2/23/2023

O Clã do Jabuti (Poesia), de Mário de Andrade


O CLÃ DO JABUTI


O POETA COME AMENDOIM
(A Carlos Drummond de Andrade, 1924)

Noites pesadas de cheiros e calores amontadoados...
Foi o Sol que por todo o sítio imenso do Brasil
Andou marcando de moreno os brasileiros.
Estou pensando nos tempos de antes de eu nascer...
A noite era pra descansar. As gargalhadas brancas dos mulatos...
Silêncio! O Imperador medita os seus versinhos.
Os Caramurus conspiram na sombra das mangueiras ovais.
Só o murmurejo dos creem-deus-padres irmanava os homens de meu país...
Duma feita os canhamboras perceberam que não tinha mais escravos,
Por causa disso muita virgem-do-rosário se perdeu...
Porém o desastre verdadeiro foi embonecar esta República temporã.
A gente inda não sabia se governar...
Progredir, progredimos um tiquinho
Que o progresso também é uma fatalidade...
Será o que Nosso Senhor quiser!...
Estou com desejos de desastres...
Com desejos do Amazonas e dos ventos muriçocas
Se encostando na canjerana dos batentes...
Tenho desejos de violas e solidões sem sentido
Tenho desejos de gemer e de morrer.
Brasil...
Mastigado na gostosura quente do amendoim...
Falado numa língua curumim
De palavras incertas num remeleixo melado melancólico...
Saem lentas frescas trituradas pelos meus dentes bons...
Molham meus beiços que dão beijos alastrados
E depois semitoam sem malícia as rezas bem nascidas...
Brasil amado não porque seja minha pátria,
Pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der...
Brasil que eu amo porque é o ritmo do meu braço aventuroso,
O gosto dos meus descansos,
O balanço das minhas cantigas amores e danças.
Brasil que eu sou porque é a minha expressão muito engraçada,
Porque é o meu sentimento pachorrento,
Porque é o meu jeito de ganhar dinheiro, de comer e de dormir.

 
CARNAVAL CARIOCA
(A Manuel Bandeira, 1923)

A fornalha estrala em mascarados cheiros silvos
Bulhas de cor bruta aos trambolhões,
Cetins sedas cassas fundidas no riso febril...
Brasil!
Rio de Janeiro!
Queimadas de verão!
E ao longe, do tição do Corcovado a fumarada das nuvens pelo céu.
Carnaval...
Minha frieza de paulista,
Policiamentos interiores,
Temores da exceção...
E o excesso goitacá pardo selvagem!
Cafrarias desabaladas
Ruínas de linhas puras
Um negro dois brancos três mulatos, despudores...
O animal desembesta aos botes pinotes desengonços
No heroísmo do prazer sem máscaras supremo natural.
Tremi de frio nos meus preconceitos eruditos
Ante o sangue ardendo povo chiba frêmito e clangor.
Risadas e danças
Batuques maxixes
Jeitos de micos piricicas
Ditos pesados, graça popular...
Ris? Todos riem...
O indivíduo é caixeiro de armarinho na Gamboa.
Cama de ferro curta por demais,
Espelho mentiroso de mascate
E no cabide roupas lustrosas demais. .
Dança uma joça repinicada
De gestos pinchando ridículos no ar.
Corpo gordo que nem de matrona
Rebolando embolado nas saias baianas,
Braço de fora, pelanca pulando no espaço
E no decote cabeludo cascavéis saracoteando
Desritmando a forçura dos músculos viris.
Fantasiou-se de baiana,
A Baía é boa terra...
Está feliz.
Entoa atoa a toada safada
E no escuro da boca banguela
O halo dos beiços de carmim.
Vibrações em redor.
Pinhos gargalhadas e assobios
Mulatos remeleixos e buduns.
Palmas. Pandeiros. — Aí, baiana!
Baiana do coração!
Serpentinas que saltam dos autos em monóculos curiosos,
Este cachorro espavorido,
Guarda-civil indiferente.
Fiscalizemos as piruetas...
Então só eu que vi?
Risos. Tudo aplaude. Tudo canta:
— Aí, baiana faceira,
Baiana do coração!
Ele tinha nos beiços sonoros beijando se rindo
Uma ruga esquecida uma ruga longínqua
Como esgar duma angústia indistinta ignorante...
Só eu pude gozá-la.
E talvez a cama de ferro curta por demais...
Carnaval...
A baiana se foi na religião de Carnaval
Como quem cumpre uma promessa.
Todos cumprem suas promessas de gozar.
Explodem rencos roucos trilos tchique-tchiques
E o falsete enguia esguia rabejando pelo aquário multicor.
Cordões de machos mulherizados,
Ingleses evadidos da pruderie,
Argentinos mascarando a admiração com desdéns superiores
Degringolando em lengalenga de milonga,
Polacas de indiscutível índole nagô,
Yankees fantasiados de norte-americanos...
Coiosada emproada se aturdindo turtuveando
Entre os carnavalescos de verdade
Que pererecam pararacas em derengues meneios cantigas, chinfrim de gozar!
Tem outra raça ainda.
O mocinho vai fuçando o manacá naturalizado espanhola.
Ela se deixa bolinar na multidão compacta.
Por engano.
Quando aproximam dos polícias
Como ela é pura conversando com as amigas!
Pobre do moço olhando as fantasias dos outros,
Pobre do solitário com o chapéu cai-cai nos olhos! Naturalmente é um poeta...
Eu mesmo... Eu mesmo, Carnaval...
Eu te levava uns olhos novos
Pra serem lapidados em mil sensações bonitas,
Meus lábios murmurejando de comoção assustada
Haviam de ter puríssimo destino...
É que sou poeta
E na banalidade larga dos meus cantos
Fundir-se-ão de mãos dadas alegrias e tristuras, bens e males,
Todas as coisas finitas
Em rondas aladas sobrenaturais.
Ânsia heroica dos meus sentidos
Pra acordar o segredo de seres e coisas.
Eu colho nos dedos as rédeas que param o infrene das vidas,
Sou o compasso que une todos os compassos,
E com a magia dos meus versos
Criando ambientes longínquos e piedosos
Transporto em realidades superiores
A mesquinhez da realidade.
Eu bailo em poemas, multicolorido!
Palhaço! Mago! Louco! Juiz! Criancinha!
Sou dançarino brasileiro!
Sou dançarino e danço! E nos meus passos conscientes
Glorifico a verdade das coisas existentes
Fixando os ecos e as miragens.
Sou um tupi tangendo um alaúde
E a trágica mixórdia dos fenômenos terrestres
Eu celestizo em eurritmias soberanas,
Ôh encantamento da Poesia imortal!...
Onde que andou minha missão de poeta, Carnaval?
Puxou-me a ventania,
Segundo círculo do Inferno,
Rajadas de confetes
hálitos diabólicos perfumes
Fazendo relar pelo corpo da gente
Semíramis Marília Helena Cleópatra e Francesca.
Milhares de Julietas!
Domitilas fantasiadas de cow-girls,
Isoldas de pijama bem francesas,
Alsacianas portuguesas holandesas...
Geografia
Êh liberdade! Pagodeira grossa! É bom gozar!
Levou a breca o destino do poeta,
Barreei meus lábios com o carmim doce dos dela...
Teu amor provinha de desejos irritados,
Irritados como os morros do nascente nas primeiras horas da manhã.
Teu beijo era como o grito da araponga,
Me alumeava atordoava com o golpe estridente viril.
Teu abraço era como a noite dormida na rede
Que traz o dia de membros moles mornos de torpor.
Te possuindo eu me alimentei com o mel dos guarupus,
Mel ácido, mel que não sacia,
Mel que dá sede quando as fontes estão muitas léguas além,
Quando a soalheira é mais desoladora
E o corpo mais exausto.
Carnaval...
Porém nunca tive intenção de escrever sobre ti...
Morreu o poeta e um gramofone escravo
Arranhou discos de sensações...

I
Embaixo do Hotel Avenida em 1923
Na mais pujante civilização do Brasil
Os negros sambando em cadência.
Tão sublime, tão áfrica!
A mais moça bulcão polido ondulações lentas lentamente
Com as arrecadas chispando raios glaucos ouro na luz peluda de pó.
Só as ancas ventre dissolvendo-se em vaivéns de ondas em cio.
Termina se benzendo religiosa talqualmente num ritual.
E o bombo gargalhante de tostões
Sincopa a graça da danada.

II
Na capota franjada com xale chinês
Amor curumim abre as asas de ruim papelão.
Amor abandonou as setas sem prestígio
E se agarra na cinta fecunda da mãe.
Vênus Vitoriosa emerge de ondas crespas serpentinas,
De ondas encapeladas por mexicanos e marqueses cavalgando autos perseguidores.
— Quero ir pra casa, mamãe!
Amor com medo dos desejos...

III
O casal jovem rompendo a multidão.
O bando de mascarados de supetão em bofetadas de confete na mulher.
— Olhe só a boquinha dela!
— Ria um pouco, beleza!
— Come do meu!
O marido esperou (com paciência) que a esposa se desvencilhasse do bando de máscaras
E lá foram rompendo a multidão.
Ela apertava femininamente contra o seio o braço protetor do esposo.
Do esposo recebido ante a imponência catedrática da Lei
E as bênção invisíveis — extraviadas? — do Senhor...
Meu Deus...
Onde que jazem tuas atrações?
Pra que lados de fora da Terra
Fugiu a paz das naves religiosas
E a calma boa de rezar ao pé da cruz?
Reboa o batuque.
São priscas risadas
São almas farristas
Aos pinchos e guinchos
Cambeteando na noite estival.
Pierrôs-fêmeas em calções mais estreitos que as pernas, gambiarras iluminadas!
Oblatas de confetes no ar,
Incenso e mirra marca Rodo nacional
Açulam raivas de gozar.
O cabra enverga fraque de cetim verde no esqueleto.
Magro magro asceta de longos jejuns dificílimos.
Jantou gafanhotos.
E gesticula fala canta.
Prédicas de meu Senhor...
Será que vai enumerar teus pecados e anátemas justos?
A boca dele florirá de bênçãos e perdões...
Porém de que lados de fora da Terra
Falam agora as tuas prédicas?
Quedê teus padres?
Quedê teus arcebispos purpurinos?
Quedele o tempo em que Felipe Neri
Sem fraque de cetim verde no esqueleto
Agarrava a contar as parábolas lindas
De que os padres não se lembram mais?
Por onde pregam os Sumés de meu Senhor?
Aqueles a quem deixaste a tua Escola
Fingem ignorar que gostamos de parábolas lindas,
E todos nos pusemos sapeando histórias de pecado
Porque não tinha mais histórias pra escutar...
Senhor! Deus bom, Deus grande sobre a terra e sobre o mar,
Grande sobre a alegria e o esquecimento humano,
Vem de novo em nosso rancho, Senhor!
Tu que inventaste as asas alvinhas dos anjos
E a figura batuta de Satanás;
Tu, tão humilde e imaginoso
Que permitiste Isis guampuda nos templos do Nilo,
Que indicaste a bandeira triunfal de Dionísio pros gregos
E empinaste Tupã sobre os Andes da América...
Aleluia!
Louvemos o Criador com os sons dos saxofones arrastados,
Louvemo-Lo com os salpicos dos xilofones nítidos!
Louvemos o Senhor com os riscos dos reco-recos e os estouros do tantã,
Louvemo-lo com a instrumentarada crespa do jazz-band!
Louvemo-lo com os violões de cordas de tripa e as cordeonas imigrantes,
Louvemo-lo com as flautas dos choros mulatos e os cavaquinhos das serestas ambulantes!
Louvemos o que permanece através das festanças virtuosas e dos gozos ilegítimos!
Louvemo-lo sempre e sobre tudo! Louvemo-lo com todos os instrumentos e todos os ritmos!...
Vem de novo em nosso rancho, Senhor!
Descobrirei no colo dengoso da Serra do Mar
Um derrame no verde mais claro do vale,
Arrebanharei os cordões do carnaval
E pros carlitos marinheiros gigoletes e arlequins
Tu contarás de novo com tua voz que é ver o leite
Essas histórias passadas cheias de bons samaritanos,
Dessas histórias cotubas em que Madalena atapetava com os cabelos o teu chão...
...Pacapacapacapão!... pacapão! pão! pão!...
Pão e circo!
Roma imperial se escarrapacha no anfiteatro da Avenida.
Os bandos passam coloridos,
Gesticulam virgens,
Semivirgens,
Virgens em todas as frações
Num desespero de gozar.
Homens soltos
Mulheres soltas
Mais duas virgens fuxicando o almofadinha
Maridos camaradas
Mães urbanas
Meninos
Meninas
Meninos
O de dois anos dormindo no colo da mãe...
— Não me aperte!
— Desculpe, Madama!
Falsetes em desarmonia
Coros luzes serpentinas serpentinas
Coriscos coros caras colos braços serpentinas serpentinas
Matusalém cirandas Brueghel
— Diacho!
Sambas bumbos guizos serpentinas serpentinas...
E a multidão compacta se aglomera aglutina mastiga em aproveitamentos brincadeiras asfixias desejadas delírios sardinhas desmaios Serpentinas serpentinas coros luzes sons
E sons!
 

YAYÁ, FRUTA-DO-CONDE, CASTANHA-DO-PARÁ!...

Yayá, fruta-do-conde,
Castanha-do-Pará!...
O préstito passando.
Bandos de clarins em cavalos fogosos.
Utiaritis aritis assoprando cornetas sagradas.
Fanfarras fanfarrans
fenferrens
finfirrins...
Forrobodó de cuia!
Vitória sobre a civilização! Que civilização?... É Baco!
É Baco num carro feito de ouro e de mulheres
E dez parelhas de bestas imorais.
Tudo aplaude guinchos berros,
E sobre o Etna de loucuras e pólvoras
Os Tenentes do Diabo.
Alegorias, críticas, paródias
Palácios bestas do fundo do mar,
Os alugueis se elevam...
Os senhorios exigentes...
Cães! infames! malditos!...
... Eu enxerguei com estes meus olhos que inda a Terra há de comer
Anteontem as duas mulheres se fantasiando— de lágrimas.
A mais nova amamentava o esqueletinho.
Quatro barrigudinhos sem infância,
Os trastes sem conchego
No lar-de-todos da rua...
O Solzão ajudava a apoteose
Com o despejo das cores e calores...
Segue o préstito numa via-láctea de esplendores.
Presa num palanquim de ônix e pórfiro...
Ota, morena boa!
Os olhos dela têm o verde das florestas,
Todo um brasil de escravos-banzo sensualismos,
Índios nus balanceando na terra das tabas,
Cauim curare cachiri
Cajás... Ariticuns... Pele de Sol!
Minha vontade por você serpentinando...
O préstito se vai.
Os Blocos se amontoam me afastando de você...
Passa o Flor de Abacate,
Passa o Miséria e Fome, o Ameno Resedá...
O préstito se vai...
Você também se foi rindo pros outros,
Senhora dona ingrata
Coberta de ouro e prata...
Esfuzios de risos...
Arrancos de metais...
Schlschlsch monótono das serpentinas...
Monótono das serpentinas...
E a surpresa do fim: Fadiga de gozar.
Claros em torno da gente.
Bolas de fitas de papel rolando pelo chão.
Manchas de asfalto.
Os corpos adquirem de novo as sombras deles.
Tem lugares no bar.
As árvores pousam de novo no chão graciosas ordenadas,
Os palácios começam de novo subindo no céu...
Quatro horas da manhã.
Nos clubes nas cavernas
Inda se ondula vagamente no maxixe.
Os corpos se unem mais.
Tem cinzas na escureza indecisa da arraiada.
Já é quarta-feira no Passeio Público.
Numa sanha final
Os varredores carnavalizam as brisas da manhã
Com poeiras perfumadas e cromáticas.
Peri triste sentou na beira da calçada.
O carro-chefe dos Democráticos
Sem falação do estandarte
Sem vida, sem mulheres
Senil buscando o barracão.
Democraticamente...
Aurora... Tchim! Um farfalhar de plumas áureas no ar.
E as montanhas que nem tribos de guaianás em rapinas de luz
Com seus cocares de penas de tucano.
O poeta se debruça no parapeito de granito.
A rodelinha de confete cai do chapéu dele,
Vai saracotear ainda no samba mole das ondas.
Então o poeta vai deitar.
Lentamente se acalma no país das lembranças
A invasão furiosa das sensações.
O poeta sente-se mais seu.
E puro agora pelo contato de si mesmo
Descansa o rosto sobre a mão que escreverá.
Lhe embala o sono
A barulhada matinal de Guanabara...
Sinos buzinas clacsons campainhas
Apitos de oficinas
Motores bondes pregões no ar,
Carroças na rua transatlânticos no mar...
É a cantiga-de-berço.
E o poeta dorme.
O poeta dorme sem necessidade de sonhar.

 
COORDENADAS
(A Couto de Barra)

RONDÓ PRA VOCÊ

De você, Rosa, eu não queria
Receber somente esse abraço
Tão devagar que você me dá,
Nem gozar somente esse beijo
Tão molhado que você me dá
Eu não queria só porque
Por tudo quanto você me fala
Já reparei que no seu peito
Soluça o coração bem feito
De você.
Pois então eu imaginei
Que junto com esse corpo magro
Moreninho que você me dá,
Com a boniteza a faceirice
A risada que você me dá
E me enrabicham como o quê,
Bem que eu podia possuir também
O que mora atrás do seu rosto, Rosa,
O pensamento a alma o desgosto
De você.

 
VIUVITA
Ela era mesmo bonita, muito moça
Esperando autobonde sozinha na esquina.
Todos os homens a encaravam sem respeito, desejando.
Vai, pra se livrar de tanta amolação
Ela fez esse gesto de moça que arranja chapéu,
Só pra mostrar a defesa que tinha no dedo, uma aliança.
A moça esqueceu que tinha duas alianças no dedo...
Por causa disso os homens se aproximaram mais.

 
LEMBRANÇAS DO LOSANGO CÁQUI
Meu Deus como ela era branca!...
Como era parecida com a neve...
Porém não sei como é a neve,
Eu nunca vi a neve,
Eu não gosto da neve!
E eu não gostava dela...

 
SAMBINHA
Vêm duas costureirinhas pela rua das Palmeiras.
Afobadas braços dados depressinha
Bonitas, Senhor! que até dão vontade pros homens da rua.
As costureirinhas vão explorando perigos...
Vestido é de seda.
Roupa-branca é de morim.
Falando conversas fiadas
As duas costureirinhas passam por mim.
— Você vai?
— Não vou não!
Parece que a rua parou pra escutá-las.
Nem os trilhos sapecas
Jogam mais bondes um pro outro.
E o Sol da tardinha de abril
Espia entre as pálpebras sapiroquentas de duas nuvens.
As nuvens são vermelhas.
A tardinha é cor-de-rosa.
Fiquei querendo bem aquelas duas costureirinhas...
Fizeram-me peito batendo
Tão bonitas, tão modernas, tão brasileiras!
Isto é...
Uma era ítalo-brasileira.
Outra era áfrico-brasileira.
Uma era branca.
Outra era preta.


MODA DOS QUATRO RAPAZES
(Campos de Jordão)

Nós somos quatro rapazes
Dentro duma casa vazia.
Nós somos quatro amigos íntimos
Dentro duma casa vazia.
Nós fomos ver quatro irmãos
Morando na casa vazia.
Meu Deus! si uma saia entrasse
A casa toda se encheria!
Mas era uma vez quatro amigos íntimos...

 
MODA DO BRIGADEIRO
(Campos de Jordão)
O brigadeiro Jordão
Possuiu estes latifúndios
Dos quais o metro quadrado
Vale hoje uns nove mil reis.
Puxa! que homem felizardo 
O brigadeiro Jordão!...
Tinha casa tinha pão,
Roupa lavada e engomada
E terras... Qual terras! mundos
De pastos e pinheirais!
Que troças em perspectiva...
Nem pensava em serrarias
Nem fundava sanatórios
Nem gado apascentaria!
Vendia tudo por oito
E com a bolada no bolso
Ia no largo do Arouche
Comprar aquelas pequenas
Que moram numa pensão!
Mas não são minhas as terras
Do brigadeiro Jordão...

 
ACALANTO DA PENSÃO AZUL
(Campos de Jordão)
Ôh héticas maravilhosas
Dos tempos quentes do Romantismo,
Maçãs coradas olhos de abismo,
Donas perversas e perigosas,
Ôh héticas maravilhosas!
Não vos compreendo, sois de outras eras,
Fazei de pressa o pneumotórax
Mulheres de Anto e de Dumas Filho!
E então seremos bem mais felizes,
Eu sem receio do vosso brilho,
Vós sem bacilos nem hemoptises,
Ôh héticas maravilhosas!
 
NOTURNO DE BELO HORIZONTE
(A Elísio de Carvalho)
Maravilha de milhares de brilhos vidrilhos,
Calma do noturno de Belo Horizonte...
O silêncio fresco desfolhadas árvores
E orvalha o jardim só.
Larguezas.
Enormes coágulos de sombra.
O polícia entre rosas...
Onde não é preciso, como sempre...
Ha uma ausência de crimes
Na jovialidade infantil do friozinho.
Ninguém.
O monstro desapareceu.
Só as árvores do mato-virgem
Pendurando a tapeçaria das ramagens
Nos braços cabindas da noite.
Que luta pavorosa entre floresta e casas...
Todas as idades humanas
Macaqueadas por arquiteturas históricas
Torres torreões torrinhas e tolices
Brigaram em nome da?
Os mineiros secundam em coro:
— Em nome da civilização!
Minas progride.
Também quer ter também capital moderníssima também... Pórticos gregos do Instituto de Radio
Onde jamais Empédocles entrará...
O Conselho Deliberativo é manuelino,
Salão sapiente de Manuéis-da-hora...
Arcos românicos de São José
E a catedral que pretende ser gótica...
Pois tanto esquecimento da verdade!
A terra se insurgiu.
O mato invadiu o gradeado das ruas,
Bondes sopesados por troncos hercúleos,
Incêndio de Cafés,
Setas inflamadas,
Comboio de trânsfugas pra Rio de Janeiro,
A ramaria crequenta cegando as janelas
Com a poeira dura das folhagens...
Aquele homem fugiu.
A imitação fugiu.
Clareiras do Brasil, praças agrestes!...
Paz.
O mato vitorioso acampou nas ladeiras.
Suor de resinas opulentas.
Grupos de automóveis.
Baitacas e jandaias do rosal.
E o noturno apagando na sombra o artifício e o defeito
Adormece em Belo Horizonte
Como um sonho mineiro.
Tem festas do Tejuco pelo céu!
As estreias baralham-se num estardalhaço de luzes.
O Sr. barão das Catas-Altas
Reúne todas as constelações
Pra fundir uma baixela de mundos...
Bulício de multidões matizadas...
Emboabas, carijós, espanhóis de Felipe IV...
Tem baianos redondos...
Dom Rodrigo de Castelo Branco partirá!...
Lumeiro festival... Gritos... Tocheiros...
O Triunfo Eucarístico abala chispeando...
Os planetas comparecem em pessoa!
Só as magnólias — que banzo dolorido! —
As carapinhas fofas polvilhadas
Com a prata da Via-Láctea
Seguem pra igreja do Rosário
E pro jongo de Chico-Rei...
Estrelas árvores estreias
E o silêncio fresco da noite deserta.
Belo Horizonte desapareceu
Transfigurada nas recordações.
... Minas Gerais, fruta paulista...
Ouvi que tem minas ocultas por cá...
Mas ninguém mais conhece Marcos de Azevedo,
Quedê os roteiros de Robério Dias?
Prata
Diamantes cascateantes
Esmeraldas esmeraldas esperanças!...
Não são esmeraldas, são turmalinas bem se vê:
A casinha de taipa a beira-rio.
Canoa abicada na margem,
A bruma das monções,
Mais nada.
Os galhos lavam matinalmente os cabelos
Na água barrenta indiferente.
As ondas sozinhas do Paraíba
Morrem avermelhadas mornas cor-de-febre.
E a febre...
Não sejamos muito exigentes.
Todos os países do mundo
Tem os seus Guaicuís emboscados
No sossego das ribanceiras dolentes.
As carneiradas ficavam pra trás...
O trem passava apavorado.
Só parou muito longe na estação
Pra que os romeiros saudassem
Nosso Senhor da Boa-Viagem.
Ele ficava imóvel na beira dos trilhos
Amarrado à cegueira.
Trazia só os molambos necessários
Como convém aos santos e
Aos avarentos.
Porém o netinho corria junto das janelas dos vagões
Com o chapéu do cego na mão.
Quando a esmola caia — com que triunfo! — o menino gritava:
— Pronto! Mais uma!
Então lá do seu mundo Nosso Senhor abençoava:
— Boa viagem.
Examina a carne do teu corpo.
Apesar da perfeição das estradas-de-ferro
E da inflexível providência dos horários,
Encontros descarrilamentos mortes...
Pode ser!...
As esmolas tombavam.
— Pronto! Mais uma!
— Boa viagem.
Minas Gerais de assombros e anedotas...
Os mineiros pintam diariamente o céu de azul
Com os pincéis das macaúbas folhudas.
Olhe a cascata lá!
Súbita bombarda.
Talvez folha de arbusto,
Ninho de teneném que cai pesado,
Talvez o trem, talvez ninguém...
As águas se assustaram
E o estouro dos rios começou.
Vão soltos pinchando rabanadas pelos ares,
Salta aqui salta cone vira volta pingo grito
Espumas brancas alvas
Fluem bolhas bolas,
Itoupavas altas...
Borbulham bulhando em murmúrios churriantes
Nas bolsas brandas largas das enseadas lânguidas...
De supetão fosso.
Mergulho.
Uivam tombando.
Desgarram serra abaixo.
Rio das Mortes
Paraopeba
Paraibuna,
Mamotes brancos...
E o Arassuí de Fernão Dias...
Barafustam vargens fora
Até acalmarem muito longe exânimes
Nas polidas lagoas de cabeça pra baixo.
Rio São Francisco o marroeiro dos matos
Pariu levando o rebanho pro norte
Ao aboio das águas lentamente.
A barcaça que ruma pra Juazeiro
Desce ritmada pelos golpes dos remeiros.
Na proa, o olhar distante a olhar, Matraca o dançador:
“Meu pangaré arreado,
Minha garrucha laporte,
Encostado no meu bem
Não tenho medo da morte. 
Ah!...”
Um grande Ah!... aberto e pesado de espanto
Varre Minas Gerais por toda a parte...
Um silêncio repleto de silêncio
Nas invernadas nos araxás
No marasmo das cidades paradas...
Passado a fuxicar as almas,
Fantasmas de altares, de naves douradas
E dos palácios de Mariana e Vila Rica...
Isto é: Ouro Preto.
E o nome lindo de São José del-Rei mudado num odontológico Tiradentes...
Respeitemos os mártires.
Calma do noturno de Belo Horizonte...
As estreias acordadas enchem de Ahs!... ecoantes o ar.
O silêncio fresco despenca das árvores.
Veio de longe, das planícies altas,
Dos cerrados onde o guache passa rápido...
Vvvvvvv... passou.
Passou talqual o fausto das paragens de ouro velho...
Minas Gerais, fruta paulista...
Fruta que apodreceu.
Frutificou mineira! Taratá!
Ha também colheitas sinceras!
Milharais canaviais cafezais insistentes
Trepadeirando morro acima.
Mas que chãos sovinas como o mineiro-zebu!
Dizem que os baetas são agarrados...
Não percebi, graças a Deus!
Na fazenda do Barreiro recebem opulentamente.
Os pratos nativos são índices de nacionalidade.
Mas no Grande Hotel de Belo Horizonte servem à francesa.
Et bien! Je vous demande um toutou!
Venha a batata-doce e o torresmo fondant!
Carne-de-porco não!
O médico russo afirma que na carne-de-porco andam micróbios de loucura...
Basta o meu desvairismo!
E os pileques
Quase pileques
Salamaleques
Da caninha de manga!...
Taratá! Quero a couve mineira!
Minas progride!
Mãos esqueléticas de máquinas britando mineiros,
As estradas-de-ferro estadas-de-rodagem
Serpenteiam teosoficamente fecundando o deserto...
Afinal Belo Horizonte é uma tolice como as outras.
São Paulo não é a única cidade arlequinal.
E há vida há gente, nosso povo tostado.
O secretário da Agricultura é novo!
Fábricas de calçados
Escola de Minas no palácio dos Governadores.
Na Casa dos Contos não tem mais poetas encarcerados,
Campo de futebol em Carmo da Mata,
Divinópolis possui o melhor chuveiro do mundo,
As cunhãs não usam mais pó de ouro nos cabelos,
Os choferes avançam no bolso dos viajantes,
Teatro grego em São João del-Rei
Onde jamais Eurípides será representado...
Ninguém mais para nas pontes, Critilo,
Novidadeirando sobre damas casadas.
Tenho pressa! Ganhemos o dia!
Progresso! Civilização!
As plantações pendem maduras.
O morfético ao lado da estrada esperando automóveis
Cheiro fecundo de vacas,
Pedreiras feridas,
Eletricidade submissa...
Minas Gerais sáxea e atualista
Não resumida às estações-termais!
Gentes do Triângulo Mineiro, Juiz de Fora!
Força das xiriricas das florestas e cerrados!
Minas Gerais, fruta paulista!...
Alegria da noite de Belo Horizonte!
Ha uma ausência de males
Na jovialidade infantil do friozinho.
Silêncio brincalhão salta das árvores,
Entra nas casas desce as ruas paradas
E se engrossa agressivo na praça do Mercado.
Vento florido roda pelos trilhos.
Vem de longe, das grotas preistoricas...
Descendo as montanhas
Fugiu dos despenhadeiros assombrados do Rola-Moça
Estremeção brusco de medo.
Pavor.
Folhas chorosas de eucaliptos.
Sino bate.
Ninguém.
A solidão angustiosa dos píncaros...
A paz xucra ressabiada das gargantas da montanha..
A serra do Rola-Moça
Não tinha esse nome não...
Eles eram do outro lado,
Vieram na vila casar.
E atravessaram a serra,
O noivo com a noiva dele
Cada qual no seu cavalo.
Antes que chegasse a noite
Se lembraram de voltar.
Disseram adeus pra todos
E puseram-se de novo Pelos atalhos da serra
Cada qual no seu cavalo.
Os dois estavam felizes,
Na altura tudo era paz.
Pelos caminhos estreitos
Ele na frente ela atrás.
E riam. Como eles riam!
Riam até sem razão.
A serra do Rola-Moça
Não tinha esse nome não.
As tribos rubras da tarde
Rapidamente fugiam
E apressadas se escondiam
Lá embaixo nos socavões
Temendo a noite que vinha.
Porém os dois continuavam
Cada qual no seu cavalo,
E riam. Como eles riam!
E os risos também casavam
Com as risadas dos cascalhos
Que pulando levianinhos
Da vereda se soltavam
Buscando o despenhadeiro.
Ah, Fortuna inviolável!
O casco pisara em falso.
Dão noiva e cavalo um salto
Precipitados no abismo.
Nem o baque se escutou.
Faz um silêncio de morte.
Na altura tudo era paz...
Chicoteando o seu cavalo,
No vão do despenhadeiro
O noivo se despenhou.
E a serra do Rola-Moça
Rola-Moça se chamou.
Eu queria contar as histórias de Minas
Pros brasileiros do Brasil...
Filhos do Luso e da melancolia,
Vem, gente de Alagoas e de Mato Grosso,
De norte e sul homens fluviais do Amazonas e do rio Paraná...
E os fluminenses salinos
E os guascas e os paraenses e os pernambucanos
E os vaqueiros de couro das caatingas
E os goianos governados por meu avô...
Teutos de Santa Catarina,
Retirantes de língua seca,
Maranhenses paraibanos e do Rio Grande do Norte e do Espírito Santo
E do Acre, irmão caçula,
Toda a minha raça morena!
Vem, gente! vem ver o noturno de Belo Horizonte!
Sejam comedores de pimenta
Ou de carne requentada no dorso dos pigarços petiços,
Vem, minha gente!
Bebedores de guaraná e de açaí,
Chupadores do chimarrão,
Pinguços cantantes, cafesistas ricaços,
Mamíferos amamentados pelos cocos de Pindorama,
Vem, minha gente, que tem festas do Tejuco pelo céu!
Barbara Heliodora desgrenhada louca
Dizendo versos desce a rua Pará...
Quem conhece as ingratidões de Marília?
Juro que foi Nosso Senhor Jesus Cristo Ele mesmo
Que plantou a sua cruz no adro das capelas da serra!
Foi Ele mesmo que em São João del-Rei
Esculpiu as imagens dos seus santos...
E há histórias também pros que duvidam de Deus...
O coronel Antônio de Oliveira Leitão era casado com dona Branca Ribeiro do Alvarenga, ambos de orgulhosa nobreza vicentina. Porém nas tardes de Vila Rica a filha deles abanava o lenço no quintal... — “Deve ser a algum plebeu, que não há moços nobres na cidade...” E o descendente de cavaleiros e de capitães-mores não quer saber de mésalliances. O coronel Antônio de Oliveira Leitão esfaqueou a filha. Levaram-no preso pra Baía onde foi decapitado. Pois dona Branca Ribeiro do Alvarenga reuniu todos os cabedais. Mandou construir com eles uma igreja pra que Deus perdoasse as almas pecadoras do marido e da filha.
Meus brasileiros lindamente misturados,
Si vocês vierem nessa igreja dos Perdões
Rezem três ave-marias ajoelhadas
Pros dois desinfelizes.
Creio que a moça não carece muito delas
Mas ninguém sabe onde está o coronel...
Credo!
Mas não há nada como histórias pra reunir na mesma casa...
Na Arábia por saber contar histórias
Uma mulher se salvou...
A Espanha estilhaçou-se numa poeira de nações americanas
Mas sobre o tronco sonoro da língua do ão
Portugal reuniu 22 orquídeas desiguais.
Nós somos na Terra o grande milagre do amor.
Que vergonha si representássemos apenas contingência de defesa
Ou mesmo ligação circunscrita de amor...
Porém as raças são verdades essenciais
E um elemento de riqueza humana.
As pátrias têm de ser uma expressão de Humanidade.
Separadas na guerra ou na paz são bem pobres
Bem mesquinhos exemplos de alma
Mas compreendidas juntas num amor consciente e exato
Quanta história mineira pra contar!
Não prego a guerra nem a paz, eu peço amor!
Eu peço amor em todos os seus beijos,
Beijos de ódio, de cópula ou de fraternidade.
Não prego a paz universal e eterna, Deus me livre!
Eu sempre contei com a imbecilidade vaidosa dos homens
E não me agradam os idealistas.
E temo que uma paz obrigatória
Nos fizesse esquecer o amor
Porquê mesmo falando de relações de povo e povo
O amor não é uma paz
E é por amor que Deus nos deu a vida...
O amor não é uma paz, bem mais bonito que ela,
Porque é um completamento!...
Nós somos na Terra o grande milagre do amor!
E embora tão diversa a nossa vida
Dançamos juntos no carnaval das gentes,
Bloco pachola do “Custa mas vai!”
E abre alas que Eu quero passar!
Nós somos os brasileiros auriverdes!
As esmeraldas das araras
Os rubis dos colibris
Os abacaxis as mangas os cajus
Atravessam amorosamente
A fremente celebração do Universal!
Que importa que uns falem mole descansado
Que os cariocas arranhem os erres na garganta
Que os capixabas e paroaras escancarem as vogais?
Que tem si o quinhentos reis meridional
Vira cinco tostões do Rio pro Norte?
Juntos formamos este assombro de misérias e grandezas, Brasil, nome de vegetal!...
O bloco fantasiado de histórias mineiras
Move-se na avenida de seis renques de árvores...
O Sol explode em fogaréus...
O dia é frio sem nuvens, de brilhos vidrilhos...
Não é dia! Não tem Sol explodindo no céu!
É o delírio noturno de Belo Horizonte...
Não nos esqueçamos da cor local:
Itacolomi... Diário de Minas... Bonde do Calafate...
E o silêncio... sio... sio... Quiriri...
Os seres e as coisas se aplainam no sono.
Três horas.
A cidade oblíqua
Depois de dançar os trabalhos do dia
Faz muito que dormiu.
Seu corpo respira de leve o aclive vagarento das ladeiras.
De longe em longe gritam solitários brilhos falsos
Perfurando o sombra! das figueiras:
Berenguendéns berloques ouropéis de Oropa consagrada
Que o goianá trocou pelas pepitas de ouro fino.
Dorme Belo Horizonte.
Seu corpo respira de leve o aclive vagarento das ladeiras...
Não se escuta sequer o ruído das estrelas caminhando...
Mas os poros abertos da cidade
Aspiram com sensualidade com delícia
O ar da terra elevada.
Ar arejado batido nas pedras dos morros,
Varado através da água trançada das cachoeiras,
Ar que brota nas fontes com as águas
Por toda a parte de Minas Gerais.

 
O RITMO SINCOPADO
(A Tarsila)

ARRAIADA

Manhãzinha
A italiana vem na praia do ribeirão.
Vem derreada e com a sombra do sono no canto dos olhos.
Põe a trouxa de roupas na lapa
E erguida fica um momentinho assim no Sol.
A narina dela mexe que nem peito de rolinha.
Mastiga a boca sem lavar
Que tem um visgo de banana e de café.
Respira.
Afinal se espreguiça
Erguendo pros anjos o colo criador.
 
TOADA DO PAI-DO-MATO
(Índios Parecis)
A moça Camalalô
Foi no mato colher fruta
A manhã fresca de orvalho
Era quase noturna.
— Ah...
Era quase noturna...
Num galho de tarumã
Estava um homem cantando.
A moça sai do caminho
Pra escutar o canto.
— Ah
Ela escuta o canto...
Enganada pelo escuro
Camalalô fala pro homem:
Ariti, me dá uma fruta
Que eu estou com fome.
— Ah...
Estava com fome...
O homem rindo secundou:
— Zuimaalúti se engana,
Pensa que sou ariti?
Eu sou Pai-do-Mato.
Era o Pai-do-Mato!

 
TEMPO DAS ÁGUAS

O gado estava amoitando na capoeira
Agora é a gupiara agachada lombo do morro
Vazia que não tem mais fim.
De repente faz cócega na cara da gente
A mão de chuva do vento.
Tempo perdido se afobar,
Ela já vem na cola do liburno.
Olhe a folhinha seca.
Salta que salta ressabiada, corcoveia,
Desembestou que nem potranca xucra pasto fora.
Você quase nem tem tempo de vestir a capa boa
E despenca a chuva de Deus.
O espaço num átimo se enche de ar leviano
E a água lava até a espinha da gente
E encrespa a crina do animal.
Que gostosura!
Você rejeita o forde da fazenda na porteira
E continua tchoque-tchoque na tijuqueira peguenta da estrada.
Em casa,
No brim novo com cheiro de ribeirão
Você deita na rede da varanda,
Chupita o traço da abrideira...
E se conversa.
E se conversa sobre a baixa do café.

 
POEMA

Neste rio tem uma iara...
De primeiro o velho que tinha visto a iara
Contava que ela era feiosa, muito!
Preta gorda manquitola ver peixe-boi.
Felizmente velho já morreu faz tempo.
Duma feita, madrugada de neblina
Um moço que sofria de paixão
Por causa duma índia que não queria ceder pra ele,
Se levantou e desapareceu na água do rio.
Então principiaram falando que a iara cantava, era moça,
Cabelos de limo verde do rio...
Ontem o piá brincabrincando
Subiu na igara do pai abicada no porto,
Botou a mãozinha na água funda
E vai, a piranha abocanhou a mãozinha do piá.
Neste rio tem uma iara...

 
TOSTÃO DE CHUVA

Quem é Antônio Jerônimo? É o sitiante
Que mora no Fundão
Numa biboca pobre. É pobre. Dantes
Inda a coisa ia indo e ele possuía
Um cavalo cardão.
Mas a seca batera no roçado...
Vai, Antônio Jerônimo um belo dia
Só por debique de desabusado
Falou assim: “Pois que nosso padim
Pade Ciço que é milagreiro, contam,
Me mande um tostão de chuva pra mim!"
Pois então nosso “padim” padre Cícero
Coçou a barba, matutando e disse:
“Pros outros mando muita chuva não,
Só dois vinténs. Mas pra Antônio Jerônimo
Vou mandar um tostão”.
No outro dia veio uma chuva boa
Que foi uma festa pros nossos homens
E o milho agradeceu bem. Porém
No Fundão veio uma trovoada enorme
Que num átimo virou tudo em lagoa
E matou o cavalo de Antônio Jerônimo.
Matou o cavalo.

 
LENDA DO CÉU

Andorinha, andorinha,
Andorinha avoou,
Andorinha caiu,
Curumim a pegou.
— Piá, não me maltrata não!
Eu levo você pro mato
Enxergar bichos tamanhos
E correr com os guanumbis...
O menino brincava,
Andorinha sofria
E dum lado pra outro
Atordoada gemia:
— Piá, não me maltrata não!
Eu levo você pro mar
Ver as ondas ver as praias
Ver os peixinhos do mar...
O menino malvado
Taperá machucou.
E já morre morrendo
A coitada falou:
— Piá, não me maltrata não...
Eu levo você pro céu...
E nunca ninguém não cansa
De ver as coisas do céu...
É um sítio bonito mesmo
Beiradeando o trem-de-ferro,
Lá você acha sua gente
Que faz muito que morreu.
Assegura em minhas penas,
Vamos embora com Deus...
Andorinha, andorinha,
Andorinha avoou,
Foi subindo pro céu,
Curumim carregou.
— Assegura bem, menino,
Não olha pra baixo não.
Não tem sodade do mundo
Que o mundo é só perdição.
E avoando avoando
Afinal se chegou.
Andorinha desceu.
Curumim apeou.
Abriu os olhos e viu.
Era o céu... oh boniteza!
Tinha espingarda gangorra
Estilingue... Tinha bichos
E tinha tantas surpresas
Que era mesmo um desperdício.
Olha um cachorro janguar!
Olha a ave seriema!
Olha aquelas três-marias
Da gente bolear nhandus!...
Era que nem um pomar
Com tanta fruta aromando
Que o ar ficava que ficava
Bonzinho de respirar.
O curumim caminhava
Seguindo os postes da linha,
Lá pelo varjão se ouvia
Duma fordeca a chispada,
E no meio-dia quente
Amulegando maneiro
Um aboio tão chorado
Que acuava no corpo doce
O sono do brasileiro.
Tinha mandioca e assai
Mate cana arroz café
Muita banana e feijão
Milho cacau... Tinha até
Pra lá do cercado novo
Cheio de taperebás
Um rancho do nosso povo
Com seu mastro de São João.
No galpão um homem comprido
Duma quente morenez,
Com a pele bem sapecada
Pelo Sol deste país,
Gemia uma sanfona
Uma mazurca tão linda
Que si parava um bocado
O ouvido cantava ainda.
O menino olhou pro homem
E gritou: — Boas tarde, tio!
— Meu sobrinho, entra no rancho,
Nossa gente já está aí.
E o piá se rindo matava
Saudades do coração.
Tomava a bênção da mãe,
Do pai, abraçava o irmão,
Afinal topou com o primo
Que era unha-e-carne com ele
E comovidos os dois,
Os dois se deram a mão.
E foram brincar pra sempre
Pelos pagos abençoados
Do meio-dia do céu.
No céu sempre é meio-dia...
Não tem noite, não tem doença
E nem outra malvadez...
A gente vive brincando...
E não se morre outra vez.

 
COCO DO MAJOR
(A Antônio Bento de Araújo Lima)

O major Venâncio da Silva
Guarda as filhas com olho e ferrolho,
Que vidinha mais caningada
— seu mano —
Elas levam no engenho do velho!
Nem bem a arraiada sonora
Vem tangendo as juremas da estrada
Já as três se botam na renda
— seu mano —
Trequetreque de bilros, mais nada.
Vai, um mocetão paroara
Destorcido porém sem cabeça
Apostou num coco da praia
— seu mano —
Que daria uma espiada nas moças
Pois a fala do lambanceiro
Foi parar direitinho no ouvido
Do major Venâncio da Silva
— seu mano —
Que afinal nem se deu por achado.
Bate alguém na sede do engenho.
— Seu major, ando morto de sede,
Por favor me dê um copo de água...
— seu mano —
— Pois não, moço! Se apeie da égua.
Dois negrões agarram o afoito,
O major assobia pra dentro.
Vêm três moças lindas chorando
— seu mano —
Com quartinhas de barro cinzento.
— Esta é minha filha mais velha,
Beba, moço, que essa água é de sanga.
E os negrões obrigam o pobre
— seu mano —
A engolir a primeira moringa.
— Esta é minha filha do meio,
Beba, moço, que essa água é do corgo.
E os negrões obrigam o pobre
— seu mano —
A engolir a moringa, já vesgo.
— Esta é minha filha mais nova,
Beba, moço, que essa água é de corgo.
E os negrões afogam o pobre
— seu mano —
Que adubou os faxeiros do monte.
O major Venâncio da Silva
Tem as filhas mais lindas do norte
Mas ninguém não viu as meninas
— seu mano —
Que ele as guarda com água de pote.
 

MODA DA CADEIA DE PORTO ALEGRE
(A Mário Pedrosa)

Dona Rita amouxa em casa
Uma porção de riqueza
Que o marido, que Deus tenha!
Por amor dela ajuntou.
A riqueza de que falo
É cobres, porque dos filhos
Só um mocinho não gorou.
Apesar dessa família
Já grande em pleno viçor,
Quando ela pensa em gatunos
Corre pela espinha dela
Uma friagem de horror.
Também não tem na cidade
Correição de segurança
Adonde gatuno que entra
Perde pra sempre a esperança
De outra vez ir gatunar.
Dona Rita passa as noites
Sem dormir, sem descansar.
Qualquer barulhinho a pobre
Levanta, vai assuntar.
Pois então ela resolve,
Gasta mas gasta pra bem:
Faz construir uma cadeia
Que mais segura não tem
Por este grande Brasil.
Era mesmo um casarão
Alvo que nem tabatinga,
Com tanta grade tamanha
Que apertava o coração.
Toda a gente ia passear
Lá no largo da Cadeia
Mas porém se espera um preso
Pra estreia da correição.
Agora o filho entra tarde.
Dona Rita sossegada
Costura, pesponta meias
Enquanto sono não vem.
Só de pensar na cadeia
Dona Rita dorme bem.
Foi então que numa festa
Já quase de-manhãzinha
O filho de dona Rita
Botou seis tiros no peito
De outro moço, rival dele
Nuns negócios de paixão.
Estrearam a correição.
Dona Rita não foi ver.
Definha que não definha,
Durou uns pares de meses,
Afinal veio a morrer.
Falam também que de-noite
O carcereiro rondando
Escuta pelo caminho
O choro de dona Rita
Gemendo devagarzinho...
Mas isso de assombração
Só quem vê é que acredita...
 
PAISAGEM N° 5
De-dia um Solzão de matar taperá
Passeou na cidade o fogo de Deus.
Os paulistas andaram que nem caçaremas tontas
Daqui pra ali buscando as sombras de mentira.
Mas agorinha mesmo deram às vinte horas.
De já-hoje quando a noite agarrou empurrando a luz quente pra trás do horizonte
Brisou uma friagem de inverno refrescando os praceanos e a cidade rica.
As famílias pararam de suar.
Janelas abertas e portas abertas em todas as casas.
Se boia, se conversa descansado.
Nas varandas portas terraços escuros
Acende apagam os vagalumes dos cigarros.
Todas as bulhas se ajuntam num riso feliz.
Faz gosto a gente andar assim à toa
Reparando na calma da sua cidade natal.

 
MODA DA CAMA DE GONÇALO PIRES

Gonçalo Pires possui uma cama,
Em nossa vila não tem mais nenhuma,
Gonçalo Pires se dá um estadão,
Só ele na terra dorme gostoso
Em traste bonito de estimação.
Delem! dem! dem!... O Sr. Ouvidor,
Representante de Felipe IV,
Já vem subindo pelo Cubatão.
O dr. Antônio Rebello Coelho
Vem nesta vila fazer correição.
Delem! dem! dem!... São Paulo nos acuda!
Se agita a Municipalidade,
Ouvidor-geral não dorme no chão!
Gonçalo Pires não quer emprestar
Cama cobertor lençol e colchão.
Mas os vereadores são bons paulistas
E Francisco Jorge, o procurador,
Recebe da Câmara autorização:
Trará a cama de Gonçalo Pires,
Ele que deixe-se de mangação!
Gonçalo Pires resmunga, peleja,
Mas a autoridade é da Autoridade,
Lá vêm pelas ruas em procissão,
Cobertos de olhos relampeando inveja
Cama cobertor lençol e colchão.
Que úmido frio... Das várzeas em torno
Na noite vazia que não tem fim
Dissolve as casinhas a cerração...
O Ouvidor-geral sonha em cama boa
E Gonçalo Pires dorme no chão.
Delem! dem! dem!... O Ouvidor vai-se embora.
Sai mais festejado que quando entrou...
A Câmara impa de satisfação.
Mas os vereadores são bons paulistas:
— Que entregue-se a cama com prontidão.
Gonçalo Pires rejeita o bem dele.
Não dorme em cheiro de ouvidor-geral!...
Se reúne a Câmara em nova sessão.
— Lave-se o lansol! indica o notário.
Qual! Gonçalo empaca na rejeição.
Sete anos levam nessa pendenga
A Câmara paulista e Gonçalo Pires,
Paulista emperrando, não cede não.
E a história não sabe que fim levaram
Cama cobertor lençol e colchão.

 
DOIS POEMAS ACREANOS
(A Ronald de Carvalho)

I
DESCOBRIMENTO

Abancado à escrivaninha em São Paulo
Na minha casa da rua Lopes Chaves
De supetão senti um friúme por dentro.
Fiquei trêmulo, muito comovido
Com o livro palerma olhando pra mim.
Não vê que me lembrei que lá no norte, meu Deus! muito longe de mim
Na escuridão ativa da noite que caiu
Um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos,
Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, está dormindo.
Esse homem é brasileiro que nem eu.

II
ACALANTO DO SERINGUEIRO

Seringueiro brasileiro,
Na escureza da floresta
Seringueiro, dorme.
Ponteando o amor eu forcejo
Pra cantar uma cantiga
Que faça você dormir.
Que dificuldade enorme!
Quero cantar e não posso,
Quero sentir e não sinto
A palavra brasileira
Que faça você dormir...
Seringueiro, dorme..
Como será a escureza
Desse mato-virgem do Acre?
Como serão os aromas
A macieza ou a aspereza
Desse chão que é também meu?
Que miséria! Eu não escuto
A nota do uirapuru!...
Tenho de ver por tabela,
Sentir pelo que me contam,
Você, seringueiro do Acre,
Brasileiro que nem eu.
Na escureza da floresta
Seringueiro, dorme.
Seringueiro, seringueiro,
Queria enxergar você...
Apalpar você dormindo,
Mansamente, não se assuste,
Afastando esse cabelo
Que escorreu na sua testa.
Algumas coisas eu sei...
Troncudo você não é.
Baixinho, desmerecido,
Pálido, Nossa Senhora!
Parece que nem tem sangue.
Porém cabra resistente
Está ali. Sei que não é Bonito nem elegante...
Macambúzio, pouca fala,
Não boxa, não veste roupa
De palm-beach... Enfim não faz
Um desperdício de coisas
Que dão conforto e alegria.
Mas porém é brasileiro,
Brasileiro que nem eu...
Fomos nós dois que botamos
Pra fora Pedro II...
Somos nós dois que devemos
Até os olhos da cara
Pra esses banqueiros de Londres...
Trabalhar nós trabalhamos
Porém pra comprar as pérolas
Do pescoçinho da moça
Do deputado Fulano.
Companheiro, dorme!
Porém nunca nos olhamos
Nem ouvimos e nem nunca
Nos ouviremos jamais...
Não sabemos nada um do outro,
Não nos veremos jamais!
Seringueiro, eu não sei nada!
E no entanto estou rodeado
Dum despotismo de livros,
Estes mumbavas que vivem
Chupitando vagarentos
O meu dinheiro o meu sangue
E não dão gosto de amor...
Me sinto bem solitário
No mutirão de sabença
Da minha casa, amolado
Por tantos livros geniais,
“Sagrados” como se diz...
E não sinto os meus patrícios!
E não sinto os meus gaúchos!
Seringueiro, dorme...
E não sinto os seringueiros
Que amo de amor infeliz...
Nem você pode pensar
Que algum outro brasileiro
Que seja poeta no sul
Ande se preocupando
Com o seringueiro dormindo,
Desejando pro que dorme
O bem da felicidade...
Essas coisas pra você
Devem ser indiferentes,
Duma indiferença enorme...
Porém eu sou seu amigo
E quero ver si consigo
Não passar na sua vida
Numa indiferença enorme.
Meu desejo e pensamento
(...numa indiferença...)
Ronda sob as seringueiras
(...numa indiferença enorme...)
Num amor-de-amigo enorme...
Seringueiro, dorme!
Num amor-de-amigo enorme
Brasileiro, dorme!
Brasileiro, dorme.
Num amor-de-amigo enorme
Brasileiro, dorme.
Brasileiro, dorme,
Brasileiro... dorme...
Brasileiro... dorme...


---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

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