1/05/2023

Atlante esmagado (Poesia), de Luís Delfino


ATLANTE ESMAGADO


NO JARDIM

Naquele engano d'alma ledo e cego,
Que a Fortuna não deixa durar muito.

Camões — Lusíadas

I
(Tarde de verão)

Dejando a los dos iguales
Dicha y desdicha...

Calderón de la Barca — Comédia

Ah! meu bem, eu só lamento,
Que talvez essa ventura
Não seja de tanta dura,
Quanto era bom esperar!...
Já que o tempo tudo mata,
Farta-me bem meus desejos...
Ai! sacia-me de beijos,
E deixa o tempo matar!..

Tudo dura pouco ou muito:
A sorte o que nos destina?
Se hoje o gozo não termina,
Esperemo-lo amanhã...
Ai! esperemo-lo!... E enquanto,
Prende-te bem ao meu seio:
Não tolde nenhum receio.
A tua fronte louçã.

Gozemos. — Que importa o resto?
Terra, inferno, paraíso?
Perdemos dois o juízo
No mesmo aperto de mão...
No mesmo arfar do desejo,
No mesmo tremor do seio,
No mesmo confuso enleio
Na mesma doida emoção!

Caímos. — Tu te abraçaste
No mesmo abismo comigo:
O nosso maldito abrigo
Tinha um encanto fatal.
Dormimos no mesmo lodo
Ocultos do mundo inteiro;
Junto ao nosso travesseiro
Cantava o anjo do mal.

Sorrias!... E o sol passava,
Beijando-te o céu da fronte;
E procurava o horizonte
Morno... calmo... sem parar.
Eu te apertava em meus braços...
Convulsamente apertava...
E quanto mais te beijava,
Mais te queria beijar!...

Parecia-me que a noite
Do nosso céu de ventura,
Tenebrosa, feia, escura,
Acaso podia vir:
Que este clarão misterioso
Deste sol de felicidade,
No abismo da eternidade
Podia breve cai!

Volta o sol. — Mas a ventura
Não tem tão certeiro giro...
Gozemos pois no retiro...
Deus enche os abismos, dando
Tantas pérolas aos mares,
Astros à noite aos milhares,
Milhões de flores ao val.

Deu ao nosso fundo abismo,
Que tantas sombras reveste,
Esta ambrosia celeste
De leite, de mel, de amor!...
Gozemos. — Antes que chegue
O fim, que tudo ameaça,
Esvaziemos a taça,
Antes de em meio a depor...

Quem sabe? — Gozemos hoje...
Manhã por vir não é nossa...
E a vaga, que engrossa, engrossa,
Da praia estala ao sopé...
Quem sabe? — A árvore pende,
Com o fruto de ouro, e deixado,
Qualquer vento inopinado
Pode arrancá-lo! — não é?!

II
Não sei se fiz mal, se bem.

Bernardim Ribeiro — Menina e Moça

Pusera-se o sol. — Qual fumo
De uma caçoula apagada,
Via-se a névoa enrolada
Nos crespos cimos crescer.
Além da amplidão das águas
Mexidas ligeiramente,
Branca lua no oriente
Mal vinha então de nascer.

À aragem trêmula, — as flores
As róseas frontes baixavam,
E no caminho entornavam,
As urnas do seu olor:
Moldurava a natureza
Um quadro de ébano e prata...
Ao longe a sombria mata
Fazia surdo rumor!...

No tanque, que a lua banha
De moles clarões, nadava
Alvo cisne, que cortava
As águas sem as turvar...
Raras estrelas fixadas
No fundo dessa bacia,
Tinham tal melancolia
Que pareciam chorar!

Os nossos olhos buscavam
O que perto e longe havia...
Branca vela além corria,
— Branca pomba em branco mar —
Os remos iam fazendo
Leve rumor... leve espuma:
Um carro de bois, em suma,
Dorme, sem bois, junto ao lar.

Do raro arvoredo a sombra
Esparsa no chão flutua...
Nas vidraças bate a lua,
Dentro delas não há luz...
Não sei que mau pensamento
Nosso respirar comprime!...
Ai! talvez o anjo do crime
Ali a sós nos conduz.

Latiu um cão... Não sei onde...
Sombra do doce ruído,
Que ofendendo o nosso ouvido,
Convulsava o coração...
E eu sua mão apertava
Naquele jardim ameno...
E um lento, lento veneno
Me entrava por sua mão!...

Fez-se depois um silêncio,
Que espreitar-nos parecia;
Nenhuma folha caía,
Nenhum estranho rumor...
Nenhum estremecimento
Pelos troncos... nu, deserto
Céu, e mar, e terra... e ao perto
Tudo a espiar nosso amor!

Assim na vaga azulada,
Como nos braços da amante,
Asa aos ventos, branquejante,
Palpita, ofega o batel;
Não está longe a praia: ri-lhe
Perto a esperança fagueira:
Prende-o às vezes na carreira
Rude punho de um parcel...

Oh! quem pudera, meu anjo,
Prender esta natureza,
E ter a doce certeza
Que não nos fugira mais!...
Nós aqui juntos... sentindo-a,
Como o fremir de um navio
Atado às margens de um rio

Nas hastes dos palmeirais!...
Sim! no oceano dos tempos,
Que corre incessantemente,
Uma hora destas somente,
Quem pudera suspender!
Sentir os haustos profundos,
Que saem da imensidade...
Gozar dessa eternidade...
Depois... e depois?... morrer!...

Ai! morrer entre os teus beijos!
E à sombra do teu sorriso
Ir até ao paraíso
Levado por tua mão...
Nenhum parcel entre as vagas,
Nos rosais nenhum espinho...
Enfim seguir o caminho
Por onde os ditosos vão...

Eu que sabia que o tempo,
Que é tão tardo ao desgraçado,
Foge com voo dobrado
Dos felizes: exclamei:
— Podes fugir... leva... arrasta
Tudo em tua correnteza;
Fica-me embora a certeza,
De quanto... quanto gozei!...

Sei que virei talvez cedo,
Ao mesmo jardim querido...
Que tudo terei perdido
Com ela... pois o não sei?!...
Lua, brisa, troncos, flores,
Esta relva de veludo...
Sim! hei de ter talvez tudo...
E a ela só não terei!...

Terei do quadro a moldura:
Sim! terei a natureza!
Mas não terei a beleza,
Que fazia o encanto seu:
Que importa o estojo dourado,
Que tinha dentro o diamante,
Quando esta pedra brilhante,
Mau fado! já se perdeu?!...

Vaga inconstante do tempo,
Que sobre nós ambos corres,
Bem cedo, bem cedo morres!
Mas como ensopada vais
Dessas lágrimas tão doces
Que à alma arranca a ventura,
Porque nessa hora a criatura
Tem menos riso e mais ais!...

Eu prelibava a saudade
Deste tempo, que fugia...
E minha fronte caía,
Mau grado meu! de terror;
Ela entendeu-me a tristeza...
— Era a sua alma tão minha! —
Que a mesma tristeza vinha
Lavar-lhe a fronte em palor!

Nisto um suspiro saiu-lhe
Do lábio quase entreaberto;
E todo aquele deserto
Pareceu-me suspirar:
Assim quando o vento passa,
Branca vaga que se alteia,
Cresce... ondula... e cai na areia,
Geme... ondula... — e volta ao mar.

Assim transborda do vaso,
Alva gota cristalina;
Não do vaso, que se inclina,
E derrama o doce olor,
Porém de vaso tão cheio
De um licor ebrioso e santo...
Que é tanto... tanto... mas tanto...
Que há de algum por fora pôr.

E eu tonto... perdido... louco
Naquele deserto espaço,
Peito a peito, braço a braço,
Já não sabia falar...
Eu enleava-me em torno
Dessa divina cintura,
E já sentia a quentura,
Que me devia matar!

Dava-lhe a lua na fronte
Alva, bela, alabastrina...
Como uma espessa cortina,
Ou como sombrio véu;
Os bastos cabelos negros,
Que mansa brisa agitava,
Do mundo aos olhos furtava
Aquela visão do céu.

De joelhos ao relento,
Vendo também as colinas
Em seu manto de neblinas
Ajoelhadas — talvez —
Naquela luz duvidosa,
Que toda a terra embebia...
Eu não sei o que fazia...
Ela... não soube o que fez!...

 

SONHAR! SONHAR!
(Num álbum)

Nel dolce tempo della prima etade...

Petrarca — Rime

Da vida ó mocidade, ó gentil primavera,
Em que tudo é rosal, luz, perfume, sorrir;
Em que, pra o moço, é curto o espaço desta esfera,
Em que ele pensa em breve a outra esfera subir;

E prepara em silêncio, e no estudo, e no olvido
As asas de condor, e mede o voo audaz;
E no palor da fronte, e olhar amortecido,
Como sob um lençol de cinza, — um vulcão traz;

Em que a esperança toda (ele o vê, ele o sente)
O arrebata fugaz por páramos além;
E a fé é o anjo puro, a guiá-lo de frente,
Lançando ponte da asa, onde um abismo vem;

Oh! nessa bela idade, em que o riso volteia
No ambiente, — em que a luz doira todo o existir,
Que por escada de ouro a mente galopeia,
E vai, num céu sem fim, como um tufão, cair...

Que eu não veja a descrença, erguendo a mão medonha,
Limpar-te os sonhos bons da fronte juvenil!...
O mais belo da vida é quando a gente sonha:
Que ninguém toque e quebre o teu sonho infantil.

Sonha que a liberdade o mundo inteiro cobre;
Sonha que o mundo é bom, sonha belo o porvir;
Sonha a virtude, a paz, o que há de belo e nobre;
Tudo quanto há de grande: — o sonhar é dormir!...

E nesse eterno sono o anjo da esperança,
Nos céus e em Deus o olhar sereno e paternal,
Te embala o berço puro, e leve-te, ó criança,
Do sonho deste mundo ao infinito real...

Vive a pérola assim no fundo do oceano,
Ruge por cima dela o feio temporal,
Cospem por cima dela as vagas todo o ano,
Vive a pérola branca em leito virginal.

Mas se acaso algum dia acordares do sonho,
Como às vezes se arranca a pérola do mar...
Então podes chorar... — O viver é medonho!
Hás de ter pena então do teu sonho acabar.

Então compreenderás a dor que em cada ruga
De nossa fronte habita, — e o vento que a cavou:
É que o sol da manhã muitas vezes enxuga
A lágrima que à noite o rosto nos molhou.

Assim em chão cavado, e seixos revolvidos,
— Leito de uma torrente antiga que passou, —
Bate o sol, cresce a relva e matagais floridos,
O rio já não corre e o leito ali ficou!...

 

FATALIDADE

Amor meus, pondus meum.

I
Quisera à luz dos teus olhos,
Pois dela se inundam tanto,
Soletrar o livro santo
Do teu coração, mulher:
Ler nessas páginas rubras,
Em que teu sangue crepita,
A minha sentença escrita,
A minha sorte sequer.

Ler através do teu riso,
De tua frase convulsa,
O teu coração, que pulsa,
Que diz o teu coração,
No teu desdém, no teu gesto,
Na tua voz, nos teus passos,
No movimento dos braços,
Na tua mesma emoção.
Ler, através do perfume,
Que todo teu corpo exala,
O que diz, e pensa, e fala
O teu livro virginal.
Lê-lo, como o sacerdote,
Ajoelhado, e contrito,
Segundo as normas do rito,
Lê no dourado missal.

Lê-lo: e cheio de respeito
Beijar a capa de fora,
Depois de fechá-lo embora,
Depois de sair do altar:
Ler assim teu livro belo
Com devoção e humildade,
Beijá-lo após; e quem há de
Lê-lo e pois o não beijar?

II
Mas a capa do teu livro
É essa epiderme fina
Que tu, ó mulher divina,
Não me deixaras tocar;
Nem me deixaras de leve
Passar o meu lábio ardente,
Embora o mais santamente
Que um lábio pode passar.

Se eu pudesse nessas folhas,
Escritas com sangue rubro,
Ver o que em ti não descubro
No olhar, no gesto, na voz,
E na página mais bela
Do teu virginal poema
Ler minha sentença extrema,
A minha sentença atroz...

Lê-la no estilo dos anjos,
Que falam às criaturas,
Como as estrelas mais puras
A Deus só devem falar...
Que eu lá não tinha uma letra
Em tudo que há lá gravado...
Ver o meu nome lançado,
Como um cadáver no mar?!...

Pousado à luz esplendente,
Que todo teu corpo escorre,
Boiando, como quem morre
Num naufrágio, sem ninguém,
Sem mãe, sem pai, sem amigo,
Enfim sem palmo de terra,
Que o corpo mais pobre encerra,
Que até um cão mesmo tem...

— Bendita... bendita sejas
Em tudo que de ti parte, —
Eu diria, sem lançar-te
O mais ligeiro sinal
Da funda dor, que cruciara
O meu coração ferido,
Roto, esmagado, vencido
No seu desastre total.

Para ti pedira a bênção,
Num inefável arroubo,
Aos dois extremos do globo,
Aos quatro extremos do céu:
Todas as brancas carícias
Afagando o teu futuro,
Um anjo as pedras de um muro
Erguendo contra o escarcéu...

Amo-te e nada te peço:
Teu corpo e tua alma eu quero
Mas sabes? eu nada espero,
Nem ainda compaixão:
Eu amo-te; — isto me basta:
Para amar não é preciso
Ter em paga algum sorriso,
Queira muito o coração.

Bendito o bem que me faças,
Mesmo o mal que me fizeres;
Entre todas as mulheres
És como o lírio do vale:
Nega-me tu teus perfumes,
Vota-me um ódio profundo;
Tu és o sol do meu mundo:
O meu amor é fatal.

III
São para mim teus olhos um mistério.
Que procuro sondar. — Embora cismo,
Procuro embora nesse fundo abismo
A luz, que me dirija; e é tudo em vão:
Tem da pomba a fremir o arrulho, o beijo,
Tem da estrela da tarde a luz serena,
Tem a suave, a doce cantilena
Do sabiá em noites de verão:

Tem da lágrima santa o doce brilho,
A languidez da juriti no mato,
Tem das virgens o trêmulo recato,
E a frescura do orvalho matinal:
Tem a oração da tímida criança.
Tem da mulher o voluptuoso encanto,
Tem sorriso e prazer, tem mágoa e pranto;
E é como um ninho em meio de um rosal.

E é como um ninho esplendoroso e quente,
Deixado acaso em perfumada moita,
Onde o rei das canções, que ali se acoita,
Com elas enche a extensa solidão;
Como um navio velejando à tarde
Entre o abismo dos céus e o azul dos mares,
Quando as brisas penduram-se aos palmares,
Que os nautas levam sobre o coração;

Oh! como um ninho, que tem dentro dele
Dois colibris, que voam noite e dia,
Dos cílios entre a fresquidão sombria,
No langue ardor da cálida estação:
Mas nesses olhos, onde os astros dormem,
Trocando o céu por outro céu mais belo,
A sombra negra da paixão de Otelo
Passa rugindo com um punhal na mão...

Os teus olhos!... o livro que procuro
Ler noite e dia, e sempre, e que não leio!...
Sei que é feito de luz e sangue, e cheio
De poemas, que os anjos ditam só,
Quando as escadas de ouro dos seus sonhos
Descem num bando alegre e luminoso,
E perturbando-a no infantil repouso,
Sacodem-lhe das asas todo o pó.

Quem há de ler o edênico poema,
De que ela só conserva a chave de ouro,
Guardando-a como quem guarda um tesouro,
Que não há de jamais dar a ninguém!
Ó meu amor, levanta um pouco a folha
Deste encantado livro; abre, um instante,
Uma página só; eu delirante
De joelhos lerei tudo que tem.

Mas quando haja uma estrofe, em que meu nome
Ferido, como Dante fulminava,
Quando o seu verso vingador cravava
No largo, enorme flanco de algum réu...
Torcido, atado ao poste do desprezo,
Nu, como Adão do paraíso, expulso,
E arremessado por teu pé convulso,
Anjo de amor, do teu formoso céu...

Assim mesmo mendigo, e inda orgulhoso,
Sem te pedir da compaixão a esmola,
Mesmo de longe, ó pérola, consola
Meu coração por ti cair, morrer:
É-lhe inda gozo o último suspiro,
E, ao convulsar da última agonia,
Dizer: — Mulher, eu nada te pedia:
Amo-te, acabo, morro: é meu prazer. —

Mas, arcanjo de luz, eu só deliro:
No livro dos teus olhos nada leio:
Quem assim perturbar minha alma veio,
Como quem lança o vento no areal?
Teus olhos têm da pomba o doce arrulho,
Da estrela a luz tremida, e a macieza,
Quando dentro das águas brilha presa,
Como uma gota de ouro num cristal;

Tem o encanto que cega, e que fascina,
Tem o gemer da juriti viúva,
Tem o murmúrio e o cintilar da chuva
Por entre as folhas cheias de arrebol,
Tem a carícia branca da criança,
O lascivo calor da primavera...
Seus olhos rolam na serena esfera
O céu todo banhado em luz do sol.

IV
Mas a cor deles? Pela cor das águas
Se sabe a profundeza do oceano:
E o que há no fundo coração humano,
Os olhos... ai! os olhos não dirão?
Todavia a cor deles é suave,
Como um clarão de tíbia estrela à tarde:
A cetinosa luz, que há neles, arde,
Como o balbuciar de uma oração.

Dizer aquela cor de olhos tão puros,
Em cujo abismo o meu destino ponho,
Não sei: é um lago de encantado sonho
Mais extenso que o céu: a doce luz
Que o banha, tão profundamente desce
Que chega ao coração e volta quente:
Como o sol no vastíssimo oriente,
Calor suave o seu olhar produz.

Mas a cor deles? — Banho-me em seu olhos,
Como quem entra pelo mar em fora:
Bebo a luz deles, entro pela aurora
Balsâmica, que os doira; e acho-me bem:
Nado naquele espaço limitado,
Como quem nada pelo espaço infindo:
Como é tépido e bom, macio e lindo!...
A cor dos olhos seus pois a que vem?...

Bom. — Saiba o mundo a cor dessas cadeias,
Que eu, como Prometeu vencido, arrasto,
Mas... que eu de mim jamais iroso afasto,
E encontro mesmo amargo encanto e ebriez:
Pois são castanhos com reflexos negros,
Bem como negra nuvem na enxurrada
Dos incêndios vermelhos da alvorada,
Que inda de todo a noite não desfez.

Oh! que me importa a cor, quando eu perdido
Na vastidão daquele mar sereno,
Vejo-a só grande, e tudo mais pequeno?!...
A terra, o céu, o oceano, o sol, e Deus,
Porvir, passado, a eternidade, o espaço,
O que quero, o que sonho, o que procuro,
Luz, carícia, prazer, amor, futuro,
Todo o universo está nos olhos seus.

V
Vou como a queda de uma catapulta,
Que o braço move, e após seu próprio peso:
Vou, sim! como quem segue um fogo aceso;
Mau grado meu, eu te seguindo vou:
Atrai-me a direção da mesma linha,
Imaculada força, amor, virtude,
Parte dessa divina infinitude,
De que eu também mínima parte sou.

Ouvir a voz do pássaro que canta,
Que canta só em tua linda aurora...
Se não o ouvir cantar em ti agora,
Quando hei de ouvi-lo, em que manhã? Não sei.
Para ouvi-lo em jardins paradisíacos,
Moitas cheirosas, burilados lagos,
À sombra, que derramam teus afagos,
Crera-me um deus: — pouco era o crer-me um rei.

Pudera, a uma das mãos erguera abismos,
Com outra dentro os teus desdéns lançara,
E, com a voz, ao céu dissera: — Para: —
Para ter sóis, que te deitar aos pés:
Vendo essa poeira de ouro solta, ondeando,
Num rio a crepitar de luz fluente,
Eu ficaria estático, e contente,
Ao ouvir-te perguntar-me então: — Quem és? —

Oh! não fujas!... Não vás além do oceano
Levar os lagos, em que eu mato a sede
Do belo e do infinito: e que não hei de
Jamais... jamais na terra achar sem ti:
Fica: — nessas lagoas esplendentes
Dos olhos teus eu dormirei sonhando:
Num barco de ouro e azul irei passando,
E sonhando morrer, como vivi.

VI
Quando me vejo lá dentro,
Com tanta luz transparente,
Que o céu rumoroso e quente
Tem dos belos olhos teus,
Eu não invejo as estrelas
No seu ninho azul celeste:
Pelo lugar, que me deste,
Não troco o que dera Deus.

Não troco o céu: não trocara
Do céu o eterno destino
Por esse Éden pequenino,
Em que estou lá tão feliz;
Lá dentro, na carne dela,
Fundido, unido, agarrado,
Como um animal deixado,
Que alguém enxotar não quis.

Mas orgulhoso e tão cheio
Da minha nobre conquista,
Que ao céu levantando a vista,
Achava pequeno o céu,
Com o seu Deus, os seus astros,
E a sua falange imensa:
Ninguém sabe ninguém pensa;
Seus olhos são meu troféu.

E eu ali dentro, no meio
Daqueles lagos brilhantes,
Nadando breves instantes,
Cisne dos lagos da luz,
Surdo ao rumor do teu tédio,
Como a voz das ondas quérulas
Ouve a pérola das pérolas,
Quando entra as águas de Ormuz.

VII
Mas... quem me diz a mim, que é com desprezo,
Que ela me vê, que me recebe, e deixa?
Aos ventos lanço minha eterna queixa,
Sem mágoas dela, sem razão de ser;
Se ela não sabe deste incêndio grande,
Grande, como os incêndios de uma aurora,
Que a alma toda me queima, e me devora,
Em que por ela me consumo a arder!...

Ó minha cinza tépida e brilhante,
Que o vento há de espalhar na terra um dia.
Muda em notas de amplíssima harmonia
As fibras do queimado coração;
Ele foi uma lira dedilhada
Constantemente aos pés dos seus altares,
E o canto, que murmura inda nos ares,
Só dela teve vida e inspiração.

Ai! tudo diz que ela bem sabe e palpa
Todo amor que bebi a lentos tragos,
Como o cisne que vive em mansos lagos,
E nunca dentro as asas mergulhou:
Mas eu... para molhar as penas brancas,
Fui meter-me no fundo cristalino:
Meti-me em todo aquele ser divino,
E ela em seu infinito me afogou...

Ai! sou dela!... Ela só me tem agora
Nessas águas divinas balouçado,
Como um tronco das margens arrancado,
Vou por onde a corrente me levar:
Vou no esplendor e no marulho brando,
O céu estrelas sacudindo, — e eu cantos:
Rio, que espelha a luz dos seus encantos,
Irei assim à eternidade... ao mar.

VIII
Que importa? Deus está dentro em mim mesmo:
Eu tenho em mim o inferno e o paraíso:
Um é teu tédio, o outro teu sorriso;
E é minha a infinidade e eu dela sou.
Eu sei que andas em mim ao mesmo tempo
Na família, na raça, e ideia e esforço;
Que anda o universo sobre o nosso dorso
Que nele tu e nele eu mesmo vou.

Do belo o instinto, a norma da justiça,
Jaz em nós mesmos, como planta em germe;
Busco amor, como amor consigo quer-me;
A tendência do bem é lei fatal;
Tu hás de em ti sentir o mesmo impulso;
Há em nós o equilíbrio das estrelas;
Elas nos veem e nós estamos a vê-las:
Nos leva a todos nós o mesmo ideal.

Está começo e fim de tudo em tudo:
Do abismo o fundo, o fundo do sublime,
Um enchendo a virtude, um outro o crime,
No fim do tempo a misturar-se vêm.
Não haverá eleitos, nem precitos;
A dor e o tempo tudo purifica:
O que há de ser, enfim tudo o que fica,
É um grande esplendor de sol — o Bem

Nós somos como a serpe mutilada,
Cujos anéis procuram-se, saltando;
Que hão de unir-se em um dia... não sei quando...
A eternidade longa margem dá:
Mundos novos virão depois dos velhos,
Feitos de mortos sóis, que irão na cova
Buscar novo alimento e vida nova...
Novo e velho!... o que existe inda haverá...

IX
Quando virem boiando ao tom das águas
Um cadáver de luz, ide buscá-lo:
É minha alma em meus cantos: quanto falo,
Quanto gemo, minha alma em si levou:
É minha alma em meus cantos: — Pobre Ofélia,
Louca morrendo sobre as suas flores,
À espera de uns fantásticos amores,
Que só na morte enfim ela encontrou.

Quem sabe se inda debruçada um dia
Rubros os olhos seus, túrgido o peito,
Não terei nela a palidez de Hamleto,
Sobre um cadáver delirando em dor!?
Ai! estarei mudo, como estava Ofélia,
Sem poder levantar-me, e erguer meus braços,
Enquanto além no fundo dos espaços,
Beijam-se os astros trêmulos de amor!

Enquanto canta um pássaro tardio
Nas franças do arvoredo, que se agita:
Enquanto pela abóbada infinita
A alma das coisas suspirando vai:
Enquanto o ninho aquece o par, que dorme,
E há de amanhã ao sol andar em festa:
Enquanto dos mistérios da floresta
Surdo gemido de água em fúria sai...

X
Será pois que profundo amor não pode
Existir neste mísero planeta,
Que de Romeu flutua à Julieta,
Achando sempre um doloroso fim?
Ó grandes bebedores de ambrosia,
Grandes ébrios de luz e de ventura,
Só podereis fazer na sepultura
Vosso primeiro e último festim?

Heis de matar a fome, que enlouquece,
Nas brancuras da espádua adormecida?
E a luz do amor, que há só gozar em vida,
Permite Deus que acabe de uma vez?
Taça da fé, por onde o sol se bebe,
Eternidade! ó sonhos!... esperanças!...
Estes amantes, tímidas crianças,
Ai! precisam que vós os consoleis.

Como soa vazio este universo,
Dando um som cavo; taciturno e oco,
Quando perdido, arrebatado, louco,
Encontro o espaço e a eternidade só!
Ó Julieta, ó Beatriz, ó Laura,
Este universo não... não está deserto,
Se Deus não está por aí ou longe, ou perto,
Por força está no céu de vosso pó.

XI
Almas feitas de fogo e de harmonias,
Almas feitas de amor e tempestades,
Puros Romeus de todas as idades,
Ó vós, poetas, sonhadores vãos,
Após de qual quimera ides perdidos?
Qual é pois o ideal que vos fascina?
Morrer de amor pela mulher divina,
Morrer apenas lhe beijando as mãos?

É este o vosso sonho, ó loucos? Este
É o corcel de esplêndidas batalhas,
Cravando os pés nas asas das metralhas,
Lá dentro indo aos vulcões buscar troféus?
Isto vos faz atravessar os mares,
Agarrados nas clinas da tormenta,
Por que aí longe claridade lenta
Vos mostra a porta ideal de uns róseos céus?

Doidos! Abris as veias inflamadas
De um sangue feito de metal fundido,
E abrasando com ele o chão, vencido,
Cada um de vós, ou vencedor morreis?
Amo os vossos farrapos gloriosos:
Sóis, as vossas misérias quero tê-las:
Vossos rasgões, alvéolos de estrelas,
Valem mais do que as púrpuras dos reis.

Feridos, dos profundos surcos golfam,
Astros em jorro, em trêmulas cascatas:
Corcéis de luz, as rumorosas patas
Fazem saltar do chão mais luz, mais sóis!
Passam, lançando incêndios, e arruídos...
0 mundo, que os aplaude, enche-os de apodos:
São para os povos, que iluminam, doidos:
Mas a história, que os guarda, os chama heróis.

Ai! mulheres, contudo a sombra vossa,
Uma flor seca, um fio de cabelo,
Mártir, herói, prodígio, assombro fê-lo,
Correndo à glória dos lauréis após.
São vossos nomes talismãs preciosos
Naquelas grandes almas enterrados!
Vós, mulheres, fazei-os desgraçados,
Mas também grandes só fazei-os vós.

Reais amantes, ou ficções divinas,
Ó Fausto, ó nunca impura Margarida,
Ó Werther, ó Carlota, e pois a vida
Há de ser sempre um delirar sem fim?
Os corações passando lado a lado
Cheios de amor, sem se entenderem nunca,
E a dor, voraz abutre, a garra adunca,
Dilacerando-os para atroz festim?

Mas... quando eles beijando as mãos à Ofélia
Louca de amor, à Julieta morta,
Acham a sombra de não sei que importa,
Que não era a mulher dos sonhos seus,
Não podem procurar a verdadeira?
Ó Fornarina, ó Laura, ó Formosura,
A chama deles sempre é nova e pura:
Ó Lovelaces, inda sois Romeus...

XII
Mas quem és tu, brilhante grão de areia
Do tamanho de um mar em meu destino?
Chave de ouro de um céu, que eu imagino,
E cujas portas nunca se abrirão,
Eu conheci-te em breve, e amei-te logo:
Eras a irmã da aurora, que nascia;
A luz do céu na tua fronte ria;
Era um mundo de luz teu coração.

Entre os jardins da Ilha dos amores
Podia ter-te deslizado a vida:
Podias ser do grande Tasso a Armida,
Rica, formosa, grácil e gentil:
Um céu de flores te abraçava em torno,
Um céu de encantos te coroava a fronte,
Um céu de estrelas era-te o horizonte:
Era o mar outro céu de brando anil.

Eras a fada que podia tudo:
Tinhas na mão fatídica varinha;
E tão naturalmente eras rainha,
Que em tudo tu mostravas teu poder:
Muito céu te afagava os pés e a fronte,
Mágica flor dos carmes do Oriente,
Porém o céu melhor, mais doce e quente
Era o teu coração, em sóis a arder.

Ai! o teu coração!... Vi noutro tempo
Nas veias do teu rosto transparente
O paraíso luminosamente,
Em um deslumbramento de esplendor:
Ele radiava no tremer dos lábios,
Do corpo esbelto no gentil meneio,
Nas duas ondas límpidas do seio,
Nas duas mãos de matutino alvor.

Podia ser amada e amar-me. Amar-me?
Fora preciso ser maior que Dante,
Mais feliz do que Tasso, o louco amante,
Para tão insensata aspiração:
Ela era um céu de um mundo de harmonias,
Só para ela Atlante, e enfim Colombo;
E eu era apenas taciturno pombo,
Vivendo até na estranha solidão.

Ó orgulho! ó miséria! ó lodo! infâmia!
Tu és mais que o demônio em nossas almas;
As mais brilhantes, mais formosas palmas
Por ti deixamos de colher talvez:
Tu nos segredos baixo, e cauteloso,
A ironia e o desprezo ao bom, e ao belo:
Pões o punhal a arder nas mãos de Otelo,
Pões na fronte de Hamleto a insensatez.

Ó tu, orgulho, velho chocarreiro,
Cedi à malvadez dos teus conselhos,
E em vez de ter o céu nos meus joelhos,
Ao luar do seu rosto, ali feliz
Saindo das auroras dos seus braços
Para milhões de estrelas dos seus beijos,
Fartando os seus, fartando os meus desejos,
Louco, orgulhoso, infame, mau... não quis.

Agora choro. Agora é tarde: agora
Vou da noite profunda às horas mortas
Sentar-me ao limiar daquelas portas,
Que abrem para esse céu, que abandonei.
Dormes, fada, lá dentro em teus castelos?
Eva inocente, em teus vergéis descansas?
E dar-me-ias a esmola de esperanças,
Se eu tas pedisse, envilecido rei?

Ai! o que quero, que tu possas dar-mo?
Quero sentar-me apenas ao teu lado,
Como a pomba, a quem dás o pão deixado
Cair dos céus de tuas mãos gentis...
Um cantinho do céu nos teus vestidos,
Para saber como é que Deus nos fala:
E sob o aroma, que teu corpo exala,
Reparar aos teus pés o mal que fiz...

 



LÁGRIMA MAIOR QUE O MAR

O mar!... o mar!... o mar!...a arena das procelas,
Onde o tufão sacode as rábidas lufadas,
Onde o raio revolve as eternas querelas,
Onde respondem logo as vagas convulsadas,
Onde as asas se veem das grandes brancas velas
Voar, como de uma ave as penas arrancadas.

O mar!... o mar!... o mar!... a lágrima profunda
Caída pelos céus dos cílios do infinito,
Que dois terços da terra abraça, aperta, inunda
Com seu tremendo, rouco e impetuoso grito;
Lágrima enorme, amarga, irrequieta, iracunda,
Dentro de um vaso de montanhas de granito.

O mar! quem o não ama? o mar! quem o não teme?
Quando sacode a juba inflamada e vermelha,
Quando o seu dorso salta, encurva-se, e refreme
Retalhado a farpões de rúbida centelha,
Quando se lança após do furacão, que geme,
E a luta colossal da Águia e do Leão semelha...

Cobre-lhe o peito e a espádua azul, como mortalha,
Toda a espuma da boca horrenda escancarada:
Uma risada atroz, histérica, farfalha
Na verruga de um seixo aos ombros agarrada:
Aquela água está sempre a renovar batalha:
Quer a pugna sem fim; nunca está descansada.

De um deus irado, um deus vencido e em desespero
Caiu um olho e toda aquela água sombria
Na sabulosa face a arder do mundo inteiro,
Antes dela encontrar seu leito de agonia;
E inda convulsa vivo o olho do guerreiro,
Como que irado contra o deus que o arrancaria.

Mas esse mar imenso, esse mar que domina
De um polo a outro, e a terra enleia nos seus braços:
Esse mar, que soluça aos pés de uma colina,
E arremessa-se aos sóis, e atira-se aos espaços,
Que declinar vê tudo, e que jamais declina,
Que aos Impérios dá vida, e engole-os aos pedaços:

Esse mar que recorda um longo sofrimento,
Dos bulcões lacerado, assim como um precito,
Dos deuses fulminado, açoitado do vento,
Maldito pela dor, pelas trevas maldito,
Cabe em terra, onde esconde a lágrima e o tormento.
E a minha? a minha só conter pode o infinito!

 

A ALCOVA

A sua casa é como escrínio rutilante
De joia de valor:
É, como em grande bosque, um pássaro gigante,
Onde se ouve cantar lá dentro a todo o instante
Um cântico de amor.

A sua casa branca é como oculto ninho
Dentro de um madrigal,
Na copa do arvoredo, à beira do caminho,
Onde, como um chuveiro, a voz de um passarinho
Cai sobre todo o val.

Sua casa é como um riso,
Não tem musgos de tristeza;
Adivinha-se a beleza
Aí no seu pedestal;
As trepadeiras, que enlaçam
De sua alcova a janela,
Não sei que espreitam por ela...
Mas vê-las, me fazem mal.

Oh! pudera eu subir, como elas, desatados
Meus braços estender,
Para vê-la dormir no leito sem cuidados,
E as asas brancas ver dos anjos desvairados
A alcova toda encher.

Ir de pé ante pé, e contemplar seu rosto.
Ver ainda em botão
Dos seus lábios sair um sorriso composto
Dos sonhos da inocência, e perfumes de agosto,
E rosais de verão.

Foi uma vez uma estrela,
No puro azul cintilava,
Coroada de ouro ela entrava
Por sua alcova: — tremi!
Eu erguia as mãos convulsas,
E embalde ao céu as erguia!
Foi uma noite de orgia!...
Ambas beijavam-se: eu vi.

Oh! poder que eu pudesse! O mundo atravessara,
Como quem entra o céu,
Para vê-la de pé, como uma deusa em ara,
Da alâmpada ao clarão, em cujo meio para,
Como deusa em troféu.

Ver cada estrela, que lhe entra pela vidraça
Devagar... devagar:
Cada estrela que vem, cada estrela que passa,
E nos bracinhos de ouro a aperta, a cerca, a enlaça,
Sem fazê-la acordar.

Surgia a aurora: entre os dedos
Alvas rosas desfolhava,
E as loucas brisas soltava
Dos arregaços do véu:
No peitoril da janela
Vi pousar um passarinho:
— Ave, segue teu caminho...
Vai teu caminho do céu.

Não venhas perturbar-lhe o sono, ó linda aurora,
Não a despertes, sol:
Tuas lágrimas de ouro ela as merece: — chora!
Não perto dela, não: lamenta-te lá fora:
Não sobre o seu lençol. —

Ela está no seu leito ainda seminua;
Desnus os pés gentis,
Dobrada sobre si, como encurvada lua
De nuvem negra à beira: a coma lhe flutua
Às espáduas de lis.

Ah! se te ergueras! no meio
De tua cheirosa alcova,
Vira-te acaso Canova,
Marmórea estátua gentil,
— Paros com vida, — decerto
Num brusco assomo quebrara
Quanta estátua ele rolara
De cima do seu buril.

Ei-la: acordou enfim: a brisa que cicia
Cheirosa dos vergéis,
O sol, que lhe enche as mãos de pérolas do dia.
O prazer, que gorjeia endechas de alegria,
Tudo beija os seus pés.

Tudo nela alvorou: tudo enfim se levanta,
Com ela tudo riu...
Com ela tudo riu, com ela tudo canta,
E ela chega à janela, assim como uma santa,
Que do nicho saiu;

Ei-la! chegou à janela
No meio das trepadeiras:
A toda flor, sim! tu cheiras:
Cheiras, sim! a toda flor:
Da moldura, que te envolve,
Tu aproveitas o ensejo,
Para dar à boca o beijo
De tudo que sente amor.

Nova estrela a surgir no vasto azul profundo,
Nova constelação
Pregada em novo céu, cobrindo um novo mundo;
Uma pérola nova arrancada do fundo
De um mar em ignição;

Não alvoroça tanto, e não surpreende um grito
De espanto e de terror,
Como ao que teve acaso em ti seus olhos fito,
Como ao que viu nos teus a imagem do infinito,
No infinito do amor.

De tarde, quando o sol volta,
E para o mar se debruça,
A tua fronte soluça,
O teu olhar sombras tem;
Mas o sol, que leva o dia,
Não carrega os teus encantos:
Por que te salpicam prantos,
Como orvalhos à cecém?

Ó deusa, essa tristeza eleva-te num plinto:
É mesmo o teu altar: —
Dela o teu pensamento ir para azuis eu sinto,
Dela se erguem teus pés sobre este labirinto:
O pensar é chorar...

Eis porque vejo em ti mais que a mulher querida,
Mais que o meu sonho quer:
Tu és a fé, que crê; — o sábio, que duvida:
Tu és todo o luzir e todo o horror da vida:
Amo-te assim, mulher.

 

IDIOTA?

Saí de casa triste e em desalinho,
A alma inquieta e turva, o olhar sombrio;
E, como sai de um bosque escuro um rio,
Fui, levando as imagens do caminho.

Anda em vaivém, na faina, muita gente:
Abre um e outro com força uma janela;
E eu vou, na direção da casa dela,
Morno, alheado, absorto, inconsciente.

Passa em farrapos um rapaz robusto,
Retalhando uma música divina,
O sol festeja-o, ri-se, e o ilumina,
Como a um anjo em frontão de templo augusto.

Dança um macaco aos sons de um realejo;
Tocam um piano, em cima, num sobrado;
Um cavaleiro, a trote acelerado
Corre; as pedras faíscam num lampejo.

Andemos — Eis o oceano em maré cheia!
Como cintila essa esmeralda imensa!
Ninguém sorri melhor, murmura e pensa,
Quando lambe o estendal da branca areia.

Pensa, medita, e ri-se, e aquele riso
De tigre se desfolha em branca espuma,
E enrosca as vagas todas uma a uma,
Como a cobra falaz do paraíso.

Parece riso cínico o que vejo
Nessa cintilação do mar sereno;
Bebo irritante, aspérrimo veneno
Na ironia do seu tépido beijo.

Um grande barco vai soprando o fumo
Pela ardósia do mar azul e inquieto;
E num novelo artístico e correto
Está o vapor o céu subindo a prumo.

Aquela quietação tira-me a calma;
E esse zunzum das rodas volteando
Parece em mim arremessar, zombando,
Todo o seu estridor dentro em minha alma.

É belo o céu, lavado e deslumbrante,
Úmido, largo, imenso e luminoso;
0 sol no centro em trêmulo repouso,
Como num aro lúcido diamante.

Oh! se o céu fosse menos azulado!
Se uma nuvem cobrisse o sol agora!
Não sei por que minha alma geme e chora,
E só ouço risadas ao meu lado!...

Algumas flores, que estou vendo abertas,
Nos jardins, que há em frente a algumas casas,
No mesmo lume, ó céu, em que te abrasas,
Unem-se, como em solidões desertas.

E eu que as vira até ali tão pudibundas!
Que as brancuras do lírio amava tanto!
A ninguém sabem já ter dó no pranto,
Quando de luz e amor, sol, as inundas!

Hei de chegar assim a passo lento
Até a sua habitação querida,
Tudo cheio de luz, de amor, de vida,
E eu só com meu sombrio pensamento!

E eu só com esta noite de tristeza
Ante a galhofa e o rir, e o amor de tudo;
E vendo bronco, curvo, opaco, mudo,
Vestida em festa, (insana!) a natureza...

Porque ela sabe por quem vivo todo,
E por que dentro em mim há noite escura:
Porque lá dentro anima-se e fulgura
A estrela das visões de um pobre doido.

Por isso tudo mostra essa ironia...
Zombam... até que junto dela chego:
Mas se o olhar meu profundo, doce e meigo
Não lhe diz meu amor, quem lhe diria?

Chego: aperta-me a mão alegremente:
Ri-se, graceja, fala, canta, voa,
(Crê-se, se anda), é chã, é meiga, é boa:
Mas o amor, que lhe tenho, ela o não sente.

Por isso ri-se: e nisso anda o gracejo,
Que eu vejo e sinto em toda a natureza:
Ó minha funda noite de tristeza,
Só pode ela apagar-te à luz de um beijo.

O amor agita o céu, a terra, o inferno.
O amor vive num sol, num grão, num brilho;
E eu que apenas do amor também sou filho,
Vivo e morro de amor, ó Deus eterno.

O amor prende-se a tudo, em tudo brota,
Num musgo, numa célula, num ninho:
Estou louco de amor, mas não sozinho!
Será que o amor foi sempre um deus idiota?!...

 

UMA MISÉRIA POR UM ASTRO

Andas nesta miséria luminosa,
Alma cheia de luz e vagabunda;
Busca-te a vida e a flor, e o sol te inunda,
E renegas do sol, do céu, da flor:
Vives na sombra das florestas virgens:
Vais às cidades; nada te consola:
Teu pobre coração mendiga a esmola
De uma miséria: anda a pedir amor...

O Gênio diz: — toma esta pena; — escreve,
Farás um livro como Dante e Homero: —
E tu respondes: — para mim não quero. —
Um anjo diz: — de um astro vais dispor;
Dominarás tu só um vasto mundo;
Vem: sobe às minhas asas rutilantes: —
E tu respondes triste, como dantes:
—Só quero uma miséria: esmolo o amor...—

O céu te oferece azuis e a vida encantos;
O mundo a arena do combate e a glória;
A pátria em branco a esplendorosa história,
Em que há de os fastos do teu nome expor:
Rasgam-te os seios dilatadas veigas,
Onde aspiras perfumes do Oriente:
Dizes-lhes só, alheado e descontente:
— Eu quero pouco — esta miséria,— o amor... —

Dão-te a mulher, que em mocidade esplende,
A carne branca, lisa e cetinosa,
Onde à neve e aos jasmins se mescla a rosa,
Mármore quente, vivo, encantador...
O anjo do Prazer te diz: — venceste:
Manda-te Deus o amor na mulher linda...
Gemes exausto: — não venci ainda!
Se podem, deem-me esta miséria, o amor... —

Sóis da vida, ambições, prazeres, glória,
Teu coração é pobre, e rude, é tosco,
Não quer, não pode carregar convosco,
Mundos cheios de vida e de fulgor:
Há na sombra de um vale um lírio branco,
Que tens em mais que estrela peregrina:
Dê-te essa esmola a sua mão divina...
Mas... quem ta der, dar-te-á teu céu de amor!

 

NÊNIA DE UM LOUCO

— Donde vem essa barca auribordada,
Como entre flores peregrino altar,
Por briosos cavalos arrancada?
Espumam, como quando corre o mar.
Quem vem nela? A que terras é levada?
Em que oceano profundo a irão lançar?
Sobre que areias brancas e macias
Vai ver rolar o ouro dos seus dias?
Mas... por que tantas faces vão sombrias?
Que tormenta elas veem no céu pairar?

Cobriram-na de belas coroas: creio
Que isto só podem ter os imortais!
É pois uma heroína em seu passeio,
Que dentro dessa barca azul levais?
Não são seus louros em batalhas ganhos,
Não são seus feitos tantos e tamanhos,
Que estão pedindo estemas triunfais?
Qual vai ser seu destino? e donde veio?
Mas... vós levais intumescido o seio:
Deveis rir, indo à festa: e vós chorais? —

Isto apenas o louco murmurava:
Depois como o acordando de um letargo,
Ria-se; e era o seu riso tão amargo,
Que era melhor chorar; e não chorava.

— O sol, que cai por mar a dentro, volta:
Hão de vê-lo amanhã pelo horizonte;
E ela não surgirá sobre algum monte:
Levou-a de uma vez, quem a levou.
E há quem suspenda a pérola marinha,
Quem ache um mundo em incógnito oceano,
Basta-lhe um tronco e em cima dele um pano;
E há quem encontre a estrela que buscou!

Cantava, como o azul profundo canta,
Cantava, quando a primavera ria,
Como canta a cigarra à luz do dia.
E inda ao luar em noites de verão:
Essa mulher era a canção eterna;
Cantava, como canta toda aurora:
Não sei se alguém, que a viu, e a amou, a chora:
Eu? Chorar? Para quê? — Chorava em vão.
Tivera-a um dia, acaso entre os meus braços,
Como pomba a fremir presa a dois laços,
Ai! de prazer eu choraria então... —

Parecendo perder a razão toda,
Dizia o louco: — Eu vim também à boda... —

E logo viu abrir as férreas grades
De um jardim grande e muito povo entrar:
Lá dentro anjos de pé, rosais em bando
Sobre estátuas de mármore trepando,
E rotundas e a cruz de quando em quando.

E a toda a gente andava a perguntar:
— Se lá na extrema se estendia o mar?... —

Moviam-se os ciprestes, meneando
Lugubremente as frondes devagar,
Mais devagar as frondes levantando...
Dois pássaros cantando em desafio
Na ramaria agora, agora no ar,
Metiam mais um lento calafrio
Na tristeza indizível do lugar.

E o louco: — Sinto o odor de algas da praia:
E vem do fundo deste campo um ruído,
Como de um mar por brisas revolvido,
Antes que o Sul mais forte à noite caia:
Agora a vaga raiva e se ergue, e apruma,
Trepando em vão a bronca penedia,
E numa rapidíssima agonia,
Há de cair em turbilhões de espuma. —

E então tornava o louco a perguntar:
— Se lá na extrema se estendia o mar?...
A praia é branca? Há conchas de ouro nela?
O alvo tapete de mimosa areia
Jamais poluiu de mortos a procela:
Olhem: quando Ela sobre o chão passeia,
O chão canta, o chão ri, o chão gorjeia,
O chão... parece que Ela o diviniza;
Cintila, como um céu, o chão que pisa,
Em cada grão de pedra um, sol ateia... —

Quando voltava o povo, a dor no rosto,
Limpando o pó dos pés e o suor da fronte,
O dia se afundava no horizonte,
Erguia-se o luar do lado oposto:
O louco era mais pálido somente,
Como folha por cima da corrente,
Trêmulo, e frio, — e desvairado o olhar,
Sentado à pedra do degrau da porta,
Dizendo a todos: — Estaria morta?
Por que a deixam na barca e só no mar?... —

 

UM CONTO DE BAUDELAIRE

Eram dois jovens, cada qual mais belo:
Um tinha na alma o inferno derretido,
Noutro havia nos olhos buliçosos
A noite, e um céu de estrelas suspendido.

Contudo parecia que brincava
Neles a graça da estação das rosas:
Ria-se o moço tanto!... e traz a moça
Tanto prazer nas formas descuidosas!...

Iam num carro: era do Rohe... lindíssimo!...
Os cavalos do Cabo, e o cocheiro,
Um mulato brunido ao sol dos trópicos,
Crendo esmagar aos pés o mundo Inteiro.

— Para onde iremos? À Lagoa? À Gávea?
A Andaraí? Ao Prado? Hoje há corridas:
Dize. — Para ir contigo a toda parte,
Quisera ter e repartir mil vidas.

— Nada: nem Prado, nem o resto... quero
Um dos prazeres que aos demais prefiro.
—Manda o cocheiro, — diz o esposo; e a esposa
Diz ao cocheiro: — Em direção ao Tiro.

Sai da boca da moça um céu de estrelas,
Quando o lábio sorri, ou mexe ou fala,
E das roupas de seda roçagante
Todo o perfume a primavera exala.

De umas rendas alvíssimas desponta
Em cuidado abandono um pé mimoso,
Raio de luz, que leva ao sol de um Éden...
Fresta do céu... e mais dizer não ouso...

Chegam. — Erra o marido o alvo: os tiros
Multiplica, mas nada. — A linda esposa
Ri-se, galhofa, zomba do desazo,
E às amigas não fala de outra coisa.

Já chameja-lhe o rosto afogueado
E à sombra das espessas sobrancelhas,
Como dois astros, que orlam duas nuvens,
Chispam seus olhos lúbricas centelhas.

Não erra nunca, ou poucas vezes. — Olham-na
Com amoroso quebro os jovens. — Ela
Olha-os também assim: julga que o pode:
Sabe que é moça, e muito mais... que é bela.

Talvez somente desagrade ao esposo
A mimosa e ligeira travessura...
Há tanta gaza sobre os mimos dela!...
Mescla tal pejo na sutil soltura!...

Mas quem pudera não tremer, notando
Aquele andar felino, e a macieza
Daquele olhar tão lânguido, que corta
Como aço de Milão ou de Veneza!...

— Voltaremos, diz ela, sem ao menos
Dares no alvo uma vez? de novo ensaia: —
Riu-se: não tem o mar mais alvas conchas,
Quando a onda arregaça e mostra a praia.

Estava ali perto uma marmórea estátua;
Era Diana. — O esposo num sorriso
Envolvendo a mulher, lhe diz: — Finjamos,
Que aquela estátua és tu, meu paraíso.

Vamos pois ver se agora inda erro o alvo!
Olha pra ali, rainha invicta e ufana.
Parte o tiro; — feriu; — esboroada,
Cai por terra a cabeça da Diana.

— Beijo-te os pés, divina criatura, —
Diz-lhe, — e desata um rápido suspiro, —
Só tu, anjo de amor, podias dar-me
Firmeza à mão... e tal certeza ao tiro.

 

COMO SE VÊ NA AUSÊNCIA

De ver-te, pois, sabe disto,
Não perco nenhum ensejo,
Que te vejo, e que te hei visto,
Mesmo quando não te vejo.

Sou como um cego, e perdido
Na densa treva, em que luto,
Em cada rumor escuto
O ranger do teu vestido.

Em cada pedra que piso,
Levanto a fronte aos espaços,
E ouço o bater dos teus passos,
E a tua sombra diviso.

Se o vento os perfumes toma
Dos jardins, onde transito,
É do teu quarto o esquisito,
O doce, o suave aroma.

Se a brisa o ruído exala
Das asas de vozes cheias,
Ouço as frases que gorjeias,
Quando a tua boca fala.

Se alguém ri, ouço o teu riso:
Nele cantar o céu ouço
Num auroral alvoroço
No seio de um paraíso.

Se palpo a tez melindrosa
De uma criança, decerto
És tu, que estás ali perto...
Foi tua mão cetinosa.

No dia em que te não vejo,
Ando a ver-te em toda parte,
Dá-me amor luz para olhar-te,
Corta a distância o desejo.

Não tenho fome, se penso
No meio de densa treva,
Que me surges, como Eva
Ao sol de um Éden imenso.

Nem tenho sede, se creio
Beber em jarra de prata
Todo o leite, e toda a nata,
Que há na pele do teu seio.

Não durmo, nem tenho sono
Se creio ver-te suspensa,
Como rainha num trono,
Na turba, que se condensa.

Vê que sinto, ao ter-te perto,
Ouvindo mesmo os teus passos!
Quando te enleio em meus braços,
É todo o céu que eu aperto...

 

A SOMBRA DE SUA MÃO

Saí de sua alcova a passo lento e morno,
Onde a deixei velando
A irmãzinha doente: olhei depois em torno,
O dia ia baixando:

O corredor escuso em meia sombra estava,
No fim descia a escada:
Na minha mão direita a mão dela eu levava
Ligeira e delicada;

A sombra da mão dela, a sombra fugitiva.
Porque eu sentia ainda
Roçar-me a sua mão quente, trêmula, viva,
A sua mão tão linda,

A sua mão tão branca, a sua mão macia,
Suave e cetinosa,
Com unhas cor da aurora e luz do meio dia
Nas hastes cor de rosa.

Quando só me senti, levei à boca ardente
A minha mão gelada,
E aí de sua mão beijei profundamente
A sombra perfumada...

 

ELA CHORANDO

I saw thee weep.

Byron — Hebrew Melodies

Sabei, astros gentis, sabei, lindas auroras,
Sabei que ELA chorou!
Ó dor, pois ao teu dente agudo, em poucas horas,
Seu mármore estalou?

Dos longos cílios seus, secos a alguns instantes,
Vi pérolas rolar:
Eram seus olhos dois lagos cheios, brilhantes
No rosto a transbordar.

Tremiam-lhe, no choro, os beiços de criança:
Rubro o esbelto nariz,
Dava sombras de incêndio à face... Esta mudança
Em ti, fui eu que a fiz?

Porque ELA sabe que é assim inda mais bela,
Ou por orgulho enfim,
Foi com certo furor, ao vão de uma janela,
Chorar, longe de mim.

Mas se estendo meu braço aflito, e consolá-la
Procuro, foge... vai...
Que pode o argueiro contra o raio, quando estala,
Ziguezagueia e cai?

Logo depois voltou com rosto de viúva,
Seria, triste, porém:
Trazia, como um céu lavado pela chuva,
A face de cecém.

E vinha, como sai a aurora da orvalhada,
Das ondas o luar:
E vinha, como sai do lago, a haste inclinada.
A flor do nenúfar...

Eu, que adoro esta esfinge, eu, que amo este segredo,
Vendo-a um dia a chorar,
Fiquei, como quem fica olhando absorto e quedo,
A imensidão do mar.

Fiquei, como quem vê, quando ninguém o espera
O abismo aos pés, no chão...
O mármore partira, e tinha uma cratera,
E o pranto de um vulcão...

Oh! fui eu o Moisés que levantou a vara,
E o penedo tocou:
O penedo cedeu: a água arrebentara...
Essa mulher chorou!...

Estas lágrimas de hoje, as lágrimas choradas
Perder-se-iam no ar,
Como no céu da noite as estrelas douradas,
Que se ergueram do mar?

Não... não... — Eu as colhi, em meu amor envoltas,
Céu em pedaços... — não!...
Não se perderam, não; — aqui as tenho soltas
Dentro em meu coração

E a lágrima gentil, que cada cílio embala,
Choraria por mim?
Chorarias por mim, ó lágrima? Sim! fala:
Dize, ó lágrima: sim?...

Deuses, se ELA chorou por mim, eu desafio
Vosso eterno poder:
De vós, de vossos céus, de vossos mundos, — rio:
Não troco o meu prazer.

Ela chorou por mim!... Ó oceano, que choras,
Tormenta, que passou,
Sóis, que passais, sabei que a fiz chorar: auroras,
ELA por mim chorou!

Ser chorado por ELA!... Oh! quem já foi chorado
Assim com tanta dor?
Eu sou, ó Madalena, o Cristo consolado
Em lágrimas de amor.

Ó natureza, ó Deus, ó deuses; — Natureza,
Ó flanco maternal,
Que a lágrima produz, que produz a beleza,
Luz, que colora o vale,

Eu te agradeço o ter nascido do teu seio:
Eu sei o que é gozar:
De dentro dela mesmo a lágrima me veio,
Como o sol vem do mar.

Ó primavera, eu tenho em mim as tuas flores:
Ó sol, ó céu, ouvi:
ELA chorou por mim: deuses, das suas dores
O meu amor teci.

Eu sei que ELA me ama: — ama-me, eu sei agora...
Quando chega o arrebol,
É o grande cisne branco asas abrindo, e chora...
E a festa aí vem do sol.

 

PATAS DE TIGRE

Ah! se algum dia sentisse
A sombra de tua mão,
Como de ave, que fugisse,
Em meus cabelos — então

Pudera dizer-te: — Filha,
Morrer... pois agora.. sim!...
Que à sombra da mancenilha
Tem-se igual gozo e igual fim.

Mas... tua mão é um deserto
Sem cisterna, água, e palmar:
Crê-se isso tudo bem perto:
Anda se... e nada. É cansar.

Tuas duas mãos estão cheias
De mil carícias: pois bem,
O areal tem menos areias,
E menos tigres também...

Vós, ó tigres de Bengala;
Vós, jaguares de Ceilão,
Vossa pele não iguala
À pele de sua mão,

Halituosa, suave,
Macia, cheirando bem:
Mas... coisa muito mais grave!
E nem nas unhas. — Já veem?

Mas... filha, se queres, lança
As unhas de tua mão...
Anda, não sejas criança,
Mata-me. Eu peço-te em vão?

Eu quero sentir ao menos
A felina maciez
Desses dedinhos pequenos,
Pequenos tigres talvez.

Como estiletes buídos
Finca-os em meu coração:
E para uns restos partidos
Abre em teu colo um caixão,

E mete-os lá. — Depois disto,
Se vires que estou a arfar,
Um dos milagres de Cristo
Pudeste tu renovar...

Mas qual... Orgulho, esperteza
De um belo tigre real,
Que até desdenha da presa...
E até não quer fazer mal!...

 

ENIGMAS DA VIDA

Quantas vezes pressentimos
Um fato que se vai dar,
E que choramos, ou rimos,
Sem saber o que contar...

Um dia estava com ela...
Tão triste estava eu então,
Que me disse a virgem bela:
— Triste está? Por que razão?

Era uma dúvida, filha
Do meu entranhado amor:
Vinha duma maravilha...
Mas se assim é? se assim for?

Essa tristeza se exala
De mim, sem mesmo eu querer:
Ela então me disse: — fala;
De tudo eu quero saber...

Tu me pareces tão boa,
Mulher que eu amo: pois vá:
Não sei quem me não perdoa?
Só se tu és muito má.

Tenho um desejo... Quimera?
Porém quimera não é;
Tenho fé na primavera;
Nos teus olhos tenho fé.

Esse desejo... Mas temo!...
Loucura... enfim eu sei lá...
Dar-me-ia um gozo supremo...
Decerto tu não és má...

Deixa em pouco o olhar severo:
Zombarias? Também não;
Isto que eu quero, e não quero,
Só quer o meu coração.

Meu coração dissoluto,
Não está direito... não está:
Meu coração... eu reputo
Que o agita dúvida má...

Ou sou eu acaso um louco?
Acaso somos nós dois?
Ou cada qual é um pouco?
Qual deles mais louco é pois?

Põe de lado o olhar severo...
Em que estás pensando tu?
Que ele quer, e eu também quero
Ver todo o teu corpo nu?

É blasfêmia o que te peço?
É crime? mas crime assim?
Mas não é crime, eu confesso:
Não... não é crime isso em mim.

Olha, eu sonhei que tu tinhas
Nos ombros brancos, gentis,
Duas pequenas asinhas...
Por isso vê-las eu quis.

Meu coração, que suspeita!
Eu suspeitava também!...
Aceita a dúvida... aceita:
Quem ver não deseja? Quem?

Despir-te um pouco é preciso,
Olhar-te, ver quem tu és...
Vi... Tu és do paraíso:
Mulher, já estou aos teus pés.

Que ganho agora, anjo austero,
Em ver-te as asas reais?
Não fiques nua, não quero...
Não quero ver nada mais.

O coração suspeitava...
Duvidava o coração...
Só eu é quem certo estava,
Que mulher não eras, não.

Tem teu noivo o paraíso:
Tens asas: o céu te quer...
Bem me dizia o juízo,
Que tu não eras mulher...

Todos a choram agora...
Se morreu... por que a chorar?
Asas abriu, foi-se embora:
Era no céu o seu lar.

Toca o sino o campanário:
Está em festas a tanger?
Ou é toque funerário?
Quem à cova vai descer?

Todos a choram no entanto...
Ninguém mais sorri... ninguém...
Lavam-se os olhos em pranto:
À boca os soluços vêm.

Foi uma mulher amada;
Foi a mulher que eu amei...
Não foi mulher, não foi nada...
Foi só um anjo: — é que eu sei.

Toca o sino, dobra o sino,
Dobra o sino a funeral,
É do céu o peregrino,
Que nunca a ninguém fez mal.

Talvez a Virgem Maria,
As Virgens, tochas na mão,
A esperassem noite e dia,
Os astros em procissão...

***

Numa noite muito escura,
Alumiada a fuzis,
Foi que essa virgem tão pura,
Levá-la ao céu Deus o quis.

Ninguém viu as luminárias,
Nem ouviu canções ninguém:
Estas festas solitárias
Passam-se além... muito além

Lançava gritos o vento,
E a chuva torrencial
Chorava a todo o momento
Alto... baixo... desigual...

No outro dia pomba morta
Por sobre o altar encontrou
Sacristão, que abriu a porta:
À igreja: quem a levou?

Não há pombas por tão perto:
E nunca pombal se viu
Naqueles sítios: decerto
Do céu a pomba caiu!...

Nossa Senhora das dores
Tinha uma lágrima a mais
Dos olhos entre os rubores¬
E as velas dos castiçais

Estavam todas consumidas:
Arderam de noite a sós?
Por quem foram acendidas?
Quando saiu dentre nós

O anjo que o povo amava,
Por quem o povo chorou,
O anjo que entre ele andava.
O anjo que Deus levou!...

Um grande mistério havia
Nessa morte que se deu,
Boa estava ela num dia,
No outro dia faleceu...

O jovem poeta contava
Essa triste morte assim...
E quase sempre chorava,
Quando ele chegava ao fim.

Mas seria isso verdade?
Ou verdade isso não é?
Tem sempre sinceridade
Que crê em Deus e tem fé...

***

Eu que guardei a memória
Do amargo fato, eu não sei:
Foi-me assim contada a história,
A história assim a contei.

 

A MÃO E A CONSCIÊNCIA

... Porque enfim tu lhe disseste
Que a curva da sua mão,
É como a curva celeste,
Onde há o raio e o trovão,

E o sol de dia, e de noite
Os belos astros gentis!
Há quem a tanto se afoite?
Isto a gente nunca diz.

É por isso que ela agora
Faz de tigre e de leão:
Diz-lhe que tem uma aurora
Em cada dedo da mão...

Diz-lhe que tem sol e lua,
E que Deus tudo isto fez
Por conhecer que a mão sua
Podia com mais talvez,

Com o mar, e o vento, e a procela,
Com tudo enfim, sim! senhor...
Só não podia a mão dela
Com o peso do teu amor...

... A consciência falava,
E eu, olhos fitos no chão,
Eu... só cismava... cismava...
Em como beijar-lhe a mão...

 

IANUA CAELI

Podes não ter um único sorriso,
Que se desprenda do teu lábio puro.
E, como um astro, que atravessa o escuro
Da noite, que me cerca, e cobre, e piso,

Vir até mim; eu creio: — isso que importa?
Também no chão prostrado, inda criança,
Rezava à Virgem, sem ter esperança
De vê-la menos santa e menos morta.

O órgão soava: de ouro e argentaria
Vestido o padre, o incenso lado a lado
Do altar lançava, em júbilo arroubado.
Tinha o seu porte lânguido maria.

Vinham beijar-lhe os pés meio encobertos
No seu manto estrelado, e as mãos delgadas
Sobre o sangue dos seus seios abertos,
Apertando por cima as sete espadas.

Rezava o povo a sua ladainha:
Chamavam-na de estrela matutina,
Torre ebúrnea, das Virgens a rainha,
Áurea porta do céu e Mãe Divina.

Batia o peito toda aquela gente:
A igreja tinha a arder milhões de velas,
Que todas refletiam brandamente
Na palidez de suas faces belas.

Em cada candelabro, em cada palma
As velas respondiam num som brando,
Todas cheias de lágrimas, chorando,
Como se elas tivessem também alma,

Como se a mesma fé as dominasse;
E a tristeza da luz em todo o templo,
Parecia estar dando aos fiéis o exemplo,
Espelhando a ima dor na dor da face.

Sobre o altar-mor à cruz pregado o Cristo;
O povo em prece enchendo toda a nave;
E do órgão a surda voz metia nisto
A nota excelsa, misteriosa e grave.

O incenso em rolo tinha no seu manto
A magia do espaço umbroso e augusto:
O céu nele descia a cada pranto,
Nele uma alma subia a cada susto.

E quem não teme o Deus que apaga o riso,
Que solta o vento, que enfurece o oceano,
Que, a qualquer falta nossa, ou erro, ou engano
Nos fecha para sempre o paraíso?

Que criou o lugar onde os precitos
Torcem-se em chamas e rangendo os dentes,
E ouvem passar a voz dos infinitos,
E a eternidade alegre dos contentes;

Onde lhes vem a música distante,
Como eco tênue de perene orgia;
E tudo quanto a escorço pintou Dante
É como sombra descorada e fria...

Tempos de fé: os corações tremiam
Convulsos de umas hórridas ideias,
E dos olhos as lágrimas caíam
Como a água de taças muito cheias.

Pediam-lhe perdão dos seus pecados,
Que ELA lhes desse a sombra de um sorriso,
E que depois de mortos e enterrados
Os levasse consigo ao paraíso.

Que há na terra que um crime enfim não seja?
Vai-se direito facilmente ao inferno:
Não há carinho humano e olhar mais terno
Que não mereça a maldição da Igreja.

E a Virgem não mudava a cor do gesto;
E, no meio do incenso, que a envolvia,
Todos nela esperavam, sem de resto
Saber nunca o que enfim Ela faria.

***

Do seu culto também eu tenho o zelo,
Minha esperança e único conforto;
E assim leva-me ao céu, depois de morto,
Se é que depois de morto eu posso tê-lo.

Também espero em ti: à tua planta
Todo o meu ser num longo beijo resta:
Embora faças como a Virgem Santa
Quando eu via rezar na sua festa.

Mas... pensa alguém que dúvidas oculto
Naquela fé ardente, viva, e pura,
Que deve ter a humilde criatura
Na Santa, origem do seu grande culto?

Se a outra não voltava a face linda,
Abrasada na luz em que me abraso,
Não pode esta voltar-me o rosto acaso,
Sendo melhor, sendo mais santa ainda?...

 

FRAQUEZA DE UM TITÃO

Ele dizia: — Pouco me custara,
O que deveras custa,
Forrar de pedras da calçada a cara,
Ter a ciência austera de Locusta,

Saber o modo de arranjar venenos
De alguma estranha planta,
Dá-los, num bródio, erguendo altar a Vênus,
Enquanto a orquestra os seus triunfos canta;

Sair desta baixeza e sobraçando
A cítara divina
De Homero, ver a esfera cristalina
Milhões de olhos de luz em mim fixando:

Erguer-me acima, aos ápices do solo,
De todo o vasto Oriente
Pisar a terra, conquistar a gente,
Leões montando, como o belo Apolo;

Lançar de fino mármore lustroso
E pórfiros um templo;
Ter de um vasto serralho o extremo gozo,
De Salomão seguindo o luxo e o exemplo;

Alargar Macedônia e o imenso império
Estender as estrelas,
Unindo à força indômita o mistério
De, em dourados grilhões, do céu trazê-las;

O teu amor ébria, eleva, anima:
Eu píncaros não acho
Em que não possa andar de pé por cima,
Vê-los inda de longe, e muito embaixo:

Porém não sei onde encontrar esforço,
Para dizer somente
O que tu sabes, todo o mundo sente,
Eu... sei lá... que aguentara os sóis no dorso...

 

TURBILHÃO DE ASAS

Fremem dentro de mim asas, mais asas,
Turbilhões mesmo de asas, como pode
Da terra erguer o vento, que sacode
Um pó da areia, quando tu me abrasas

Com teu olhar de chama aveludada,
Que me envolve em seus mundos luminosos,
Onde há promessas rútilas de gozos,
Sem que me dês, além de dor, mais nada...

Asas, asas, mil asas aos desejos,
Asas aos pés, aos ombros, à vontade:
Em que céus andarás, ó divindade,
A que não possam ir os meus adejos?

Oh! que eu morra na luz em que me abrasas!
Sinto que tudo em torno me abandona,
E que minha alma doida turbilhona
Em áurea poeira deslumbrante de asas.

Rasga-se o etéreo e lúcido caminho
Onde as pombas irmãs dormem arfando:
E sinto milhões de asas revoando
Para o sítio onde amor oculta o ninho.

Há um rio de neve no teu seio,
E há dois montes de leite ao lado, ó Eva!
É para aí que vou, e subo, e alteio,
E que este turbilhão de asas me leva...

Por estes céus é que me vou metendo...
Nesses montes talvez arfam, dormindo,
O casal de torcazes o mais lindo,
Que busco, um turbilhão de asas movendo...

 

INDÍCIOS

Pois no princípio me afligias muito;
Nem sabes tu o que sofri então:
Nunca, quando de ti me despedia,
Me apertavas a mão...

Como moedas de ouro acumuladas
Ia numa passando outra estação:
Tu me estendias sempre a mão nevada,
Não me apertando a mão.

Era apenas aquela cerimônia
Da mulher esmerada num salão:
Roçar de leve, quase a sombra apenas
Do esplendor de tua mão.

Hoje é outro o motivo e tens receio
Que eu sinta um certo enleio e confusão
Do prazer que terias se apertasses
Um pouco a minha mão.

Hoje eu morrera de desgosto e tédio...
Ai! não fora ventura extrema, não,
Se não me amasses mais, e te esquecesses
Apertando-me a mão.

 

TRIUNFADORA
(A C. G.)

Depois de ter recitado em cena.

O Legendário

Hão de as palmas cair de toda parte,
Há de sorrir-te a musa da harmonia,
E à luz do palco, então melhor que o dia,
— deusa nova da voz — hão de aclamar-te.

Dir-te-ei de longe, sem falar: — Coragem!
Esmaga a turba com teu pé, criança: —
E todos levarão na alma a lembrança
Da tua doce e rápida passagem.

Como na pira incendiado toro
De floresta de sândalos roubado,
Deixarás um aroma delicado,
Tal pelo céu a luz de um meteoro.

Mas foge como a estrela que fulgura,
E acende o céu um pouco só... mais nada:
Volta, ó pérola, à concha sossegada;
Só na sombra é que há saibos de ventura.

Bem sei que não há sombra em que se acoite
Quem tem em si do gênio o vivo lume,
Que a estrela brilha inda escondendo-a a noite,
E à noite exala a flor melhor perfume.

Os bravos ovações, auréolas, flores,
Os lauréis, nos triunfos populares,
Juncarão um só dia os teus altares,
Por muitos dias pálidos de cores.

Custa muita ilusão perdida a glória,
Muitas noites sem paz, sem sono e calma,
Para levar-se uma enfezada palma
Ao túmulo de ouro, sim, mas vão da história...

 

QUESTÕES

É noite. Os astros pelos céus profundos
Parecem doidas bocas a cantar;
E as vagas murmuravam docemente,
E ia por longe em frêmitos o mar...
E veio à praia o poeta, a fronte ardente,
Queixosa a voz e merencório o olhar,
E perguntou entre raivoso e triste,
E perguntou ao mar: — Tudo isto existe?
Mas por que existe? Diz, responde, ó mar!

Donde vim? Eu quem sou?... E desde quando
O homem se mostrou? Por que assim ando?
Para onde vou? E pelo azul além
Quem mora? — Quem por cima das estrelas
Paira e se esconde e à terra enfim não vem?
O enigma desta vida, o doloroso,
O velho, o grande enigma, sim, que tem
Que tantas frontes endoidece e queima,
Que para o haver a gente corre e teima:
E o não acha ninguém, ninguém, ninguém?

Os séculos pela boca dos profetas,
Pela ciência um dia o hão de encontrar?
Esta velha questão, que é sempre nova,
Vós me ides, vagas, já e já contar... —
E o céu cintila e as ondas murmurejam:
Como quem diz: — o pobre louco... vejam...
Sibila o vento, que faz rir o ar.
As estrelas parecem soletrar
Uma palavra vaga eternamente.
Tudo parece ao poeta inconsciente,
Frio, insensível, fórmula indiferente...
E o mar, que se levanta furioso,
Que um segredo talvez lhe vai contar,
Ruge, rebrama, cai, volta ao repoiso...
E o poeta espera que responda o mar!...

 


PARAÍSO PERDIDO

Deixaste-me às portas de ouro
Do Paraíso: — entreabriste
Uma fresta, e quando viste
Que na louca embriaguez
Eu já estava de entrá-lo,
Sem o mais ligeiro abalo
Me arremessaste um sorriso,
A chave que o paraíso
Logo mo cerrou de vez.

O raio, que nos fulmina,
O abismo, que nos devora,
Não tem o terror da aurora
Desse teu fulvo sorrir:
Luz nele havia, inundava
Campo vasto, árido, incerto
E fundo, como um deserto,
Em que deve andar bem perto
Com seus tesouros Ofir.

Galopei no teu sorriso
Como um hipógrifo em sonhos,
E por valados medonhos,
Hirtos, profundos, rolei:
E sem saber como hei ido,
Roto, esmagado, perdido
Por uns páramos infindos,
A luz dos teus olhos lindos
Por cima dos meus achei.

Ergui os braços, os joelhos
Vacilaram-me transidos:
Meus lábios mal desunidos
Murmurejaram: — perdão...
Tu, como o anjo do Éden,
Sem dar ouvido aos que pedem
Às portas do paraíso,
Conservando o teu sorriso,
Tu... tu... murmuraste: — não!...

Era um murmúrio tão baixo,
Como um bálsamo de vida
Com que se pensa a ferida,
Que sangra e não quer fechar:
Como um retalho de seda
Com que a pálpebra se enxuga:
Como um anjo, que na fuga
Do céu, procura a vereda
Que leva a escuso lugar.

Porém não pude ir mais longe:
Estendendo o dedo e o braço,
Mostraste-me além o espaço:
Sentei-me e fiz que não vi:
Sentei-me à porta, caindo;
E ali quis ficar, ouvindo
Essa música distante:
E tu gritaste: — adiante...
Ergui-me, chorei, parti...

Recordo. — Bastou somente
Para fechar-me o paraíso,
Arregaçar-te um sorriso
Da boca os rubros corais:
Calmo sorriso, deserto
Cheio de luz, que devora:
Caminha-se; e a cada hora:
É um oásis agora?
É deserto e nada mais.

Deixei atrás as areias:
Adiante areias ainda;
E tua figura linda
Sempre... sempre a andar em mim!...
E tu serás como um sonho,
Que em todos os sítios ponho,
Feito só de meu desejo:
Eu te vejo, eu te não vejo...
Deserto, não terás fim?

Hei de andar, alma erradia,
Sem prazer, e sem conforto,
Frio, como um corpo morto,
Deixado à beira do mar,
Vendo as ondas uma e uma
Lançar o soluço e a espuma...
Saber que o mar não descansa,
Que lhe morreu a esperança,
Porém não a de chorar.

Sempre uma mulher formosa,
Que nos meus sonhos eu traço:
Sempre uma sombra no espaço,
Sempre uma porta a se abrir:
Sempre um Éden, que desenho...
A que portas bater venho?
As portas, onde estão elas?
Entre as estrelas mais belas
Sempre a visão a fugir!...

Ah! se eu te encontro algum dia!
Se o mistério se descerra!...
Se eu te levanto da terra,
Em que altar te hei de eu pôr?
Em cima de que montanha,
Tão verdejante, tamanha,
Terás meu culto, querida?
Em cima de minha vida,
Em cima de meu amor.

E não terei outra sorte,
Não espero outro destino;
O bordão do peregrino
Será meu arrimo pois:
Eu terei no meu caminho
Sempre uma árvore sem ninho,
Sempre uma noite medonha,
Sem saber onde os pés ponha...
Sempre ais e vento entre os dois...

Sim! sempre a de ir contra as rochas
Bater, e gemer somente:
Ficar convencido e crente
Que não há mais a fazer...
Sim!... ficarei prisioneiro
Em torno do mundo inteiro...
Perdi tudo!... Com efeito
O coração no meu peito
Ficou de amor a morrer,

Como um monte na invernia,
Tronco sem folhas e flores,
Noite empolgada de horrores,
Onde cantam temporais:
Como o rochedo indiferente,
Como o rio sem corrente,
Como praia sem lamento
De mar, de vaga, de vento...
Onde há só morte, e não ais...

Relincha, meu hipógrifo,
Bate as asas pelos ares;
Sacode bem os pesares;
Nelas há bem desse pó:
Quando em ti eu for montado,
Tu levas um desgraçado,
Sonhando... sempre sonhando...
Tu levas um miserando,
Tu levas um triste só.

Onde estão as portas de ouro
Do paraíso perdido?
Mas para tão longe hei ido,
Que não sei mais onde estão:
Tu andas em toda parte:
Eu procuro, para amar-te;
Para servir-te eu procuro:
No passado e no futuro,
Sempre esta eterna visão!...

Tu estarás, como a Aurora,
Como a Vênus matutina,
Cujo fado, cuja sina
Em seus palácios reais,
É rugir ao sol, que chega,
Não mais encontrar a veiga,
Nem aos vergéis dar seu pranto:
Dizendo ao sol entretanto:
— Sol! jamais... jamais... jamais...

Eu, aurora, não me tenho
Como o sol no azul distante;
Astro não sou rutilante,
Que dê tamanho clarão;
Nem sou verme luzidio,
Brilhando às margens de um rio,
Ou pelas margens de um vale;
Não sou nada que te iguale:
Mas eu sou um coração.

Ouve: jamais!... também digo,
Jamais! repito eu agora,
Como a estrela, como a aurora
Nos seus ricos arraiais
Sem nunca contar contigo:
Vejo céu, não vejo abrigo;
Entre nuvens passo, e morro,
Náufrago enfim sem socorro,
Sem vida, sem nada mais...

 

A DOMADORA DE FERAS

I
A tua mão pequenina,
Onde cabe um mundo, eu sei,
Bem sei a gente imagina
Um mundo na mão de um rei,

Foi ao lôbrego escondrilho,
Em que rugia um leão;
Cegou-o: tanto era o brilho,
Que te escorria da mão.

E lhos passaste nas crinas
Fulvas, coroando a cerviz,
Os dedos das mãos divinas,
Os lírios de hastes gentis.

Como talharam Ariana
Montada num tigre audaz,
Superior à força humana,
Sobre o rei dos animais,

Com tanta graça subiste,
Graça, que à fera se impôs,
Que o leão, que estava triste,
Julguei-o alegre depois.

Eu ia de lado, vendo
O teu gracejo infantil,
Que tornava o leão horrendo
Tão manso que era imbecil.

Depois deixaste-o e vieste
Sentar-te junto de nós:
Mas no teu rosto celeste
Rugia um gesto feroz.

Tinhas as langues brancuras,
E as vagas inquietações
Da estrela em noites escuras,
Do mar à voz dos tufões.

E de umas altas esferas
Tu dizias com desdém:
— Meu gosto é domar as feras:
Faz-te fera, e depois vem.

Cresce, enraiva-te, salteia,
Vem depois, te hei de mostrar
Como em ter um grão de areia
Cai despedaçado o mar.

Com o movimento mais brando
De um dedo da minha mão,
Se quero, vê, quando eu ando,
Levo após mim um leão. —

Eu disse, ouvindo-a: — Deveras?
Pois só a brutos quer bem?
É domadora de feras?
Pois vou ser fera também.—

II
(Leão domado)

Quando eu tiver nos meus olhos,
Tiver no meu coração,
O que o mar tem nos escolhos,
E tem no seio o vulcão:

O que tem a tempestade
Nos relâmpagos sutis,
E a audácia, a argúcia, a crueldade
Das águias contra os reptis:

Quando indomado percorra
Arneiro, espaço, areais,
Quem me dirá que não corra?
Quem diz ao vento: — onde vais?

Como aí vai longe o deserto!...
Oh! que infinita amplidão!...
Ruge? — É o furacão decerto.
Brame? — É decerto o leão.

0s seus rugidos atrozes,
As suas cóleras pois
Têm o horror das mesmas vozes,
Têm um só grito ambos dois.

Sacode as asas o vento,
As crinas ergue o leão,
Luxuoso, rubro, opulento,
Terrível, como eles são.

Que vulcão flamante lhe arde
Dentro da órbita audaz!...
Tornar um leão cobarde!...
Quem pois é disso capaz?

És tu, mulher? — E tu podes
Fazer aos teus pés cair
Esse colosso de Rodes,
Sem também nos fazer rir?

Levar a mão à cratera.
E dizer: — para, — ao vulcão:
E, domadora de fera,
Fazer o mesmo ao leão?...

Tu podes tudo decerto:
Tu tens um condão fatal:
Mas... o leão do deserto
Dono e rei de todo o areal,

Domá-lo? vencê-lo? é crível?
Não... não o acredito eu:
Antes julgo mais possível
Fazer, como Prometeu:

Subir de qualquer maneira
Ao céu, a que já tens jus,
Trazer pela cabeleira
Um astro, sangrando luz.

A mim, não. — Guardo os audazes
Gestos de um rei secular:
Tu és a fonte no oásis,
No oásis o meu palmar:

E sob a umbela das matas,
Que Deus só fez para nós,
Rio em que mergulho as patas,
Que tem reflexos de sóis:

Pela extensão do deserto
És raríssimo nopal,
A cuja sombra coberto
Repousa o fero animal;

És a viração macia,
Que nos suaviza o calor;
A flor, que o aroma irradia,
E a graça da amada flor.

Guardo a minha liberdade,
Minha opulência de rei:
Do que é meu, da imensidade
Nem os limites eu sei.

Jamais contei as estrelas,
Os meus tesouros reais,
Quando me agarro, e vou vê-las
Na juba dos vendavais.

E já sentia-me irado,
Raspava as unhas no chão;
Seu belo corpo rasgado
Era a presa do leão.

Que carne branca tremia
Nas minhas garras fatais;
Que áurea luz de sol lambia
Nessas feridas mortais,

Que eu riscava no alabastro
Do seu corpo encantador:
Eu cria comer um astro,
E unhas no próprio sol pôr...

Chupava as datas frementes,
Vendo a púrpura luzir:
Passava a língua entre os dentes,
Grunhia, que era o meu rir...

Ou ódio, ou amor profundo,
No meu banquete de rei,
Quisera dizer ao mundo:
— Que sol na garra apanhei!

E esta, e outras quimeras
Inchavam-me o coração!
A domadora de feras
Ria-se; — e a um gesto da mão,

Ligeiro, doce, invisível,
Prendia-me; e a sua voz
À multidão, impassível,
Mostrava o leão feroz.

III
(Montada sobre uma estrela)

Oh! não desdenhes do leão domado,
Que por teus pés dormita,
Que deixou seu deserto abandonado:
Porque viver, morrer, — sendo ao teu lado,
É-lhe suprema dita.

Como o africano furacão pudera
Levantar-me violento,
E livre e solto por mais alta esfera
Dizer: — quem há que dome a altiva fera,
Quem há que dome o vento:

Quem há que amolgue o mar, quando o golpeia
A raiva da procela,
E o raio fulvo as clinas lhe incendeia,
E a vaga cresce, e espuma, e cospe à areia
Tudo o que anda por ela?

Eu sou o mar indômito, dormindo,
Como o leão domado,
À luz que vem dos olhos teus sorrindo,
E ao sol do rosto teu, ao sol mais lindo,
Que em céus haja brilhado.

Eu sou, podes dizer, a horrenda fera...
E pudeste contê-la
Num dos olhares teus, que amor só gera:
Ariana montava uma pantera,
Montas tu uma estrela.

Porque tudo tua mão amolda, e imprime,
Ó domadora enorme,
O que há de grande, e belo, e de sublime;
E a fera, e a estrela, e a maldição, e o crime
Calcado aos teus pés, dorme.

Enches o céu de luz, como as auroras,
E, como as primaveras,
Tudo o que tocas com teu dedo enfloras,
E tens aos pés dois astros como esporas,
Domadora de feras.

 

SOL ACORRENTADO

Não é um leão indômito: imagina
Minha alma um sol no espaço,
Que se equilibra, gira, anda, ilumina,
Que de lá desce à tua mão divina,
E acompanha-te a passo:

A teus olhos, esplêndidas argolas,
Em fio, que a teu grado
Colhes agora, agora desenrolas,
Vai minha alma, que te ama, e não consolas,
Um astro acorrentado...

 

MONÓLITOS

Rolam sem luz, estrelas desmaiadas,
Pobres princesas no aflitivo exílio,
Já sem as sombras que projeta o cílio
Franjado e grande as faces desbotadas.

De larva imunda esquálidas falenas
Destoucadas de frescas primaveras,
Têm o morno desdém das bestas-feras,
Que nem já os grilhões mordem apenas.

Descem dos lábios, pelas gastas linhas
Do rosto, uns risos, que parecem antes
As sombras mortas dos sorrisos de antes,
Quando elas tinham corte e eram rainhas.

Passaram, como em violento atrito
Entre as rodas de ferro da desgraça,
Assim como desfeito em voltas passa
Entre o ferro, que talha, o monólito.

O que é cada falena impura agora,
Sem luz nos olhos, sem pudor na fronte?
Sol que passou a linha do horizonte,
Pobre cadáver de formosa aurora.

Não as desprezem, não. — Foram pedaços
De mármore gentil esperdiçados,
Podendo ser em deuses trabalhados,
Ou para catedrais, ou régios paços,

Mas que o capricho do escultor numa hora
Fez hidras, fez leões, e fez serpentes,
E soltou-os esplêndidos, frementes
Sobre o mundo, que as beija, e que as devora.

Tu, austero filósofo, o que queres?
Não vês que o mundo as faz e as repudia?
E o sol, que te acalenta, as alumia,
E Deus quer bem as crianças e as mulheres?

Nasceram dóceis, virginais e belas:
A miséria do berço as pôs em terra,
As asas no seu lodo aperta, encerra...
Ai! pudessem fugir... iriam nelas.

Lodo por lodo, o lodo mais brilhante,
Cheio de aroma embriagador e festas,
De noites mornas e amorosas sestas,
Longas ânsias de amor em breve instante;

Nas taças cheias de licor que embriaga,
E adormece a razão e o amor acorda,
Que em doidos sonhos de prazer transborda,
E com mãos de cetim nossa alma afaga:

Deixaram aí as asas penduradas,
De infindas bacanais na louca cena:
Aí foram perdendo pena e pena,
E o rico véu das ilusões douradas.

Morrei bem cedo, ó mortas formosuras:
Morrei... morrei bem cedo: — entre os destroços
De vosso corpo surgirão os ossos
Brancos, bem como os das Vestais mais puras.

Deus, que perdoa os hórridos delitos,
Talvez vos dê no céu novos altares,
Vós, que andais pela terra e ides milhares
Esmigalhadas, como monólitos...

 

DEAE IRRITABILIS MANUS

Não vês naquela mão a irritabilidade
De um pássaro gentil, nervoso e fugitivo?
Recua, e voa, e foge à possibilidade
De tocá-lo de leve um dedo convulsivo.

Como se encrespa um lago e as águas amarrota
A pontinha de uma asa ali passando acaso,
Fica a gente a cismar, e fundamente nota
Que crispações verá naquele humano vaso...

O que se passa em todo aquele ser convulso?
Que estrelas encherão o abismo de sua alma?
Quem poderá tomar-lhe o rebater do pulso?
Quem pode atravessar sua aparente calma?

Descer de todo o ser à profundeza imensa,
Ir do espírito ao fundo, — oceano que ressona, —
E ver o que ele sente, e sofre, e goza, e pensa:
Trazer do fundo mar qualquer coral à tona...

Qualquer coral, que mostre o que em si vive e sente,
Qualquer coral, que traga à luz o seu segredo,
E diga, quando quero a mão tocar somente,
Se acaso aquilo é ódio, ou amor, ou tédio, ou medo?!...

 

NOTURNO

That fools rush where angels fear to tread.

Pope

Per amica silentia lunae...

VIRGÍLIO — ENEIDA

I
Era à beira do mar um louco. — A vaga
Ia após vaga escabelada e a plaga
Desciam rindo ou rorejando em pranto
Glauco, em nudez, ao olhar da lua, enquanto
Num verde aflar, num sonolento esforço,
Cianótico o mar, rugoso o dorso,
O dorso azul de escamas prateadas,
Nelas metia as patas de elefante.
Ouvia-se, ao fugirem do gigante,
O rumor das pequenas gargalhadas,
Que iam a rir nas verdejantes bocas,
Quando umas a saltar sobre outras, loucas!
Como um bando de virgens tresmalhadas,
Esfuziavam de volta à branca areia,
Só para ter o delicioso gozo
De ver o velho, em cólera e espumante,
Vir de novo e de novo atrás voltar...
E estava à praia luminosa cheia
Desse vago rumor que anda ao luar.

II
E era à beira do mar, e só. — As ondas
Já muito quietas, tímidas, redondas,
De largos pingos de ouro salpicadas,
Como fímbrias sutis, arrendilhadas,
De um manto enorme, real, desenroladas
Na nua praia branca e solitária,
Que se arqueia na curva graciosa
De dois braços, que querem recebê-las,
De um deus qualquer, que molda a mente vária;
Cosia o manto azul milhão de estrelas,
Que no contínuo e tépido balanço
Vão como cisnes de ouro ali de manso...
Cobre o mar fina espuma de um tecido
Fabricado em teares holandeses;
E estava assim tão belo e bem vestido
Como costuma estar bem poucas vezes.

III
E era à beira do mar, e só!... Ao longe
Em cada teso ajoelhava um monge.
No palor baço e turvo que a envolvia,
Ao sul e ao norte, a crespa serrania
Recortava o seu dorso colossal.
Os rochedos desnus dos altos cimos,
Como pedaços de cristal polido,
Refletem ao luar as mil facetas,
Num véu de gaza fina amortecido.
Iam brincar os raios dos planetas
Nas arestas de um mísero palhal,
E as tornavam de longe, sobre os mares,
Como as brunidas torres seculares
De uma marmórea habitação real...
Névoa impalpável, úmida, ligeira
Acariciava a natureza inteira,
Hausto largo de um beijo virginal...

IV
E era à beira do mar, e só. — A lua
Em leito mole reclinada e nua,
Calma viúva, inerte e solitária,
Quase estagnada como a luz de um poço,
Morbe, como o rumor de uma plegária,
Parecia cismar num noivo moço.
A luz de um poço... um poço no deserto,
Que inda está longe e está-se a ver tão perto...
E um poço azul num céu azul cavado,
Céu, cuja curva doce lado a lado
Dessa abóbada imensa o espaço ampara:
E a luz fluida de um poço em todo o espaço
Devera envenenar e a quem provara
Dera ainda mais sede e mais cansaço...
Lua, filha da dor e da saudade,
Serás viúva em toda a eternidade...
Tu irás só por todo o teu caminho,
Nenhum beijo de amor, nenhum carinho;
Cheio de sonhos teu aflito peito,
Sem companheiro em teu divino leito!...
E o que é pior, sem mesmo uma esperança...
Dize, viúva do amor, a dor não cansa?...

V
E era à beira do mar, e só... — Findara
O mês de março: o outono, que começa,
Respirava uma límpida bafagem,
Raro incenso cercando a luz de uma ara;
E nessa hora da noite azul, e nessa
Exalação suave, que a envolvia,
Serena, calma, voluptuosa, e doce,
Enamorando a sua própria imagem,
Se desatava a esplêndida baía
Como se a própria Guanabara fosse
Que do fundo do mar ali surgia.
As brancas velas túmidas, inchadas
Pelas noturnas, frígidas rajadas,
Como lâminas de aço embaciado,
Iam cortando o ar a punhaladas,
Por um braço invisível manejadas.
Eis um drama da noite recitado
No palco azul da vaga luzidia.
Como um lago de forma circular,
Até aos pés dos Órgãos a baía
Se estende, como um céu que vai quebrar.
As ilhas que lhe dormem pelo seio,
Cheias de luz, pousando sem receio,
Parecem aves de ouro a ressonar.
Nas montanhas mais próximas, banhadas
De luz mais branca, e nessas afastadas,
Em fundo mais escuro e vaporoso,
Como um bando de pombas em repouso,
Ou também como grandes mariposas,
Aqui e ali, mais longe, abaixo e acima,
Encolhidas no flanco as largas asas,
No dormir a sonhar das grandes coisas,
Que um raio acorda e que uma voz anima,
Entre flocos de luz as níveas casas
Riem pra o céu profundo as telhas de ouro.
Era uma velha revestida em monge
O Pão de Açúcar, que se via ao longe,
Velha indiana de pedra, sem cocar,
Cuja cabeça nua ao luar brilha,
Glaucamente inclinada e olhando o mar:
Parece inda chorar a linda filha,
E sobre a prata líquida, que cobre
A cova sua, como lapa enorme,
Sentinela avançada, que não dorme,
Recurva o busto amorenado e nobre.
Além o oceano majestoso para:
Aquém, no manto escuro de granito,
Há séculos que chora a Guanabara,
Muda e inda soltando um mudo grito.
Os outeiros ao pé, seu leito outrora,
De veludos de relva estão cobertos,
Dos seus lençóis esplêndidos desertos;
E onde a fria nudeza alpestre mora
Foram tálamos régios e opulentos,
Cujas cobertas de esmeralda fina,
Sob as tendas do céu à chuva e aos ventos,
Uma e uma esfizeram-se em ruína.
E os criptogamos, epitáfios lentos
Que o tempo escreve, o tempo a ler ensina.

VI
E era à beira do mar, e só. — De tudo
Isso era parte um louco... um louco e mudo!
Ele estava no céu, no mar, na lua,
Nas encostas da serra, onde flutua
Dentro, no meio do matal maciço,
Sempre cheiroso, e em flor, e sempre em viço,
Um clarão lirial pelas abertas,
Como um bando de Dríades em dança,
Que numa volta espalma-se e descansa
Em posições fantásticas, incertas:
Aqui e ali na imagem vaporosa
Que a luz da noite vagamente aviva,
E que de roupas mal cosidas veste,
Como falange esplêndida e celeste,
Que os deuses deixam vir dos seus Olimpos,
Por caminhos do céu, de nuvens limpos,
Nas virações, nos barcos, nas ilhotas,
Junto, na praia, ao longe, nas remotas
Colinas e nos mil rumores vagos,
Nos vergéis, que andam rindo ao pé dos lagos,
E florem sempre, perfumando os ares,
Da natureza em rútilos altares,
Que sustentam o que grande e etéreo há na arte,
O louco estava em tudo e em toda parte,
Como de tudo um átomo esquecido.
Mas dentro em tudo, em tudo enfim metido.
Ele cria que tudo — céus e estrelas,
Quantas vê, quantas há, sem poder vê-las.
Ele e o vento, onda e mar, acesos lumes,
Vozes, rumores, músicas, perfumes,
A noite, e toda aquela claridade,
Num pasmo só, num único desejo.
Tudo esperava estranha divindade,
Obra feita de amor e luz de um beijo,
Que a vida remoldara num festejo
Tão longo como a mesma eternidade...
Velha história de amor, que é sempre nova,
Que anda sempre a oscilar do berço à cova.

VII
E era à beira do mar... Ela não vinha!
Espumava-lhe aos pés a alga marinha!
E o mar macio, lânguido, domado,
Dos clarões do luar incendiado,
Menos água, que os olhos seus, continha.
Ele sentia o vago inquietamento,
Que atinge a noite em todo o firmamento,
Que tem o mar, com que soluça o vento,
Com que para o seu fim tudo caminha;
Sobrava-lhe o infinito do desejo:
Cada rumor lhe parecia um beijo,
E essa sombra de um beijo inda o sustinha,
Fluida ambrosia enchendo uma cratera,
Em que ia, segurando as duas asas,
Beber o céu, os sóis e a primavera.
Talvez, porém, na palidez serena
Do seu rosto suave e doentio,
A sua alcova límpida e pequena
Iluminava, se escondendo ao frio.
Nas ondas loiras dos cabelos dela
Depor quisera todo o firmamento,
À branca fronte o olhar de uma gazela,
Astros em roda, em giro sonolento!
Sonho de amor, que se prateia à lua,
Que abre de noite como o cacto expande,
Que das Quimeras entre os sóis flutua,
E que é, como albatroz, em azuis só grande!...

VIII
Quando o dia voltar, trazendo aos ombros,
Como um rochedo de ouro o sol polido,
Nos cinábrios do esplêndido vestido,
Toda envolvendo-a um flavo pó de escombros,
Escondendo esta noite e o luar brando,
Onde estará o louco desnoitado?
Por onde ele andara peregrinando?
Em que deserto ele refaz seu sonho?
Em que vórtice novo irá levado,
Vórtice novo, feio, atro, medonho?
E esta noite tão lânguida e serena,
Pelo beijo de um deus qualquer sagrada,
Que entre frouxos de luz se morre, e é pena!
Quem a terá nos seios seus guardada?
Acres brisas da noite, ó doce alento,
Em que o ar do seu peito se mistura,
Ide mexer-lhe o branco cortinado,
E roçar, quase a medo, a fronte pura
Dessa angélica e suave criatura,
Já que o não pode o mísero e coitado!...
Em que musgo se aninha uma ventura!...
Noite... noite de amor, como hás passado?
Mas ficaria o teu reflexo puro,
Para lembrança eterna do futuro,
Nalgum canto do céu iluminado?
Quem saber pode a triste história a fundo
Dos loucos sonhadores deste mundo?!...

 

A GRANDE LÁGRIMA

Ignari hominumque locorumque...

Virgílio — Eneida

Vem. Há uma ilha ignota
Para mim e para ti:
Palácios em cada grota,
Muita luz no sol que ri...

Multa alegria em teus olhos,
Muita testa em cada flor:
A vida um mar sem escolhos
À sombra de nosso amor.

Enchendo o espaço, cobrindo
De almo alvoroço e prazer
O sol do teu rosto lindo,
Que tudo faz esplender.

Minha alma as asas abertas,
Fremindo nas tuas mãos
Por essas praias desertas...
Os corações — dois irmãos...

A vida um hino eviterno
Em duas liras num som:
Dois numa barca ao galerno...
Ai! como isto tudo é bom!

Mas olha: deixa a cidade,
Fujamos, fujamos já:
Beba-se até à ebriedade
Os raios de ouro, que inda há

Dentro da taça da vida...
Que não o veja ninguém:
O gosto bom da bebida
Às últimas gotas vem.

Como duas borboletas
Brinquemos num vale a sós:
E o próprio vale, se isto aceitas,
Que inveja vai ter de nós!

Vamos. — No bosque vizinho
Arrulham as juritis...
Vou lá fazer nosso ninho:
Vem: olha, vais ser feliz.

Tu, lá chegando, adivinha...
Há conspiração geral:
Hão de aclamar-te rainha
Todo o bosque e todo o val.

Ouvirás as sinfonias
Das palmas e dos rosais:
Fauno a dar-te alto os bons dias,
E a dar-te baixinho os ais...

Prepara-te, foge, voa...
Não cismes, que então não vens:
Guarda-te a aurora uma coroa
De lírios, rosas, cecéns.

Um lago, em nesga do prado,
Dorme, líquido lençol,
E tem no seio engastado
Um grande diamante — o sol.

Descalça teus pés, desdobra
Nesse límpido cristal
Teu corpo, e o sol, — grande obra, —
Apanha e põe no sendal.

À noite, os dois alabastros
Dos teus pezinhos tu pões
Entre o barulho dos astros,
Saltando na água aos milhões,

Neles bulindo aos cardumes
Alegres, com tal rumor,
Que começo a ter ciúmes
De ver-te os pés na água pôr.

Onde o sonho me arrebata;
Onde o desejo me quis!
Estamos já dentro da mata;
Lavas já teus pés gentis...

Como é bela esta ilha ignota:
Vamos pois viver ali:
Palácios em cada grota,
Muita luz no sol que ri...

Vamos já, pois fica certa,
Que, se olhares para trás,
A ilha fica deserta,
Eu não vou e tu não vais.

Custa pouco o inconveniente
De não ires e eu ficar:
Uma lágrima somente
Grande... amarga... como o mar!...

 

A NOIVA DO CADÁVER

O, if thou teach me to believe this sorrow,
Teach thou this sorrow how to make me die,
And let belief and life encounter so
As doth the fury of two desperate men
Which in the very meeting fall and die!

Shakespeare — King John

Vinhas tocada de um bulcão violento,
Pobre folha duma árvore arrancada;
A palidez da morte debuxada
No rosto macilento:
Teus pés traziam tua formosura,
Como uma estátua em base mal segura,
Que oscila e varre o vento...

Com tuas mãos tão brancas como as penas
De alva pomba, que treme e sente frio,
E as leves asas róridas sacode,
De as ter molhado ao rio,
Abriste a porta trêmula e chorosa!...
Nunca a aurora molhou mais branca rosa
De esplêndido rocio.

E os dois astros seguiam do oriente
Par a par, em serena claridade,
Diante deles toda a imensidade,
Deus inda mais adiante...
Eis de repente um deles cai sem lume!...
Viu-se o golpe: ninguém ver pode o gume
Da espada fulminante!...

Tinhas a rosa dos vergéis dos sonhos
Colhido já e quase no teu seio:
Mas quem assim tão de repente veio
Roubar-ta, ó linda amada?
Quando uma voz te disse: — é morto o noivo: —
E ias pegar na rosa e viste o goivo...
Caíste fulminada!...

O raio que golpeia o monte, a rocha:
O furacão que os ápices procura,
Caiu sobre o teu sonho de ventura,
Como uma águia cobarde:
Ó fina flor de tão suave aroma,
Para salvar-te um Deus nem tarde assoma?
Não vem... nem mesmo tarde?

Como te palpitou o peito ardente,
Que mágoa ou que prazer encheu-te o seio,
Quando o teu lábio a sua fronte algente
Beijou em doce enleio?!...
Que fez teu coração dilacerado,
Quando sobre o seu corpo debruçado
Tinhas teu corpo a meio?

Quando o teu jovem sangue espadanando,
Enchia de calor teu corpo inteiro,
E fazias de ti seu leito brando,
Seu doce travesseiro?
E co'a boca colada à sua boca,
Querias dar-lhe, ó linda amante louca,
Teu sopro derradeiro?!...

Estava adiante a mocidade e a vida,
Tudo o que a alma procura, anseia, anela,
De primavera esplêndida cingida
De um noivo a fronte bela:
Era o doce mancebo que sonharas:
Ias com ele em breve às santas aras,
Ó cândida donzela.

Oh! como a dor te acentuava o rosto,
E cinzelava os teus mármores traços.
Eras a eterna estátua do desgosto,
Caídos os dois braços.
Derreado o cabelo, o gesto insano,
Como soluça, arqueja e chora o oceano,
E se rasga em pedaços...

Só com ele na alcova e tu coberta
Do teu dó, do teu luto e desvario,
Vinhas ver o espetáculo sombrio,
Mas não... mas nunca aquilo:
Ver-te e não levantar-se?! Oh! desgraçada!
E um momento ficaste mutilada,
Como a Vênus de Milo!...

Eu vi um quadro assim: era uma cópia
(Fiel a cri) de uma mulher de Guido:
Pelas dobras do colo e do vestido
Revolvida a melena,
Pálida a fronte bela, olhos vermelhos,
E abraçando um cadáver de joelhos:
— Jesus e Madalena. —

Tinhas dessa mulher santa a atitude
De estátua derrubada e a forma e o encanto:
E na aflição, no soluçar, no pranto,
Eras bela e sublime!...
Porém, com ela, em seu sofrer violento,
Só te não perturbava o sentimento
De uma culpa, ou de um crime.

Morto aí estava!... Ai!... morto!... e na primeira
Primavera da vida amena e doce!...
E a louca Ofélia se pusera à beira
Do berço em que dormia!...
Dormia ali o amante um sono infindo!
—Acorda... acorda... — E dela o braço lindo
Embalde sacudia!...

Ó pobre Ofélia, Ó mármore esculpido
Com tanta graça e esplêndido em brancura,
Que te dizia o teu amante ao ouvido
Na impassível postura?
Sentiste-lhe saltar alguma fibra?
Aquela carne não tremeu... não vibra
Sob a tua mão tão pura?...

Nada te disse, nada te dizia!...
Eras na dor, no prantear sozinha!
Ele que ontem a poeira beijaria
Dos teus pés de rainha,
Estava mudo na dor que te elevava,
Ele escravo que agora, como escrava,
Plangente aos pés te tinha.

Mas como te arrancaram desse leito
Em que dormia o teu porvir brilhante?
Ai! quem pôde soprar-te a vida ao peito,
Sem te animar o amante?
Viúva rola que não sais do ninho,
E esperas vê-lo à volta do caminho
Surgir a todo o instante!...

Oh! não virá! — Não acharás conforto
Na sua imagem límpida e querida:
Teu pobre amante a âncora da vida
Lançou no eterno porto;
Mas como eu bendissera igual instante,
Se foras tu a minha triste amante,
E eu fora aquele morto!...

Teus infantinos, delicados ombros
Vergam com tanto peso de amargura...
Em tua doce e pálida figura
Ri-se a morte tão calma!...
Oh! reparte comigo... — eu sou robusto —
Dor, tristeza, viuvez, lágrima, susto,
As sombras de tua alma.

Quero medir a dor que conter pode
Uma alma, que talhou a morte em duas:
Sobre o meu coração, mulher, sacode
Todas as dores tuas...
Oh! dor, eterna filha dos pesares,
De que profundidões rompem os mares
Do pranto em que flutuas?...

Mulher tão linda que em mistério eu amo,
Se a violência da dor faz que sucumba,
Lancem-me a morte e Deus à mesma tumba,
Que eu quero acompanhá-la:
Como dois corações entrechocados,
Caem do abalo mortos, e enterrados
Dormem na mesma vala.

Dormem? Quem sabe? Há grandes desgraçados,
Mais do que tu, Romeu! nem são chorados!
Ninguém na terra os vê; e olhos voltados
Deles tem mesmo Deus...
Mesmo Romeu os apunhala e mata!...
Eles nasceram sob estrela ingrata,
E eram também Romeus!...

Vê-se desta mulher na fronte o sulco,
Que a dor... a intensa dor golpeara nela,
Como do anjo caído à fronte bela
A cicatriz da lança,
Com que o irmão o esmagou, conserva ainda:
E no dedo gentil da mão tão linda
Guarda o anel da aliança.

Reflexo eterno desse amor tão puro,
Tem nele a triste história ou vivo emblema:
Há coração tão rijo que não gema
De ver assim quebrados
Esses fios de pérolas brilhantes,
Que iam ligar num só os dois amantes,
E em lágrimas tornados?

Se há Deus, se a cova dá para o infinito,
Certo cadáver deve sentir inda
O corpo quente duma amante linda,
Trêmula de ansiedade,
Que o envolve nos seus braços, nos seus beijos,
E prolonga os seus últimos desejos
Até a eternidade.

Rola viúva e virgem, que eu não possa
Levantar o teu véu de negra renda,
Que à luz do sol do céu teus olhos venda,
E os venda ao meu amor!...
Oh! que eu não possa... que eu não deva amar-te
Mas ao menos comigo a dor reparte:
Dá-me toda a tua dor...

Eu sou também pra ti o amante morto:
Tu és a Ofélia que eu perdi no lago:
Nem eu posso pedir-te o teu afago,
Nem tos posso oferecer...
Somos os tristes mortos da esperança!
E a mim, como ao teu noivo, que descansa,
Nem me resta morrer!...

Ai! não teria, não, como o cadáver
Do teu esposo em breve e noivo apenas
O perfume das brancas açucenas,
E o aperto dos teus braços,
E o achego do teu corpo a um corpo mudo:
Ali restam do teu amor em tudo
Eternamente os traços...

Vives hoje na margem solitária
De uma lagoa plácida e tranquila,
Como o guará, que pra morrer se exila
Na espessura do mato.
Bela palmeira de haste derrubada,
Revês a coma verde inda enrolada
Nos cristais do regato.

E eu amo-te sozinha assim na sombra
Do sítio, em que ninguém te sonha e pensa
Chorando a tua dor profunda e imensa,
Pobre rola viúva...
Já não te alegra mais o sol que passa:
Ris talvez, quando o céu se despedaça
Em lágrimas de chuva...

Quando e como me veio este amor grande?
Como a luz doce dum luar de outono,
À meia noite, quando a terra em sono
Na sombra se reclina:
— Quem a desoras bate na minha alma? —
Eu perguntei: — e vi-te, estrela calma
Iluminando a ruína...

Como te visse, pareceu-me... (engano
Da alma talvez) mas eu o cri decerto,
Que era um arneiro amplíssimo e deserto
A minha vida inteira:
Que ia dela os grilhões levando a rastro,
E que eu te conhecia, como um astro,
Seguindo a minha esteira...

Eu te vi sempre... eu te conheço muito!...
Sempre te amei... oh! sempre te amaria...
Mas que eras tu, mulher, eu não sabia...
Ai! de mim! ai! de mim!...
Tarde... ai! tarde acordei!... Era já crime,
Beijar-te os pés até, mulher sublime,
Joia perdida enfim...

Tesouro de uma pérola sem preço,
Que eu vi rolar às margens do ribeiro,
Que eu deixei apanhar ao companheiro,
Sem me lembrar de vê-la:
Quando ele a teve, eu vi o que eu não tinha!
A culpa não foi dele: ai! foi só minha
De te perder, estrela.

Então eu pus o coração ao cepo,
E disse: — ó dor, em pé: levanta o malho;
Foi pedra o coração, fá-lo cascalho,
Bate nele e o tortura:
Sofre? castiga-o, — é teu dever: que importa?
Mata-o, pois, mata-o, — já que enfim está morta
A esperança da ventura... —

Como se cava o chão e se levanta
Mármores, bustos, capitéis, colossos,
Grandes ruínas, rútilos destroços
De impérios sepultados,
E novos templos rojam-se aos espaços,
Da própria dor levanta os teus dois braços,
Redoira os sóis passados...

E disse mais: — esse murmúrio baixo,
É como a queixa inútil do regato:
Como um ruído vão dum insensato,
Que fala e que não pensa:
Duram mais os espinhos do que as flores:
Anjos, não conheceis humanas dores...
Nem minha dor imensa.

Para secar as asas da sua alma
Molhadas pelo inverno em que caminha,
Já não esperou sol, como a andorinha
Num galho solitário:
Ficou do sol que a vida lhe há dourado
A lembrança — esqueleto iluminado
À luz dum lampadário...

Resta-lhe agora a noite de tristeza,
Salpicada de lágrimas; a vida
Como estátua de mármore caída
Em charco do aguaceiro...
Só fica neste inverno rigoroso
Tarda andorinha a voejar sem pouso,
Sem sol, sem companheiro...

Desestrelada noite, és triste agora!...
Mas como te respeito a dor sublime!...
Todavia responde-me se é crime,
Vir ver-te à solidão?
Anjo de asas abertas sobre o vaso
Que encerra as coisas desse amor, acaso
Não te falta um irmão?

Um dentro do sepulcro, outro de fora,
Sem um Deus que se erguendo — unam-se — diga:
Mas a saudade ao céu inda te liga,
Anjo a meto isolado:
Dize-me: no palácio que te abriga,
Não darás tu a um pobre, que mendiga,
Um cantinho ao teu lado?...

Se me negares tudo, a parca esmola
Do mendigo que bate à tua porta
Vergado, pois que leva a esperança morta
Dos ombros através,
Dos teus olhos — joalheiros de diamantes —
Se tens deles alguns menos brilhantes,
Um... atira-lhe aos pés...

Um distraído olhar de condoimento
Ao irmão na dor; um gesto compassivo,
Que acaso fosse um tênue lenitivo
À mágoa que o golpeia!...
Forjou bem forte o anjo da saudade
Essa, que a alma te prende à eternidade,
Insondável cadeia!...

Tenho uma grande lágrima tão quente,
Que era bastante só, pra derretê-la;
Mas invisível vai de estrela a estrela
O grilhão, que ao granito
Do túmulo te prende; — ele atravessa
O céu, os astros, cai na treva espessa,
E se estende ao infinito!...

 

NOTA

Este pequeno poema de ocasião pede um reparo. Era eu estudante e passava umas férias na Tijuca, numa pequena casa, branca, tímida, escondida entre o mato e para as vertentes que olham a lagoa de Jacarepaguá. — Nos frequentes passeios que dava pelos sítios escolhidos, solitários, de uma selvagem grandeza, que os amadores conhecem e que todos não compreendem, encontrei-me por vezes com um moço de distintas maneiras, triste, simpático e que se aprazia sobretudo dos lugares em que aquela natureza chora e soluça mais rude, mais delirante, mais grandiosamente.

Pouco e pouco fizemo-nos conhecidos. Conhecermo-nos, foi amarmo-nos.

Um dia, aos últimos raios do sol da tarde, comovido contou-me ele este episódio de vida íntima: Era seu amigo um jovem que morrera de uma síncope na véspera do consórcio. A formosa e interessante senhora, sua noiva, enviuvara um dia antes de efetuar o casamento.

Ele mesmo a amava reconditamente, em silêncio, dentro dos limites de sua consciência e do seu coração.

Motivo insuperável tornava inútil qualquer tentativa junto àquela mulher, presa agora a um sepulcro pela saudade e cuja chorosa viuvez a levantara ainda mais aos olhos seus.

Impressionado ainda, salpicado de suas próprias lágrimas, ainda a ouvir-lhe os soluços profundos, como arrancos de um mar em convulsão, envenenado do contágio de sua imensa dor, apropriei-me ao assunto; foi esta elegia a obra de um momento, que li no dia seguinte com certa comoção, parando de quando em quando, para deixá-lo chorar livremente.

Parece que o melancólico trecho palpitava de verdade, porque, erguendo a cabeça e cravando os olhos úmidos, vermelhos, e espantados sobre mim, perguntou-me com uma cólera mal disfarçada: conheces e amas também essa mulher?...

Apertei-lhe as mãos e sorri-lhe tristemente.

Eu nunca a vira.

Meu companheiro de férias reside hoje na Europa. A Senhora, que vi depois algumas vezes e que, em verdade, era adorável, creio que é morta há muito tempo, após ter viajado pela Grécia e pela Itália, países de grandes recordações e de grandes ruínas, onde as almas que desaprenderam o rir encontram os prolongamentos das suas tristezas, das suas recordações e das suas ruínas, como um eco de vida inteira de lágrimas.

O inútil poema não produzirá nenhuma impressão em ninguém mais. Que importa? Tinha sido só para ele. Ela mesmo nunca teria conhecimento nem dessa paixão, nem deste poema.

***

Hoje que se pública o canto elegíaco, todos são mortos, exceto o seu autor. — O tempo faz desaparecer tudo.

Luís Delfino




ATLANTE ESMAGADO

Um dia ouvi... (abismo eterno, onde caído
Um século jaz, depois de ter ouvido
Essa música doce, etérea, inebriante...)
Nos meus cabelos o teu lábio palpitante,
Como as asas de uma ave a tiritar medrosa,
Depor um beijo... ouvi!... Tua boca cor de rosa,
Ninho de colibri, ninho do teu sorriso,
Que tem mais esplendor que a ave do paraíso,
Tua boca, mulher, pousou nos meus cabelos.
Um céu!... Era demais! Dobrei os meus joelhos,
Vacilei ao luzir dessas constelações,
Que me vinham buscar em loucos turbilhões!
E eu tinha ao mesmo tempo o severo semblante
De Anteu, que vai cair, ou de esmagado Atlante.
Em torno a mim havia as serpes. Laocoonte.
Era Tifeu descendo o céu, e monte e monte
Despenhados sobre ele, após o infando crime:
Sentia a enormidade incógnita, que oprime;
De um excesso de luz estava a fronte ferida;
Era um deslumbramento imenso a minha vida.
Rolava por cairéis de abismos sem escolhos,
Com abismos nos pés, escuridões nos olhos:
Esmagava-me o céu descido do seu beijo:
Nunca até ele houvera ensaiado um desejo,
Quando vi de repente aquela chuva toda
De astros, que vinham nele a iluminar-me em roda...
E foi ele tão leve, e trêmulo, e queixoso,
(Que infinito há num beijo, ai! num beijo e seu gozo!)
Como o doce ranger das estreladas portas
Na noite silenciosa, em fundas horas mortas,
Quando pela calada a alma absorta cisma,
E olhando o azul ao suave e diáfano prisma
De um sonho alado crê, que um anjo, que resume
Todo o amor, que há no céu, todo o esplendor da aurora,
Vem ver-nos, estendendo a áurea fronte de fora,
Fugindo após, lanceado o coração de ciúme.



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Iba Mendes Editor Digital
www.poeteiro.com
São Paulo, 2023.

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