir pro interiô
Vida mole, ô.

Ô Betinha
Vou erguer uma casinha
Vou plantar um roçadinho
Nas terras de meu avô
Vida dura, ô.

Ô Betinha
E esquecido deste mundo
Vou cantar com passarinho
As tristezas do amor
Vida curta, ô.

Ô Betinha
E num dia de chuvisco
Deixo a rede me levar
Pro braço de nosso sinhô
Vida Ingrata

Ô Betinha

2
– Betinha faz a fogueira
Que o tempo tá esfriando.

Acampado na areia branca
Nas margens calmas do rio
A brisa perpassa de leve
Trazendo com ela o frio.

– Betinha traz essa lenha
Tou todo me arrepiando.

Ouvindo o pio da coruja
Trespassar a escuridão
Enquanto a lua de prata
Cega a vista num clarão.

– Betinha acende o fogo
Meu beiço tá tremelicando.

Como um canto que embala
O berço da natureza
Daqui ouço o murmúrio
Da cascatinha lá longe.

– Betinha faz a fogueira
Que a noite tá regelando.

– Betinha não trouxe a lenha
Mas chegou se esfregando

– Betinha......... a lenha...
......... tou já me arrepiando.

O corpo nu de Betinha
Aos poucos foi me esquentando.

– Betinha......... esse fogo...
......... beiço tremelicando.

Nas águas mornas do rio
Nós fomos escorregando.

– Betinha......... a fogueira...
......... tempo......... ferventando.

**********

Amando que nem dois botos
Agarrados nós dois gozamos...

– Betinha apaga esse fogo
Que já tou todo suando!

3
Quando vi aquele mundo
Botei o pé na estrada
O mato verde sem fim
Com sua força danada
Atirava mil feitiços
Me pedindo pra ficar.

– Era Betinha encarnada
Me atentando com o olhar.

Pra todo lado que eu ia
Era mato verde e sossego
Misteriosa magia
Sequestrando minha alma
Um mundo de fantasia
Serenidade e calma.

– Betinha me atiçava
Com seu jeito de falar.

Pra não voltar pra cidade
Finquei os pés na ilusão
Até que as raízes de carne
Penetrem com força no chão
Fico aqui sorvendo as águas
Das torneiras do sertão.

– Betinha surge dos rios
Me tentando a mergulhar.

Nem sei se sou gente ou bicho
Se sou a raiz nem se sou o mato
Posso até ser gota d’água
A flor ou um fruto farto
Só sei que minhas sementes
Já brotam ao derredor.

– Era a uiara Betinha
Me seduzindo a amar.

Quando revi aquele mundo
Disse “Esse que é meu lugar”
O mato — o verde sem fim
A eterna magia do luar
Abrigavam mil feitiços
Me obrigando a ficar.

4
Betinha tomou uns goles
E logo se pôs a cantar

Invadindo a natureza
Sem igual no seu lugar.

– Gente vê que beleza
O sol nascendo no ocaso!

Assim castigava a viola
Ilustrando o louco causo.

– Bois cantam no poleiro
Galos pastam na campina!

A viola mais que geme
Lacrimosa a cada acorde.

– A sabiá laranjeira canta
Canta e fala a noite inteira!

Outra vez a viola é agredida
Mas não perde a realeza.

– A onça pintada latindo
Deixa arisca a galinhada!

Pra terminar com tristeza
Essa estranha violaria.

– Vem pra cá lua escondida
Vem iluminar toda poesia!

A viola em louca gemedeira
Encerra toda igual disfunção.

(Betinha com amor e sede
pousa o corpo na minha rede).

5
Betinha o som da viola
Lá longe cheio de graça
É de uma roda de canto
No banco daquela praça.

Debaixo do pequizeiro
Se forma logo uma troça
Daqueles que por amor
Andam largados na fossa.

O som ganha o terreiro
E pela gente perpassa
Doído, canoro, plangente
Uma leve brisa que passa.

Mesmo o mais duro coração
Resistir não há quem possa
Às tolas cantigas de amor
Que o amor antigo remoça.

O repinicado da viola
Pede que um brinde se faça
Àqueles amores infinitos
Com o tinir de duas taças.

Betinha o som da viola
Igualzinho ao teu abraço
É como reclame de amor
Que com amor eu te faço.

6
Quando cheguei lá na roça
O tempo tava gostoso
Queijo de coalho fresquinho
Um lombinho saboroso
Muitos amigos proseando
E a Betinha me assuntando
Com aquele olhar dengoso.

– Que pena me dá, Betinha,
logo logo eu vou simbora...

A turma me recebeu
Com viola e cantoria
Uma pinga de cabaça
Inspiração e alegria
Muito abraço apertado
E torresminho salgado
Que a Betinha fazia.

– As horas ‘tão se passando
e com tristeza vou mimbora...

A lua banhava um luar
iluminando o terreiro
Betinha pediu silêncio
E “sol menor” ao violeiro
Com uma voz maviosa
Uma cançoneta amorosa
Que tinha um alvo certeiro.

– Não chora Betinha — eu fico
mas amanhã eu vou simbora...

********

Comprei um sítio na estrada
Botei vacas no curral
Passarinhos na gaiola
Uns pintinhos no quintal
Betinha não desgrudava
E toda alegre me ajudava
Com as roupas no varal.

– Mais dia menos dia Betinha
eu tenho que ir mimbora...

Na rede o bebê chorava
Um choro de arrepiar
O cachorro latia fogoso
Pra garotada alegrar
No aconchego do quarto
Betinha dá o peito farto
Pro nosso neném mamar.

– Ê vida marvada Betinha
assim nunca eu vou simbora...

 

E O ROMANCE RASGADO

Me deu uma dor no meu peito
Quando Betinha partiu.
Disse o doutor
– Não tem jeito!
O estrago já tá feito.
– Coisa assim nunca se viu!

Rio de Janeiro, Cachambi,
9 de julho de 1992.
 

SAMBARRANCHO DO BAR JANGADEIRO

I
Outono dos mundos feridos, monopólio das mágoas, subsolo dos invernos, sob o sovaco do Cristo Redentor, nas faldas da Praça General Osório, principelhos fúfios namoram nas areias da Ipanema macanuda.

***

Folhas secas, amendoeiras, trilhas retilíneas, são molduras maldizentes das favelas, naco saboroso de ovação, pedacinho de apoteose, palco de areias pardas e águas verdes, onde naufragam galeões e paquetes, aonde a velha jangada vinda do Ceará foi notícia no O Cruzeiro, atracou heroicamente por mares nunca dantes navegados antes de regressar à praia de Iracema!

***

Sótão da primavera onde velhos marinheiros, transidos e melancólicos pelas ondas do mar, antecipam a morte no beliche, trupicam nos destroços carcomidos pela ferrugem.

***

Ali se pode ainda ser livre, mentir e desmentir, insultar e ser xingado, amar plenamente e plenamente amar. Alex repousa suas belas irresponsabilidades.

***

Mucama de pele branca, sereia de rio, animal de rio, uiara de rio. Fero olhar manso das mais amantes. Sirena maquiada de sardas feiticeiras, flecha as tardes dos corações outono.

***

Caso de eterno zumbaiar, mágica mancebia, impecável mundícia sentimental, pureza d’alma — diria — para ser louvada a cantigas e mil loas.

II
Como quem pede amor,
Vibra mais uma canção,
Reflexos de mansidão
Dos olhos vidros de Alex.

– Verdes olhos vítreos.

O rito do lábio em riste
Manchas de iogurte diet
Eis a estética de Alex
Vestida de sol poente.

– Despida das ipanemas.

Alex é impossível não amar!
Água salobra das lagoas
Descanso de fim de jornada
Os ombros varando os céus.

– Ombros do céu e do mar.

Não duvido desses olhos
Cheios de eterna frescura
Das heranças de feitiços
Não duvido desses vícios.

– Assoma brandura e calma.

Não duvido desses beijos
Não, Alex, indivisível abraço
Não divido o carinho atento
Emboscado em teu regaço.

***

– Tanta leveza — Alex...

III
Nas paredes do Bar Jangadeiro as marcas sensitivas estão registradas. Nelas se desenhou tantos grafitos das almas, quanto as pegadas do mesmo chão.

***

Em cada traço gotas de sede e fome — fome e sede de liberdade, dias de cicios, cochichos sussurros, mistérios. Signos secretos que marcam e desmarcam vidas, onde se pede o vício, o verso, o pó.

***

Os espelhos do Bar Jangadeiro refletem o caos da copa, copos de chope e som de fritura, ruídos de talheres, sons da cozinha, cheiro do banheiro sem grafites, desenhos, palavrões, desejos escusos, insuspeitos, palmas pra revolução.

***

Jaguar sente falta dos amigos. Estão em outra. Numa boa. Ou numa de pior. Por isso vive execrando sombras o inventor do feijão garni.

***

Lembra Vinícius exilado da própria Ipanema e do próprio Leblon onde jamais foi nem fez parceria com Toquinho?

***

É quando o chope vence o corpo que misteriosas visagens, miragens, almas desérticas, assombram a vista e tornam a alma transparente.

***

Parece um mar tão sereno, mas é nele que navegam tranquilos os blocos de icebergs assassinos, as balas perdidas invisíveis.

***

A gente se vê no Bar Jangadeiro!

IV
Olha estranho companheiro
aquele pássaro doente
– ele vai morrer.

Vê distinto amigo
aquele menino de rua
– ele vai morrer.

Mira preclaro colega
pombos sobrevoam a praça
– eles vão morrer.

Nota, solitário amigo
a praia só e suja de lixo
– ela vai morrer.

Até a mata amiga
tocos torcidos e negros
– ela vai morrer.

Cuidado companheiro
aquele areal já foi rico
– ele vai morrer.

E o sol o deus-sol
amigo inextinguível
– ele vai morrer.

Sol amigo de Ipanema
não explode nem se deita
– ele vai morrer.

Até a Pedra da Gávea
aventuras o sol percorrerá

– ele vai morrer.

V
De um lado o morro, tema de civilizações mui antigas, de muito batuque e muita cantiga. Do outro lado o mar de areias e sereias. Sem passado, sem futuro — o mar de hoje. Praias todo dia invadidas e banhadas. Atracadouro de infâncias. Cemitério de infâmias. Derrotas suicidas que derribam ideais das sociedades puritanas. No olho do furacão o Bar Jangadeiro — taba antiga na história da história. Távolas perpendiculares, frequentadores verticais tropeçando no subjetivismo alcoólico — matéria para iniciados.

Aonde atracou o jangadeiro
viajante do Ceará
encarando todos os demônios
do mar?

– Em Ipacema.

Vem a areia de Iracema
com a água de Ipanema
aventura, ousadia e amor
misturar?

– Em Ipacema.

Aonde herói vencedor
sertanejo do mar deixou
a vida largada e tentou
voltar?

– Em Ipacema.

Foi assim que nasceu a legenda e fama do lugar perto da areia da praia de Ipanema e esse nome — Bar Jangadeiro — ninguém mais pôde esquecer — era Ipacema!

Ali, com mureta e tudo, entre a praia e o morro, está fundeada a República das Alemoas Unificadas, onde se vive tecendo teias de vidas, intrigando o tempo, buscando sabe-se quantas e quais liberdades, confluências históricas, identidade do passado que não quer passar, nem fugir das zonas sombrosas da memória.

VI
Tamanhas implosões, nenhuma definição de fecundidade entre homens, mulheres, sujeitos, amigos, parias do espaço e do tempo aqui agora.

Fumaça, estampido, muita gritaria, a girândola ensurdecedora anuncia: é Carnaval!

O bloco Simpatia é quase amor ensaia e avisa que vai sair: é Carnaval!

Campanários de triângulos, afoxés, tamborins: é Carnaval!

Ouro revestido, camisas de mortiço colorido, suor de petróleo: é Carnaval!

O surdo de marcação rodeia a voz declamadora: é Carnaval! Camisetas de Bali, chapéus de Búzios, lenços de Java: é Carnaval!

O samba corre rasgado. O carro de som ilumina os corpos descamisados: é Carnaval!

Shorts do Hawaii, mulatas de Madureira e algures: é Carnaval!

Não importa, nada importa: é Carnaval!

Os cartazes de alforria e liberdade cospem mil palavras roxas de emoção.

Corpos lilases e amarelos disparam cadenciados no rumo da beira do mar. Véus de nuvens noivam no céu azul translúcido, o sol pepita dourada queima os corpos e segue rumando cada vez mais encarnado lá pelas bandas da Pedra da Gávea.

Saindo do Bar Jangadeiro nesse palco iluminado o Simpatia é quase amor, abençoado por Deus Redentor, vai destilar o carnaval de Ipanema, até que a tarde vira noite toscanejando pra lá das fronteiras com o Leblon. Nada faz perder a animação deslumbrada e sem exemplo.

Vai o bloco coleando as pernas pelas ruas, infatigável, trazendo de volta ao Bar Jangadeiro as fêmeas cada vez mais nuas na desordem dos prazeres carnavais.

VII
A turista argentina semidesmaiada, corpo em fadigas descorado, pele agora encarnadinha (desapiedado sol!), pés castigados pelo asfalto quente, bolhas de samba, atraca no Bar Jangadeiro, bem ali, à espera das pizzas de cetim e alho convidando o paladar.

***

Garganta ávida, sequiosa como um deserto das mil e uma noites, a turista avança incontida rumo ao chope dourado que corre quilômetros de serpentina para finalmente assomar na tulipa transbordando espuma cadente na bandeja, descobrindo segredos e ardis do chope bem tirado.

São amigos que se encontram pra falar de outras mulheres,
Falam de muitas mulheres os amigos que se encontram.
São amigos que descontam quando falam de mulheres, 
E falando de outras mulheres muitos amigos descontam.
São amigos que se encontram pra falar de outros amores.
Falam de muitos amores os amigos que se encontram.
São amigos que se esbarram quando falam de amores
E falando contam dos amores os amigos que se esbarram.
São amigos e se desencantam pra falar de outras paixões,
Falam de tantas paixões os amigos que se desencantam.
São amigos que se encantam a cada nova doida paixão,
Se encantam, se desencantam, amigos que se apaixonam.

***
Os amigos se encontram bem ali — no Bar Jangadeiro.

VIII
Espelho dos milagres é a Bolha — salão de cegos, corpo de cristal que retine e quebra em mil troços disformes — o Bar Jangadeiro é o salão de baile de todos nós notívagos.

***

Fogo-fátuo do retilíneo sol-da-meia-noite, luz de farol que não ilumina, anoitecer polar de veio horizontal. O jangadeiro ali aportou uma noite e ali desaguou os feitiços e os feiticeiros.

***

Ai dos emigrados, ai dos emigrantes, ai dos vadios — eles são banquetes de feras, parto das selvas de pedra.

***

Agora aporta no Bar Jangadeiro os marmanjos dos barcos sem leme, capitães partem, partes marujos, desaportam a cada hora da nau sem rumo, o barco sem vela, a lancha sem motor.

***

As moças acenam os lenços brancos e retornam abandonadas às camas banhadas de sangue himenal e luares. O Bar Jangadeiro é o próprio Bateau Ivre de corpo e alma, de carne e osso!

***

Proa de velhas sereias de madeira, virgem perdidas para sempre, marinheiros destemidos de pele calejada e enrugada pelo sal e sol. Hoje o Bar Jangadeiro nem é mais refúgio, nem mar de destroços.

***

Soçobradas vidas encalhadas nos corpos das mulheres e nos copos de chope estraçalham corações, cabeças, almas mentes alheias. Hoje é mar de destroços, refúgio de vidas despedaçadas, este Bar Jangadeiro...

IX
Como disse Amado Nervo:
“Se num mar de brumas caminhamos,
pelo menos — amemos!
E talvez não seja em vão!”

***

Sim nós sabemos aonde vamos,
mas — pelo sim, pelo não — amemos
amemos num bar de brumas
ainda que seja mesmo em vão!

***

Os véus da amizade abrem-se de vez
como um leque de beijos e abraços,
antena parabólica de carícias,
mesmo que ainda seja em vão!

***

Enfim, não pode ser a última,
a sala de espelhos, cegas aventuras
às vezes perdem o rumo na Bolha
e juram que não foi em vão!

***

Gente famosa — povinho anônimo,
cara que desdenhou a fama,
rosto que a fama largou de lado,
gente que nasceu, amou, morreu.

***

– E jamais terá sido em vão!

X
É tempo da pele se transformar em velame, tecido carcomido pelo tempo, encarquilhado pelo peso da irresponsabilidade.

Velhas amizades, antigos namoros nunca desprezados, extravasar a vida sem computar o correr das horas.

Ao escorrer do chope alourado, de extravagâncias desrespeitosas.

Ao sussurro dos gritos, escândalos acrobáticos caem por terra.

Os desprovidos de fé, de cútis sem brilho, de alma sem emoção, de olhos sem rímel — são corações atirados por aí, esparsos pelo chão, desenhando risinhos desprezíveis, de má fé, ódios enrustidos.

Jangadeiro, Bar Jangadeiro
Vago ponto escorregadiço
Desmarcando horizontes
As fronteiras escâncaras.

Bar Jangadeiro, Jangadeiro,
O chão só e indefinido
Visível a olhares iniciados
Linha macia como pelúcia.

Jangadeiro, Bar Jangadeiro,
Terra áspera, areia fronteira
Trespassam cotidianamente
Amantes perdições conhecidas.


Bar Jangadeiro, Ipanema,
Junho 1991 / fevereiro 1992.

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