1/14/2023

O Lobisomem (Conto), de Virgínia de Castro e Almeida





O LOBISOMEM 

Já passava das Ave-Marias.

Deolinda andara na monda todo o santo dia; e agora voltava da várzea, à frente do rancho, de sacho ao ombro, de mão na ilharga, desempenada e linda, com aquele seu ar atrevido, e ao mesmo tempo assustadiço, que atordoava os homens.

As raparigas cantavam em coro: mas a voz de Deolinda, afinada e alta, subia acima das outras no ar límpido, como um canto de toutinegra.

Era sábado. A taberna do Manso, à beira da estrada, estava apinhada. Os homens juntaram-se à porta a ver passar as mondadeiras.

"Olhe lá, ó ti Miguel!" gritou Deolinda a um deles: "posso ir agora acolá ao pinhal buscar o molhito de lenha que vomecê me vendeu?"

"Vai, cachopa. Mas avia-te, que é tarde."

Acrescentou com malícia, piscando o olho para os outros:

"Cuidado não te saia algum lobo ao caminho!"

Os homens riram.

"Lobos não se metem comigo", acudiu ela prontamente, "que eles bem sabem as unhas que tenho para os esganar."

Os risos redobraram.

Um dos rapazes atravessou o eirado que separava a taberna da estrada, e, esperando junto da valeta, disse:

"Deus te guarde, Deolinda. Vais tão soberba nem olhas para quem te quer bem."

Era José Gancha, rapagão espadaúdo, tocador de guitarra, bom dançador, trabalhador de mão cheia.

Deolinda respondeu, toda despachada:

"Tenho mais que fazer."

E, recomeçando a atirar a voz fresca pelos ares, foi andando, requebrando o corpo esbelto, lenço caído para as costas, cabeça ao vento, confundida com as outras; e os pés descalços das raparigas deixavam atrás de si, levantado, o pó da estrada, como um rebanho de cabras.

José ficara parado à beira do caminho.

Um velho saiu da taberna, aproximou-se, deu-lhe uma palmada no ombro:

"Deixa-te disso, homem! Para o que te havia de dar! Nem já pegas na guitarra!… Se teu pai fosse vivo, quebrava-te mas era um marmeleiro no lombo para te curar dessa sapatia."

"Qual sapatia? Onde é que vomecê vê sapatias? Cuidam que a gente anda sempre com o sentido nas cachopas!"

Puxou o cós das calças para cima, num repelão, concertou a jaleca ao ombro, e abalou, sem dar as boas-noites a ninguém.

Andava farto de ouvir as lamúrias da mãe e dos tios, por causa da Deolinda. Todos lhe cantavam a mesma cantiga: que a rapariga era enjeitada, mas que só a "Mouca", por ser bruxa, a quisera criar, pois a criancinha trazia um sinal no ombro, do feitio das unhas de um bode, que era a marca do diabo.

Diziam que a "Mouca" lhe ensinara artes mágicas e bruxedos, e por isso ela enfeitiçava os homens.

Lembravam ao José o que acontecera com o cunhado dele, Joaquim, que andara perdido por amor daquela cabra, antes de casar, e que nunca mais tivera alegria.

Mas José não queria saber de contos. Já entrara em casa da "Mouca", muito velha agora, surda de todo e quase entrevada; e vira como Deolinda trazia tudo asseado, reparara na caridade com que tratava a mãe adotiva, e não lhe escapara a lamparina cheia de azeite a arder defronte da imagem de Nossa Senhora, nem o rosário pendurado num prego à cabeceira da cama.

Pela estrada fora, a caminho de casa, o José resmungava sozinho:

"Pobre sim, mas ninguém a vê rota nem suja, nem desmazelada. Mal-amanhadas são as que falam dela com inveja da sua lindeza. Metam-se com a sua vida! Talvez ela ande mais apegada a Deus que os que rosnam… Se me enfastiei da guitarra, meu proveito! Não me furto ao trabalho e trago as fazendas que se podem ver… que mais querem?"

Concluiu:

"Raios os partam!"

Deolinda, antes de chegar ao povoado, separou-se das companheiras, e foi buscar a lenha.

Fez o molho, pô-lo à cabeça, e tomou o atalho que vai dar à azinhaga do cemitério, a caminho de casa.

A azinhaga é estreita, apertada entre taludes altos coroados de piteiras; e Deolinda ia apressando o passo, por já ser tarde, quando viu um homem parado no meio do caminho.

Ainda havia claridade de dia, e a lua cheia ia a nascer; conheceu logo Joaquim.

"Olha que espantalho me havia de aparecer!" disse ela.

"Não me trates mal", respondeu Joaquim; "vim aqui para falar mais tu."

"Não quero saber das tuas falas; o tempo das conversas já passou."

Joaquim aproximou-se; suspirou:

"O tempo das conversas não passa, Deolinda, quando o diabo se mete no sangue da gente."

"Não me tentes, excomungado!" gritou ela. "És um vendido, é o que tu és! Um grandessíssimo vendido! Queres conversas! Vai conversar mais o estafermo da tua Rita. Olha, as minhas conversas, para ti, são estas."

E cuspiu, em sinal de desprezo.

Calavam-se agora ambos; ouvia-se apenas a respiração ofegante da rapariga, e as vozes dos rouxinóis cantando lá em baixo, nos salgueiros da ribeira.

"Para que te hás de cansar?" disse por fim o homem com tristeza. "Tanto se me dá que me chames nomes como não. Vim para falar mais tu, e hei de falar, ainda que fique até de manhãzinha. Já sabes como sou quando se me mete uma cisma na cabeça."

Deolinda, num arremesso, atirou com o molho de lenha ao chão; tremia de raiva. A lua cheia iluminou-a toda. A saia de chita, velha e mole, empurrada pela brisa, colava-se-lhe às pernas; e a blusa, entalada adiante no cós da saia, dividia-lhe os seios.

"E que m’importa a mim o que tens no pensar?" disse ela. "Trocaste-me pela Rita, só por via do dinheiro. Cuidas que falo para um homem casado? Lá por ser enjeitada e pobre, cuidas que sou alguma arrastada e que não tenho vergonha na cara? Arreda-te do caminho, e deixa-m’ir, que não tenho mais nada contigo nem tu comigo."

Apesar da violência com que ela falava, Joaquim não se alterou.

"Não m’arredo e hás de m’ouvir. Não foi por via do dinheiro que me casei mais a Rita. Se a recebi, foi porque meu pai, à hora da morte, mandou. Era tudo por via das fazendas dela que ficavam pegadas com as da gente. Enquanto ele teve saúde, por mais que me tentasse, sempre lh’abanei as orelhas, tu bem no sabes; e não foi um ano nem dois. Queria lá saber das fazendas! Mas naquela freima, quando o vi a acabar, com os olhos arregalados, torcido que nem uma cepa, e sem poder morrer, à espera da minha promessa… prometi. Que havia eu de fazer? E depois casei. Se faltasse à promessa, perdia a minha alma, e a dele ficava sem descanso."

Deolinda murmurou:

"Se ele é isso, fizeste o que devias de fazer."

Acrescentou com a voz trêmula:

"E daí? Agora acabou-se. Eu disse-te alguma coisa? Queixei-me? Meti-me com a tua vida? Deixa-me passar, Joaquim."

Mas ele, plantado no meio da azinhaga, não se mexeu; e aquela obstinação ia levantando de novo a cólera da rapariga.

"Que mais queres? Disseste o que tinhas para dizer, quer seja mentira quer não. E a mim que m’importa? Se estás casado, melhor! Também eu m’hei de casar: e não tarda muito."

"É do Zé que falas?"

"Seja de quem for, não é da tua conta!"

Joaquim agarrou-lhe num braço com força, e gaguejou:

"Fala verdade, cachopa! Gostas dele?"

"Larga-me, diabo! Gosto dele, gosto! Quero-lhe bem como nunca te quis a ti!"

Enfurecida, estrebuchou, soltou o braço num repelão, atirando-lhe as palavras, como facadas:

"Gosto! Gosto! Gosto!"

Mas, de súbito, sob o olhar ardente que a queimava, quebrou-se-lhe a força do gênio, faltou-lhe a voz. Deixou-se cair para cima do molho de lenha e, cobrindo a cara com o avental, desatou num choro convulso.

Joaquim sentou-se ao lado dela, chegou-a a si; e perdia a cabeça, falava baixinho, sem saber o que dizia:

"Deolinda… meu bem… A gente não pode… Isto é coisa má que o diabo dá a beber… não tem cura…"

Apertava-a contra o peito; sentia-lhe o calor do corpo que se abandonava, e a rijeza dos seios.

"Deolinda… eu sei que me queres como eu a ti. Os teus olhos têm falado para os meus, até na igreja, Deus perdoe à gente… Como assim, de que serve o fingimento? Enquanto vi que não tinhas conversado, aguentei-me. Mas agora… quando desconfiei do Zé…"

Lá em baixo, numa veredazita que vinha dar à azinhaga, ouviram-se pedras rolar, feridas por passo curto de jumento; uma voz de homem gritou ao animal:

"Arre, burro!…"

Ergueram-se bruscamente.

"Amanhã, à hora da sesta, na extrema das Barrocas, como dantes", bichanou Joaquim.

E marinhou pelo talude, rompeu entre as piteiras, e esgueirou-se ao longo do valado.

Quando o moleiro e o burro surgiram na azinhaga, Deolinda estava só.

Joaquim foi andando devagar, estonteado como um bêbado.

"És tu, Jaquim?" perguntou a Rita de dentro de casa, quando lhe ouviu os passos no eirado.

"Sou."

"A ceia está pronta."

"Pois ceia tu, que eu não tenho vontade de comer."

A Rita veio até ao limiar e viu-o afastar-se na direção da eira, que ficava no alto do cabeço.

Gritou-lhe:

"Vem cear, hóme! Já não quiseste jantar. Valha-me Deus!"

Joaquim voltou-se com impaciência, receando que ela o seguisse; mas Rita não passara da porta.

Então, foi subindo devagar a vereda bordada de alfazema florida.

Sentou-se no murozito baixo que rodeava a eira. Em volta, a folha de aveia, ainda rasteira, parecia um tapete de veludo. O ar estava imóvel e pesado, e a terra exalava um calor húmido. A lua cheia iluminava tudo.

Joaquim fincou os cotovelos nos joelhos, apertou a cabeça nas mãos, e assim se deixou ficar.

Então ouviu uma voz que dizia:

"Vai em dois anos que casaste, e nunca a Rita te deu razão de queixa, nem deixou de te estimar bem e de tratar da casa que é um regalo: e tu só tens a outra no pensar; a outra é o pecado que te aparta do Céu; é a perdição da tua alma."

De onde vinha aquela voz? Ora lhe parecia que a tinha dentro do peito, ora que alguém lhe falava ali perto.

Olhou em redor e viu, na folha de aveia, um cordeiro a pastar; era branco de neve.

Seria um cordeiro?… Uma mancha de luar?… Lembrou-se do cordeiro que estava pintado no teto da igreja, com a cruz e a bandeirola.

E então ouviu outra voz que dizia assim:

"A Deolinda ainda te quer; mas se a deixares, casa mais o teu cunhado Zé. Mulheres esquecem depressa. E hás de vê-la, abraçada mais o Zé, acolá, nas fazendas dele que são pegadas com as tuas."

Joaquim rangeu os dentes.

E nisto ouviu um resfolegar de bicho atrás de si; e, voltando-se, deu com um bode grande e escanzelado, todo negro; os olhos eram duas brasas.

Passou toda a santíssima noite embrulhado nestes sonhos e agonias. Ao nascer do Sol acordou, estendido no chão da eira, molhado de orvalho e suor, e a tremer de frio.

Ergueu-se. Tinha grande lassidão no corpo, e a alma como que dormente.

Sentia o estômago vazio. Lembrou-se que não comera na véspera e apeteceu-lhe um caneco de café quente.

Dirigiu-se para casa devagar, enregelado, topando nas pedras, com a cabeça pesada como chumbo.

Para encurtar caminho, metera por uma courela recentemente cavada. A terra mole abafava-lhe o ruído dos passos.

Quando ia rente ao muro, por detrás do alpendre do tanque onde Rita lavava a roupa, ouviu as vozes da mulher e da sogra. Falavam dele.

Parou, à escuta.

"Sempre a cismar, sempre a cismar… Não come coisíssima nenhuma, desde ontem de manhã."

Desabafava com a mãe.

O seu Joaquim tratava-a bem; dava-lhe para a mão todo o dinheiro, e ninguém podia dizer, com verdade, fosse o que fosse contra ele. Dantes ainda tinha algumas conversas com ela; agora, nada. Sentava-se à mesa, calado. Ficava-se a cismar, com os olhos cravados na parede. Se ela lhe falava, estremecia como quem acorda de repente; encarava-a, espantado.

Quando lhe perguntava se tinha alguma freima ou moléstia, respondia que estava bom. Nunca se queixava.

"Parece mesmo coisa má", concluiu Rita. "Às vezes até cuido que foi olhado, Deus me perdoe."

"Olhado… ou pior", resmungou a Gancha.

"Pior o quê? Porque está vomecê a benzer-se, mãe?"

"Olha lá", perguntou a velha depois de um silêncio: "que horas eram quando deste com ele na eira?"

Rita não sabia. Passara uma noite de aflição, sempre à espera. Não chamara ninguém porque gostava pouco de meter a vizinhança na sua vida. Apegara-se a Nossa Senhora; rezara muito. Quando o céu clareara, correra à fazenda e dera com ele a dormir na eira, ao relento. Ficara mais descansada; não o tinha acordado com medo que se arrenegasse.

A Gancha matutava.

"E não reparaste", disse ela, "se por ali perto havia no chão sinal de um qualquer espojadouro, ou assim excremento de burro ou cavalo?"

Rita não respondeu. Mas Joaquim ouviu um choro abafado.

"Nossa Senhora e o Santíssimo Sacramento se lembrem da gente", gemeu ela. "Ah! mãe! Então vomecê cuida qu’ele é isso? Jesus Cristo me acuda, que mais me valia morrer!"

"Qu’ele é o quê? Qu’ele é o quê?…" repetia Joaquim de si para si, sem querer entender, e cobrindo-se de suores frios.

"É cá uma ideia que me veio à cabeça", tornou a Gancha. "Pode ser e pode não ser. Mas os sinais que dás são certos. Não te amofines. Com a ajuda de Deus não há mal sem remédio. Vai espreitando, diz-me tudo, e deixa estar, que se lhe há de dar volta."

Rita, entre soluços, começou a fazer perguntas à mãe; mas esta respondia baixando tanto a voz, que as palavras mal chegavam aos ouvidos de Joaquim.

E Rita chorava sem consolação.

"Cala a boca", disse-lhe a mãe. "De que serve chorar? Espreita-mo bem: mas com jeito, que, se ele percebe, cria-te zanga e já lhe não podes valer. Vê se lhe sabes as manhas, os sítios por onde vai quando abalar de noite. Promete uma novena a Nossa Senhora, que tens posses para isso."

Joaquim afastou-se cautelosamente; deu uma grande volta e veio ter com as mulheres, por outro lado. Havia vinte e quatro horas que não comia; tinha a cabeça num sino.

Seria verdade o que dizia a Gancha?

Sentia o peito dorido, e uma canseira tamanha como se tivesse passado a noite a bater estacas num açude.

Se… aquilo fosse certo, por onde teria andado de noite?… Estaria já a sua alma nas unhas do Maldito?

Ao chegar junto da mulher e da sogra entendeu de repente que era preciso disfarçar, esconder aquela freima que trazia no sangue. Porquê? Não sabia porquê. Pressentia perigos, vagos ainda, mas suscetíveis de se tornarem mortais, se não estivesse alerta, se não desconfiasse de tudo…

E disse à mulher, com modos desprendidos, logo depois de as saudar:

"Estás agastada por eu não dormir em casa esta noite? Então… deixei-me adormecer na eira. Andava moído e fazia calor… Talvez tivesse febre. Não ando bom. Preciso de uma purga."

"Isso é andaço", observou a Gancha; "muita gente por aí se queixa do mesmo. Mas não devias deixar-te ficar na eira; o relento faz mal."

Rita olhava o marido, desconfiada. Porque estava ele assim tão demudado, a conversar como toda a gente?

A velha, manhosa, disse, a rir:

"Se calhar… a Rita, quando viu que não dormias em casa, cuidou que eras algum lobisomem…"

Joaquim encolheu os ombros, e soltou uma gargalhada contrafeita:

"Está bom, está!…"

E logo mudou de conversa; mas a Gancha vira-o empalidecer e atrapalhar-se.

"Que é do almoço, mulher? Tenho de ir prá vinha, que andam lá os homens; e já não é cedo."

Rita, contente por ouvi-lo pedir de comer, correu para casa; e ele seguiu-a, esforçando-se por caminhar direito, assobiando entredentes com ares descuidados porque bem sentia os olhos da sogra em cima dele.

E apenas se sentou à mesa, voltou-se para a velha:

"É servida? Olhe que é de boa vontade."

"Agradecida. Tenho que m’ir…"

Mas demorava-se, ajudando a filha, conversando, sempre a espiar o genro, a ver se lhe descobria o fastio, o cismar de que a Rita falara.

Mas Joaquim comia com vontade a pratada de feijão que a mulher lhe guardara da ceia. Punha o caneco de vinho à boca e bebia regaladamente.

A pouco e pouco ia-lhe passando a agastura, a confusão das ideias; e sossegava, esquecia-se do susto que tivera, da necessidade de fingir.

"Leve o diabo o medo!" dizia ele consigo. "Então uma pessoa há de ser lobisomem sem saber? Cantigas de mulheres! O que eu tinha era fome."

De repente, com a rapidez do raio, caiu-lhe no pensar uma ideia que o queimou como lume:

Deolinda vivia só com a "Mouca", fora do povoado, da banda de lá do cemitério, ao pé do forno de cal. Ninguém por ali passava de noite, que o caminho, entre ribanceiras e pinhais, era sombrio e medonho. A "Mouca" estava surda de todo…

E daí? Quem se atreve a seguir um lobisomem, quando ele sai, altas horas, a correr o fado?

Surgiu-lhe a imagem de Deolinda na memória conforme a vira na véspera, tão linda, no meio da azinhaga; pareceu-lhe sentir o calor daquele corpo que apertara contra si, e a redondeza dos seios rijos chegados ao seu peito. E uma coisa, que parecia vir do Céu e do Inferno ao mesmo tempo, uma coisa como a garra de um bicho, filou-se-lhe nas entranhas, veio por ele acima a marinhar, até ao coração, até à garganta, cortando-lhe o fôlego, como se o matasse…

Ai, Deus do Céu!…

A sogra viu-o largar a colher, empurrar o prato, e ficar-se esquecido, a cismar, muito pálido, e com os olhos a luzir.

Rita fitava-o, espavorida.

"Deixa-m’ir…" repetiu a Gancha.

Joaquim levantou-se e saiu atrás dela.

Caminharam juntos e calados até à horta; e, aí, separaram-se sem uma palavra.

Apenas deu alguns passos, a Gancha voltou-se; viu o genro afastar-se para o lado da vinha, devagar, curvado, como quem leva grande cuidado, ou pena, ou moléstia sem cura.

A velha abanou a cabeça, apreensiva, e resmungou:

"Deus nos acuda. É mais certo que o chão criar batatas."

À hora da sesta, Joaquim saiu da fazenda e encaminhou-se para a extrema das Barrocas onde ficara de se encontrar com Deolinda.

Ao atravessar a ponte da ribeira, deu de cara com o cunhado, que vinha cabisbaixo e de má catadura.

"De onde vens a esta hora, Zé?"

"De onde hei de vir senão de casa da Deolinda? De toda a sorte, para que hei de estar com espertezas? Bem sabes que converso mais ela, e lhe prometi casamento. Mas o demo da cachopa ferra comigo mas é no Inferno. Ora quer, ora não quer, ora ri, ora chora… Mulheres, gado ruim; ninguém as entende. Hoje não a vi na monda e raspei-me à hora da sesta para a procurar em casa. Disse-me que tinha mudado de pensar, que já não queria casar comigo, que me esquecesse das conversas passadas. Escamei-me, chamei-lhe nomes, cheguei a levantar a mão para ela. Depois… larguei-me a chorar como um cachopo."

"E ela?" perguntou Joaquim.

Encostara-se ao parapeito da ponte e, de olhos no chão, riscava a poeira do caminho com a ponta do cajado.

"Ela?" respondeu José, "escamou-se também. Pois então! Que era senhora da sua vontade, que havia de casar com quem muito bem quisesse, que não tinha medo de mim, que nunca nenhum homem lhe tocara, nem a bem nem a mal, e que, se eu me atrevesse, tinha cinco dedos em cada mão e era capaz de me dar uma estalada na cara…"

O outro interrompeu-o:

"Deixa lá, não te rales. Como assim, a tua mãe não queria que tu a recebesses."

"Não queria?… Pois havia de querer! Se não quisesse, marchava… que a casa é minha!"

"Cala a boca, Zé. Um homem tem de se sujeitar ao pai e à mãe. Não tentes a Deus."

"Se te digo que ando maluco!… Se fosse outra, não me ralava; mas aquela é diferente das mais. Tu bem o sabes, que também já andaste perdido por amor dela."

"Eu? Coisas passadas! Nem já me lembra…"

Secara-se-lhe a boca; dera-se-lhe um nó na garganta.

"Onde é que vais?" perguntou José depois de um silêncio.

"Acolá, ao forno da cal, ver se compro uma saca dela para um arranjito na abegoaria."

Receando que o cunhado adivinhasse a mentira, inventava uma obra, explicava-lha.

Mas percebeu que o outro não o escutava.

Calou-se. Depois, perguntou:

"Olha lá, ó Zé, e quais são agora as tuas tentações?"

"De quê?"

"Disso… da Deolinda."

Teve um arremesso, grunhiu uma praga, e disse com violência:

"Não desapego! E, se for homem que se m’atravessou no caminho… temos que ver!"

Tremia todo; fincava as mãos no cajado; tinha a boca repuxada e orlada de espuma.

"Então, Zé…" murmurou Joaquim quase sem voz, "sossega. Que homem havia de ser? Valha-te Deus!"

José abrandou, soltou um suspiro, e bateu no ombro do cunhado com amizade.

"Lembra-te do que te digo, Joaquim: isto acaba mal."

Joaquim abriu a boca para lhe responder, mas não pôde falar. Tinha tentações de se atirar a ele e esganá-lo.

Por fim disse, com esforço:

"Adeus. Vou-me andando, que se faz tarde. Vê se amansas… De toda a maneira, olha que não merece pena."

José, sombrio, respondeu:

"Há de ser o que Deus quiser."

Joaquim foi ao forno da cal encomendar uma saca. Achou prudente: se José viesse a falar do encontro, evitavam-se assim desconfianças.

Depois, saiu do caminho, embrenhou-se no pinhal, e foi andando para uma saibreira abandonada na extrema das Barrocas.

Fizera-se um grande corte na encosta para tirar o saibro; e as chuvas tinham escavado tanto, que agora estava ali um barranco de meter medo. Do fundo até ao alto havia bons doze metros, e, lá em baixo, pedregulhos e água empoçada.

O caminho para a charneca passava perto; e aquilo, de noite, era um perigo; mas, a toda a hora, quem ali se escondesse ficava bem seguro, que só raposas e ginetes lá iam.

Joaquim caminhava devagar, e às vezes encostava-se a um tronco; faltava-lhe a respiração.

Ao chegar à saibreira, viu que Deolinda não estava lá.

Sentou-se numa pedra e escondeu a cara nas mãos.

Que ia fazer?

Era homem casado, e Deolinda fora sempre honrada.

Namorara-a muitos anos, mas nunca lhe tocara; só na véspera perdera a cabeça, um instante, na azinhaga… Diziam que era mal-amanhada, cigana, que a "Mouca" lhe ensinara bruxedos, que deitava olhados; mas lá outra coisa, não.

Que ia fazer? Desgraçá-la? E depois?

E José, que andava doido de ciúmes? E Rita e a Gancha, que o espreitavam para lhe quebrar o fado?

Os perigos eram tantos e tamanhos, que, só de pensar neles, um homem ficava maluco.

A perdição da sua alma estava certa; os pecados que trazia na ideia não tinham perdão. Não havia na terra quem, mais do que ele, andasse nas unhas do diabo. Até pensara em esganar o José; e, se lhe tocassem na Deolinda, bem sabia que era capaz de matar gente.

Veio-lhe um desejo enorme de fugir, de fugir para muito longe, fosse para onde fosse.

Não via outro remédio que o livrasse de tentações e lhe salvasse a alma.

"Jaquim!"

Ergueu-se de um salto.

Deolinda estava defronte dele, de olhos baixos, enrolando nos dedos a ponta do avental. E no pensamento de Joaquim o resto do mundo deixou de existir.

Murmurou:

"Ai! minha luz do Sol!…"

Rita e a mãe, agora, tinham a certeza.

Já por três vezes Joaquim se levantara de noite, saíra de casa, voltara de madrugada. Mal comia, andava escanzelado, perdera o amor ao trabalho, não fazia caso da mulher, e fugia de toda a gente como um bicho bravo. Calado, triste, sempre a cismar, metia dó.

"Vai-se finar, mãe, vai-se finar!…" dizia Rita chorando.

"És uma parva", respondeu a Gancha. "Havia de ser comigo! As raparigas d’agora não são como as do meu tempo. Se não fosse o reumático, eu te diria quem lhe quebrava o fado. Vai prò diabo com a choradeira! Porque não o espreitas quando ele sai de noite? Porque não caminhas atrás dele, minha palerma?"

"Não posso, mãe. Quando se levanta no meio da noite com modos espantados, fico para ali tolhida, nem que me tivesse dado um ramo de estepor…"

Então a Gancha resolveu falar ao filho.

Era preciso acabar com aquilo antes que a vizinhança desconfiasse. Não convinha que se descobrisse a verdade. A família dos Ganchas era das principais, tanto pelos haveres como pela honradez: gente que nunca entrara em tribunais, nem sequer como testemunha, que não devia um real, que nunca dera escândalo, e que andava sempre em termos com a Igreja. Mas havia invejosos; e, se o povo soubesse agora aquela desgraça, não faltaria quem arreganhasse a dentuça, de gozo. Tal pensamento fazia ferver o sangue da Gancha, que era soberba; e, dando estas razões ao filho, metia-o em brios, para o levar ao empreendimento de quebrar o fado ao Joaquim.

Mas José só tinha Deolinda no pensar; e o discurso da mãe não lhe fez mossa.

"Lobisomens!" respondeu ele. "Mulheres têm sempre na cabeça ideia de feitiços. Se o Joaquim anda escanzelado é moléstia que tem lá dentro."

"Então porque abala ele de noite, meu grandessíssimo burro?"

"Porque lhe dá na vontade, ou porque tem febre."

"Falas assim porque só trazes na ideia a excomungada da Deolinda. Bem te entendo!… Mas estás enganado comigo, Zé…"

"Cale a boca, mãe. Não me tente."

Porém a Gancha, encolerizada, continuou, com risinhos de troça e desafio, entremeados de indignação:

"Tinha que ver! Pois então!… Um genro lobisomem e um filho embruxado por enjeitada que o diabo marcou! E eu a aparar tudo, pois está visto! Ai Zé! que não conheces a Gancha…"

José baixara os olhos; e, agora, pensativo, deixava a mãe falar sem lhe responder.

Havia muito que desejava espreitar de noite a casa da "Mouca". Um roupeiro das Barrocas contara-lhe que, em certas noites, um medo aparecia por aqueles sítios; e ficara com o espinho do ciúme cravado mais fundo ainda no coração. Mas nunca se atrevera a sair de casa fora de horas, por causa da mãe que andava com olho nele e era capaz de cuidar qualquer maldade que deitasse a Deolinda a perder.

E agora, enquanto a Gancha falava, lembrava-se ele que se fingisse fazer-lhe a vontade, teria noites inteiras para vigiar com segurança a casa da "Mouca".

A mãe, vendo-o assim mudado, interrompeu-se bruscamente; perguntou-lhe, desconfiada:

"Que estás tu a tramar?"

José respondeu:

"Estou a considerar que vomecê tem razão. Não parece bem a gente deixar o Jaquim mirrar-se daquela maneira. Sossegue, que, se ele é o que vomecê cuida, eu lhe darei o remédio. Já esta noite o vou espreitar."

A Gancha amansou logo. Fez ao filho mil recomendações; entregou-lhe uma navalha de ponta e mola, grande, rija, muito afiada, que servia para a matança do porco.

O rapaz experimentou-lhe o corte na unha, vergou-lhe a lâmina, fechou-a e abriu-a umas poucas de vezes para lhe amaciar a mola, e, satisfeito, meteu-a no bolso.

"Se foi homem que se m’atravessou no caminho", disse ele com Deus e consigo, "má raios me partam se não lhe ponho as tripas à vela!"

Rita dizia a verdade: já três vezes o Joaquim se levantara de noite e saíra de casa.

Saíra de casa, tentado pelo demônio, com o sentido de ir bater à porta de Deolinda, apesar de ela lhe ter pedido pelas cinco chagas de Cristo que não fosse, e de lhe ter jurado pela salvação da sua alma que o não deixaria entrar.

Quando se encontrara com ela na saibreira, a rapariga dissera-lhe:

"Não, Joaquim, isso não. Quero-te bem como dantes por mal dos meus pecados, e não caso com outro; mas hei de morrer honrada."

Largou-se a chorar; mas, entre os soluços, repetia sempre o mesmo; e Joaquim nem sequer se atreveu a pegar-lhe na mão.

"Prometeste a teu pai e casaste", dizia Deolinda: "agora governa-te com a mulher que recebeste na igreja, porque não sou nenhuma desavergonhada e não quero perder a minha alma nem a tua."

"Mas eu não te fazia mal; era só para te ver, que ando sempre morto de saudades."

"Já disse. Não me venhas com cantigas. Não volto aqui nem quero mais conversas."

E Joaquim não tornara mais a encontrar-se com ela.

Quis esquecer, apegar-se ao trabalho; mas o mesmo fastio que tinha pelo comer o engulhava perante qualquer interesse que não fosse a ideia fixa que o matava.

Trazia sempre na memória a noite que dormira ao relento, na eira, entre o cordeiro de Deus e o bode tinhoso. Pensava na conversa que ouvira à Rita e à sogra, e tentava-o a empresa de se fingir lobisomem; iria bater à porta da Deolinda.

Talvez ela o deixasse entrar…

"E depois?" perguntava ele a si mesmo.

Via-se perdido e a rapariga também; perdidos para sempre, neste mundo e no outro.

Porque havia de padecer tanto, se nunca fizera mal a ninguém?

Não ousava formular a ideia horrível que lhe acudia… A sogra teria razão?

Rezara muito, fizera promessas; mas os santos não queriam ouvi-lo.

Três vezes se levantara de noite e saíra de casa e da fazenda. Vagueara como alma penada pelo montado, pela charneca, pelos pinhais, sempre julgando-se espiado e seguido, sempre numa agonia à espera de ver aparecer o animal de que teria de tomar a forma.

Não se aproximava da casa da "Mouca". Essa ideia o dominava, o arrastava; mas, apenas tinha a possibilidade de a executar, o fato de ir bater à porta da rapariga, de a obrigar a recebê-lo, tomava as proporções de tal pecado, de crime tão medonho, que ficava tolhido, sem forças e sem coragem; e os espíritos malignos perseguiam-no com torturas sem fim.

Até de dia as ideias começavam já a confundir-se-lhe; cerrava os dentes para não falar, e escondia-se, fugia de todas as companhias e conversas, com o terror de que alguém lhe descobrisse os pensamentos.

Na hora em que José abalou de casa, com a navalha no bolso, fingindo que ia espreitar Joaquim para lhe quebrar o fado, quis o demônio que Joaquim, por seu turno, se levantasse, e mergulhasse na noite escura.

Bem se importava José com o fado! Mal saiu da porta para fora, encaminhou-se logo para o forno da cal.

Joaquim chegara à eira. Viera até ali quase de rastos, procurando o caminho mais sombrio, com medo de que a Rita o seguisse.

Tremiam-lhe tantos as pernas que se sentou no murozito da eira, a descansar.

Percebeu que o bode estava atrás dele, mas não se atreveu a voltar-se. Lembrou-se do cordeiro pintado no teto da igreja; o senhor prior (que Deus haja) explicara-lhe que as letras da bandeirola diziam assim: "Eu sou o cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo."

Ajoelhou, juntou as mãos, e começou a rezar; mas não atinava com as orações.

Meteu-se a caminho; de vez em quando parava, à escuta. Rouxinóis, noitibós, grilos, farfalhadas de bichos pequenos entre as folhas secas, estalidos de ramos: ruídos conhecidos.

O dia estivera esbraseante, ameaçando trovoada. Sob a ramaria secular dos sobreiros, o ar conservava-se quente, como à boca de um forno, Entre a folhagem miudinha e imóvel via-se o escuro do céu, cheio de cintilações de estrelas. A espaços, palpitavam relâmpagos de calor. Por cima das moitas havia enxames de pirilampos.

Pensando na mulher e na sogra, Joaquim murmurou:

"Cuidam que sou lobisomem… lobisomem…!"

E, de repente, tapou a boca para não soltar uma gargalhada; torcia-se, dobrava-se, em frouxos de riso.

"Lobisomem!…"

Já não lhe tremiam as pernas. Sentia-se cheio de forças. Desatou a correr.

Na orla do montado, estacou; ouvira distintamente a galopada de um animal grande, atrás de si.

Pôs-se à escuta, a tremer como varas verdes; o ruído cessou. Transido de pavor, foi andando devagar, sem saber para onde, apurando o ouvido, espiando as sombras.

Assim passou para além do cemitério, e atravessou a charneca. Ao entrar no pinhal das Barrocas, para lá da saibreira, ia muito cansado; sentou-se num talude.

Viu uma coisa a branquejar entre as árvores e disse baixinho:

"É o cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo."

Escondeu a cara nas mãos, e chorou.

De súbito estremeceu; outra vez a galopada. Mais perto; muito mais perto. O bater das ferraduras na terra seca, pedras rolando, o resfolegar curto, ofegante, da besta a galope… a galope…

Joaquim esgueirou-se para o mato, a tremer; espreitou por detrás de uma moita…

Viu uma grande sombra negra atravessar o caminho como um raio.

Ergueu-se então de um salto e começou a despir-se com tamanha pressa e tal fúria, que rasgava, esfarrapava o fato.

Passara-lhe o medo. As ideias dançavam-lhe na cabeça como enxames de pirilampos. Não lhe faziam mossa. Deolinda, Rita, José Gancha, o cordeiro, o bode, o Inferno, o pai moribundo, o juramento… tudo lhe bailava no pensar como quadrilha de moscas num raio de sol; as imagens iam, vinham, apagavam-se, surgiam de novo, passavam, devagar, depressa, desapareciam, voltavam…

Estava completamente nu. Espojou-se na areia morna.

E agora?… Agora era lobisomem. Tinha cascos, pêlo curto e negro, orelhas grandes de jumento. Sentia em si uma força terrível, capaz de derrubar todas as árvores do pinhal.

Pôs-se a zurrar.

Depois abalou, aos saltos, batendo com os pés nus no chão que ressoava com ruído surdo.

Cosido ao tronco de uma oliveira, defronte da casa da "Mouca", José ouviu aquele zurrar que não era de jumento; e logo, no silêncio da noite, um tropel de animal grande, mas sem cascos.

Era valente; nunca recuara diante de um homem. Mas contra os medos e almas penadas de que serve a coragem?

Aquilo que se aproximava, pelas vozes que soltava e ruído que fazia, não parecia gente, nem animal deste mundo.

Ao ouvir, de tarde, à luz do sol, a mãe falar-lhe do lobisomem, mostrara-se cético e desdenhoso; mas naquele desterro e no escuro da noite, as coisas tomavam aspecto diferente.

Tirou a navalha do bolso, abriu-a devagar, e benzeu-se.

Cravou os olhos no vago alvor da estrada. A coisa má vinha perto; devia ser o lobisomem. Antevia-o na imaginação: um bicho negro, um lobo grande, com os olhos a luzir.

Mas, de repente, enxergou um avejão branco, avançando aos saltos com espantosa rapidez.

Que era aquilo? Distinguia-se mal. Caminhava a prumo, como um homem, e branquejava à claridade incerta das estrelas, entre nuvens de pó.

Perto da casa, parou; e logo, dando com o José, embicou direito à oliveira, como um toiro.

O rapaz perdeu a cabeça e deitou a fugir diante dele.

Ao atravessar o eirado da "Mouca", sentiu um grande peso que lhe caía de chofre nas costas.

"Ai, minha rica mãe!…"

Foi-se a terra, de bruços, com o outro em cima, A cabeça bateu no degrau da porta; e ali ficou, imóvel, com uma brecha aberta na testa e o sangue a correr.

O lobisomem espezinhou-o, amassou-o com as mãos, com os pés, com os joelhos, esmurrou-o, sacudiu-o furiosamente, como a um trapo.

Depois ergueu-se, hesitou, estendeu a mão para a porta… Mas, soltando um gemido, como se a aldrava o tivesse queimado, fugiu para o lado da saibreira.

Pairou então um silêncio de morte. Ouviam-se apenas as vozes dos noitibós, que pareciam flautas, no pinhal.

Principiou a alvorecer. O arvoredo encheu-se da chilreada dos pássaros. Os galos cantaram.

O povoado ia acordando.

O sino da freguesia chamou para a missa das almas.

Saiu gente de casa. Ouviu-se o tropel miudinho de um rebanho de cabras atravessando a estrada, com o tilintar dos chocalhos e os assobios do pastor; entre a nuvem de pó que ficou pairando avançou um carro de bois, carregado de estrume, com o eixo mal untado, a chiar.

Ranger de cegonhas da rega, ladrar de cães, cacarejar de galinhas, vozes de mulheres e crianças; e, de repente, rasgando o ar límpido, como um clarim, levantou-se o canto de uma rapariga que lavava roupa na ribeira.

O Sol nasceu.

A Gancha, inquieta, não se deitara. Junto da lareira apagada tinha fiado toda a noite, à luz da candeia, sempre com o coração aflito, escutando, à espera de ouvir os passos do filho.

Mas, de madrugada, vencida pelo sono, adormecera ali mesmo, sentada no tropeço.

Acordou em sobressalto. Dia claro. Alguém batia à porta.

Era Deolinda, pálida como uma defunta, com a saia pela cabeça.

"Que é isto, rapariga? Que queres?"

"É por via do seu Zé."

"Credo! Que foi? Entra."

"Não senhora; deixe estar. Venha daí mais eu, que o seu Zé está muito mal."

"Ai, minha rica Mãe do Céu! Morto? Onde? Fala, mulher!"

Com os olhos esgazeados, a Gancha deixara-se cair num banco. Apertava o peito com ambas as mãos, escancarava a boca, sem poder respirar.

"Ai, Jesus! Ai, Jesus!…"

"Sossegue, o seu Zé está vivo. Valha-me Deus! Ganhe ânimo… Então! Ele talvez escape."

E Deolinda, com a voz entrecortada de comoção, ia contando o que sucedera: o maioral das cabras, lá das Barrocas, de manhãzinha ainda escuro, ao levar o gado para a charneca, dera com José estendido no caminho e alagado em sangue. Tinha a cabeça rachada e parecia morto; tão moído de pancadas que metia dó. Ela fora acordada pelo maioral que pedia socorro. Levaram José para dentro de casa, e a "Mouca" fizera-lhe umas mezinhas e dizia que talvez escapasse.

"Venha daí."

A Gancha embrulhou-se no xale e saiu de casa com Deolinda.

"Ai, Jesus! Nossa Senhora!"

Fechou a porta, meteu a chave no bolso.

"Deixa-m’ir chamar a Rita."

O que acontecera, bem o adivinhava o coração da Gancha: quando fora para quebrar o fado, José falhara o golpe; e Joaquim, feito lobisomem, atirara-se a ele.

Encontraram Rita embiocada, a tremer e a chorar, sentada no degrau da porta.

"Ah! mãe!" gemeu ela. "O meu homem hoje não voltou!…"

Entreolharam-se, aterradas.

"Nossa Senhora!"

Deolinda não se atrevia a fazer perguntas, mas pressentia outra desgraça, para ela ainda maior.

À pressa, a Gancha contou à filha o desastre de José.

"Anda daí…"

Lamentavam-se ambas e choravam em voz alta, ao atravessarem o povoado.

As vizinhas acudiam, espalhava-se a notícia.

As mulheres que estavam na fonte e na ribeira largavam cântaros e roupa. Juntavam-se, vinham de todos os lados, rodeavam a Gancha.

"Que foi? Como foi? Credo! Jesus, Senhor!"

Os comentários corriam, voavam de boca em boca, baixinho primeiro, depois mais alto. As mulheres punham as saias pela cabeça, embiocavam-se em sinal de dó.

"Ai, Jesus! Ai, Jesus!"

Choravam todos agora, e lamentavam-se em gritos, segundo era preceito, para honrar a desgraça. Formavam uma longa procissão pela estrada fora, como um enterro.

A desgraça, até então encubada, latente, escondida cuidadosamente, por decoro e orgulho, rebentava agora como um tumor.

Quem podia nesta hora pensar na vergonha?

A tragédia varria tudo, dominava tudo.

E a Gancha, despida de orgulho, vergada pela mão de Deus, expandia o seu tormento à luz do sol. Dizia a perdição do Joaquim, feito lobisomem, e a derrota de José ao tentar quebrar-lhe o fado; dizia-o em altas vozes, numa sede ardente de humildade, entremeando a narrativa de interjeições patéticas e de gritos ao Céu, excitando assim o zelo das carpideiras, cujos prantos, atroando os ares, lhe entorpeciam a dor, e revestiam de grandeza a sua desventura.

"Meu rico filhinho tão perfeito! Maldita a hora em que o pari!…"

E as carpideiras gritavam:

"Ai, Jesus! Ai, Jesus! Nossa Senhora!…"

José esteve mais de uma semana entre a vida e a morte.

Quando principiava a arribar, um sardinheiro que vinha das bandas da vila, e, perdendo-se no caminho, fora parar à saibreira, descobriu lá no fundo o cadáver de Joaquim, nu, feito num feixe, e já podre que metia horror. Acharam também a roupa atrás da moita, e então explicou-se tudo: Joaquim ainda se não mudara em bicho quando percebera que José o espreitava; atirara-se a ele, furioso como é costume dos lobisomens. Depois voltara ao pinhal, decerto à procura de espojadouro; mas, como ia com o fado meio quebrado, perdera o tino e caíra na saibreira.

O padre da freguesia não o quis sepultar em terra santa; e fizeram-lhe a cova da banda de fora do cemitério. Aí o enterraram, sem acompanhamento, nem orações, nem água benta, como um bicho.

A Rita ficou apatetada durante muito tempo; tinha vergonha de sair de casa, e não se atrevia a entrar na igreja. Se não fosse a mãe, todas as novidades da fazenda se perdiam naquele ano, porque ela não queria saber disso, e passava os dias a rezar.

Com todos estes desgostos, a Gancha perdeu a soberba. Estava tão acabada que não parecia a mesma. Andava curvadinha e falava com humildade a toda a gente.

Quando um dia José, depois de curado, lhe pediu licença para casar com a Deolinda, respondeu:

"Fazes bem; a rapariga é asseada, jeitosa e sujeita. Enquanto estive em casa dela para tratar de ti, bem conheci a verdade; e a “Mouca” é tão bruxa como eu, Deus me perdoe."

Acrescentou com amargura:

"Casa, casa… Como assim, se não for ela, quem te há de querer?"

Os anos passaram.

O tempo foi varrendo das memórias estes acontecimentos; porque não há melhor curandeiro para paixões e tristezas.

José tomou conta das fazendas de Rita, que lhas deu de renda, por dez réis de mel coado, dizendo:

"Amanha-as lá como entenderes, que para os teus cachopos hão de ir."

Não havia agora no povoado quem trabalhasse mais terras que José; e tudo lhe medrava que era um louvar a Deus.

Alegria não faltava naquela casa, nem fartura. Já ninguém falava de Deolinda ser enjeitada, nem da marca do diabo, nem dos bruxedos que a "Mouca" lhe ensinara; só havia elogios para a sua lindeza, recato, asseio e temor de Deus, e todos tratavam José com respeito, admiração, e grande desejo de lhe agradar.

E isto não acontecia porque eles fossem agora melhor do que eram dantes; mas sim porque os louvores sempre correram para a boa sorte, como os rios correm para o mar… com razão ou sem ela.

Sobre a sepultura do lobisomem crescera erva ruim e mato bravo; a cruz de pau que a marcava apodrecera e tombara.

Só por ali passavam, no princípio do Verão, as cabras, à procura de algum ramito de tojo ainda macio; e, no Inverno, as ventanias agrestes, a gemer como almas penadas.

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