2/23/2023

Claridades do Sul (Poesia), de Gomes Leal


CLARIDADES DO SUL


PRIMEIRA PARTE
INSPIRAÇÕES DO SOL 


HINO AO SOL
Vous prêtres! qui murmurez, vous portez ses signes sur tout votre corps: “votre tonsure” est le disque du “soleil,” votre “étole” est son zodiaque, vos “chapelets” sont l'embléme des astres et des planétes.

Volney: Les Ruines.
Eu te saúdo ó Sol, belo astro amigo!
(Tão pontual há tantos centos danos)
Mais reluzente que um broquel antigo,
Mais dourado que cetros de tiranos;
Avé, heroica luz! viva e sonora,
Vestindo o mundo, enquanto aos céus erguidas,
As florestas extensas dão gemidos,
 E o duro mar se chora!
Eu te saúdo, ó astro das batalhas!...
Porque através das cruas dissensões,
Douras o pó que se ergue das mortalhas.
E levantas os nossos corações!
E por isso, ainda hoje, e eternamente,
Os românticos te hão de a ti saudar,
— E os tristes sempre irão, à luz poente,
 Ver-te morrer no mar!
Tu és a Voz; a Cor; as Harmonias
Acordam com as tuas claridades;
És quem benze as aldeias e as cidades,
E quem fases cantar as cotovias;
És quem inspira estranhas teorias,
És forte, são, consolador e bom!
Tem a lua silêncios e elegias;
 — Mas tu a Cor e o Som!
Eu te saúdo, ó astro dos guerreiros!...
Eterno confessor de madrigais,
Que desgelas os densos nevoeiros,
Que alegras as sonoras capitais;
Que dás valor nos campos marciais,
E força e amor aos aldeões trigueiros,
E que incitas os tigres carniceiros
 A beber nos caudais!
Desde a Caldeia às tristes solidões,
Tens tido cultos, templos levantados,
E velhos ritos bárbaros sagrados,
E alegres, sensuais religiões!...
Tu foste Mitras, nome cabalístico,
Baal, Agni, Apolo (invocações)
— E hoje Cristo — teu nome oculto e místico — 
 Fere inda os corações!
Quem contará, ó luz, tuas bondades?...
E o amor no qual o coração abrasas,
E as tuas funerais solenidades
À ideal palpitação das azas?...
Quem nos livra das flechas do pecado?
Quem faz na íntima terra o diamante?
Quem gera o monstro, a pomba, o lírio amado,
 E a ideia extravagante?
Ave! pois, asto caro dos valentes...
Da Força, Vida, Glória, da Paixão,
A flecha de ouro aos corações ardentes,
Astro amigo das lutas e da Ação!
Ave! e em dias crus de expiação
Vai, e beija — nas ervas reluzentes — 
Os que morrem, vencidos combatentes,
 — A espada inda na mão!
 

À JANELA DO OCIDENTE
O mundo oscila
 (Lutero)

Os deuses ou são mortos ou caídos,
Quais duros aldeões dormindo as sestas,
Ou andam pelos astros perseguidos
Chorando os velhos tempos das florestas,
Os reis ressonam nas devassas festas:
Já os frutos do Mal estão crescidos:
Ó Sol, há muito que tu já nos crestas!
E aos nossos ais o Céu não tem ouvidos!
Há muito já que o Olimpo está vazio,
E no seio dum astro imenso e frio
É morto o Deus do Testamento Velho.
Apenas sobre o mundo eterno e aflito,
Procura Fausto o x do infinito,
E Satã dorme em cima do Evangelho. 


OS SANTOS
Les saints arrachaient leurs auréoles.
Dubois

Viam-nos caminhar, exilados da luz,
As grandes povoações, as rochas, as paisagens.
E os corvos, os fiéis amantes das carnagens,
Estes magros heróis, paladinos de Jesus.
Andavam rotos, vis, os pés chagados, nus.
Finavam-se a rezar ante as santas imagens,
E ouviam-nos bradar no meio das folhagens:
— Ó árvores em flor! vós sois esquife e cruz!
Onde estais hoje vós? nas grutas dos planetas,
Inda hoje rezais, ó pálidos ascetas,
Luzes vivas da Lei! mártires solitários?
Na terra não; que há muito a Matéria nos nutre,
E nem no Céu talvez; — no entanto o negro abutre
Tem saudades de vós nas cristas dos calvários!
 

D. QUIXOTE
(A Luciano Cordeiro)

O que é isto?
Nos tempos medievais dos campeões andantes,
E das baladas como a do bom rei de Tule,
Andava D. Quixote em busca de gigantes,
Magro, tristonho, ideal, crente Fausto do Sul.
Batalhador juiz da Virtude e do Crime,
Defendendo o oprimido, a mulher, o ancião,
Corria o mundo assim, ridículo e sublime,
Em seu magro corcel, sob arnês de cartão.
Cheio de tradições, o velho mundo absorto,
Da banda do meio-dia, ouvia o seu tropel,
E como insetos vis sobre um cavalo morto,
Riam as multidões do último fiel.
Ia triste a cismar, com a alma abatida,
Nos caminhos do mal rasgando as ilusões,
Magro Fausto do Sul, buscando a Margarida,
Cheio de apupos vis, de escárnios e irrisões.
Vinha de batalhar espancado e abatido,
Cheio de contusões e lodos de atoleiros,
E ao pé montando um burro, e o escudo já partido,
Sancho Pança a Matéria, e o rei dos escudeiros!
Vinha sereno e grave, escarnecido e exangue,
Emagrecido e calmo em meio dos estorvos,
— Vinham ladrar-lhe os cães, e pressentindo sangue,
Grasnavam-lhe em redor bandos negros de corvos.
Sancho Pança fiel, vasculhava a escarcela,
E auscultava a borracha emudecida enfim;
Enquanto o Herói cismava, inclinado na sela,
Na conquista ideal do escudo de Membrim.
Paravam aldeões, lavradores crestados;
Vinham à porta as mães, fiando o linho fino;
E os magros charlatães viam passar, pasmados,
Na sombra dum cavalo o extremo paladino.
Dançavam os truões; as sujas enxurradas
Com a lodosa voz, perguntavam: Que é isto? — 
Satã num coruchéu, dizia às gargalhadas:
— Ó campeão do Bem! ó vítima do Cristo!
 

O PUBLICANO
Ils erraient sales et imonds, 
et avaient des dévotions hypocrites.
Dubois.

Um grão doutor da Lei dizia ao publicano,
Junto ao átrio do templo, em tempos da Judeia,
Também tu vens orar, publicano sereia,
A tua casa ardeu, ou deu na vinha o dano?
Jejuas tu agora e rezas todo o ano,
Tu que levas o pobre e o órfão à cadeia,
Que tiras à viuvez o pão, o leito, e a teia,
Tu que és avaro e vil, pagão como um Romano?!
Que não rezas como eu, que nunca vi desfeito
Dos compridos jejuns, nem macerar o peito;
E que hospedas Satã, como o antigo Saul!
Não vês como estou sempre erguendo ao Céu os braços?
— O publicano então, disse, olhando os espaços:
“Também os poços são voltados para o Azul!”
 

A LIRA DE NERO

Nos seus jardins pagãos, entre archotes humanos,
Na lira de marfim sobre as cordas douradas,
Nero vinha cantar às noites estreladas,
Elegias de amor e cânticos tebanos.
Essa lira do Mal que ouviram os romanos,
Que cantou entre o fogo, as casas abrasadas,
E os lutos, os truões, as ceias depravadas,
Que mistérios não viu, medonhos e profanos!
E, no entanto, apesar da sua história triste,
Se os tempos tem corrido, a Lira ainda existe
Do devasso real, do lírico histrião...
Seu canto inda nos prende e ouvimo-lo sem susto,
E, ó Terror! ó Terror! eu que amo o Forte e o Justo,
— Ouço-o às vezes também, dentro do coração!
 

MISTICISMO HUMANO
Sunt lacrimai rerum...
Virgílio.

A alma é como a noite escura, imensa e azul,
Tem o vago, o sinistro, e os cânticos do sul,
Como os cantos de amor serenos das ceifeiras
Que cantam ao luar, à noite pelas eiras...
Às vezes vem a nevoa à alma satisfeita,
E cai sombria, vaga, e miúda e desfeita...
E como a folha morta em lagos sonolentos
As nossas ilusões vão-se nos desalentos!
Tem um poder imenso as Coisas na tristeza!
Homem! conheces tu o que é a natureza?...
— É tudo o que nos cerca — é o azul, o escuro,
É o cipreste esguio, a planta, o cedro duro,
A folha, o tronco a flor, os ramos friorentos,
É a floresta espessa esguedelhada aos ventos;
Não entra o vício aqui com beijos dissolutos,
Nem as lendas do mal, nem os choros dos lutos!...
— E os que viram passar serenos os seus dias...
E curvados se vão, às longas ventanias,
Cheio o peito de sol, através das florestas,
À calma do meio-dia... e dormiam as sestas,
Tranquilos sobre a eira, entre as ervas nas leivas...
Vão cansados depois, entre os ramos e as seivas,
Outra vez sob o Sol — a sua eterna crença! — 
Em frutos ressurgir à natureza imensa,
E, aos beijos do luar, descansarem felizes,
Da bem amada ao pé, no meio das raízes!
Morrer é livramento! oh deve saber bem
Sentir-se dilatar na Natureza mãe!
Ser tronco, ramo ou flor, nuvem, erva ou alfombra,
A rosa que perfuma, a árvore que dá sombra!
Estremecer na encosta às noturnas geadas,
E recortar o azul das noites consteladas!
Oh pelo claro azul dessas noites serenas,
Que o segador trigueiro entoa as cantilenas,
Tristes como a lua e o espinho dos martírios,
E que através do azul parecem cair lírios!...
Quando a brisa levanta as folhas indiscretas,
Noivam os rouxinóis e se abrem as violetas...
E a Natureza tem como um sabor de beijos,
Que obriga a soluçar a alma de desejos!...
Que segredos dirão nas brisas mensageiras,
À doçura da lua, a flor das laranjeiras,
O lírio, a madressilva, os jasmins vacilantes,
Que foram já, talvez, seios fortes e amantes,
E que hoje à branca luz dos mirtos siderais,
Conversam sobre o amor e os gozos ideais
Do tempo, que a falar corriam breve as horas,
Que seus olhos leais tinham a cor de amoras,
E debaixo do Céu teciam longas danças,
Ao pé da amante meiga e de compridas tranças!...
No lago sonolento a flor do nenúfar
Talvez é um coração que abre para chorar!
O lírio um seio bom,— e as violetas curvadas
São os olhos talvez das doces bem amadas!...
Feliz o semeador que vive entre os arados,
O campo, os lentos bois, longe dos povoados,
Entre os rijos irmãos humildes e trigueiros,
Que vivem sob o sol, à chuva, aos nevoeiros,
E quando à noite finda os suarentos trabalhos,
Vem a doce mulher buscá-lo nos atalhos,
Cujo olhar como a lua é tranquilo e consola,
E descanta chorando à noite na viola!...
E os que andam pelo mar, alegres e contentes,
Entre as ondas e o Céu, saudosos, negligentes,
Entre os cantos do vento, olhos fitos nos céus,
Entre o azul, o escuro, e os frios escarcéus,
Ombro a ombro o abismo,— abismo sempre aos pés,
Que dormem à poesia, à lua das marés,
E morrem uma noite, ó mar, aos teus embalos,
Deixando uns olhos bons e meigos a chorá-los!
Eu por mim não terei um astro bom nos Céus,
Nem uns olhos leais que chorem pelos meus,
E que inda a fronte mal me obscureça a magoa,
Como espelhos de amor já sejam rasos de água!...
Sozinho passarei, e não irei jamais,
Pelas murtas com ela às tardes outonais;
De inverno não terei os consolos do lar,
Nem do estio a doçura imensa do luar;
Meus filhos não irão jamais colher os ninhos;
Ninguém virá à tarde esperar-me nos caminhos! 


OS MONGES DE ZURBARÁN
(Imitado de Théophile Gautier)

Monges de Zurbarán! ó magros solitários,
Que ao longo deslizais dos grandes claustros frios,
Correndo eternamente as contas dos rosários!
Dos remorsos sentis os santos desvarios?
Que mal vos fez a Carne, algozes de tonsura?
Espectros monacais cavados e sombrios?
Essa matéria vil — que é divina escultura,
E que o Justo vestiu nas santas tradições,
Com que lei e razão é que bradais — Impura?
Ó santos! eu entendo as alucinações!
Os chumbos em fusão, as abrasadas lenhas,
As grelhas, a polé, e as fauces dos leões!...
As rodas infernais que rasgam as entranhas,
Tudo o que Roma ideou; — mas o que eu não entendo
É o suicídio e a fé sob essas estamenhas!
Por que pois, sempre assim, um suicídio horrendo?
E toda a noite a carne, entre as vis disciplinas,
Dilacerar até o sangue ver correndo?
Não são só as cruéis macerações mofinas,
E o continuo bater nos peitos angulosos,
Que em tuas letras só, ó Cristo! nos ensinas!
Julgais que Deus só quer aos grandes ulcerosos!
E que essa morte lenta, esse ar austero e grave,
Vos faça abrir mais cedo os céus gloriosos?
Julgais que tal suicídio os grandes crimes lave?
— Largai das magras mãos, unidas, as caveiras,
Vossas covas, mortais, deixai que um outro as cave!
O espírito imortal ergue-se entre as fogueiras;
Mas continuo insultar a Carne com desdém,
É rebaixar-te, ó Deus, a charlatão de feiras!
E contudo que força e que energia têm,
Esses monges de Deus, em vivo amortalhados,
A viver sem mulher, sem pais, e sem ninguém!
Tão moços! e, assim já, tão velhos e cavados!
Por horizonte um claustro e um muro,— indiferentes,
Sozinhos a rezar ante os Crucificados!
Teus frades, Lesueur, são destes diferentes!
O triste Zurbarán soube exprimir melhor
Os êxtases do olhar e as cabeças doentes!
E a vertigem do céu, o tédio, o desamor
Da Carne, que lhes dá aureolas febris,— 
E esse aspecto que faz gelar-nos de pavor!
Como o duro pincel lhes pinta a flor de lis
Dos cilícios! e a luz dos olhos amortecidos,
E essas rugas que os faz magros, sublimes, vis!
Como as pregas alonga aos hábitos compridos!
Como às faces lhes cava a palidez da terra,
Como se fossem já uns mortos estendidos!
Quando as visões do Céu nos êxtases descerra,
Ao Crucifixo os pés beijando soluçantes,
E açoitando-se qual o mar açoita a serra!...
Ou quando passeais pelos claustros gigantes,
Nem mesmo a própria sombra atrás deixando ao muro,
— Sempre, ó monges! vos pinta iguais e semelhantes!
Com duas tintas só — claro lívido, e escuro,
Só duas posições — a reta e a que inclina,
Pintou a vossa história e o vosso viver duro!
A forma, o raio, a cor, a luz que nos fascina,
Nada são para vós, magros indiferentes,
Porque o Céu vos desvaira e a Cruz vos alucina!
E assim mudos passais nas Bíblias reverentes...
Julgando sempre ouvir nos céus que se descobrem,
Trovejar de repente as trombetas dos crentes.
Ó monges! ó fieis! não entendeis o homem!
Talvez a erva cresça, agora, em vossos peitos,
Pois bem, que dizeis hoje aos vermes que vos comem?
Que sonhos maus fazeis nesses extremos leitos?
Chorais o ter gastado o tempo que nos foge,
Entre essas solidões e esses muros estreitos?!...
Monges, o que haveis feito, inda o faríeis hoje?!
 

A BELA FLOR AZUL
Quem saberá “signora” donde 
terá nascido esse belo lírio branco?
Velha Comédia Italiana.

Eu não sou o fatal e triste Baudelaire;
Mas analiso o Sol e decomponho as rosas,
As rijas e cruéis dálias gloriosas,
— E o lírio que parece o seio da mulher. — 
Tudo que existe ou foi, morre para nascer;
Na campa dão-se bem as plantas graciosas,
E, um dia, na floresta harmônica das Coisas,
Quem sabe o que serei quando deixar de ser!
A Morte sai da Vida — a Vida que é um sonho!
A flor da podridão, o Belo do medonho
E a todos cobrirá o místico cipreste!...
E, ó minha Esfinge, a flor pálida e azul no meio,
Que ontem tinhas no baile, e que trouxeste ao seio
Levantei-a dum chão onde passara a Peste.
 

HORA DO MEIO-DIA
J'étois inquiet distrait, réveur; 
jé dèsirois un bonheur dont je
 n'avois pas l'ideé.
 (Confessions de J. J. Rousseau)

— Sozinho no meu quarto retirado,— 
Certas horas do dia calorosas,
Quando as flechas do Sol queimam as rosas,
Eu cismo no seu corpo esbelto e amado!
As curvas do seu colo acetinado,
Mais fino que o das rolas amorosas,
Dar-me-iam as noites voluptuosas
De que falam os doutos do Pecado.
Mas, no entanto, lá fora o sol adusto
Queima as campinas e o aldeão robusto;
Voam abelhas a colher o mel.
E eu cheio de tristeza e de ansiedade,
Continuo a cismar — como um abade — 
Na Virgindade olímpica e cruel.
 

CANTIGA DO CAMPO
Como eu adoro as tuas “simplicidades!”
 (Heine)

Por que andas tu mal comigo?
Ó minha doce trigueira?
Quem me dera ser o trigo
Que, andando, pisas na eira!
Quando entre as mais raparigas
Vais cantando entre as searas,
Eu choro ao ouvir-te as cantigas
Que cantas nas noites claras!
Os que andam na descamisa
Gabam a viola tua,
Que, às vezes, ouço na brisa
Pelos serenos da lua.
E falam com tristes vozes
Do teu amor singular
Àquela casa onde cozes,
Com varanda para o mar.
Por isso nada me medra,
Ando curvado e sombrio!
Quem me dera ser a pedra
Em que tu lavas no rio!
E andar contigo, ó meu pomo,
Exposto às chuvas e aos soes!
E uma noite morrer como
Se morrem os rouxinóis!
Morrer chorando, num choro
Que mais as magoas consola,
Levando só o tesouro
Da nossa triste viola!
Por que andas tu mal comigo?
Ó minha doce trigueira?
Quem me dera ser o trigo
Que, andando, pisas na eira!
 

A ÁGUIA

No tempo em que era a grande deusa viva
Os deuses, os heróis e as Musas belas,
Dizia uma águia velha e pensativa,
Que fizera a viagem das estrelas:
— Vão-se indo as tradições! e hão de ir com elas
Apolo, Jove, Vishnu e Shiva!
Um astro é grão de luz; o mar saliva
De ti ó grande Pan!... Só Pan tu velas!...
Mas quando assim falava a águia, eis quando
Se ouviu aquela voz triste bradando
Na Sicília: Morreu o grande Pan!
Éfeso estremeceu, carpiu Elêusis;
— Mas a águia velha gargalhou: 
— Ó deuses! Qual será o deus novo de amanhã!


ACUSAÇÃO À CRUZ
Ainsi lirat-il les artiques vérités, les tristes vérités, les
 grandes, les terribles vèrités.
 De Quincey.

Há muito, ó lenho triste e consagrado!
Desfeita podridão, velho madeiro!
Que tens avassalado o mundo inteiro,
Como um pendão de luto levantado.
Se o que foi nos teus braços cravejado
Foi realmente a Hóstia, o Verdadeiro,
Ele está mais ferido que um guerreiro
Para livrar das flechas do Pecado.
Há muito já que espalhas a tristeza,
Que lutas contra a alegre Natureza,
E vences ó Cruz triste! Cruz escura!
Chega-te o inverno, símbolo tremendo!
Queremos Vida e Ação. — Fica-te sendo
Um emblema de morte e sepultura!
 

LUTERO
Ah, és tu diabo?...
 (Lenda mouacal)

Lutero, o frade austero e macilento,
Encontrou a Satã dormindo um dia,
Numa rua de Erfurt, à ventania,
Envelhecido, calvo e vinolento.
Dorme! gritou-lhe o frade... a teu contento,
Guloso Pai da Indigestão, da Orgia!
Renunciaste as lições de teologia,
Ó velho corvo mau do Firmamento?!
O mundo como tu é calvo e velho;
A Igreja é o lupanar do Evangelho;
E tu ó ébrio, glutão, descansas!?...
Satã, olhando o azul, disse: — As estrelas
Vão pelo Céu tão baças, amarelas,
Deus já deixou enferrujar as lanças!
 

A TERRA

Fecundarás a terra com o suor do teu rosto.
Cavai, eternamente, a velha terra!
Sofrei, suai, gemei na dura enxada,
Fecundai-a na paz ou pela guerra,
Quer seja pelo arado ou pela Espada,
Ó Homem! trabalhar é tua herança
Até que a Morte, enfim, grite — descansa!
É a Árvore a tua companheira
O lar, a tenda, a sombra de teus passos,
Da tua amante a perfumada esteira,
Como bênçãos te estende os longos braços!
E ou seja em teu inverno, ou teu estio,
E teu berço, teu leito, e teu navio!
É preciso que as lágrimas que correm
Façam crescer dos cardos os trigais,
E por cima dos corpos dos que morrem
Se ergam verdes loureiros triunfais!
É preciso que em paz ou pela Guerra,
Com pranto, ou sangue se fecunde a Terra!
É preciso cavá-la! — nos teus braços
Luza a enxada ou o gládio de destroços!
A vida é curta — e breves nossos passos,
E as flores vivem, crescem sobre os ossos!
E o berço não é mais, ó criatura!
Que a linha de união à sepultura!
É preciso que a Morte, a dor e os lutos
Se transformem em vinhas ostentosas,
Nossos prantos convertam-se nos frutos,
Do sangue dos heróis tinjam-se as rosas!
Sofrei, lutai, morrei, ó infelizes!
— O vosso sangue é útil às raízes!
 

O OURO
(A Teófilo Braga)

Dizia o ouro à pedra:— Ente mesquinho!
Que profundo cismar sempre te prega
À beira duma estrada, ou dum caminho,
Pasmada, mas sem ver, eterna cega?!
Em vão o orvalho a ti te lava e rega!
Em ti não cresce nunca pão, nem vinho,
Dura e inútil — o lodo é teu vizinho,
E o homem só, por te pisar, te emprega!
Em ti só medra e cresce o cardo os lixos!
Tu serves só de abrigo ao lodo e aos bichos,
E ensanguentas os pés descalços, nus!
Ó pedra! quanto a mim, sou a Riqueza!
— A cega disse, então, com singeleza:
— Eu, também, guardo no meu seio a Luz!
 

O BUDA
(De Catulo Mendes)

O Buda cisma, as mãos sobre os artelhos.
Aquele então que ouvira os seus conselhos
Diz: — Mestre! os que não foram resgatados
Do Mal, são como uns céus anuviados!
Aos povos que daqui moram distantes,
Para que a Lei não errem, ignorantes,
Consente que afrontando os soes e os frios,
Montes, rochas, passando a nado os rios,
Teu grande dogma, ó Mestre, eu vá pregando!...
— Mas se eles, corta o Buda venerando,
Te insultarem, eleito! que dirás?
— Direi só: — estas gentes não são más,
Pois vindo-lhes pregar de terra alheia,
Não me atiram aos olhos com areia,
Nem me espancam e ferem com pedradas!
— Mas se as gentes, acaso, alucinadas
Te espancarem, causando graves danos?
— Estes povos, direi, são muito humanos,
E há doçura naqueles corações;
Pois quando erguiam pedras e bastões
Contra uma criatura tão mesquinha,
Não tiraram a espada da bainha.
— Se o ferro te ferir?
— São bons, de sorte
Que me ferem, sem querer-me dar a Morte!
— Se morreres?
— A morte é grande esmola!
— Vai pois, o Buda diz, salva e consola!
 

NO CALVÁRIO

Maria com seus olhos magoados,
Céus espirituais, lavava em pranto
As largas chagas de Jesus, enquanto
Ria ao pé um dos três crucificados.
Semblantes de mulher mortificados
Escondiam a dor no casto manto;
Uma mulher de Henon chorava a um canto,
Jogavam sobre a túnica os soldados.
Marta, os pingos de sangue, alva açucena,
Dir-se-ia no bom seio recolhê-los;
Alguns riam brutais daquela pena!...
Salomé tinha um mar nos olhos belos;
João fitava a Cruz... Mas Madalena,
Limpava a Cristo os pés com seus cabelos! 


HÉLI! HÉLI!

Quando ele, enfim, morrendo, ele o cordeiro,
Pomba mansa no ar pesado e imundo,
Pendeu-se como um lírio moribundo,
Sobre a haste do trágico madeiro.
E lançando o espírito profundo
Ao reino belo, grande, e verdadeiro,
Finou-se, enfim, chagado e justiceiro,
Ainda, ainda, perdoando ao mundo.
Um soldado romano vendo-o exposto,
E já morto na Cruz, com um desgosto,
Com a lança enristada o trespassou...
Saiu daquela chaga sangue e água...
— Ah sangue que não deu a tanta mágoa!
— Lágrimas, sim, talvez que não chorou!
 

AS ALDEIAS

Eu gosto das aldeias sossegadas,
Com seu aspecto calmo e pastoril,
Erguidas nas colinas azuladas — 
Mais frescas que as manhãs finas de abril.
Levanta a alma às coisas visionarias
A doce paz das suas eminências,
E apraz-nos, pelas ruas solitárias,
Ver crescer as inúteis florescências.
Pelas tardes das eiras — como eu gosto
Sentir a sua vida ativa e sã!
Vê-las na luz dolente do sol posto,
E nas suaves tintas da manhã!
As crianças do campo, ao amoroso
Calor do dia, folgam seminuas;
E exala-se um sabor misterioso
Da agreste solidão das suas ruas!
Alegram as paisagens as crianças,
Mais cheias de murmúrios do que um ninho,
E elevam-nos às coisas simples, mansas,
Ao fundo, as brancas velas dum moinho.
Pelas noites de estio ouvem-se os ralos
Zunirem suas notas sibilantes,
E mistura-se o uivar dos cães distantes
Com o canto metálico dos galos...
 

BENEFÍCIOS E FILOSOFIA DO SOL

Tem sido até agora — o cintilante
E antigo Sol, amigo da Harmonia,
Que me tem ensinado, cada dia,
A desprezar a Morte escura e errante!
As densas nuvens do porvir distante
Desdenha-as a sua épica alegria,
E a sua heroica e sã filosofia
Nada, até hoje, iguala e é semelhante.
Decerto, é grato ao sofrimento insano 
Dos tristes, quando surge o rosto humano 
Da lua, abrandecer o Céu com ais;
Mas, quando é que jamais dobrou à Sorte,
A alma do faquir, paciente e forte,
Mais sereno que as plantas e os metais?!
 

DISPUTA

Voltaire dando com o pé numa caveira, ria
Com certo riso mau, sinistro e mofador;
— A velha companheira, então, da Teologia
Dos santos e da Cruz bradou ao pensador:
— És tu ímpio Voltaire, ó verme roedor
Das folhas do Evangelho! ó Satã da ironia!
Cujos risos cruéis fazem chorar Maria,
E despregam do lenho a ensanguentada flor!?
Tu tens lançado o cuspo aos astros lancinantes;
Abalado da Cruz os cravos vacilantes;
E ladrado de Deus que julgas a dormir!...
Mas olha em cima é o Céu, dos astros sementeira!...
— Voltaire disse-lhe então: Pois se assim é, caveira,
Por que te encontram, sempre, ao pé da cruz a rir?
 

AS CATEDRAIS

Como vos amo ver ó catedrais sozinhas,
A recortar o azul das noites consteladas!
Erguidos coruchéus, místicas andorinhas,
— Ó grandes catedrais do sol ensanguentadas!
Como vos amo ver, pombas alvoroçadas!
Ogivas ideais, anjos de puras linhas,
E ó criptas sem luz, aonde embalsamadas
Dormem de mãos em cruz as santas e as rainhas!
Em vão olhais o Céu sagradas epopeias!
Flores de renda e luz, de incenso e aromas cheias,
Aves celestiais banhadas da manhã!
Em vão santos e reis, ó monges dos desertos!
Em vão, em vão rezais, sobre os livros abertos,
— O Céu porque chorais é uma ficção cristã!
 

LICANTROPIA
 L'auteur á remarqué que que la mort de ceux qui nous sont chers, et
 géneralment la contemplation de la mort, affecte biem plus notre
 âme pendaut l'été que dans les autres saisons de l'anineé.
(Paradis artificiels)

Nuvens da tarde, azul fundo e sereno!
E astros inviolados, laranjeiras!
Para mim não valeis seu riso ameno,
E aquelas lindas, lânguidas olheiras!
Nunca mais... eu bem sei que nunca mais...
Ouvir-lhe-ei seus ais no ar calado,
Junto à janela à tarde no bordado,
E entre as murtas do outono... Nunca mais!
..........................................
Quando à tarde, no ocaso, os penetrantes
Cheiros das plantas nadam pelos ares,
E que as vermelhas nuvens singulares
Tomam formas de sonhos flutuantes,
Quando há no azul a mística elegia
Que nos lança nas lúgubres quimeras,
Eu cismo então — ó rutilas esferas!
Naquela que já come a terra fria!
E então naquela vaga sonolência — 
Sonolência em que a terra desparece!
Mais imortal seu vulto me parece;
Mais cruel e sem fim aquela ausência!
Nuvens da tarde, azul fundo e sereno!
E astros inviolados, laranjeiras!
Nunca mais me dareis seu riso ameno
E aquelas lindas, lânguidas olheiras.
Quando é que, ó grande e santa Natureza!
Me poderás um dia consolar
— Daquela que já mais eu pude amar! — 
Inacreditável, lúgubre crueza!
Daquela que talvez, alegre e louca,
Eu decerto amaria; — amara, é certo! — 
Mas que era pobre e só, e cuja boca
Tinha a vermelha cor dum cravo aberto!
Cuja voz era doce como um favo,
Voz que tocava as cordas mais secretas!
Que nos fazia o coração escravo,
Cujos olhos... leais tulipas pretas!...
Nuvens de agosto, azul fundo e, sereno!
E astros inviolados, laranjeiras!
Nunca mais me dareis seu riso ameno
E aquelas lindas, lânguidas olheiras!
Nunca mais... Ah! mas não; Virá um dia,
— Dia livre de vis conveniências! — 
Que a ela me una enfim na terra fria,
E te ache ó paz! nas santas florescências! 


O PECADO
Nunca cessamos de pecar.
 (Imitação de Cristo)

I

UBIQUE DOEMON
Bem sei... e mais que o sei, claro luar!
Que segundo a severa teologia,
Pelas noites sonoras de poesia
O aroma dos lírios faz pecar!
Quem vos diria!... madressilvas, mar,
Lilases, claros rios, cotovia!
Que ao dizer da tirânica teoria,
Vós faríeis a Carne triunfar!
Ah! Natureza, pois, se és criminosa,
E nos levam ao mal urnas da rosa,
Bom coração de Cristo imaculado!...
Quantos não vês morrer, do céu profundo,
Cheios de sangue, como heróis no mundo,
— Exaustos dos mil golpes do Pecado!? —
 
II

O PECADO
Ele é antigo, trágico e venal,
Amando a Carne, o Crime e os assassinos,
E como a folha acerba dum punhal,
— É quem golpeia os seios femininos! — 
É complicado, místico, mortal,
Com sombrios escrúpulos divinos,
E é quem faz estorcer os braços finos,
E escorregar a lágrima final.
No entanto, grato e fúnebre Pecado!
Atraente, gostoso e desejado,
Negro nome de vício e perdição!...
A Igreja vê em tudo as tuas chagas;
E há muito tempo já que o mundo esmagas,
E te embriaga o sangue da Paixão!

III

A CIDADE
Em vão busco na velha e hostil Cidade,
Beata amante, de gangrenas cheia,
As dispersas raízes da Verdade,
— Como uma flor num pátio de cadeia.
Quando, alta noite, D. Juan passeia,
Ela põe-lhe em leilão a mocidade,
Tratada com a mística ansiedade
Com que um sábio cultiva a flor da Idea.
Mas, contudo ninguém receia tanto
O áspero Deus, e o lenho sacrossanto
Da dorida tragédia do Calvário!
E, ó D. Juan, às luzes das estrelas,
Tu bem sabes se encontras nas vielas
Mais de uma vez, perdido algum rosário!...

IV

O INIMIGO
À genoux! Je suis Pan!
(Victor Hugo)

Há muito que é chamado o Aborrecido,
O rebelde, o leproso, o descontente,
E eterno tentador sempre vencido,
Que habita o Ar, a Terra, e o Fogo ardente.
Ele é a hidra, a Carne, o incontinente,
O orgulho nos abismos submergido,
O que anda sempre em nós, o cão batido,
O espírito da Dúvida, a Serpente,
Mas, mau grado, ó Igreja, a tua ira,
Ele não é nem Vício, nem Mentira,
Nem sinônimo de Mal e de Impureza!...
E eu bem sei, negro símbolo apupado,
Velho sátiro, vil, caluniado,
Diabo! que te chamas “Natureza!”

V

EM TODA A PARTE
Eles tem dito e escrito que o Pecado
Anda disperso e rói o mundo inteiro,
Que habita o duro coração guerreiro,
E o peito feminino e delicado.
Que anda no ar, em nós, da flor no cheiro,
Das pugnas no ruído desolado,
No vinho, na paz doce do mosteiro,
— No corpo da mulher perfeito e amado! — 
É portanto, homem tímido e sujeito,
Quer te encostes, ou não, ao vão Direito,
O teu fúnebre gozo e teu tormento!
Habitua-te a tê-lo na Desgraça,
No ar, no chão, na flor, no som que passa,
— E até, serpente vil, no Pensamento!

VI

À JANELA
Altas horas da noite, quando a rua
É deserta da onda crapulosa,
No seu caminho em meio, vagarosa,
— Abro a minha janela a ver a lua.
Como uma branca divindade nua
Ela avança celeste, e, à luz ditosa,
Qual copo de cristal que enche uma rosa,
O goivo do Pecado em luz flutua.
Flutua, e é nestas horas recolhidas
Que me ergo então às cúpulas subidas
Donde se avista o místico ideal...
E rio, e admiro o vulgo obcecado
Que cuida ver, nas beiras dum telhado,
Abrir-se num craveiro a flor do Mal!

VII

ELA
Quando ela enfim morrer, verão os vivos
Cortando o ar uns ais de sentimento,
Como os lúgubres coros dos cativos
Num triunfo, ou num grande saimento.
Ouvir-se-ão soluços pelo vento,
Elogios, ais fundos, fugitivos,
Que dirão: — “Lá se vão meus lenitivos!
Morreu a Espada, a Lei, Guia e Sustento!”
O seu túmulo terá goivos e rosas,
E vãs estátuas lívidas, chorosas,
E epitáfios em lúgubre latim.
Terá palmas mais verdes que a Esperança;
— Mas a alma, em cima, escreverá: — Descansa!
Serpente, irmã de Judas e Caim!
 

SONETO DE UM POETA MORTO
(Achado nos seus papéis)

Bem sei que hei de morrer cedo e cansado,
Alguma coisa triste em mim o diz,
E vagarei no mundo desterrado,
Como Dante chorando a Beatriz.
Pelos reinos, irei talvez curvado,
Como um proscrito príncipe infeliz,
Ou como o índio pálido e exilado
Chorando o vivo azul do seu país.
Mas no entanto, ah! ninguém ao Sol divino
Abrasou mais as asas, derretidas
Ante as duras, ferozes multidões!
E ninguém teve a torre de ouro fino,
Aonde, quais princesas prosseguidas,
Morreram minhas doidas ilusões!
 

A UMA JUDIA
(Saudação)
Avé Regina!
(Hino Católico)
Podem apagar o Sol e as estrelas, 
bastam-me os olhos da minha amada!
 (Idílio persa)
Le second soleil! Le second soleil.
 (Fantaisies scientifiquis de Sam)

Ó filha de Israel, ó vestal impoluta!
— Serena como a cor diáfana do azul — 
O rebelde da Luz vencera Deus na luta
Se armara contra os céus teus cabelos do Sul.
Filha de Cam e Ló, tu és o ideal vivo!
(Ó ouro, incenso e mirra, ó licor nunca visto!)
Quando nos queima a luz do teu olhar esquivo,
Teus olhos ferem mais do que os cravos do Cristo!
São dois cravos de luz, dois límpidos espelhos,
— A luminosa cruz onde me ensanguentei! — 
Neles soletro claro os grandes Evangelhos,
E neles leio mais que nas taboas da Lei!
Quando passas por mim, toda a minha alma anseia!
E os meus olhares vão cobrindo-te de beijos,
— E tu passas — arcanjo em corpo de Frineia,
E bíblia encadernada em lúbricos desejos.
Ah! teus olhos cruéis, límpidos, negros, baixos,
Se um dia o sol morrendo, enoitecesse os céus,
Ser-me-iam, mulher! como dois grandes fachos,
À luz dos quais iria a ver se achava Deus!
 

PALÁCIOS ANTIGOS
(A Antero do Quental)

Bons castelos leais nas rochas construídos,
Ás contorções do vento, à chuva enegrecidos,
Que vamos admirar na angústia dos poentes;
Grandes salas feudais com telas de parentes,
O que fazeis de pé, como entre os nevoeiros,
Os antigos heróis e as sombras dos guerreiros?!
Uma grande tristeza enorme vos habita!
No entanto a alma antiga ainda em vós palpita,
Evocando a emoção das crônicas guerreiras;
E mau grado o destroço, a erva, e as trepadeiras,
—Como um desejo bom nas almas devastadas —
Cresce, ao vento, uma flor no peito das sacadas!
A parasita hera avassalou os muros!
Aninha-se o bolor nos cantos mais escuros,
Tudo dorme na paz das coisas silenciosas;
E nos velhos jardins aonde não há rosas,
—Só resistindo ainda aos séculos injustos —
Uma Vênus de pedra espera entre os arbustos!
Paira em tudo o silêncio e o lúgubre abandono
Das coisas que já estão dormindo o grande sono,
Evocando ainda em nós os velhos cavaleiros,
—E às lufadas do vento, os grandes reposteiros,
Entre as nossas visões das épocas sublimes,
Agitam-se ao luar vermelhos como crimes.
Mas no entanto o poeta entende aquelas dores,
E as mudas solidões, os largos corredores,
As boas castelãs as góticas janelas,
Abertas toda a noite a olhar para as estrelas;
Só ele sabe os ais e os gemidos das portas,
—E inveja às vezes ser o pó das coisas mortas! 


CAIM
Caim no mundo errante, desterrado,
Fugindo à sua dor cruenta e dura,
Morria sobre um vale, abandonado,
No solo primitivo da Escritura. — 
O remorso — esse mal que não tem cura — 
Não abatia o peito alucinado
Do que nasceu no seio do Pecado
Que herdou depois a geração futura.
Do Céu sem mendigar luz nem consolo
Conservava inda erguido e altivo o colo; — 
Mas nessa hora fatal que a todos vem...
Caim velho rebelde,— e ateu primeiro — 
Nosso pai, nosso irmão, como um guerreiro.
Bradou, caindo — Ó Terra! ó Minha Mãe!
 

A PRIMAVERA
(De Júlio Forni)

Hão de dizer-me — Insensatos!
Que tenha novos amores,
Que brilham já outros soes,
De novo se abrem as flores
E é o tempo dos rouxinóis.
E dirão inda depois:
Que a primavera começa,
E andam aromas no ar,
Que nos sobem à cabeça,
Como um vinho singular.
E eu dir-lhes-ei: Que me importa!
Faz frio, fechem-me a porta!
— Ela, o meu bem, meu abrigo,
Levou, desde que está morta,
A Primavera consigo!

 
SEGUNDA PARTE
REALIDADES
 
ACUSAÇÃO A CRISTO
(A Teófilo Braga)

Bradava um dia ao Cristo, ao Redentor,
Satã, cansado de insultar os astros:
— Eis-te pendido aí qual velha flor,
Profeta escarnecido nos teus rastros!...
Vê como a Igreja vai! baixel sem mastros!
Navio roto em mares do Equador!
E os seus padres tem ouros e alabastros,
E folga, Messalina sem pudor!
Tem lançado teu corpo aos cães e aos corvos!
Falsificado a Lei, cheia de estorvos,
E fogueiras erguido, ó Cristo! ó Cruz!...
Satã dizia mais... mas lenta e lenta,
Uma lágrima viu sanguinolenta
Escorregar na face de Jesus!
 

DE NOTE
(A João de Deus)

Ele vinha da neve, dos trabalhos
Violentos, custosos, da enxada;
Cantando a meia voz pelos atalhos.
A mulher loura, infeliz, resignada,
Cosia junto à luz. O rijo vento
Batia contra a porta mal fechada.
Ao pé havia um Cristo, um ramo bento,
E uma estampa da Virgem, colorida,
Cheia de magoa olhando o firmamento.
Uma banca de pinho, mal sustida,
Vacilante nos pés, um candeeiro;
Companheiros daquela negra vida.
O homem alto, pálido, trigueiro,
Entrou; tinha as feições queimadas, duras
Dos que andam com a enxada o dia inteiro.
A mulher abraçou-o. As linhas puras
Do seu rosto contavam já tristezas
De grandes e secretas amarguras.
Tinha chorado muito as estreitezas
Daquela vida assim! Talvez sonhado
Um dia, com palácios e riquezas!
Ele deitou-se a um canto; fatigado
De erguer-se alta manhã, todos os dias,
Mal voavam as pombas no telhado.
Lá fora, nuvens grossas e sombrias
No pesado horizonte; ele assim esteve;
— As noites eram ásperas e frias. — 
Ela cobriu-o duma manta leve
Esburacada, velha; — no telhado
Ouvia-se cair, sonora, a neve.
Ela, então, meditou no seu passado;
No seu primeiro beijo; nas lembranças
Talvez, do seu vestido de noivado.
E nas tardes das eiras; e das danças
Às estrelas, e aquela vez primeira
Que a rosa lhe furtou das longas tranças!
E aquela tarde junto da amoreira,
Que trocaram as mãos; e na janela;
E quando olhavam, juntos, a ribeira.
E quando era tímida e singela...
..........................................
Lá fora, dava o vento nos caixilhos;
Não brilhava no céu nem uma estrela.
E, àquela hora da noite, porque trilhos
Andariam no mundo — ela cismava — 
Nas misérias, talvez, sem rumo, os filhos!
Ele na manta velha ressonava.
 

AQUELE SÁBIO

Naquelas altas janelas
Que deitam para o telhado;
Eu vejo-o sempre encostado,
A namorar as estrelas.
Tem assim ares de empírico
Mui lido em filosofastros;
É um pobre poeta lírico,
Que escreve cartas aos astros.
Traz luto nos seus vestidos
Por uma Ofélia de menos,
Tem uns cabelos compridos,
E uns olhos tristes, serenos.
Parece um Jove proscrito,
E já descrente das Ledas,
Conhece o hebraico, o sânscrito
E os livros santos dos Vedas.
Espelha na luz do olhar
Não sei que visões amenas;
Anda sempre a imaginar
Idílios às açucenas.
E aquela mulher vaidosa
— Que ele chama a sua Egéria — 
Ri daquela alma ansiosa,
E aquela triste miséria...
..........................................
Mais de três dias ou quatro
Que lhe falta o necessário;
Estava ontem no teatro
Com luvas cor de canário. 


NA TABERNA
(A João de Deus)
Vejo apontar o inverno...
 os crepitantes frios
 Me açoitam as vidraças...
 (Francisco Manoel)

Alguns dormem nas mesas, debruçados,
Junto aos restos de um vinho já bebido;
— Outros contam seus casos desgraçados. — 
Um deles alto, magro, mal vestido,
Conta histórias de amor, lançando fumo
Dum cachimbo de gesso enegrecido.
Um tenta levantar um outro a prumo
Sobre os ombros, e um calvo, e já vermelho
Faz das suas misérias um resumo.
Depois conta que o pai ético e velho
Lhe está para morrer; lastima a vida;
E sobre as vinhas pede um bom conselho.
A casa é escura, velha, enegrecida
Do fumo. Noite velha, ouve-se o vento
Bater na antiga porta carcomida.
O frio, a neve, a fome, o mau sustento
Tem quebrantado muito aquelas frontes,
E em muitos esmagado o pensamento.
Nalguns extinguido, mesmo, as fontes
Da justiça e do bem; e feito errar
No mundo, como os lobos pelos montes.
E o egoísmo dos filhos e do Lar
Banido o dó das lástimas estranhas;
E tornado-os mais frios do que o mar.
Alguns vivem nas neves, nas montanhas,
Outros o rio tem por seu vizinho;
E com a Fome travam más campanhas.
E— todos — tem o ar triste e mesquinho,
Dos que vão sem prazer, habituados,
Como a um sono que tira maus cuidados,
Beber as suas lágrimas com vinho.
 

OS LOBOS
La neige batait les vitres...
 (Gustavo Droz)

Cai lentamente a neve em cima dos telhados.
Três longos dias crus, terríveis são passados,
Que o rude lavrador anda por fora ao vento,
À neve, ao frio, ao sol, em busca de alimento,
E ainda não voltou. Um dos três filhos chora;
Rija e sonoramente, a chuva cai lá fora.
Quem sabe se virá? Já tem corrido os dias:
Ela pobre mulher, viúva de alegrias,
Magra, branca, doente, aspecto macerado,
Há muito que presente um caso desgraçado,
O assassínio talvez!... Há horas malfadadas,
A miséria é sinistra e extensas as estradas!
Talvez pelo caminho, entre atalhos perdidos,
Na dura escuridão matassem-no os bandidos;
A fome magra e escura a tudo obriga e atreve!
Talvez de sangue esteja, ainda, tinta a neve!
Ele era bom; — talvez um pouco rude e duro!
Mas é que a vida é triste e o seu trabalho escuro
À chuva, ao frio, aos soes, e entre o luar gelado
Faziam-no cruel; e às noites embriagado
Talvez para esquecer, tinha — sinistro o vinho;
Mas, no entanto era o sol daquele estreito ninho,
A Alegria, a Força; e a fome macerada
Tinha-a espancado sempre a sua forte enxada!
Então cheia de dor, pálida de receio,
Quis i-lo procurar, pegou num filho ao seio,
O mais novo, e acendeu tremendo uma lanterna.
Vinha, às vezes, no vento uns risos de taberna;
A noite era cruel, a chuva rija e fria;
Riam-se os pinheirais, a solidão gemia;
Corriam tradições de mortes e de roubos;
E ouvia-se, na neve, uivar de fome os lobos.
Se saísse talvez não encontrasse abrigo!
Os filhos, a chorar, pediam ir consigo.
Um esfregava o rosto em prantos e cabelos,
Perto dum gato esguio envolto entre novelos,
E outro roto e magro e definhado, em pranto,
Soluçava e tossia ao mesmo tempo a um canto.
Ambos eles sem cor, doentes, encovados,
Dormiam pelo chão, nos ásperos sobrados,
Magros, cheios de febre, em farrapos, sombrios,
Sórdidos, seminus e lívidos dos frios,
E a manta esburacada e cheia de rasgões;
De vez em quando, ao longe, ouviam-se os trovões,
Caia fina a neve, a chuva terminara,
E como um grande alvor o meigo azul limpara! — 
Ela saiu então; na capa esburacada
Embrulhou bem o filho e foi-se pela estrada;
Mas, eles, a chorar, quiseram ir com ela,
E como o escuro azul tinha uma clara estrela
Deixou-os ir também — que um deles se o levava
Era por ser aquele a quem o pai beijava,
E afagava, sorrindo, e enchendo de carinhos,
Quando o ia, aguardar à noite, nos caminhos!
A miséria é fatal! dorida farsa escura
Que termina o cristão latim da sepultura!
E assim pensava só, vestida de tristeza
A nervosa mulher, naquela natureza
Sombria, dura, má; por entre aqueles gelos,
E aquele vento cru rasgando-lhe os cabelos:
“Ela nascera só para a dor! — da Desgraça
Há muito havia já que lhe amargara a taça!
Não conhecera nunca os risos e agasalhos;
— Os miseráveis Deus só faz para os trabalhos!
E, àquela hora, talvez, felizes e contentes,
Cheios do bom calor os ricos indolentes
Comeriam, à luz das velas perfumadas,
Nas mesas sensuais; e em quanto nas estradas
Pelos atalhos maus e as veredas sombrias,
Ela ia a tiritar por entre as nevoas frias.
Sem pão, sem luz, sem Deus — alegres satisfeitos,
Eles riam, talvez, da chuva nos seus leitos!
O sol deles é bom! — Nos duros céus serenos
Parece que não há um Deus para os pequenos!”
E continuava a errar por campos, por florestas;
Era o inverno cruel, tinham-se ido as giestas;
Iam sangrando os pés nos ásperos espinhos;
A neve amortalhava os lívidos caminhos.
“Ah como os ricos são serenos e felizes!
— Eles sórdidos, vis, podem comer raízes,
Não ter lume nem pão, andarem macilentos
Às nevoas e aos soes e aos gelos dos relentos;
São os párias, os Jós, os vis — e rejeitados
Como os mortos que traz o mar esverdeados!
E as mães se não serão leais, boas, contentes!
Sempre os filhos com pão, os filhos sempre quentes,
Cheios de amor e sol, vestidos de cuidados
De beijos, de afeições, de arminhos, de bordados,
Amados serafins, olímpicos amores,
E àquela hora talvez em leitos como em flores;”
— Enquanto os seus, da fome encovados, imundos,
Tremendo dela ao pé sublimes e profundos,
“Sem pão, talvez sem pai, sem leito brando e leve,
Choravam seminus, descalços pela neve!”
Em toda a parte a neve amortalhava o solo!
Por fim cada vez mais chorava o filho ao colo;
Não rompia o luar, não tremia uma estrela;
Nem mesmo o próprio céu se amerceava dela;
Lembrou-lhe as lendas más de mortos e de roubos;
E ouviu-se já mais perto uivar de fome os lobos.
Cada vez, cada vez, se aproximavam mais;
Ela pôs-se a correr por selvas, por pinhais;
Mas caiu-lhe a lanterna,— os filhos aturdidos
Açoitavam o ar de choros, de gemidos,
Já tinha em sangue os pés dos rijos matagais;
Os lobos cada vez se aproximavam mais!
Na sombra, então, ouviu-se um grito lacerante,
Tinham levado um!...
Terrível, neste instante,
Voltou-se para traz, como hiena ferida,
Desvairada, feroz, trágica, enfebrecida,
Desejando rasgar, rugir, lutar também;
Mas logo na sua dor, lembrou-se que era mãe,
E que ia a expor os mais aos dentes aguçados
Dos animais cruéis. — Eles, os desgraçados,
Eram filhos também! — também seu coração!
— Fraca e vencida enfim pôs-se a chorar então.
“Ela vivera sempre entregue à dura sorte,
Tão avara, cruel, que era mais doce a morte;
Sempre a escrava fiel da Família, do Lar,
Das duras aflições; sabia só chorar; — 
Não invejara nunca as pompas nem os brilhos;
E até nem mesmo o Céu lhe concedia os filhos!”
Dir-se-ia a noite eterna, a noite desolada;
Começou a correr nos campos desvairada;
Depois voltou atrás... ouviu-se um ai profundo;
Uivavam outra vez— Levaram-lhe o segundo.
Então o medo escuro apederou-se dela!...
Não se via no céu tremer nem uma estrela,
A solidão profunda, a névoa fria, intensa,
E em toda a parte só chovendo a neve imensa.
Prosseguiu a correr, louca, feroz, sem tino,
Quase o filho a esmagar de encontro ao seio fino,
Na dura escuridão, chamando em altos brados
Os nomes imortais, os símbolos sagrados;
Pedindo compaixão, miserável, vencida,
Fraca, chorando já aquela negra vida,
Convulsa de terror; — mas, longe, lentamente,
Começaram a uivar os lobos, novamente.
De novo retomou a bárbara carreira
Desalentada já; até que quase à beira
Dum fosso aberto ali numa vereda escura,
Como um cadáver cai em uma sepultura,
Por fim, quebrada, hostil, olhando os negros céus
Caiu cheia de dor, injuriando Deus.
No céu surgia a lua — e já se ouvia agora,
Mais perto, eles uivar na solidão sonora; — 
Ali, ela aguardou que fossem devorá-la.
..........................................
Serena ergueu-se a lua, a lua cor de opala!...
 

MISÉRIA OCULTA

Bate nos vidros a aurora,
Vem depois a noite escura;
E o pobre astro que ali mora,
Não abandona a costura!
Para uns a vida é de abrolhos!
Para outros moita de lírios!
Bem o revelam seus olhos,
Pisados pelos martírios!
Miséria afugenta tudo!
Miséria tem dons funestos!
Quem é que gaba o veludo
Daqueles olhos honestos!...
Ninguém seus olhos brilhantes
Descobre nessas alturas...
E aquelas formas tão puras,
E aquelas mãos elegantes!
Sempre à costura inclinada!
Morra o sol ou surja a lua
Nunca vi descer à rua
Aquela loura encantada!
Aquele lírio dobrado
Porque assim vive escondido!
Eu bem sei! — não tem calçado!
E é muito usado o vestido!
Por isso não tem porvir
Morrerá virgem e nova,
E aguarda-a bem cedo a cova...
Que eu bem a ouço tossir!
Miséria afugenta tudo!
Miséria tem dons funestos!
Quem é que gaba o veludo
Daqueles olhos honestos!
Pobre flor desfalecida
Tão nova e ainda em botão!
Como teve estreita a vida,
Terá estreito o caixão!
 

LISBOA
Cette ville est au bord de l'eau; 
on dit qu'elle este batie en marbre.
 (Baudelaire)

De certo, capital alguma neste mundo
Tem mais alegre sol e o céu mais cavo e fundo,
Mais colinas azuis, rio de águas mais mansas,
Mais tristes procissões, mais pálidas crianças,
Mais graves catedrais — e ruas, onde a esteira
Seja em tardes de estio a flor de laranjeira!
A Cidade é formosa e esbelta de manhã! — 
É mais alegre então, mais límpida, mais sã;
Com certo ar virginal ostenta suas graças,
Há vida, confusão, murmúrios pelas praças;
— E, às vezes, em roupão, uma violeta bela
Vem regar o craveiro e assoma na janela.
A Cidade é beata — e, às lúcidas estrelas,
O Vício à noite sai às ruas e às vielas,
Sorrindo a perseguir burgueses e estrangeiros;
E à triste e dúbia luz dos baços candeeiros,
— Em bairros sepulcrais, onde se dão facadas — 
Corre às vezes o sangue e o vinho nas calçadas!
As mulheres são vãs; mas altas e morenas,
De olhos cheios de luz, nervosas e serenas,
Ébrias de devoções, relendo as suas Horas;
— Outras fortes, cruéis, os olhos cor de amoras,
Os lábios sensuais, cabelos bons, compridos...
— E às vezes, por enfado, enganam os maridos!
Os burgueses banais são gordos, chãos, contentes,
Amantes de Cupido, avaros, indolentes,
Graves nas procissões, nas festas e nos lutos,
Bastante sensuais, bastante dissolutos;
Mas humildes cristãos! — e, em lúgubres momentos,
Tendo, ainda, cruéis saudades dos conventos!
E assim ela se apraz num sono vegetal,
Contraria ao Pensamento e hostil ao Ideal! — 
— Mas mau grado assim ser cruel, avara, dura,
Como Nero também dá concertos à lua,
E, em noites de verão quando o luar consola,
Põe ao peito a guitarra e a lírica viola.
No entanto a sua vida é quase intermitente,
Afunda-se na inação, feliz, gorda, contente;
Adora inda as ações dos seus navegadores
Velhos heróis do mar; detesta os pensadores;
Faz guerra a Vida, à Ação, ao Ideal — e ao cabo
É talvez a melhor amiga do Diabo!
 

A SESTA DO SENHOR GLÓRIA

É no fim do jantar. Deram três horas
No bom relógio antigo dos avós,
E o senhor Glória pega numa noz
Com um ar de quem trata com senhoras.
A casa de jantar toda pintada
E o estuque cheio de aves, de paisagens,
De ninfas, prados, de águas, de boscagens,
Tem uma forma antiga e recatada.
De envolta com seus goles de Madeira
A senhora digere o seu café;
E ao lado, um filho rúbido de pé
Parece um pregador sobre a cadeira.
No colo da matrona dorme um gato
No melhor sono cômodo do mundo,
Enquanto embaixo um cão grave e profundo,
Contempla uns restos que inda estão num prato.
O senhor Glória fala, chocarreiro,
Do seu cunhado Aleixo de Miranda;
Lá fora, um papagaio num poleiro
Diz coisas aos burgueses, da varanda.
Com um ar meio cômico e boçal
Um sisudo criado atrás, de pé,
De vez em quando fala menos mal;
— O senhor Glória aspira o seu café
Muito tempo assim ficam nesse estado
De santa sonolência e beatitude,
Mais que assaz conhecido da Virtude
Quando tem digerido e bem jantado.
No entanto o senhor Glória, olhos dormentes,
Contempla na parede os bons pastores,
Confidentes fiéis dos seus amores,
— Que outrora hão já sorrido aos seus parentes
Duas pastoras falam com poesia
Numa vereda de alamos anosos,— 
E isto acorda-lhe os tempos virtuosos
Que a hora do jantar era ao meio-dia!
Belos tempos — pensa ele — de virtude!
De glória, amor, coragem, fé ardente,
De longas procissões, e de saúde,
De singeleza e paz— vida contente!
E o senhor Glória aqui, num travesseiro
Deita a cabeça, de pensar prostrado;
— O papagaio ri no seu poleiro,
— E a senhora sorri para o criado.
 

FARSA TRISTE
Je suis son pére.
 (Flaubert)

Ninguém diria ao certo a idade que teria!
Era um velho devasso e histrião — bom guia
Para mostrar de noite, aos baços candeeiros,
As casas de bordeis aos velhos estrangeiros.
Encontravam-no sempre a errar, imbecilmente;
Era alto, magro, hostil, e dava-se à aguardente — 
Tinha um certo tremor em todo o corpo — o vinho
Dava-lhe um rir constante; tinha o sorrir mesquinho
E dúbio que nos faz arrepiar mau grado; — 
Fora mendigo e ator, ladrão, bobo e soldado.
Tinha os hábitos vis e as farsas de caserna,
Ninguém sabia mais os casos de taberna;
Como era magro, esguio, e alto como um cipreste
Dobrava para o chão; o sopro do nordeste
Fazia-o tiritar; tinha os lábios fendidos,
E uns óculos azuis e linho nos ouvidos.
No entanto segue o Mal vários e negros trilhos!
O lívido truão tinha mulher e filhos
Esfomeados, nus, amados com paixão;
Por eles fora tudo: — ator, bobo e ladrão.
Quando voltava à noite, as lívidas crianças
Rotas, velhas da fome, ela soltas as tranças,
Desfeita, emagrecida, esquálida, doente,
Faziam-no chorar a vida e a aguardente.
Injuriava Deus. Ele é sublime e augusto,
Belo celeste, bom; dizem-no grande e justo,
E habita são, feliz, de soes agasalhado,
Enquanto os mais tem fome, e que ele acabrunhado
Era velho e ladrão! Tinha acessos, delírios,
E apostrofava o Céu hermético aos martírios,
Abraçava a mulher e os filhos, e de novo
Saia; — desta vez, voltava com um roubo!
Quando voltava então, os prantos da alegria
Tornavam-nos boçais,— e o pão era uma orgia!
A mulher tinha um rir alegre e natural,
E ele magro e faminto, exausto, maquinal,
Chorava como um pai; tinha olvidado o inferno,
A miséria, a desgraça; era boçal e terno;
Tinha um ar virtuoso e angélico; os pequenos
Cansados de sofrer a fome, o frio, ao menos
Sabiam comer bem! Eram enfim felizes!
Não rojavam na terra a devorar raízes!
Comiam-lhe o seu pão! Custara-lhe trabalho!
Coitados! sempre assim, sem pão nem agasalho!
Era uma vida atroz, ingrata vil, escura!
Não tinham de comer, não tinham cobertura!
Tossiam tanto à noite! — Ah! Deus era um ingrato!
E os prantos em roldão caíam-lhe no prato.
 

MADRIGAL DA RUA

Ó irmã das açucenas!
Meu coração é um horto,
Semeado de mais penas
Que as chagas dum Cristo morto.
Tanto é ver-te o meu desejo!
Tanto em mim poder conservas!
Que eu creio se não te vejo
Já ser debaixo das ervas!
..........................................
Debaixo dessas janelas
Sempre cruéis e fechadas,
Ontem à noite, às estrelas,
Deram-me quatro facadas!
Mas nenhuma fez no peito
O mal,— que por minha cruz!
Os teus olhos me tem feito
Dando facadas de luz!

 
TERCEIRA PARTE
CARTEIRA DE UM FANTASISTA
 

ANTES DE ABRIR A CARTEIRA

Aqui leitor sossegado!
Velho burguês doutras eras!
Depõe o livro de lado;
— Não leias estas quimeras!
Não corras esta carteira
Meu velho amigo sem dentes!
Enquanto geme a chaleira
Sonha em teus mortos parentes!
Mas vós amigos dos sonhos
Doces místicas violetas,
Castos selvagens tristonhos,
E solitários poetas!...
Que amais as tristes paisagens
E as coisas misteriosas,
A longa chuva, as viagens,
E as melodias nervosas.
Nas longas noites de outono
Que o vento varre a poeira,
E a chuva bate — sem sono! — 
Folheai esta carteira!
 

A NOITE DO NOIVADO

O primeiro conviva, em punho a taça,
Ergueu-se lentamente, e com voz rouca,
Bradou: Amigos! consenti que faça
Uma saúde à Morte — a velha louca!
A minha história é triste e muito pouca!
Eu como vós, sou filho da desgraça,
Amei uma só vez. Que mimo e graça!
Oh que pé andaluz! que olhar, que boca!
Na noite do noivado — ouvi, devassos!
Beijei-a doidamente entre meus braços,
E atirei-a no mar, tremula e nua!
Ninguém não mais a gozará um dia!
Repousa ali a minha noiva fria,
Guardada pelo olhar frio da lua!
 

A TORTURA DAS QUIMERAS
Les édifices eloquentes...
 Balzac

Quantas vezes, nas noites pluviosas,
Ou nas límpidas noites estreladas,
Como espectros de espinhos e de rosas — 
Erguem-se em nós as coisas apagadas!
Que vezes, nesta vida positiva,
— Nesta comédia lúgubre moderna — 
Se eleva a outra esfera nobre e viva
Nossa alma mais poética, mais terna!
Os contornos das coisas desprezadas,
Um fundo triste, um muro, umas ruínas
Um mosteiro, um luar — nas almas finas
São como umas celestes madrugadas.
Quem não terá jamais sentido um dia
As gostosas torturas do mistério
Surgindo, ao fundo, a mística elegia
Dum nevado luar num cemitério!
Sim, nestes climas lúcidos do Sul,
Tão propenso às visões sentimentais
E às quimeras — quem não terá jamais
Tido a cruel melancolia azul?
Sim, quantas vezes numa tarde bela,
À dorida eloquência dum castelo,
Dum muro, não pensei nos Céus, naquela
Que eu podia partir como um cabelo!
Nuvens distantes, rubras, singulares,
Formas vagas... neblinas pardacentas,
Velhos musgos... azul... coisas nevoentas
Sois causas de fantásticos pesares!
Quem não terá cismado em suas magoas
E amado as coisas místicas, celestes,
Por um luar calado sobre as águas
E um choroso sol posto entre os ciprestes!
No entanto sonhos vãos que nos prendeis
Qual prendem velho muro as verdes heras...
— É tempo brancas pombas que deixeis
Os laranjais e as ruas das quimeras!
E é tempo que as torturas assassinas
Que nos rasgam melhor do que um punhal,
— Bem o sabeis mãos brancas, pequeninas!
Vos não junteis misérias do Ideal!
 

TARDE DE VERÃO

Trepam-lhe pelas janelas
Jasmins, cheirosas serpentes,
E soltam-se as bambinelas
Em pregas indiferentes.
Os lírios que são uns ais
Suspiram melancolias;
Riem quadros sensuais
Nas largas tapeçarias.
Sátiro ri nas florestas
Níobe soluça magoas,
E escuta-se entre as giestas
A voz rítmica das águas.
E à luz dúbia dos ocasos
Ensanguentados do Sul
As camélias dos seus vasos
Olham voltadas o azul.
Lá dentro das gelosias
Volteiam como desejos,
Perfumes, melancolias,
Como saudades de beijos.
Jaz ao pé do seu bordado
Um cofre de filigrana,
E um mandarim espantado
Com olhos de porcelana.
Uma violeta esfolhada
Chora um amor num jardim.
Uma vareta quebrada
Ri num leque de marfim.
Nadam no quarto perfumes
De óleos, pomadas cheirosas,
Um colar mostra os seus lumes;
Voam aves gloriosas
Num álbum perto olvidado
Há uns idílios de amores,
E ao pé dum Cristo chagado
Morrem nas jarras flores.
Mas, pasmada alheia a tudo
Junto dum missal já velho,
Uma máscara de veludo
Olha idiota no espelho.
Olhos vazios de espanto,
Olha, olha, nada vê,
Ri-se uma Vênus a um canto,
E um cravo murcha-lhe ao pé.
..........................................
Assim eu sou moço velho,
E em minha alma, ó minha amada!
Como a máscara no espelho
Eu olho e não vejo... nada!
 

NA CABECEIRA DE UM LEITO
Quando as tuas mãos inermes
Forem em cruz sobre o peito,
E que te roam os vermes
Ó corpo branco e perfeito!
E sejas cheia de terra
Boca cheia de risadas,
Chora este amor que me aterra...
Pelas noites estreladas!...
 

MADRIGAL EXCÊNTRICO

Tu que não temes a Morte,
Nem a sombra dos ciprestes,
Escuta, Lírio do Norte,
Os meus cânticos agrestes:
.......................................... 
Tu ignoras os desgostos
Dum coração torturado,
Mais tristes do que os soes postos,
Ou de que um bobo espancado!
Eu bem sei, ó Musa louca
Que não conheces a magoa...
E tens um riso na boca
Como um cravo aberto n'água...
Eu bem sei... bem sei que ris
Dos meus madrigais modernos.
Sem cuidar, ó flor de lis!
Que hão de chegar-te os invernos!
Que nos corre a Mocidade,
Qual folha verde do vale,
E há de vir-te a tempestade,
Ó branco lírio real!
Que hás de ser como a açucena
Varrida pelo nordeste...
E os prantos da minha pena
Que hão de regar teu cipreste!
Que há de a terra agreste e dura
Servir-te de último leito...
E a pedra da sepultura
Quebrar teu corpo perfeito!
E hás de, enfim, ser devorada
Na fria noite, entre os bichos...
Ó tu que andas adorada,
Como as santas sobre os nichos!...
— Eu bem sei que te não does
Do meu coração ralado,
E fazes aos rouxinóis
Parodias sobre o teclado.
Que amas ver — como num drama,
O meu coração ferido,
Como um gladiador de fama,
Sobre um teatro vencido.
— Ah! mas eu que já estou velho...
Carcomido como a Cruz...
Digo adeus ao céu vermelho...
E às boas tardes de luz!
.......................................... 
Adeus, adeus, ó Amor!
Sinistra farsa divina,
Mais sonoro que o tambor
De boêmia bailarina!
Adeus, adeus, ó outono!
Vão-se as folhas amarelas!...
Sinto-me cair de sono,
Olhando para as estrelas!
Sigam todos os meus rastros!...
Andei errado o caminho!
E sinto-me ébrio dos astros
Como um bêbado de vinho!
Adeus, adeus rola amada!
Não chores a minha viagem...
Vou hospedar-me no Nada,
Como na boa estalagem!
Adeus, adeus, Mocidade!
Já chega o inverno do Mal!...
Vai despir-te a Tempestade
Nevado lírio real!
Chegou a noite fechada!
Adeus tardes das janelas!
— Pintai-me agora no Nada
Sobre as tristes aquarelas!
 

AQUELA ORGIA

Nós éramos uns dez ou onze convidados,
— Todos buscando o gozo e achando o abatimento,
E todos afinal vencidos e quebrados
No combate da Vida inútil e incruento.
Tocava o termo a ceia — e ia surgindo o alvor
Da madrugada vaga, etérea e cristalina,
A alguns trazendo a vida, e enchendo outros de horror,
Branca como uma flor de prata florentina.
Todos riam sem causa. — A estólida batalha
Da Matéria e da Luz travara-se afinal,
E eram já cor de vinho os risos e a toalha,
— E arrojavam-se ao ar os copos de cristal.
Cruzavam-se no ar ditos como facadas;
Escândalos de amor, histórias sensuais...
— Rolavam nos divãs caindo, às gargalhadas,
Sujos como truões, torpes como animais.
Um agitando o ar com risos desmanchados,
Recitava canções, farsas, Hamlet e Ofélia;
— Outro perdido o olhar, e os braços encruzados,
De bruços, num divã, roía uma camélia!
Outros fingindo a dor, falavam dos ausentes,
Das amantes, dos pais, com gritos de aflição,
— Um brandia um punhal, com ditos incoerentes;
— Outro sobre um sofá ladrava como um cão.
Era um delírio atroz de risos pelos ares!
— Ah! mas eu, que só quero a paz dos vegetais,
Feliz! então feliz! matava os meus pesares
Naquele ócio imbecil da pedra e dos metais!
Havia extinto em mim as ultimas centelhas; — 
Julgava achar-me só naquele frenesim,
Não sentia pungir as minhas magoas velhas,
Feliz! muito feliz! — ah! descansava enfim!
Repousava a final da pálida batalha,
Espalhava-se em mim o grande esquecimento;
Cuidava achar-me enfim cingido da mortalha,
Ou minhas cinzas já dispersas pelo vento.
Quando um deles então — numa ironia rude,
E erguendo-se de pé, na vasta confusão,
Com um rir bestial ergueu uma saúde
— Àquela que tornou-me em cinza o coração!...
..........................................
— Ah! seu nome cruel, de súbito lembrado,
De novo reabriu todas as minhas magoas!
E desfeito, de pé, senti-me transmudado,
Como um morto trazido à praia pelas águas!
E como o morto errante às luas silenciosas,
Ao vento, aos temporais, às algas das marés,
Trazendo inda a visão das noites tempestuosas,
— Todos calou o horror da minha palidez.
E em lágrimas bradei, então: — Ó Infelizes!
Imbecis! histriões! heróis do Sofrimento!
Como haveis de fechar as vossas cicatrizes,
— Se nem aqui deixais matar o pensamento?!
 

O VISIONÁRIO OU SOM E COR
(A Eça de Queirós)

Eu tenho ouvido as sinfonias das plantas.
Eu sou um visionário, um sábio apedrejado,
Passo a vida a fazer e a desfazer quimeras,
Enquanto o mar produz o monstro azulejado
E Deus em cima faz as verdes primaveras.
Sobre o mundo onde estou encontro-me isolado,
E erro como estrangeiro ou homem doutras eras,
Talvez por um contato irônico lavrado
Que fiz e já não sei talvez, noutras esferas.
A espada da Teoria, o austero Pensamento,
Não matou ainda em mim o antigo sentimento,
Embriagam-me o Sol e os cânticos do dia...
E obedecendo ainda a meus velhos amores,
Procuro em toda a parte a música das cores,
— E nas tintas da flor achei a Melodia!

II
J'ai vu les Espréces et les Formes,
 j'ai vu l'Esprit des Choses.
 (Balzac Seraphita)
Bem sei que a planta engana e a Natureza mente,
E que a flecha do Sol nos pode assassinar,
Que a Peste torna o azul sereno e resplendente,
E que a pérola sai das infecções do Mar!
Tudo é Matéria e Força e lei onipotente!
E em quanto o lírio incensa e azula-se o luar,
Impassível talvez, embaixo, surdamente,
A terra cria a flor que me há de envenenar.
Bem sei! mas, na floresta imensa das Teorias,
Eu amo divagar ouvindo as melodias
Que as plantas musicais dão aos astros e aos Céus.
Ah! eu vejo Jesus no coração das rosas!
Só eu, ouço as leais flores melodiosas!
E o lírio é para mim a hóstia onde está Deus!

III
O vermelho deve ser como o som de uma trombeta...

 (Um cego)
Alucina-me a Cor! A Rosa é como a Lira,
A Lira pelo tempo há muito engrinaldada,
E é já velha a união, a núpcia sagrada,
Entre a cor que nos prende e a nota que suspira.
Se a terra, às vezes, brota a flor que não inspira,
A trivial camélia, a branca enfastiada,
Muitas vezes no ar perpassa a nota alada
Como a perdida cor d'alguma flor que expira!
Há plantas ideais dum cântico divino
Irmãs do oboé, gêmeas do violino;
Há gemidos no azul, gritos no carmesim!
A magnólia é uma harpa etérea e perfumada!...
E o cacto a larga flor, vermelha e ensanguentada,
Tem notas marciais, soa como um clarim!

IV
Mas aquela que adoro, a hierática duquesa,
Nobre como as reais senhoras de Brabante,
Como a hei de pintar igual e semelhante,
Se não há Som nem Cor em toda a Natureza!
Seu colo tem do lírio a rígida firmeza,
Seu amor é um céu católico e distante;
Mas a luz do olhar sonoro e radiante
Eleva como a Cor, soa como a Beleza!
Nunca lhe ousei falar, nem sei, se amor lhe inspiro;
Mas quando enfim morrer, então como um suspiro
Meu seio florirá, em vez do meu amor...
Numa flor que porá talvez sobre a janela — 
Uma flor rubra e negra, em forma duma estrela,
— Como uma sinfonia obscura de terror!
 

MADRIGAL FÚNEBRE
Na mortalha alheia não temos mais que fazer
 Bernardim Ribeiro.
To die to sleep: Shakespeare.

A ti que os meus ais resumes
Estas quadras dolorosas,
Corpo inundado em perfumes,
E de pomadas cheirosas:
.......................................... 
A mim custa-me a morrer,
— Não por que esta vida valha;
Mas porque sei que hei de ter
Teu coração por mortalha.
E, depois destes abrolhos,
Hei de ter a vala escura
Do teu peito, e esses teus olhos
Coveiros da sepultura.
Não terei pompas de pasmos,
Nem a estátua que lastima;
E hão de mandar pôr-me em cima
Uma cruz dos teus sarcasmos!
E para que a morte ateste
Epitáfio de bocejos,
— E ao pé erguido um cipreste,
Nascido dos meus desejos.
E ao ouvires as enxadas
No que morreu sem confortos,
Serão tuas gargalhadas
As ladainhas dos mortos.
E então ali que me roa
O verme dos teus olvidos,
E não tenha uma coroa
E os teus cabelos fingidos.
.......................................... 
Ó filha vã de Magdala!
Quanto cadáver desfeito
Não tens lançado na vala
Voraz e fria do peito!?
Quantas crenças enterradas!
E que mortos, sem capelas,
Sem pombas, nas madrugadas,
Nem os prantos das estrelas!
 

DEBAIXO DUMA JANELA
(A Batalha Reis)

(FAUSTO E MEFISTÓFELES)

FAUSTO
Nas noites brancas de lua
É que se abrem as janelas!
Vem ver meus olhos escuros
A sementeira d'estrelas!
Quem me dera a mim que fosse
Para te poder falar,
O teu peito uma janela
E o meu amor o luar!

UMA VOZ (cantando dentro)
As estrelas mais brilhantes,
Entre as outras as primeiras,
São os prantos de Maria
E o suor das Oliveiras.

MEFISTÓFELES (cantando numa guitarra)
O nosso bom arcebispo
Perdeu a sobrepeliz,
Uma vez em casa de...
São coisas que o povo diz.

FAUSTO
Eu era um rei poderoso,
Sem legiões, nem castelos,
Tendo a coroa de teus braços,
E o manto de teus cabelos!
Meu amor, são os teus olhos,
Mais negros que a noite escura,
Dois trigueiros assassinos
Cavando-me a sepultura!

A VOZ (cantando)
Os rubis são umas pedras
Feitas de pingos de luz,
Foram as gotas de sangue
Dos roxos pés de Jesus.

MEFISTÓFELES
Escrevi o meu amor
No muro do coração,
Numa noite de relento,
Com teus olhos de carvão!

FAUSTO
Por que estais, soes, encobertos,
Ó tristes olhos amenos!
Receias ó minha esquiva!
Não te crestem os serenos?
A VOZ (cantando já ao longe)
Quando subiu ao Céu Cristo
Depois da paixão da Cruz,
Subiu por vós, ó estrelas!
Que sois escadas de luz!

MEFISTÓFELES
Eu deixarei, ó trigueira,
De amar tuas tranças negras,
Quando mandarem os sapos
Sonetos às toutinegras.

FAUSTO
Fecharam-se as violetas
E dormem as andorinhas;
A mim há muito que o sono
Desertou das noites minhas!
Ó bem amada das almas,
Tão avara de carinhos!
Acaso nos teus canteiros
Somente crescem espinhos!
(Afastam-se e vão de braço dado,)
MEFISTÓFELES (ao longe)
O nosso bom arcebispo
Perdeu a sobrepeliz
Uma vez em casa de...
São coisas que o povo diz!
 

A SELVAGEM

Às vezes, como os grandes fantasistas,
Sinto o desejo intenso das viagens...
E ir sozinho habitar entre os selvagens,
Como num ermo os ásperos trapistas.
As grandes, vastas, límpidas paisagens,
Que sabem ver os imortais artistas...
Teriam novos tons, novas imagens,
Longe do mondo avaro e as suas vistas!
Com uma virgem — flor dessas montanhas — 
Entre os mil sons das árvores estranhas,
Dos coqueiros, bambus... fora feliz!...
Dormiria em seus braços nus, lustrosos; — 
E ouviria, entre uns beijos voluptuosos,
Tintinar-lhe as argolas do nariz!
 

A LANTERNA

O sábio antigo andou pelas ruas de Atenas,
Com a lanterna acesa, errante, à luz do dia,
Buscando o varão forte e justo da Utopia,
Privado de paixões e demoções terrenas.
Eu também que aborreço as coisas vãs, pequenas
E que mais alto pus a sã Filosofia,
Há muito busco em vão — ha muito, quem diria!
O mais cruel ideal das concepções serenas.
Tenho buscado em balde, e em vão por todo o mundo;
Esconde-se o ideal no sítio mais profundo,
No mar, no inferno, em tudo, aonde existe a dor!...
De sorte que hoje enfim, descrente, resignado,
Concentrei-me em mim só, num tédio indignado,
E apaguei a lanterna — É só um sonho o Amor!
 

ÚLTIMA FASE DA VIDA DE D. JUAN
(AMOR DE COZINHA)
Afinal D. Juan vinha, hoje, a morrer duma indigestão.

 (Palavras dum grande realista)
Cansado de vãos fogos de Bengala,
Como Pansa odiei o Pensamento,
E abandonei os ideais de sala
— Pelo amor da cozinha suculento!
E os meus fortes desejos sensuais,
— Desejos que hão de dar na morte escura! — 
Soluçam só — ó deuses imortais!
Só pela ama dum florido cura.
Ela é o forte e esplêndido ideal!
Seu cabelo é mais fino do que o ouro,
E a sua voz mais bela que o metal,
E os cantos católicos do coro.
Os seus lábios vermelhos e discretos
Lembram romãs das cercas clericais,
E os seus olhos sombrios são mais pretos
Do que o latim escuro dos missais!
Se, acaso, o mundo nota-lhe alguns erros,
Compensa-os para mim com bons presuntos;
Os olhos dela fazem mais defuntos,
Dos que o padre acompanha nos enterros!
Fugiu de mim a vã melancolia!...
Ela é franca e alegre como a vinha...
E em quanto o padre está na sacristia
Eu devoro-lhe as aves na cozinha.
— Mas, ontem, que gozando o seu amor
Dormia, santamente, entre seus braços,
Bateu, tragicamente, o bom prior,
E a escada rangeu sob os seus passos...
O coração pulsou-me acelerado;
Ela estacou trêmula e suspensa...
Mas levou-me a um sítio agasalhado,
— E dormi toda a noite na dispensa.
 

A ÚLTIMA CEIA DE FALSTAFF
Nunca mais me permite a sorte crua
Que ande às portas batendo tresnoutado,
Vai morrer em beco, abandonado,
O maior bebedor que olhou a lua!
Dos braços da criada seminua
Nunca mais rolarei sobre o telhado;
E, ao relento, encherei, com passo errado,
De letras cabalísticas a rua.
Vai morrer, morrer sim, por seus castigos,
O estomago que foi mais forte e cheio,
Que na Páscoa ceou com Satanás...
Cai o rival dos bêbados antigos!
Ó toneis imortais abri-lhe o seio!
— São-me fatais as ceias de goraz! — 
 

FALSTAFF MODERNO
In vino veritas

Quando eu morrer, ninguém lerá no crânio
 Se eu fui mouro ou judeu,
Se prezava o cognac ou o Madeira,
 Que sofrer foi o meu!
Ninguém dirá se era trigueiro ou louro,
 Se eu fui Pope ou Camões,
E os sábios não dirão, coçando a calva,
 A cor dos meus calções.
Não saberão dizer se foi a pipa
 O hotel em que vivi,
E se fazia sol ou aguaceiros
 No dia em que nasci.
Se, após a doida orgia, o meu enterro
 Pela manhã, sair,
Tu virás à janela bocejando,
 E em coifa de dormir.
E não conseguirás verter um pranto
 Do terno teu cetim,
Enquanto os gordos padres irão lentos,
 Ressonando em latim!
Os anos jogarão com os mais crânios
 E o meu magro esqueleto
Uma espécie de jogo das caveiras
 Dos coveiros de Hamleto!
Ninguém, mulher, dirá que funda magoa
 Minou meu coração!
E eu mandarei por, por epitáfio!
 — Maldita indigestão! — 
Mas que ideias tão negras! O que importa
 Roa a terra mais um!
Depois da morte! o nada. Ó minhas lágrimas
 Não me estragueis o rum!

 

NA RUA

Vejo-a sempre passar séria, constante,
— Às vezes, inclinada na janela,— 
Tranquila, fria, e pálido o semblante,
Como uma santa triste de capela.
Seu riso sem calor como o brilhante
No nosso lábio o próprio riso gela,
E ela nasceu para chorar diante
Dum Cristo numa estreita e escura cela.
Seu olhar virginal como as crianças
Jamais disse do amor as coisas mansas;
Jamais vergou da Força ao choque rude.
Abrasa-a um fogo divinal secreto! 
— Eu sinto, mal a avisto, ao seu aspecto, 
O brio intenso e negro da Virtude. 


FANTASIAS DA LUA
 Terret, lustrat, agit proserpiua, Luna, Diana, Ima, supernas,
 feras, sceptro, fulgore, sagitta.
 (Dístico de Hieronim)

Ontem fui através dos arvoredos,
— Os bons carvalhos épicos rugosos! — 
Com ela, como dois novos esposos,
— E a lua então contou-nos mil segredos! — 
Ela vinha estreitada contra mim — 
E através das veredas seculares,
Dava a lua umas sombras singulares
À sua alva botinha de cetim!...
Não haviam estátuas nas veredas,
— As estátuas cruéis entre as ramagens! — 
E ouvia-se o ranger das suas sedas
Sobre as folhas,— seguindo-a como uns pajens.
Tremia todo unido contra o meu,
Como uma ave, seu braço palpitante;
E era vago, qual música distante,
O azul noturno místico do Céu.
De vez em quando unia contra a minha
A sua mão mais branca que um círio,
E como um casto amante uma rainha
Seguia atrás do seu vestido um lírio.
As fontes tinham águas de brilhantes;
E em quanto a sua voz vibrava em mim,
Eu fitava seus olhos ávidos, amantes,
Na sua alva botinha de cetim.
Ela é frágil e tímida. Ama as rosas,
Crê nos sonhos, visões, nos malmequeres,— 
E chora com as músicas nervosas
Como as débeis e místicas mulheres.
No entanto mais ninguém do que eu receia
Seus pobres, frágeis nervos delicados!
Ninguém mais me seduz do que a sereia,
Correndo a mão franzina nos teclados!
Íamos assim falando de escudeiros,
Paladinos, lendas, dramas, toda a escura
Idade media, em quanto na espessura,
Os rouxinóis cantavam nos loureiros.
Mas eis que para... e diz-me de repente,
Cravando-me o olhar trágico sublime,
— Mata-me um dia! — E eu li, perfeitamente,
— Em seus olhos azuis o amor do Crime! — 
Mata-me tu! cruel! disse-lhe eu rindo,
E em quanto o seu olhar errava em mim,— 
E enterra-me depois num sítio lindo,
— Num loureiro que cresce em teu jardim!
Minha alma ali será perto da tua,
Como as almas irmãs, branca sereia,
E tremerei nas folhas, pela lua,
Ao sentir teus pezinhos sobre a areia!
Manda por o meu corpo em sítio lindo,
Debaixo dum loureiro, em teu jardim;
Meu bem! Mata-me tu! disse-lhe rindo: — 
Ensanguenta as botinhas de cetim!
.......................................... 
E eis aqui como em noites amorosas
Nestes bons climas cálidos do Sul,
Produz sonhos, quimeras monstruosas,
A triforme imortal — a lua azul!
 

O SELVAGEM
(A Silva Qinto)

Eu não amo ninguém. Também no mundo
Ninguém por mim o peito bater sente,
Ninguém entende meu sofrer profundo,
E rio quando chora a demais gente.
Vivo alheio de todos e de tudo,
Mais calado que o esquife, a Morte e as lousas,
Selvagem, solitário, inerte e mudo,
— Passividade estúpida das Coisas.
Fechei, de há muito, o livro do Passado
Sinto em mim o desprezo do Futuro,
E vivo só comigo, amortalhado
Num egoísmo bárbaro e escuro.
Rasguei tudo o que li. Vivo nas duras
Regiões dos cruéis indiferentes,
Meu peito é um covil, onde, às escuras,
Minhas penas calquei, como as serpentes.
E não vejo ninguém. Saio somente
Depois de pôr-se o sol, deserta a rua,
Quando ninguém me espreita, nem me sente,
E, em lamentos, os cães ladram à lua... 


O AMOR DO VERMELHO
(Nevrose de um Lord)

A ideia de teu corpo branco amado,
Beleza escultural e triunfante,
Persegue-me, mulher, a todo o instante,
— Como o assassino o sangue derramado!
Quando teu corpo pálido, e brejado,
Abandonas ao leito — palpitante,
Quem jamais contemplou em noite amante,
Tentação mais cruel, tom mais nevado?!
No entanto — duro, excêntrico desejo!
— Quisera as vezes que a dormir te vejo
Tranquila, branca, inerme, unida a mim...
Que o teu sangue corresse de repente,
Fascinação da Cor! — e estranhamente,
Te colorisse pálido marfim!
 

A UM CORPO PERFEITO

Nenhum corpo mais lácteo e sem defeito
Mais róseo, escultural e feminino,
Pode igualar-se ao seu, branco e divino
Imóvel, nu, sobre o comprido leito! — 
Nada te iguala! O ferro do assassino
Podia, hoje, matá-la, que o meu peito
Seria o esquife embalsamado e fino
Daquele corpo sem rival, perfeito.
Por isso é muito altiva e apetecida; — 
E o gozo sensual de a ver vencida
Há de ser forte, estranho e singular...
Como o das coisas dignas de castigo;
— Ou dum amante sacerdote antigo,
Derrubando uma deusa dum altar.
 

CARTA AO MAR
Ó ondas fugitivas!...
(Camões)

Deixa escrever-te, verde mar antigo,
Largo Oceano, velho deus limoso,
Coração sempre lírico, choroso,
E terno visionário, meu amigo!
Das bandas do poente lamentoso
Quando o vermelho sol vai ter contigo,
— Nada é mais grande, nobre e doloroso,
Do que tu,— vasto e úmido jazigo!
Nada é mais triste, trágico e profundo!
Ninguém te vence ou te venceu no mundo!...
Mas também, quem te pôde consolar?!
Tu és Força, Arte, Amor, por excelência! — 
E, contudo, ouve-o aqui, em confidência;
— A Musica é mais triste inda que o Mar!
 

A LENDA DAS ROSAS

No princípio eram mais doces os olhares
 Sossegados de Deus!
Era mais verde o manto destes mares
 E mais azuis os céus!
Não tinha nuvens este sol na rota,
 Nem tormentas o Sul,
Nem era, como o olhar dum idiota,
 Impassível o azul!
Não choravam no vale escuros casos,
 À noite, os tristes ventos!
Nem eram como hoje, nos ocasos,
 Os céus sanguinolentos!
Deus não tinha vibrado ainda o açoite
 A gerações inteiras,
Nem o Cristo suara a longa noite
 No Jardim de Oliveiras.
Não andavam os tristes miseráveis
 Torcendo os braços nus!
Nem erravam na treva, inconsoláveis,
 Os expulsos da Luz.
E não haviam sangue ainda chorado
 Os santos nos desertos,
Nem no crânio do morto esverdeado
 Inda lírios abertos!
Não pisava inda um pé selvas umbrosas
 E florestas bastas,
Os mares eram mansos! — sempre as rosas
 Eram brancas e castas!
Não era cor de sangue assim vestida
 Inda a rosa vermelha,— 
Nem o céu tinha a cor desvanecida
 De uma túnica velha.
..........................................
Toda uma noite, a Mãe primeira errante
 E todo um dia andou!
Da noite a branca luz de diamante
 Os passos lhe guiou.
E abandonavam seus pombais as pombas
 Seguindo-a pela estrada!...
E o mar dizia ao vento: Por que zombas?
 Pobre mãe desgraçada!
E as montanhas choravam; — pois puderam
 Prantos de mãe fendê-las!
E toda a noite pelo céu correram
 Mais tristes as estrelas!
E o mar tinha uma voz dorida, como
 Na noite do Salém,
E quando o sol nasceu em rubro assomo
 Arrastava-se a Mãe!
E perguntava ao vento: Onde está ele?
 — Quem o meu filho viu?
E o vento respondeu: — Não sei de Abel!
 E o mar, ao fim, carpiu!
E arrastava-se assim no fim do dia — 
 Já quando toda exangue,
— Uma roseira avista que tingia
 A cor rubra do sangue:
Então dorida estátua,— hirtos os passos,
 Ai de mim! ai de mim!
Gritou, convulsa a Mãe, torcendo os braços,
 “Aqui passou Caim!”
No princípio eram mais doces os olhares
 Sossegados de Deus!
Era mais verde o manto destes mares
 E mais azuis os céus!
E a Rosa era só branca, pura, exangue;
 — Pois que como hoje assim
Não correra sobre ela ainda o sangue
 Que derramou Caim!
 

NO ENTERRO DE UM CORAÇÃO
(A Betencourt Rodrigues)

Vais a enterrar nas ervas verde-escuras,
Na fria terra, ó santa, que devias
Não ter roçado estas paixões impuras,
E estas lepras,— irmã das cotovias!
Vais a enterrar sob as folhagens frias,
— Voz alegre, rir cheio de doçuras!
Ó lindo coração! que só te abrias
Para a dor das alheias amarguras!...
Vão-te levar à terra, ó casto e amado! — 
Mas olha! — os vegetais tem mais cuidado
Dos seios virginais do que a paixão!...
Adeus, triste!... Adeus peito amante e ardente!
— Quem me dera contigo, juntamente,
Ir também a enterrar, ó Coração!
 

A JOVEM MISS
Tocar que ímpio se atreve!...

 (Flores do Campo)
Ela é tão loura, lírica, franzina,
Tão mimosa, quieta, e virginal,
Como uma bela virgem dum missal
Toda dourada, e preciosa e fina!
Não há graça mais casta e feminina
Do que a dela! Seu riso angelical
Cria em nós todo um mundo de moral,
Melhor que tudo o que Platão ensina!
Por isso; e pela sua castidade,
Deve ser gozo intenso, na verdade,
Sentir fundir-se em nós seus olhos régios!...
E o gozo de a beijar trêmula, amante,
Deve ser quase estranho! — e semelhante
Ao de fazer terríveis sacrilégios.
 

O DOENTE ROMÂNTICO

Eu sei que morrerei, discreta amante,
Antes do inverno vir; mas, lentamente,
Quero morrer à tua luz radiante,
Como os tísicos à luz do sol poente!
Sou romântico assim! O tempo ardente
Das quimeras vai longe! Vão, constante,
Morrerei crendo em ti... e o azul distante
Olhando como um sábio ou um doente!...
— Mas, eu não preso a tarde ensanguentada...
Nem o rumor do Sol! — quero a calada
Noite brumosa junto do Oceano...
E assim, sem ai nem dor, entre a neblina,
Morrer-me, como morre a balsâmina,
— E ouvindo, em sonho, os ais do teu piano.
 

QUADRA DE UM DESCONHECIDO

Eu morrerei, ó lânguida trigueira!
Sem sentir teus cabelos sobre mim,
Coroado dos lumes da poncheira,
Sobre o chão imoral dum botequim!
 

EM VIAGEM

Ia o vapor singrando velozmente
O verde mar antigo e caprichoso,
À rude voz do capitão Contente,— 
Um rubro homem do mar silencioso.
Demandava a Madeira,— a ilha bela,
A pátria excelsa e célebre do vinho,
A viagem foi curta; e no caminho
Intentei relações com Arabela.
Arabela era a lírica inglesa,
Loura, pálida e frágil como um vime,
Que traz sempre a sua alma meiga presa
Dalgum amor profundo, mas sublime.
O londrino, o Anthony desses amores,
Era um rubro e excêntrico burguês,
Mais amigo do bife que das flores,
— A extravagância de chapéu inglês,
Seu olhar dúbio, incerto e traiçoeiro
Tinha visões de sangue derramado
Em toda a parte; ao todo um ex-banqueiro,
— Um calvo, velho amigo do Pecado!
Nunca o olhar fitava em sítio certo; — 
Vogava às vezes só no tombadilho,
Com um comprido e merencório filho,
E ninguém viu-lhe um riso franco e aberto.
Punha, às vezes, no mar o olhar sombrio;
E ao vento, a fita branca do chapéu
Dir-se-ia a vela triste dum navio
De náufragos, num lúgubre escarcéu!
— Mas contudo, a inglesa, a triste amante
Com seus longos e louros caracóis,
Fitava às vezes no azul distante,
Seus olhos divinais como dois soes.
E, mau grado andar lânguida, doente,
Ser branca, loura, e frágil como um vime...
— Um sábio lera-lhe a atração ardente
Pelas viris fascinações do crime.
 

NOITES DE CHUVA

Eu não sei, ó meu bem, cheio de graças!
Se tu amas no Outono — já sem rosas! — 
A longa e lenta chuva nas vidraças,
E as noites glaciais e pluviosas!
Nessas noites sem luz, que — visionários — 
Temos quimeras místicas, celestes,
E cismamos nos pobres solitários
Que tiritam debaixo dos ciprestes!
Que evocamos os líricos passados,
As quimeras, e as horas infelizes,
Os velhos casos tristes olvidados,— 
E os mortos corações sob as raízes!
Nessas noites, meu bem! em que desfeito
Cai o frio granizo nas estradas,
E tanto apraz, sonhando, sobre o leito,
Ouvir a longa chuva nas calçadas!
Nessas noites, elétricas, nervosas,
Todas cheias de aromas outonais,
Que a tristeza tem formas monstruosas
Como num sonho os pórticos claustrais.
Noites só em que o sábio acha prazeres,
— Tão ignorados dos cruéis profanos! — 
E em que as nervosas, místicas mulheres,
Desfalecem chorando nos pianos.
Nessas noites, meu bem! é que os poetas
Tem às vezes seus sonhos mais brilhantes,
Folheiam suas obras prediletas...
— E evocam rostos... e visões distantes!
 

IDÍLIO MERIDIONAL

Sem ti, vejo o meu futuro
Um horto cheio de abrolhos! — 
Ah não me deixem teus olhos
Por este caminho escuro!
No inverno, as cândidas aves
Abandonam os pombais,
Meu bem, teus olhos suaves
Não me desterrem jamais!
Quando à tarde o céu flameja,
Junto de ti encostado,
Que vezes, não tenho inveja
Da agulha do teu bordado!
Eu quisera a toda a hora
Cantar-te, ó sol os meus dias!
Como os sonetos que à Aurora
Enviam as cotovias.
Ó lábios que pedem beijos!
Ó brancas mãos delicadas!
Voam a vós meus desejos
Quais pombas ensanguentadas!...
Ó rival das açucenas!
Nenhum punhal faz no peito
As chagas que me tem feito
Essas tuas mãos pequenas!
E, contudo o amor só dura
Entre as lágrimas da magoa,
— Como uma violeta escura
Que se morre à míngua de água!
Um horto todo de abrolhos
Sem ti será meu futuro! — 
Ah! não me larguem teus olhos
Por este caminho escuro!
 

DUAS QUADRAS DE DIÓGENES NO ÁLBUM DE LAÍS

Quando no meu o teu olhar se esquece,
A minha alma, mulher! é como um urso
Que dança pelas feiras, e obedece
Ao magro saltimbanco e ao seu discurso.
E os meus velhos desejos violentos
Soluçam — histriões esfomeados! — 
Como os gatos noturnos, friorentos,
Que miam lamentosos nos telhados.
 

A CAMÉLIA NEGRA
Por isso vos espera
 O dia da vingança!

 (Souza Caldas)
Como as urnas das rosas mal fechadas,
Cujos aromas boiam no poente,
Quando passas nossa alma aspira e sente
As sensações das ilhas ignoradas.
E o teu cabelo, ó lúbrica serpente!
Rescende todo a unguentos e a pomadas,
Como as múmias que habitam no Oriente,
Debaixo das pirâmides sagradas.
Mas que te serve e vale tanta fadiga,
Ó pó doirado e vão? e o mundo diga: — 
Meu leito, meu pomar de sensações!!
Se o vento que hoje o teu sorrir perfuma
Na tua cruz soluçará: — Mais uma
Dos monstros maternais das gerações!
 

A ÚLTIMA SERENADA DO DIABO

No tempo em que ele, nas lendas,
Era amante e cortesão,
Jogava, e tinha contendas,
Cantava assim em Milão:
..........................................
Ó flores meigas, ó Belas!
Para prender os toucados,
Eu dar-vos-ia as estrelas:
— Os alfinetes dourados!
Só pelo amor quebro lanças! — 
A Rainha de Navarra
Enleou um dia as tranças
No braço desta guitarra!
Sou um herói perseguido!...
Mas inda há luz nos meus rastros;
A lança que me há ferido
Foi feita do ouro dos astros!
Mas um dia, ó bem amadas!
Eu tornaria às alturas...
Subindo pelas escadas
Das vossas tranças escuras!
O amor que em meu peito cabe
Não conta diques, ó belas!
Só minha guitarra o sabe,
E aquelas velhas estrelas!
Ó batalhas amorosas!
— Era de aventuras cheia!
Ó brancas noites saudosas
Que eu andei pela Judeia!
Ó flores apetecidas!
Livros escritos com beijos!
Ó brancas aves fugidas
Dos jardins dos meus desejos!
Não me deixeis no abandono
Ó tristes olhos leais!
Como as pombas, no outono,
Que abandonam os pombais!
Que fosse eu crucificado
Nalguma bem alta Cruz!...
— E vos tivesse a meu lado,
Como vos teve Jesus!...
Esses olhos me consomem!...
Mas, Mulher, da luta ao cabo,
Se perdeste o antigo Homem...
— Tu matarás o Diabo!

 

A MUSA VERDE

Il apellait l'absynthe sa “muse verte.”
 (Les derniers bohémes)
Io vidi gia al cominciar del giorno
 La parte oriental del ciel tutta rosata.
 (Dante: Purgatório)

 Infelizes! — os sujos, verdes limos,
Que vezes não tem visto os afogados!...
Corações tantas vezes sobre os cimos
Do Ideal! e que o Vício tem marcados!
Quem os leva por esses vis atalhos
Do Desespero, Fome e Suicídio,
E ao verde absinto e aos sórdidos baralhos!
— Eles que leram Dante, Homero e Ovídio?
Quem os conduz? — A vil fatalidade
É quem os leva às pérfidas ciladas? — 
E é tal secreta e lívida deidade
Quem lhes esmaga os crânios nas calçadas?
Quem pois os empurrou, um dia — e disse:
— Aquece o Álcool... mais que o Paraíso! — 
E nas cavadas faces da velhice
Gelou-lhes sempre, imbecilmente, o riso?
— Quem foi? Quem é que arrasta, eternamente,
A velha e a nova geração que perde
O seu calor, seu sangue, febrilmente — 
Aos braços infernais da Musa Verde!?
A Miséria — a irmã velha do Pecado,
— E o Luxo, o Mal! — tão negros conselheiros!
São quem os faz, no asfalto abandonado,
Ver apagar, com dia, os candeeiros?...
Ou será, também,— gozo triste insano
Da alma escura! — e nova podridão
Do homem de hoje, blasé como um tirano:
— De se sentir boiar na perdição?!
 

IDÍLIO DE ALDEIA
Oh! que harmonia!
 Cadente se esvoaça pela fresta
 Dum vizinho postigo!
 (Hóstias de ouro)

Não sei que há que me impele
Para o teu escuro olhar!...
É mais branca a tua pele,
Do que o linho de fiar!
É tua boca um botão,
E o teu riso a lua nova; — 
Quem me dera ter na cova
Os ais do teu coração!
Mal podes saber o gosto
Que tive da vez primeira
Que te avistei, ao sol posto,
Debaixo desta amoreira!
Desde esse dia, andorinha!
Desde essa tarde infeliz,
Fiquei preso da covinha
Que fazes quando te ris!
Não sei que há que me impele
Para o teu escuro olhar!...
É mais branca a tua pele
Do que o linho de fiar!
A minha alma não descansa; — 
Morra o sol, ou surja a aurora,
Só tu me lembras criança
De cabelos cor de amora!
A tua doce ignorância
Tão cheia de singelezas...
Faz todas as almas presas
Como as perguntas da infância!
Tu és como um pomo de ouro,
E o vivo sol que me alegras;
— Amo mais teu rir sonoro
Do que a voz das toutinegras!...
Quando eu for a enterrar,
Nalgum dia, ao por do Sol,
Quero levar por lençol
Só a luz do teu olhar!
..........................................
— Mas tu só vives cantando! — 
E ao vir da fonte com água,
Mais sentes que estou penando,
Mais te ris da minha magoa!
Ah! nunca eu tivesse o gosto
Que tive da vez primeira
Que te avistei, ao sol posto,
Debaixo desta amoreira!
 

CARTA ÀS ESTRELAS

Ninguém soletra mais vossos mistérios
Grandes letras da Noite! sem cessar...
Ó tecidos de luz! rios etéreos,
Olhos azuis que amoleceis o Mar!...
O que fazeis dispersas pelo ar?!...
E há que tempos há já, fogos sidéreos,
Que ides assim como uns brandões funéreos
Que levais o Deus Padre a sepultar?!
Há que tempos, dizei! — Há muitos anos?...
E, com tudo, astros santos, desumanos,
A vossa luz é sempre clara e igual!
Há muito, que sois bons, castos, brilhantes!...
— Mas, também... ó cruéis! sempre distantes...
Como dos nossos braços o Ideal!
 

NA FOLHA DE UM LIVRO

Uma é a forma ideal do triste anjo vencido,
— A outra, a doce luz diáfana da manhã!
E entre elas chora e diz meu coração perdido:
— Em mim vencerá Deus, ou ganhará Satã!?
 

OS BRILHANTES
Não há mulher mais pálida e mais fria,
E o seu olhar azul vago e sereno
Faz como o efeito dum luar ameno
Na sua tez que é mórbida e macia.
Como Levana... esta mulher sombria
Traz a Morte cruel ao seu aceno,
O Suicídio e a Dor!... Lembra do Reno
Um conto, à luz crepuscular do dia.
Por isso eu nunca invejo os seus amantes!
— E em quanto ontem, gabavam seus brilhantes,
No teatro, com vistas fascinadas...
Tortura das visões... incompreensíveis!
Em vez deles, cri ver brilhar — horríveis
E verdadeiras lágrimas geladas!


O ASTRÓLOGO

Quem tem ouvidos que ouça.
Quem tem ouvidos que ouça, e o velho mundo
Que o aprenda de cor, pois que o que digo
É fruto dum estudo egrégio e fundo
Como a ciência dum Caldeu antigo!
A Terra há muito que é um charco imundo,
Vencida eternamente do Inimigo,
E há muito lhe prevejo um fim profundo,
E um terrível e trágico castigo!
Ora, ontem à noite, fui a um monte
Muito alto — e eis que avisto no horizonte
Dez signos, como em longa procissão...
E esses signos, a mim que sou vidente,
Tinham formas de letras, claramente,
— E nessas letras li DESTRUIÇÃO.
 


QUARTA PARTE
MISTICISMO
 
DEDICATÓRIA
Este livro é dos poetas
E mais de vós — pombas minhas!
— Podeis-me ler, violetas!
— Podeis-me ler, andorinhas!
 

OS DEUSES MORTOS
(À memória de J. M. Fernandes)
Parce diis

Eu nunca os insultei!... Se estão enfim vencidos
Silêncio! Cubra luto a natureza inteira!
Nuvens dilacerai os pálidos vestidos!
Verte gotas de sangue, ó flor da laranjeira!
Onde estais, onde estais! — Extática palmeira,
Viste acaso passar os grandes foragidos?
Onde estão Zeus Jesus?! Velhos cedros erguidos!
Nuvens, ventos e mar, guardai sua poeira!
Deixai-os descansar! — Luzentes mariposas,
Cuidado! não piqueis o coração das rosas!
Lavrador cava a Terra, a Terra, devagar!...
Silêncio! Orfeu, Jesus, dormem no seu mistério!
— A Natureza é toda um vasto cemitério!
Eu nunca os insultei! — Deixai-os repousar!
 

DEBAIXO DAS ERVAS

Pudesse ir eu contigo que me encantas
Como um vinho, no pó da terra dura,
Dormir ambos na mesma sepultura,
Entre os braços das ervas e das plantas?
Dormir no mesmo leito, e a mesma cova
Sentir os nossos pálidos abraços,
De noite, quando branca nos espaços,
Nas ervas desmaiasse a lua nova.
E aquelas tristes coisas que disseram
Os meus olhos nos teus, adormecidos,
Dizê-las outra vez, já confundidos
Na poeira daqueles que morreram.
Sentir, meu bem, de novo, as tuas tranças,
Com que tu tantas vezes me vestiste,
Enlaçarem-me ainda, à hora triste,
Em que os astros reluzem como lanças.
E entre as ervas da terra, e os acres cheiros
Dos ciprestes, dizer as coisas mil
Que dizíamos, ó triste! quando abril
Fazia colorir os teus canteiros.
E debruçada estavas à janela
Nas horas religiosas do Poente,
Como a mãe que ansiosa e docemente,
Espreita no horizonte a amada vela.
E quando íamos depois as nossas magoas
Contarmos, pelo espesso das folhagens,
Cabelos desmanchados nas aragens,
E entre as vozes das folhas e das águas.
E todas essas coisas que me dizes,
Quando estás debruçada na costura,
E que inda nunca ouviu a terra dura,
E que chorar fariam as raízes!
E eu quisera que o lenho do cipreste,
— Marco escuro da terra que nos come!
Enlaçado tivesse o nosso nome,
Como um lenço bordado que me deste!
.......................................... 
Pudesse ir eu contigo, que me encantas
Como um vinho, no pó da terra dura,
Dormir ambos na mesma sepultura,
Entre os braços das ervas e das plantas!
 

A UMA VOZ CELESTE
(A. C. de Carvalho)

Na noite que passou
O Cristo no Calvário,
Um rouxinol cantou
Sobre a Cruz, solitário.
Os trigueiros soldados,
E os lírios de Salém
Perguntavam pasmados
— Que voz canta tão bem?
Como sentindo os males
Das suas próprias penas
Vergavam-se nos cálix
Chorando as açucenas.
Choravam os caminhos,
Os dados, os cilícios,
A grinalda de espinhos,
E a esponja dos suplícios.
Choravam os sem luz,
E os rijos peitos bravos,
— Começavam na cruz
A vacilar os cravos.
Pelo tranquilo espaço
Paravam as estrelas,
E o vagaroso passo
As mudas sentinelas.
E os peitos desumanos
Ressentiam mudanças;
— Deixavam os Romanos
Escorregar as lanças.
E a noite ali ficou...
Assim lembrando o Céu!
— Quando Jesus morreu,
Do lenho enfim voou.
Ora eu mulher! que creio.
Que a Vida sai das lousas,
Eu que nos astros leio
E adoro a alma das rosas!
Que sei que o que hoje existe
Foi nuvem, flor, cipreste...
E escuto essa voz triste
A tua voz celeste!
Eterno visionário,
E adorador do Sol...
Creio que no Calvário
— Cantaste, rouxinol!
 

À POMBA QUE VOOU

Foste-te, ó luz das solidões amenas!
Ó grandes olhos tristes, ideais!
— Partiste, casta pomba de alvas penas,
Em procura dos lúcidos pombais!
..........................................
Tu estás hoje entre as ervas e as poeiras,
Ou cheia de celestes claridades!
Ó doce irmã das rolas companheiras!
Por ti ouço chorar as laranjeiras!
E de luto vestirem as saudades!
Ah! quantas vezes, neste mar de escolhos,
Contemplando o azul duro e sem fim...
E os pés ensanguentados nos abrolhos,
Eu nas estrelas creio ver teus olhos
Que estão chorando lágrimas por mim!
Teu corpo está talvez, dilacerado
Entre as plantas escuras e as raízes!...
E, ah! que vezes talvez, num ai cortado
Não me terá teu seio imaculado
Entre as ervas bradado — Não me pises!
Por isso vou curvado para o chão
Com medo de pisar-vos, tranças belas!
— E ah! quantos, como eu, também irão,
Correndo o mundo atrás duma ilusão,
Ou soletrando as místicas estrelas!
..........................................
Foste-te luz das solidões amenas!
Ó grandes olhos tristes divinais!...
— Partiste, casta pomba de alvas penas
Em procura dos lúcidos pombais!


TRISTÍSSIMA

Num país longe, secreto,
Lendária ilha afastada,
Jaz todo o dia sentada
Num trono de marmor preto.
No seu palácio esculpido
Não entram constelações;
Os tetos dos seus salões
São todos de ouro polido!
Nas largas escadarias
Sobem vassalos ao cento,
De noite soluça o vento
Naquelas tapeçarias.
E pelas largas janelas
Fechadas, sempre corridas,
Há flores desconhecidas
Que não olham as estrelas.
Na destra segura um cálix,
— Cálix da Dor e da Magoa!
Onde está contida a água
E o sangue dos nossos males!
Pelas florestas sozinhas
Escuras, sem rouxinóis,
Erram chorando os Heróis,
E as desgraçadas Rainhas.
Seguida, à noite, de servas,
Caminha, em cortejo mudo,
Rojando o negro veludo
De seu cabelo nas ervas.
Somente ao vê-la passar
Ficam as almas surpresas;
— Há todo um mar de tristezas
No abismo do seu olhar!
 

IDÍLIO TRISTE

(A Léon de La Vega)
Olha! sinto-me exausto
Pomba da minha vida!
Eu serei o teu Fausto,
Sê minha Margarida!
Deixa que o alegre ria
Alma que me estremeces!
Que ruja fora a orgia
Os prantos, as quermesses!
Vamos a colher rosas,
Rola dos meus carinhos!
Pelos brancos caminhos
Nas noites luminosas!
Sob esta curva azul
Amemos, bem amada!
Na torre levantada
Que gema o rei de Tule!
Que o mundo chore e gema
Enquanto o Tempo dura!
Da nossa noite escura
Façamos um poema!
Deixa na roca os linhos
Pomba dos meus amores!
E aos sábios e aos doutores
Os livros e os cadinhos!
E aos tristes, aos ascetas
As grutas, os cilícios,
E a esponja dos suplícios
Aos lábios dos poetas!
Nas noites estreladas,
Amemos solitários!
Deixemos as estradas
Que levam aos Calvários!
Olha! sinto-me exausto
Pomba da minha vida!
Eu serei o teu Fausto,
Sê minha Margarida!
 

A UM LÍRIO
(A. A.)

Conta como é que existe
A tua vida à luz,
Lírio mais casto e triste
Que os olhos de Jesus!
Quando nasceste, flor?
Quem te arrancou do chão?
Gerou-te oculto amor
De morto coração?
Ó lírio delicado!
Ó lírio branco e fino!
Talvez fosses criado
Num seio feminino!
Escuta ó lírio amado!
A flor confunde os sábios...
Talvez fosses os lábios
Daquela que hei amado!...
Talvez fosses seus dedos!
Seus olhos inocentes...
— Conta-me os grãos segredos...
Profundos das sementes!...
O morto que se enterra
Leva as paixões secretas?...
Dize, se sob a terra,
Se amam as violetas!
Ouviste aves chorosas,
E o mar nos seus delírios?
— Quem é que pinta as rosas?
— Quem é que veste os lírios?
Já viste alguma estrela?
Viste uma lua nova!
— Abriste numa cela?
— Floriste numa cova?
O que é que mais desejas
De tudo quanto existe?
O amor? — O que é que invejas
Bom lírio branco e triste?!
Ó vil sorte mesquinha!
E eterno desejar!
— Invejas a andorinha
Que voa pelo ar!?
 

A UMA ANDORINHA

Nas brisas da tardinha
Para teu voo um pouco;
Ouve um poeta, um louco,
— Escuta-me andorinha!
Um pouco deixa os ninhos;
Atende as vãs loucuras,
— Também nas sepulturas
Voam os passarinhos!
Nem sempre o azul etéreo
Quais flechas vão cortando,
— Também riem, voando,
No chão do cemitério!
Lavam os pés rosados
Nas urnas funerais;
— Tu, mesmo, nos telhados
Moras das catedrais!
Não fujas dum poeta,
Que há nuvens mais sombrias!
— Tu já moraste uns dias
No nicho dum profeta!
Por tanto, tu que adoras
A primavera e o Sul,
Dize-me,— no alto azul,
Quem faz sempre as Auroras!
Quem dá tintas vermelhas
Ao Sol poente que arde?
— Quem coze as nuvens velhas,
E acende o astro da tarde?
Os campos dão renovos
Também, noutras esferas?
— Quem faz as primaveras?
— Quem faz os astros novos?
Quem faz a ave-flor?
Quem tinge o temporal?
— Quem faz a pomba, cor
Do lírio virginal?
No Sol há violetas,
E rios, campos, vinhas?
— Dize, se nos planetas?...
Também há andorinhas...
E tu que mais almejas?
Tens sol, astros e ninhos — 
Tens tudo o que desejas...
— Luz, grãos, pelos caminhos!
Ó triste ambicionar!
Ó santo e vão delírio!
— Talvez, ó filha do Ar
Quisesses ser um lírio!
 

ENTRE OS ARVOREDOS
Calma silentia lunai.
 (Virgílio)

Recordas-te essa noite, ó bela desgostosa!
Que nós andamos sós e tristes divagando,
Entre as folhas e o vento, o vento leve e brando.
Aos lívidos clarões da lua silenciosa?!...
Calados e através da grande sombra escura
Dos cerrados pinhais e augustos castanheiros,
Como as almas leais e antigos companheiros,
Unidos a gemer a mesma desventura!
E eu sentia-te, ó grande e triste Abandonada!
Em meu seio verter as tuas fundas mágoas,
Ao ritmo trivial e nítido das águas,
E à alva e fina luz da hóstia levantada!
E andamos a gemer a nossa dor intensa,
E abrindo os corações, os lânguidos segredos,
Aos ais soltos no ar dos grandes arvoredos,
E às vastas aflições da natureza imensa!
Que dor assim será? — Que dor será igual!
Àquela imensa dor? ó pálida vencida!
Naquela natureza augusta e condoída,
E àquela branca luz, mais fria que um punhal!...
..........................................
Ah! nunca mais virá, ó branca desgostosa!
Aquela vez que nós andamos divagando,
Entre as folhas e o vento, o vento leve e brando.
Aos lívidos clarões da lua silenciosa!...
 

CONFISSÃO A UMA VIOLETA
Eu confesso-me a ti, doce flor delicada!
Recolhida, modesta, e sol da singeleza,
Das vezes que através da verde natureza
Fiz soar com orgulho a bulha do meu nada!
Em vez de amar a vida humilde, chã, calada,
Do sábio estoico e são, exemplo de inteireza,
Quantas vezes cuspi no Justo e na Beleza;
E cri-me o Fogo e a Luz da geração criada!
Orgulho! orgulho vão! Vaidade e mais vaidade!
Como disse o rei sábio e justo à claridade
Dos astros da Judeia e ao giro dos planetas!...
Feliz de quem como eu ri das Academias!
E estuda as novas leis e as grandes Teorias
Nas folhas feminis e meigas das violetas!
 

A SUA CÂMARA

No ar calado e bom da câmara fechada,
Como um ninho de amor, casto e silencioso,
Um grande cravo branco ergue o caule cheiroso,
Numa jarra de jaspe, antiga e cinzelada.
Voam aromas bons no ar tranquilo e mole;
Algumas flores vão morrer nas jarras finas,
— Ele sereno vê, nas rendas das cortinas,
Silencioso morrer na sua glória o Sol!
Todas morrem ao pé, só ele altivo é belo,
No seu vaso de jaspe, entre as demais existe,
— Como um rei infeliz num último castelo,
Com seu ar virginal e com seu modo triste!
Cheio de vida ainda, idílico, ideal,
Talvez lamente o amor, na sua jarra de água!
— Misteriosa flor! — que caprichosa magoa
O virá a pender na haste virginal?!
Talvez lamente o Sol — a luz vermelha viva?
O sol que vai morrer — o belo agonizante!
Talvez que chore a lua — a lua pensativa!
Que lhe venha lavar a alvura soluçante!
Quem foi a branca mão — olímpica, divina,
A mão macia, ideal — traidora — que o colheu?
Que o foi roubar à terra, um dia, e que o prendeu
Na fria solidão daquela jarra fina?
E foi roubar ao amor, aos cantos, às folhagens,
À bondade da luz— Às noites meigas belas,
Exilado do sol, e órfão das paisagens,
O cravo virginal — viúvo das estrelas?!
Misteriosa flor! a sua estranha magoa
A ninguém o dirá seu cálix pensativo,
E a morrer — morrerá, calado, firme, altivo,
E nobre como um rei, na sua jarra de água!
.......................................... 

Lá fora morre o sol, como um desgosto humano,
Voam aromas bons no ar quente e calado;
Vai-se esvaindo a luz, e triste, e sossegado,
Vê-se um jasmim morrer em cima de um piano.
Nas paredes estão, nas preciosas telas,
Pintados menestréis, pastoras e guitarras,
Debruçam-se os jasmins nas grades das janelas,
E os lírios, como uns ais, morrem nas finas jarras.
Tudo agoniza ao pé, naquela solidão!...
— Solidão de mulher distinta e perfumada!
Cuja pele é talvez mais fina que a pomada,
E as farinhas de Itália e as sedas do Industão!...
..........................................

Tudo agoniza ao pé,— só ele altivo e belo,
No seu vaso de jaspe entre as demais existe,
Como um rei infeliz num último castelo,
Com um ar virginal e com um modo triste!
E no entanto talvez a mística amorosa,
— A noiva a dona dele, oculta uma outra mágoa
No morto coração, mais morto que uma rosa,
E do que ele amanhã na sua jarra de água!
 

HORA MÍSTICA
Hour of love
 (Byron: Parisina.)

Do por do Sol àquela luz sagrada,
Eu perdia-me... ó hora doce e breve!
Meu peito junto ao seu colo de neve,— 
— Numa contemplação vaga e elevada!
Nossas almas se erguiam, como deve
Erguer-se uma alma à Luz afortunada;
Do mar se ouvia a grande voz chorada;
— Palpitavam as pombas no ar leve!
Eu então perguntei-lhe, baixo e brando: — 
Em que mundos de luz é que caminhas?...
Que torre está tua alma arquitetando?...
— Ela travando as suas mãos das minhas,
Me disse, ingênua, então: — Estou cismando
No que dirão, no ar, as andorinhas?! 


JUNTO DO MAR

Que vezes viajando no Passado,!
— Nas horas das torturas das Quimeras — 
— Meu bem! — cismo nas límpidas esferas,— 
Junto do verde mar lento e chorado!
Nesses astros talvez já habitamos,
— Noutros tempos mais santos e felizes!
E, ó nuvens! bem sabeis se entre as raízes
Dos mortos, para os soes nos elevamos!
Talvez que ali também fomos romeiros
Sedentos do Ideal — sem o encontrar!
— Melhor vós o sabeis, castos luzeiros!
Ó chorosa e sonora alma do Mar!
Talvez ali também — riste, amorosa...
Cantando entre as torturas assassinas!...
Como as rosas que tapam duma lousa
As vãs escuras inscrições latinas!
Talvez tão bem choraste nos caminhos...
E alegre riste, às virações contrárias,
Como, ó meu bem, ao sol, os passarinhos
Riem dentro das urnas funerárias!
Talvez! quiçá! Talvez! — Ó Mar eterno!
Tu que és sonoro e minas os rochedos,
Duro sombrio, esguedelhado e terno...
Como a rabeca cheia de segredos!...
Tu que sabes de antigas desventuras,
E que sabes chorar!... que és musical!...
Dize se encontras mais amargo sal
Do que os prantos das nossas amarguras!
E contudo que és tu... mar lastimoso!
Guardando como o avaro um vão tesouro!...
Sempre vago, cruel, misterioso...
— Senão dum mundo extinto um longo choro!
E o que são essas vozes laceradas,
E, ó gigante! essas vastas convulsões,
Senão... senão... mortais lamentações
De cidades e igrejas sepultadas!
Que blasfêmias! que choro vem do fundo
Do teu peito tão largo e descontente!
— São talvez das galés do Novo Mundo,
Ou dos ricos navios do Oriente!
Quem tem na voz suspiros mais convulsos,
E mais duros e lúgubres lamentos
Do que à tormenta, e aos desgrenhados ventos...
— O mar cheio de medos e soluços?!...
E quem como ele assim nos dá confortos...
Ou bálsamos leais, desconhecidos,
Alento e amor aos corações vencidos,
— E quem mais e melhor fala dos mortos!
.......................................... 
Por isso eu irei só — ó Mar eterno!
Triste e só, escutar-te entre os rochedos...
Duro, sombrio, esguedelhado e terno,
— Como a Harmonia cheia de segredos!...
 

DOENTE

Pudesse eu junto a mim — eternamente! — 
Sentir roçar, meu bem! o teu vestido
E ó ventura! o teu bafo enfebrecido,
Teu doce olhar e o teu sorrir doente!
Caia do monte o cedro! a grande mole!
Que feneça a erva prata lá no vale — 
Que me importa! — e qual é meu grande mal
Que morra o cedro, e a planta sístole!...
Mas tu, meu bem! mais bela que a erva prata
Banhada pelo orvalho transparente...
Não quero que te vás de mim, ingrata,
— Nem teu olhar, nem teu sorrir doente!
Mais depressa em mim voe ave agoureira...
E que o sepulcro avaro me abra os braços,
Não veja erva crescer após meus passos,
— E me maldiga a flor da laranjeira!
Mais depressa em meu leito morra o sono,
Não brilhem mais no céu constelações,
Que as folhagens me lancem maldições,
— Nem hajam frutos para mim no outono!...
Mais depressa que a vinha que conforta
Me negue a sua sombra! — Noite e dia
Não luza para mim luz de Alegria,
— E que a Tristeza durma à minha porta!...
Porque tu, se te vais — no teu lençol
Levarás, doce riso dolorido!...
Como uns fios pegados num vestido,
Todos os raios de ouro do meu Sol!
E, em tudo, julgarei ver teu vestido,
No mar, na estrela azul, nos céus; em tudo;
— E quando, acaso, a fronte erguer do estudo
Faltar-me-á o teu riso dolorido!
Porque tu tens disperso em meu caminho
O teu sorriso triste... ah! triste, e puro...
— E abrigarei depois... um ódio escuro,
Mais rude do que um cardo, ou que um espinho!
E não mais, nada me há de consolar!...
Nem a Estrela da tarde mensageira,
Nem o Amor, nem a flor da laranjeira,
— Nem a sombria música do Mar!...
.......................................... 
Ah! pudesse eu, meu bem! o teu vestido
Sentir roçar por mim — eternamente!
E, ó ventura! teu bafo enfebrecido,
Teu doce olhar e o teu sorrir doente!...
 

NUM CEMITÉRIO
Surgite mortui.
 (Apocalypso)
Invideo quia requiescunt.

 (Palavras de Lutero no cemitério de Wormo)
Mortos! eu vos invejo! — As frias lajens
Cobrem-vos, hoje, os corações desfeitos!...
As brancas pombas voam nesses leitos...
E as meigas aves gemem nas folhagens!
A Natureza enflora os vis defeitos...
Ri nas estátuas, urnas, nas imagens!...
E, aí enfim, contentes, satisfeitos,
Vós descansais das lúgubres viagens!...
Mas contudo, no inverno, à triste Morte,
Talvez seja mais duro o vento norte!...
E vos gele inda mais os ossos nus!...
Enquanto nós — ingratos! descuidados! — 
Vos deixamos chorar, abandonados,
A poeira dos mortos feita luz!
 

DESPEDIDA AO SOL

Adeus, adeus, ó Sol! grão moribundo
Tão amado dos místicos amantes!
Vai dourando inda os ninhos e os mirantes
E os sinceirais, o Mar, o velho mundo!
Vai! vai! ó astro lírico! no fundo
Das águas apagar-te!... Os teus instantes
São curtos, coração largo e profundo!
Mas da minha amargura semelhantes!
E, no entanto, astro de fogo, astro tirano!
Se a tua chaga é funda, no Oceano
Todo o teu sangue ali podes lavar!...
Mas eu recalco, ó Sol! meu mal no seio...
Peja-me o pranto e a magoa!... e até receio
Que os ais da minha dor vibrem no ar!
 

QUINTA PARTE
HUMORISMO
 
ARANHA

Num sonoro teatro antigo da Alemanha,
Dum violino aos ais, banhada de luz viva,
Surgia dum covil uma grotesca aranha,
Dos banquetes do Som habitual conviva.
O ser sombrio e obscuro, ó meu amor! não priva
Da adoração do Belo, a adoração estranha!
E assim se embriagava a escura pensativa
Da lírica emoção que nossa alma banha!
Mataram-na uma vez. Não mais a pobre amante
Da Música, surgiu àquela luz brilhante;
Foi-lhe o velho teatro a sua sepultura...
Assim preso também pela atração que choro,
— Não te rias cruel! Ó ídolo que imploro!...
Tu és o Violino e eu sou a aranha escura!...
 

NOVA BALADA DO REI DE TULE

Num país nada vizinho...
Em Tule até mui distante,
Houve outrora um rei farsante,
Um rei amigo de vinho.
Quando sua amante fiel
Mimosa e cheia de graça,
Morreu, deixou-lhe uma taça
Que semelhava um tonel.
Era tamanha a grandeza
Da taça que nada iguala!
— Ficava sempre ao esgotá-la,
El-rei debaixo da mesa.
Quase sempre ao lusco-fusco,
De noite, até horas mortas,
Folgava, as pernas já tortas,
Este rei velho e patusco!
Em noite de agreste vento,
Na sua mais alta torre,
Pensando em que tudo morre,
Tratou do seu testamento.
A sua amizade cega
Legava a todos dinheiro,
E a seu filho e seu herdeiro
Seu reino, seu povo... e a adega.
Da sua amizade em prova
A todos dava uma graça,
Só aquela enorme taça
Levava o rei para a cova!
Um dia, os altos barões,
Fez juntar para uma orgia,
Numa sala, onde dormia
As suas indigestões.
E ali, depois de libar...
Passados curtos momentos,
Começou a ver, aos ventos,
Os seus castelos dançar.
Assoma, trocando o pé,
De taça em punho, à janela,
Mas nisto, tropeça... e ela
Vai levada da maré...
E afunda-se... mas tal revés
Tomba o rei morto de magoa!
— Era esta a primeira vez
Que a taça se enchia de água!
 

FANTASIA DE UM ABORRECIDO

Eu vivo só das multidões distante,
E tenho um tom solene grave e enfático,
Amo Flaubert, Gostavo Droz e Dante,
Sou misantropo, histérico e linfático.
Sou fantástico, altivo, e caprichoso,
E tenho uns paradoxos meus protervos...
E entre eles conto um livro volumoso...
Em que explico o Remorso pelos nervos.
..........................................
Às vezes vou pensando, ó tranças negras!
Quebrados, sensuais olhos celestes!
Que hás de ainda, entre as plantas verde-negras,
Morar debaixo, um dia, dos ciprestes!
E nesses braços lisos, indolentes,
Hão de os vermes travar a escura guerra,
Hão de infundir pavor, inda, esses dentes,
E de beijos fartar-te a imunda terra!
Teu rir sem lábios meterá assombros
— Ó tu que fazes rastejar as liras!
E serão ossos nus teus lisos ombros,
Costumados às leves caxemiras.
Que vezes cismo, assim quando tu passas,
E eu estou fumando às portas dos cafés,
E que insultas as lepras e as desgraças,
Coberta de veludos e plaquets!
E eu penso ó corpo escultural, perfeito!
Ó corpo de Friné cheio de graça!
Que hás de ainda ser pútrido e desfeito,
E tomar-te azotato de potassa!
E não terás então, ó minha impura!
Serenadas debaixo das janelas,
E escondida no pó da sepultura
Terás medo dos olhos das estrelas!
Ontem, rojando estofos ruidosos,
Inclinada e indolente sobre o braço,
Contemplavas com olhos cobiçosos,
As contorções e saltos dum palhaço.
E eu sufocando dentro os meus anelos,
Soluçava de amor, ó crua filha,
E exaltava-me o olor dos teus cabelos,
Onde escorrem perfumes de Manilha.
Mas eu hei de vingar-me, ó tranças negras!
Ó cansados, mortais olhos celestes!
Quando fores, nas plantas verde negras,
Morar debaixo, um dia, dos ciprestes!
Quando morreres, meu botão dum dia!
Açucena que pus no peito o abrir!
Farei da tua tez fina e macia
Um prosaico barrete de dormir!
Farei da tua trança azevichada
Um cache-nez, por causa dos catarros
E será no teu crânio, ó minha amada!
Que eu deitarei as pontas dos cigarros!
Dessa carne farei abertas rosas
Que enganarão as brancas borboletas!
E teus olhos, em jarras preciosas,
Olharão, como duas violetas.
Farei da boca um cravo, que no fraque
Porei sempre que saia de passeio...
E mandarei fazer um almanaque
Na pele encadernado do teu seio!
Forrarei as paredes do meu quarto
Com tuas longas cartas de namoro...
E ali passearei de ilusões farto,
Como o avaro no meio do seu ouro!
E então tu serás minha, ó tranças negras!
Quebrados, sensuais olhos celestes!
Quando fores, nas plantas verdes negras,
Morar debaixo, um dia, dos ciprestes!
 

EL DESDICHADO

Ninguém pode dizer que sofro ou tenho;
Eu não amo a princesa da Golconda,
Nem da prisão livrá-la é meu empenho,
Qual paladim da Távola Redonda.
E sinto-me ir minando; um mal estranho
Que ninguém sabe, e vista alguma sonda,
Me mata lentamente, como um lenho
Que vai levando, mar em fora, a onda.
Todas as tardes fujo ao sol poente;
Recolho cedo a casa, e durmo quente,
E a Medicina já me desengana...
E o meu mal é de amor, e a minha amada...
Uma Chinesa ideal, que vi pintada
Numa taça de chá de porcelana!
 

A VALENTINA DE LUCENA
Eu também já em tempos não distantes,
Fiz versos sensuais e namorados,
Aos ocasos de luz ensanguentados,
E à meiga e boa lua dos amantes.
E escrevi pelos álbuns elegantes
Idílios em papéis acetinados,
E, como a luz dos ponches inflamados,
Fiz odes ideais e extravagantes.
Mas hoje enfim mudei, e inda há bem pouco,
A diva por quem choro e vivo louco,
— A flor, a flor ideal das maravilhas...
A minha deusa de cabelo preto...
Pediu-me, rindo, a graça dum soneto,
— E eu mandei-lhe uma caixa de pastilhas! 


FANTASIAS

Tenho, às vezes, desejos delirantes
De a todos te roubar, meu lírio amado!
E levar-te, em um voo arrebatado,
Aos países fantásticos, distantes.
À Índia, China ou o Iran, e os meus instantes
Passá-los a teus pés, grave e encruzado,
Num tapete chinês, aveludado,
Com flores ideais e extravagantes.
Nossa vida seria, ó pomba minha!
Mais leve do que a asa da andorinha...
E, nas horas calmosas, eu e tu...
Olhando o mar sereno, o mar unido,
Comeríamos os dois arroz cosido...
Embalados num junco de bambu!
 

A BIOGRAFIA DE SATÃ
(Fragmento)

Eu vou contar a grande lenda escura
Do fulminado trágico da Luz!
Seu antigo esplendor e sorte dura
Quando andava entre os povos da Escritura,
E comprava os juízes de Jesus.
Ele é o Velho Mal, o Orgulho, o Enfado,
E somente Satã é um pseudônimo;
É o autor do Remorso e do Pecado,
O morcego da Bíblia, e o cão danado
Que espancava de noite São Jerônimo.
No tempo em que era belo, grande e forte,
Fez a guerra dos astros contra Deus;
Tem-lhe sido inconstante e varia a sorte!
— Andava roto e pobre por Frankfurt
Nos bairros tortuosos dos Judeus.
Ó anjo expulso, triste e escarnecido,
Que foste mais fulgente do que o dia!
Deus adorado em Delfos e em Gnido!
Ah quem mais do que tu terá sofrido,
E teve essa ideal melancolia!
Já Vier contra ti perdendo o tino,
Fez dos seus crus panfletos um açoite;
Fez-te sonetos, lúbricos o Aretino,
E S. Thomaz contou o teu destino,
E as aventuras célebres da noite.
Quem dirá os espinhos que cingiste!
Quem pesará teu cálix de agonias!
E quantos longos séculos carpiste
Aquela luz que cai magoada e triste,
Ó grão crucificado de ironias!
Eu sei que hoje estás morto ou retirado,
Ó corvo escuro e mau do firmamento!
E que andavas no mundo envergonhado,
Já doentio e calvo, e desdentado,
E que era o teu catarro a voz do vento!
Tu foste sábio, confessor e médico
Nos tempos, legendários, medievais...
Tu eras visionário, vão, profético...
E o mocho que adejava escuro e tétrico
Nos conventos, igrejas, catedrais...
Eu sei que foste tu que, um dia, impuro,
Tentaste a castidade de Rachel!
Em Delfos desvendavas o futuro...
E cheio dum pavor trágico e escuro,
Deixaste envenenar-te Daniel.
Em Sodoma, na noite derradeira,
Tentas as filhas sensuais de Ló!
Fazes de Roma toda uma fogueira!...
E és tu mesmo que escolhes a figueira
A Judas, natural de Iscariote.
Foi ele que abrasou na carne, um dia,
A tribo sensual de Benjamin!
Pregou na catedral de Alexandria;
Era pai dum senhor de Normandia...
Foi amigo de Nero e de Caim.
Ia tentar o asceta à sua cela
Nos claustros escuros do Ocidente; — 
Aos Magos escondeu nos céus a Estrela...
E andava disfarçado em sentinela
Guardando o Justo, o Bom, e o Resplendente.
Ao homem tinha uns ódios velhos, trágicos...
E era ele, o que andava entre as pelejas!...
Corrompeu os conselhos areopágicos;
E fazia roubar pelos seus mágicos
As hóstias consagradas nas igrejas.
Fazia distrair a São Clemente
Com a bulha invisível de corcéis;
E era ele, nas horas do poente,
Quem apagava as luzes, de repente,
Quando oravam nos templos os fieis.
Tomava, às vezes ordens e a tonsura...
E benzia as prostradas povoações; — 
Fazia a voz então austera e dura,
Explicava os segredos da Escritura,
E cantava entre as lentas procissões...
Dava num tom dogmático uma ideia,
E vinha discutir com São Tomás;
Iniciava os sábios da Caldeia,
E nos bíblicos tempos da Judeia
Andava a intrigar Cristo com Caifás.
Tem no rosto o descor dum fulminado;
— Era mulher nas lendas monacais;
Outras vezes gigante e corcovado,
E vagava no mundo disfarçado,
Como os deuses nas formas de animais.
Nas regiões serenas, luminosas,
Encontram-se inda os seus lúcidos rastros?...
Ó constelações felizes, piedosas...
Inda, às noites, chorais silenciosas
A grande luta bíblica dos astros?...
Nasceu nas doces, puras regiões?...
— Ah quem onde dirá nasceu Satã?!...
— Nasceu entre as demais constelações?
— Comandava as flamantes legiões?...
E seria seu pai Leviatã?...
Nesse tempo do exílio as penas mestas
Júpiter não sofrera inda proscrito;
Ápis não inventara suas festas...
Não errava inda Pan pelas florestas,
E não ladrava Anúbis no Egito.
Para aqui, neste ponto, a humana vista!...
— Quem sabe se do velho Caos nasceu?...
Só quando contra Deus a lança enrista,
É que segundo, o eleito, o Evangelista...
Não se acha mais o seu lugar no Céu?...
 

ÁGUA FURTADA DE UM ORIGINAL
(A Fernandes Costa)

Eu moro altivo é só numa trapeira,
Onde as penas das pombas deixam rastros;
Exposta todo o dia à soalheira...
E onde passa dormindo a vida inteira,
Nas vizinhanças límpidas dos astros!
Como na era feliz das serenadas,
As graves castelãs nos seus balcões,
E góticas varandas recostadas...
— Vejo, embaixo, passar as cavalgadas,
Os enterros e as lentas procissões!...
Professo o culto só do far niente
Deitado, todo o dia, num colchão...
Na posição imóvel dum vidente...
Fumando o meu cachimbo, eternamente,
Com os tranquilos modos dum sultão.
Ó filhas do spleen malfadadas
Vãs poesias sem razão nem senso!
Ó sebentas do estudo empoeiradas,
E tristes quais sultanas desprezadas,
A quem o grão senhor não deita o lenço!...
E vós teias de aranhas inquietos
Tecidos, onde o sol brilha e seduz!...
Ó Musas que inspirais os meus sonetos!
Qual foi o deus, ó astros dos meus tetos!
Que vos criou ao seu fiat lux!?
Sois vós que me escondeis, qual caracol,
E servis de cortina e bambinelas...
Quando eu declamo envolto num lençol,
E as vizinhas que estão tomando o Sol
A espreitar-me se põe entre as janelas!...
Ali tenho um cachimbo de cigano
Sobre uns versos que fiz a uma Felícia...
E onde pus um retrato de Trajano,
Dentro dum casacão diluviano,
Sofrendo como César de calvícia!
Nas paredes estão frases simbólicas,
E aqui e ali borrados a carvão:
Uma Vênus com ar de grandes cólicas,
Um santo dumas barbas apostólicas,
E dois frades jogando o bofetão!
Mais ao pé, tenho as cartas de namoro,
E uma Bíblia mui velha onde no fim...
Se pinta o Padre Eterno, em nuvens de ouro...
Tendo num grande pé chinelo mouro,
E vestido com ar de mandarim!...
Defronte ri sinistra uma caveira,
A que pus uns bigodes com cortiça...
E dum truão a loura cabeleira...
E me acompanha a rir da vida inteira
Como um Marte do Papa ajuda à missa!
Ao lado mora-me um vizinho manco
Que faz dos sinos único regalo...
E goza da união dum saltimbanco,
Que anda pintado de vermelho e branco,
E toda a noite canta como um galo.
Defronte uma vizinha costureira,
Doce lírio que treme a um vento vario...
Que canta a manhã toda e a tarde inteira...
E tem deixado cá para a trapeira
Duas vezes fugir o seu canário!...
Toda a noite o sineiro tem secretos
Desejos de espreitar como é que eu passo!...
Imita o som dos sinos indiscretos...
E canta, numa voz que abala os tetos,
Ao som das cambalhotas do palhaço!
E assim eu vivo só numa trapeira...
Onde as penas das pombas deixam rastros...
Exposta todo o dia à soalheira,
E onde passo dormindo a vida inteira,
Nas vizinhanças límpidas dos astros!
 

BILHETE DE UM ESTUDANTE

Daquele esguio telhado
— Onde tu sabes que eu moro,
Eu acho os astros dum ouro
Já bastante mareado!
Nenhum deles vale a trança
Dos teus cabelos compridos!
Por isso meu peito lança
Ao teu telhado gemidos!
Se eu fosse Deus, minha amada!
— Dar-te-ia Satã me esfole! — 
Uma cartinha fechada,
Servindo de lacre o Sol.
Mas sou um prédio em ruínas,
— Não tenho nada comigo,
Sou um deus feito mendigo,
Que tomo o sol às esquinas.
Divago roto e contente!...
— Odeio um lente — e o Filinto!
E sob este azul clemente,
Triunfo alegre e faminto!
Meus deuses são Vico e Dante! — 
E gosto, no meu caminho,
Encontrar Minerva amante,
E as Musas cheias de vinho.
Como um barco sem amarra,
Navego, turgidas velas,
E desafio as estrelas,
À noite, sobre a guitarra!
E a cabelo louro ou preto — 
— Fragilidades do barro!
Envio sempre um soneto
Na mortalha dum cigarro!
Erro sem norte e sem tino!
— Ninguém me estende o seu braço!
Quer-me por força o destino
Comendador ou palhaço!
Postscritum
Desculpa-me, flor amada!
— Ó minha Musa divina!
Não fui ontem à escada,
Porque empenhei a batina!...
 

A LADY

Aquela que me tem agora, presa
Minha alma, meus sentidos, meus cuidados,
E me faz sonhar sonhos desmanchados,
É uma altiva, uma olímpica inglesa.
Nunca tipo ideal de mais pureza
Vi nos góticos quadros mais prezados,
Seus doces olhos castos e velados
Tem um ar, infinito, de tristeza.
Tem uns gestos de deusa que caminha,
Fronte grega, e um ar grande de Rainha;
E umas mãos, como as ladys de Van Dick.
Segue-a sempre um lacaio, e tristemente,
É por ela que eu morro, lentamente...
E ponho no bigode cósmétique.
 

DEDICATÓRIA DE UM LIVRO

A Ti, a quem, eu, sempre, em meus idílios,
 Sublimo, em frases ternas...
Te dedico, eu, vergonha dos Virgílios!
 Estas rimas modernas.
Para que, minha fama, inda hoje escura,
 A tua boca espalhe,
Ao lê-las, no intervalo da leitura
 Das obras de Terrail.
E as guardes na gaveta, onde costumas
 Guardar os teus velinos...
Entre os frascos, essências, mais as plumas,
 E os novos figurinos.
Que possam ocupar teus pensamentos
 Meus líricos ensaios!...
E, ó meu bem! lhes concedas os momentos
 Que dás aos teus lacaios
E vejas quanto em mim é aviltante
 O amor das formas tuas...
Que me faz baixo, vil e semelhante
 Aos histriões das ruas.
A Ti, que com teu rir sempre me animas
 A sagrar-te em meus motes,
Dedico eu estas modernas rimas
 Para os teus... papelotes.
 

HUMORISMO MÍSTICO
(Ao Dr. Tomás de Carvalho)

Quando eu morrer, se acaso inda prezares
Aquelas nossas digressões antigas
Ao verde campo, e as joviais cantigas
Da aldeia inda apagar os teus pesares...
Se, acaso, inda a giesta, o rosmaninho,
A laranjeira e o grande muro branco...
Te lembram... e te vais sentar no banco
Às tardes... junto às tílias do caminho!...
Se, acaso, aquele nome solitário
Que eu fui gravar um dia no pinheiro,
Vinha descendo o sol... como um guerreiro
Cheio de sangue... atrás do campanário...
Se, acaso, aquele nome o tronco duro
Inda o guardou fiel!... e a laranjeira!...
E eu não passei por este vale escuro
Como uma ave lúgubre e estrangeira!...
Se acaso inda te lembra desse, a quem
Tanta vez tu vestiste com as tranças!...
E à cova em que eu jazer vier alguém...
Sem ser as meigas pombas e as crianças!...
Se acaso aquele fogo em que te abrasas
Inda não se apagou!... nem o encanto!...
— Mais que a ideal palpitação das asas,
Ser-me-á doce, meu bem! ouvir teu pranto!
E nessa cova então bela e dourada,
— Como a nossa união antiga e calma!
Colhe tu uma flor branca e raiada...
— Que nessa flor te enviarei minha alma!
Toma cuidado nela... Ali se encerra
O que amaste!... e, ah! não vás como as mulheres
Curiosas de amor, lançando à terra
As folhas virginais dos malmequeres!...
Planta-a dentro dum vaso predileto...
Entre os outros, à luz... sobre a sacada...
E eu gozarei como um prazer secreto,
Sentindo a tua mão pequena e amada!...
Será esse o meu gozo derradeiro!...
O meu sol, meu azul, o meu espaço!...
E ao sentir-me regar pelo teu braço...
Lembrar-me-á o teu osculo primeiro...
Lembrar-me-á a giesta, o rosmaninho,
A laranjeira e o grade muro branco...
— E quando íamos falar no velho banco,
Às tardes... junto às tílias do caminho! 


O CANIBAL
(A C. Verde)

Tenho, defronte, uma vizinha loura
Cuja carne alva, fina e cetinosa,
Faz lembrar, quando à tarde o sol descora,
A cor humana pálida da rosa. — 
Não é frágil, nem débil, vaporosa,
Como as virgens mortais que a luz não doura,
Antes é forte, esbelta e a voz sonora,
— Tranquila e altivamente majestosa!
Nasceu formada assim para os amores;
E o modo com que rega as suas flores,
Na varanda, a sorrir, não tem rival!...
Ao vê-la os D. Juans baixam a fala!...
— Mas quanto a mim... quisera devorá-la...
Com a fome imbecil dum canibal!
 

ROMANTISMO

Quando ergue o transparente da janela,
Ou que o seu quarto se inundou de luz,
Eu amo vê-la sedutora e bela
— Longos cabelos sobre os ombros nus!
Oh como é bela! e como fico a olhar
Dos seus cabelos desatando a fita!...
Lembram-me as virgens que do austero ermita
Vinham as noites de orações tentar!
Oh como é bela! Tem na luz do olhar
Quais violetas quando as fecha o sono,
Não sei que doce ou lânguido abandono,
Não sei que triste que nos faz cismar!
Como eu a espreito, palpitante o seio,
Como eu a sigo nos seu gestos vários...
Naquele quarto, aquele ninho cheio
Da doce voz dos joviais canários!...
Como eu quisera ser nos sonhos dela
Um rei das lendas, o fatal D. Juan,
Pirata mouro em galeões à vela,
Com minaretes sob o céu do Iran!
Como eu quisera — e que vontade intensa! — 
Só pelo brilho dessa longa trança!
Ser cavaleiro de invencível lança,
Ou rei normando duma ilha imensa!
Como eu quisera, no seu pensamento,
Ser o rei bardo no rochedo duro,
E ambos fugindo, recortar o vento,
Sobre a garupa dum cavalo escuro!
Se me morresse, que comprido choro!...
Como vergara sob a cruz da Malta!
Como eu deitara a minha taça de ouro
Por causa dela duma torre alta!...
..........................................
E assim por ela fico preso, em quanto
O sol se esconde no ocidente triste,
Um cravo murcha numa jarra, a um canto,
— E as aves voam debicando o alpiste!


AVENTURAS

Tenho bem fundo, ainda, a sua imagem
Gravada na minha alma. Era alta e bela;
Tomei cognac muita vez com ela,
E aos circos a levei de carruagem.
Era nervosa e lírica. De pajem
Não faltavam Destins àquela Estrela,
Lembra-me ainda a cena da janela,
E aquela em que morria na estalagem.
Depois viajou muito. Foi a Espanha,
A França; Itália; Londres; a Alemanha;
Teve um naufrágio, junto de Deli.
Um corsário vendeu-a na Turquia;
— E hoje, aí, vive, enfim, e leva o dia
A enxotar as moscas dum kadi.
 

O INCONVENIENTE DE MATAR A MULHER

(A Alexandre Dumas Filho)
Matei-a!... Sobre o leito desmanchado
Morreu!... Mas o remorso me povoa!
E, agora, vago solitário e à toa,
Numa tristeza imensa despenhado!
Quando o punhal no arminho imaculado
Enterrei... Sempre a mágoa me corroa!
Ela chorou, gritando-me... Perdoa!
Morro!... e morreu!... Ó lírio ensanguentado!
E agora aonde irei! Horror! Tortura!...
O céu é o seu olhar! A noite escura
Lembra-me sempre o seu cabelo preto!...
E, ó suplício dos crimes verdadeiros! 
— Ouço, em chusma, gritarem-me os livreiros: 
Quando é que sai agora o seu folheto?...
 

UM BLASÉ
(A S. Nazaré)

Olhando o mundo assim com ar de enfado,
Casaco abotoado e de luneta,
Caminha com ar grave no Chiado,
Com ar de quem achou algum planeta.
Dizem que nutre uma paixão secreta
Este Musset dos homens ignorado,
E pulsa um coração esfacelado,
Ali debaixo da casaca preta.
A todos diz há muito andar blasé...
E fala em vazar copos de absinto,
Como quem bebe orchata ou capilé!...
Mas, Baco! ó céus! perdoem-me se minto!
Referem que uma noite, num café,
Acharam-no a libar do... vinho tinto!
 

O VELHO

Dentre os males cruéis da Humanidade,
A que os vis animais estão sujeitos,
Nenhum mais triste e cheio de defeitos...
Do que a dura e imbecil senilidade!
Nesta quadra de prantos e saudade,
Há velhos de alvas barbas sobre os peitos,
Que nos fazem lembrar, pelos seus jeitos,
Orangotangos de provecta idade.
E eu vi um velho assim!... Seus fortes braços...
Tinham como a rijeza dos bons aços...
E os seus gestos seriam dum guerreiro...
Se não fossem seus lábios já sem dentes,
Fazendo uns gestos cômicos, ridentes...
— Como um macaco em cima dum coqueiro!...

 
SEXTA PARTE
RUÍNAS

 
FARRAPOS
(A Oliveira Martins)

A ALMA
Estou lassa de ti, mundo em ruínas! — 
 Velho mundo cruel! nada me ensinas!
 De grande ao coração!
 Acaso estás tão gasto e gangrenado?!
A CARNE
— Ah como é bom, sob este azul arcado,
 Fazer a digestão!
A ALMA
Prefiro antes cerrar-me solitária
 A sós e o ideal — ó visionaria
 Grande ambição do bem!
 Como é que o vício afronta as violetas?!...
A CARNE
Que olhos tão sensuais! que tranças pretas
 Que aquela mulher tem? — 
A ALMA
Cansada de sofrer, em vão anseio
 O Justo, o Belo! — Ó terra, abre-me o seio!
 Bastante, enfim sofri!
 Estou lassa do Vício, e da Impostura!
A CARNE
Dizem que a terra é fria, a cova escura,
 E tudo acaba aí!
A ALMA
Estes tempos são vis, e sem virtude!
 Os corpos sem valor e sem saúde,
 Os peitos sem amor!
A CARNE
Mas há corpos mui brancos e perfeitos!
 Olhos cheios de luz— formosos peitos,
 Tranças de negra cor!...
Há noites de prazer pelo caminho!
 E abunda muito velho e forte vinho
 Sem ser falsificado!
Nem tudo é luto e dor! — Há muito riso!
 — E é mais quente que o antigo Paraíso
 O seio do Pecado!
A ALMA
A Morte, a Morte, é o termo das tristezas!
 É ali que enfim livres das torpezas!
 Se pode ser feliz!
A CARNE
Mas, mau grado essas nobres teorias,
 — O que passar por mim, findos dois dias,
 Tapará o nariz!
A ALMA
O que importa! — Melhor é que pereças!...
 Antes na terra ali tu apodreças...
 Do que eu, nestas paixões!...
A CARNE
Assim será talvez! Santas doutrinas!
 Mas as pernas gentis das dançarinas
 Têm grandes tentações!
A ALMA
Cálculos vãos! Contemplações pequenas!
 — Século vil de aspirações terrenas,
 Caim do Pensamento!
 Matas as crianças e bons sonhos puros!
A CARNE
Vou ver se ponho um capital a juros,
 Que dê cento por cento!
A ALMA
Ontem, foram levar à sepultura
 Uma santa mulher formosa e pura,
 Celeste, livre de erros!...
 Tão virginal!... Ninguém lhe orou na cova!
A CARNE
Mandei fazer uma casaca nova
 Para os grandes enterros! — 
A ALMA
Nada é mais triunfante que o Egoísmo,
 A ambição de brilhar, o vil cinismo,
 — E, neste carnaval...
Custa a encontrar um peito bom, sincero!...
A CARNE
Foram-se os castelões, o negro clero!
 — Saúde ao Capital!...
A ALMA
O Capital, bem sei! — A eterna história
 Do assassínio das honras e da glória,
 Do talento e da Idea!...
 Vil raça de tiranos e bandidos!...
A CARNE
Silêncio! que as paredes tem ouvidos!...
 — Cuidado na Cadeia!
A ALMA
Tem quebrantado as almas, as mais fortes!
 — Tirano algum já mais fez tantas mortes,
 Nem mais vis proscrições!
A CARNE
Talvez! Talvez! Mas fez, na Sociedade,
 Guardar a Lei... firmou a Propriedade,
 O juro e as inscrições!
A ALMA
É ele o protetor dos seus direitos!
 — Ó nobres corações, sem fel nos peitos,
 Simples castos e bons!
 Deixai-vos fuzilar por essas ruas...
 Que vos afoguem as crianças nuas,
 Sem sangue e sem cupons!
Deixai que o senhor goze — Ó Natureza!
 Curvai-vos, passa agora Sua Alteza
 Que o mundo assim dispôs!
 Calai-vos rouxinóis melodiosos!...
A CARNE
Não sei por quê! — São muito saborosos
 Cosidos com arroz!
A ALMA
Velho bezerro de ouro sobe ao trono!
 — Ó alma escura, ó terra, ó abandono!...
 A vil devassidão...
 Rói-vos mais que o bolor, mundo em farrapos!...
A CARNE
Se as meigas andorinhas mais os sapos
 Fizeram união!
A ALMA
É isso! O Capital faz maravilhas!
 Ele bem sabe às Mães comprar as filhas,
 Dá-las ao lupanar!
 Roubar as crenças, honras e a saúde!...
A CARNE
Não fazem mais, amantes da Virtude,
 Que dar-lhes de jantar!
A ALMA
Quantas tristes que a tísica asfixia...
 Sem pão, sem ar, cosendo noite e dia,
 Vão nas garras do açor...
 Cair cheias de opróbrios e martírios!...
A CARNE
— Obedecem os sapos mais os lírios
 À lei do eterno amor!
A ALMA
Isto está desabando!... Homens cruentos!
 Lançai ao mundo novos fundamentos!...
 Venha o Direito e a Lei!
 Venha armada, a Justiça vingadora,
 E que na grande ceifa... a espiga loura...
A CARNE
Que horror!... bem sei! bem sei!...
A ALMA
Visões, visões talvez! Mas preso e adoro
 Estes sonhos vermelhos e cor do ouro
 De luta, vida e Ação...
 Se não fosse inda a crença santa e ardente!...
A CARNE
— Deixa-me louca em paz— e enfim consente
 Que faça a digestão!...
 

AOS VENCIDOS

Quando é que enfim virá o claro dia,
— O dia glorioso e suspirado! — 
Que não corra mais sangue, esperdiçado
À luz do Sol que os mundos alumia?! — 
Que os vencidos não vejam a agonia
Do seu teto de colmo incendiado,
E se ouça retumbar o monte e o prado,
Ao tropel da veloz cavalaria?!
Quando é que isto será? — Quando na vida,
Virá ela, a doce hora prometida,
Hora cheia de amor, e desejada!...
Em que fatais Cains, fartos da guerra,
Nosso sangue não beba mais a terra...
— E nem mesmo a Justiça use de Espada?!
 

O MUNDO VELHO

Nas crises deste tempo desgraçado,
Quando nos pomos tristes a espalhar
Os olhos pela história do passado...
Quem não verá, contente ou consternado,
— Mundo velho que estás a desabar — ?!...
Sim tu estás a morrer, vil sócio antigo...
E Pai de nossos vícios e paixões!
Camarada dos crimes, torpe amigo...
— Morre, enfim, correrá no teu jazigo,
Em vez de vinho, o sangue das nações!
Deves morrer, provecto criminoso!
Tens vivido de mais, vil sensual!
Tu estás velho, cansado e desgostoso,
E, como um velho príncipe gotoso,
Ris, cruelmente, às sensações do mal.
— Que é feito do teu Deus, do teu Direito?
— Onde estão as visões dos teus profetas?
— Quem te deu esse orgulho satisfeito?
Moribundo Caifás, junto ao teu leito,
Morrem, debalde, os gritos dos poetas!
No tempo em que eras forte, foi teu braço
Que apunhalou os grandes ideais!...
Hoje estás gordo, sensual, devasso,
E andas, torpe a rir, como um palhaço,
Num círculo luzente de punhais.
Tu tens vendido os justos no mercado!
Crucificado o nobre, o belo e o bom!
Vais cair templo podre e abandonado,
Não à voz de Jesus ensanguentado,
— Mas ao verbo sinistro de Proudhon.
É ele que te arrasta ao teu jazigo,
Andas vergado à sua maldição!
Cambaleias ao fúnebre castigo,
E passas corcovado como o antigo,
Escravo, sob o lenho da paixão!
O seu grande clarão inda te inunda,
Fulminou-te, morcego, à sua luz!
Marcou-te a consciência rota e imunda,
E a chaga que te abriu é mais profunda
Que a do lado direito de Jesus!
Nenhum deus, já ninguém pode curá-la!
Hás de morrer, caído anfitrião;
É essa a dor eterna que te rala,
— Manda erguer o caixão na tua sala,
Prepara o funerário cantochão!
Tu tens quebrado os peitos mais robustos,
Tens dado aos santos o vinagre e o fel...
— Bom conviva de Nero e dos Procustos,
Andas ébrio do sangue de mil justos,
De mil sábios... de Cristo e de Rossel!
Tens talhado a teu modo a Sociedade!
E por isso o infeliz que te condene;
Ensanguentaste as mãos da Mocidade,
Nunca amaste o Direito ou a Equidade,
Matas Valès... Deixas viver Bazaine.
Tu viveste contente e agasalhado
Entre os brilhantes, e as visões do gás!
— Bem te importava a neve... e o ar gelado,
O Frio e a Fome... É tépido o Pecado!
Calvo amigo!... Venceu-te Satanás!
Tornaste o Templo casa de penhores,
— Mas ninguém ora a Deus nas catedrais!
E já cheios de lástimas e dores,
Nós lemos mais nas pétalas das flores
Do que em todas as folhas dos missais!
Morre, morre, venal, sem um gemido!
— Nem podes, levantar as mãos aos céus!
Há muito que ris disso, aborrecido?
Em nada creste, em nada! — Adeus vencido!
Morre aí como um cão! — Vencido, adeus!
Morre, morre, na luta, pois, soldado!
Corpo cheio de tédio e de bolor!
— Adeus, velho navio destroçado!
— Morre! antigo conviva do pecado!
— Faltou-te sempre Deus, a Lei e o Amor!
 

AOS VENCEDORES

Visto que tudo passa e as épicas memórias
Dos fortes, dos heróis, se vão cada vez mais,
Que tudo é luto e pó! ó vós que triunfais
Não turbeis a razão nos vinhos das vãs glórias!
Não ergais alto a taça, à hora dos gemidos,
Esquecidos talvez nos gozos, nos regalos;
E não façais jamais pastar vossos cavalos
Na erva que cobrir os ossos dos vencidos!
Não celebreis jamais as festas dos noivados,
Não encontreis na volta os lúgubres cortejos!
— E se amardes, olhai que ao som dos vossos beijos
Não respondam da praça os ais dos fuzilados!
Sim! — se venceste enfim, folgai todas as horas,
Mas deixai lastimar-se os órfãos, as amantes,
Nem façais, junto a nós, altivos, triunfantes,
Pelas ruas demais tinir vossas esporas!
Pois toda a glória é pó! toda a fortuna vã! — 
— E nós lassos enfim dos prantos dolorosos,
Regamos já demais a terra — ó gloriosos
Vencedores! talvez,— vencidos de amanhã!
 

A CANALHA

Eu vejo-a vir ao longe perseguida,
Como dum vento lívido varrida,
Cheia de febre, rota... muito além...
— Pelos caminhos ásperos da História — 
Enquanto os Reis e os Deuses entre a glória
 Não ouvem a ninguém!
Ela vem triste, só, silenciosa,
Tinta de sangue... pálida, orgulhosa,
Em farrapos, na fria escuridão...
Buscando o grande dia da batalha,
— É ela! É ela! A lívida Canalha!
 — Caim, é vosso irmão!
Eles lá vem famintos e sombrios,
Rotos, selvagens, abanando aos frios,
Sem leito e pão, descalços, seminus...
— Nada, jamais, sua carreira abranda!
Fizeram Roma, a Inglaterra e a Holanda,
 E andaram c'um Jesus!
São os tristes, os vis, os oprimidos,
— Em Roma são marcados e batidos,
Passam cheios de vastas aflições!...
Nem das mesas lhes deitam as migalhas!
Morrem sem nome, às vezes, nas batalhas,
 E andam nas sedições.
Veem varridos do lúgubre destino!
Em Roma e a velha Grécia erram, sem tino,
Nos tumultos, enterros, bacanais...
Nas praças e nos pórticos profundos...
E disputam, famintos e imundos,
 O lixo aos animais!
São os párias, os servos, os ilotas,
Vivem nas covas úmidas, ignotas,
Sem luz e ar; arrancam-lhes as mães,
— Passam curvados nas manhãs geladas,
E, depois de já mortos, nas calçadas,
 Devoram-nos os cães.
Eles veem de mui longe... veem da História,
Frios, sinistros, maus, como a memória,
Dos pesadelos trágicos e maus...
— Eu ouço os reis cantando em suas festas!
E eles, eles — maiores do que as florestas — 
 Chorarem nos degraus!
É uma antiga e lúgubre legenda!
— Vão, sempre, sempre sós, na sua senda,
Sublimes, quase heroicos, rotos, vis...
Cheios de fome, às luzes das lanternas,
Cantando sujas farsas, nas tabernas,
 Chorando nos covis.
Alguns dormem em covas quais serpentes!
Viveram, entre os povos, e entre as gentes,
Vergados dum remorso solitário...
— Sabem, de cor, os reinos devastados!
E, vieram, talvez, ensanguentados
 Da noite do Calvário!
Têm trabalhado, ocultos, noite e dia,
Ó reis! ó reis! as luzes desta orgia,
De súbito, que vento apagará!
— Corre no ar um eco subitâneo...
E escuta-se, feroz, no subterrâneo,
 O riso de Marat!
Chega, talvez, a hora das contendas!
Ó legionários! desertai as tendas,
Já demolem os pórticos reais...
Os que têm esgotado a negra taça,
— Cantam, ao vento, os salmos da Desgraça,
 E a história dos punhais!
Vão, há muito, na sombra, foragidos,
Pelas neves, curvados e transidos,
Enquanto Deus se aquece nos seus Céus!
Vem do Sul uma lúgubre toada,
E escuta-se Rousseau, na água furtada,
 Gritar — Que me quer Deus!?
Erguem-se ébrios de mortes, de vinganças,— 
Assoma lá ao longe um mar de lanças,
Ressoam sobre os tronos os machados...
E a Europa vê passar, cheia de assombros,
Ferozes, em triunfos, aos seus ombros,
 — Seus reis esguedelhados.
À voz das legiões rotas, sombrias,
Desabam pelo mundo as monarquias...
Tremem os graves bispos... e depois...
Que mais farão? perguntam, desolados,
— Vão ser, inda, depois, crucificados
 Os deuses e os heróis!
.......................................... 
Vai prolongada a vil, bárbara orgia!...
No silêncio da noite intensa e fria,
Vem uns ecos perdidos de batalha...
Como uns ventos do norte impetuosos,
— São uns passos, nas trevas, vagarosos,
 Os passos da Canalha!
Eles veem de mui longe... mui distantes
Como sonoros batalhões gigantes,
Como ondas negras dum sinistro mar...
Numa viagem trágica e sem glória,
— Há muito, pela noite da História,
 Que os ouço caminhar!
Quem sabe se virão... é longa a estrada,
Desta comprida e áspera jornada
Quem sabe quando, enfim, descansarão?
As pedras atapetem-lhes com flores!...
Lá veem queimados, rotos, vencedores,
 Altivos e sem pão!
Não raiou inda o dia da Justiça!...
Mas, breve, talvez, se ouça a nova missa,
E a Liberdade enfim junte os seus filhos...
Vão talvez vir os tempos desejados!
— E, então, por vossa vez, ó reis sagrados!
 — Saúde aos maltrapilhos!
 

O NOVO LIVRO

Vou cantar novos casos dolorosos...
E navegar noutro épico Oceano,
Novas velas soltar! — O ouvido humano,
Que se preste a meus cantos vigorosos!
Porque eu fulminarei os crapulosos,
O fanático, o Escriba, o Publicano,
E arrastarei à luz— como um tirano,
O santo de olhos doces e amorosos.
E, por tanto, homens cheios de vaidades!...
Preparai-vos a ouvir rubras verdades
Que vos hão de queimar como carvões...
E se não receais ver morto o Erro,
— Vinde à janela a ver o grande Enterro...
E o desfilar das lívidas visões!


---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...