2/21/2023

Sintra (Poesia), de Mário Beirão



SINTRA
(A Teixeira de Pascoaes)

 
Oh Pena, altar de nuvens sobre a Serra,
Paço de sombras reais, feito em granito
E séculos de Azul, — olhando a Terra
Das janelas que ogivam o Infinito!
Oh voo das florestas que se esfolham,
Tontas de céus, fragrância!
Oh tardas sombras roxas da Distância!
Ruínas — noite donde as águias olham!
Oh cedros esmanchando as ramarias,
Afofando penumbras!
Crepúsculos longínquos de arcarias!
Água que, ao pôr-do-sol, és múrmura e deslumbras,
Que deslumbras meus olhos, meus ouvidos,
E, incerta de gemidos,
Vais esculpindo a diáfanos lavores
As pedras onde o sol desmaia e verte cores!
Oh paisagem do céu! Sintra! Visão suprema!
Arquitetura dos acordes dum poema!
Em ti as mãos do Vento em fúria batalharam!
O Gênio e a Lenda para além te perpetuaram!
Oh Graça que desceste à Terra por encanto,
Granitos que, ao luar, sois brancos alabastros,
Ramos verdes, à noite, onde estremecem astros,
Meu canto vem de vós, é para vós meu canto!
Fraguedos, serrania,
Do alto de vós olhando,
Tolhidos de invernia,
Alados de neblinas!
Nos longes acenais, notívagos, em bando,
Franjas, espuma vaga de cortinas,
Aéreas e nevadas,
Farrapos onde a Noite esconde as madrugadas…
Oh figuras dum drama subterrâneo,
Gélidas do pavor das sombras que repassam!
Fragas, espectros vãos, que a um rasgo momentâneo,
O vento esculpe e os raios despedaçam!
E ao longe o mar é um canto de epopeia
Memorando naufrágios…
Profundo ferve, anseia,
Lívido estagna, e sonha, e para no caminho!
Eis que numa revolta, amargo de presságios,
Lavra de espuma e som visões em desalinho,
Rasga o pano da Noite e, monstro de águas, uiva,
E tomba doido a rir, sobre os areais, exausto…
A areia escalda ao sol… Ígnea de sede ruiva,
Mina-se de água e Azul, absorve o mar num hausto!
Oh Sintra, rente ao céu, o mar te afaga,
Floresces em murmúrio, em hálitos de vaga…
De ti eu dominei, varei os horizontes,
Estou cansado já, fui Júpiter na Terra!
Nas tuas fontes,
Onde um crepúsculo erra
E o ar é de abandono,
Que eu fosse o musgo em sombra verdecendo,
A voz de longe e Outono,
Baixinho fenecendo…
Fosse a humildade!
Os úmidos recantos
Onde a sombra se esquece, incerta de saudade,
E a chuva caiem prantos…
Fosse o tronco musgoso, enverrugado,
Onde — lembrança eterna,
Um coração se vê de setas trespassado!
Fosse a Elegia do Ar quando o Ar inverna,
Rumores de água, queixas…
Mansa, como rezando,
" — Porque me deixas!"
Como que a Sombra diz no seu silêncio frio
À  fonte de esquecida memorando,
Lucilante de lágrimas a fio…
Ah, pudesse eu viver pela espessura
Dos bosques rumorosos,
Às horas em que a Sombra as coisas transfigura!
Ser o Outono, o crepúsculo, a harmonia
Das aves cuja voz é um hálito de luz
De poentes que morrem de saudosos!
Vestir os troncos nus,
Chorar melancolia…
À tarde quando a luz penumbras vem rezando
A Forma é Aparição,
Há lágrimas de azul as almas orvalhando,
A Cor é emanação…
Tudo se transfigura:
Há paisagens, cenários pela Altura!
Eu deixo de existir
Para mais dentro em mim viver, sentir…
É a hora transcendente
Em que o Passado surge evocador do escuro,
E, sôfrego, o Presente
Dissolve a névoa do Futuro.
Oh Pena ao alto erguida,
Recortada na sombra — asa de águia perdida,
Nas rochas esfarpando-se!
Nuvem numa outra nuvem evolando-se…
Oh Sintra, ao poente, a fumos de viuvez,
Subindo num adeus,
Quimérica de longe a Terra já não vês:
É uma ânsia de Infinito a que te abrasa,
Oh verde forma de aza
Com frêmitos de céus!
Oh Sintra és já Distância
Na comunhão dos astros!
Teus granitos transformam-se: alabastros,
De brancos a rezar… Ideal sonância!
E, eu que vivi em ti, rezo contigo,
Eu, o incerto, misérrimo mendigo,
Trago nos olhos tristes pedrarias,
Astros radiando pálidos fulgores,
Desmaios de harmonias,
No concerto mais íntimo das cores.
E a Noite escuta, empalidece,
Um murmúrio de voz esvoaça numa prece:
Flébil, o ar magoando,
Idílios suspirando,
Duma estrela que nasce ao pôr-do-sol
O canto chora… lágrimas sem fim!
A alma dum rouxinol
Sonha com Bernardim.
E desfez-se, apagou-se
Em ondas de saudade — o olor mais doce…
Súbito, heroico de saudades,
Um canto acorda, funde o bronze das Idades!
Oh canto pela noite, em prantos marulhado,
Memória em cujo olor há mortas primaveras,
Pelos astros, o Espaço cadenciado,
Ungido pela bênção das Esferas,
Falas da minha raça, dos profetas
Invectivando o mar,
De mouros pela areia, cujas setas
Eram menos mortíferas que o olhar!
Oh ritmo das oitavas
Nas veias do meu sangue a tumultuar!
Oh lira de Camões, acordes de ondas bravas!
E, brônzea a voz sucumbe: os céus ficam arfando,
Reboando, ecoando…
Mas a candura, a graça do sorriso,
De quem vive a morrer,
E tem no olhar de mágoa o Paraíso,
E Deus no coração sem o saber,
Desfolham-se num hálito de outono
Pelos céus, pelas almas de abandono…
Oh moreno cantor a ouvir de bruços,
Das góticas ogivas merencórias,
Musgosas de saudade,
Ecos duma outra Idade,
Vozes de viola zoando moribundas,
Morrendo gemebundas;
Crepúsculo de som, penumbra de memórias…
Oh Lusíada absorto
Na quimera do Além! Infante é tudo morto,
De que serve esperar!
Falas de longe: a morte diz à Vida
A sua grande, eterna despedida…
Em ti, meu pálido Anto,
Há mortos a falar!
Oh moribunda voz em lágrimas de canto…
E eis-me perdido e só, como um ceguinho,
Tateio céus de extática harmonia,
E vejo Deus em mim a ungir-me de carinho,
E sou onda de luz em melodia…
Morri para viver além da morte:
Meu negro olhar agora é azul-celeste,
Ouço na minha lira o meu transporte,
Senhor! Bendita a morte que me deste!
Oh floresta! Oh granitos revestidos
De auroras e crepúsculos e Lenda:
Que o som da minha lira a vós ascenda!
Vossa escultura de íntima harmonia
Seja acordes em ecos desferidos,
Eternidade, Azul, melancolia…
Quero inclinar a fronte,
Quero dormir ouvindo de Além-Mundo
Meu carme gemebundo
Rasgando nuvens, céus, aladamente,
E, baixinho, humaníssimo, contente,
Umedecendo ressequida fonte…
E eis-me esculpindo formas de florestas,
Eis-me gravando a som um tronco esquálido,
Abrindo nas prisões esguias frestas,
Por onde o luar se escoa muito pálido…
Eis-me gravado a som, eis-me esculpindo
Oh Sintra o teu perfume pelo Outono…
Eis-me sagrado e lindo,
Rasgando a luz a noite do meu sono…
E vivo a Eternidade no meu canto!
Atônito de mim, revolvo mundos,
Sou mágico de encanto,
Erro pelos abismos mais profundos,
E trago auroras rútilas nos olhos
E harmonizo de paz os horizontes!
Sou melodia úmida do mar
Rezada nos escolhos…
E, ao vir do Outono, incerto de distância,
Saudoso olor memora a minha infância,
Vou ausente de mim por mim a andar…
Tudo o que eu fui acorda! É água viva…
Sintra, vagueio em ti! Nas tuas fontes
Minha saudade em lágrimas deriva,
E o Outono é o meu fantasma a recordar!

Ancede, outubro de 1912.

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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

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