2/27/2023

Sousândrade (Poesia), de Machado de Assis


HARPAS SELVAGENS 


ESTÂNCIAS 


DESESPERANÇA

Ó tarde dos meus dias!
Ó noite da minha alma!...
A vida era tão calma
Aqui na solidão!
O rio, que corrias,
Tuas águas vão secar...
A flor no seu murchar
Que importa a viração?

Ó sol da minha infância,
Que valem-me os teus raios?
A lua em seus desmaios
Um túmulo embranquece.
E tu, que na distância
Me deste a vida e a dor...
Eu surto — a esperança, o amor
Meu peito não aquece.

E eu que sonhei tanto!
E eu que tanto via
No longe dalgum dia
A vida aparecer...

No rio do meu pranto
Meus anos vão passando:
Assento-me, esperando
O meu triste morrer.

Assim, rápidas flores
Donzelas da manhã
Sem terdes amanhã
Nas límpidas capelas,

Passais; vão-se os amores
E o hino da beleza:
Nem deu-me a natureza
Um dia! assim como elas.

Divago os olhos lentos
Do plano ao monte, aos céus:
Eu lá vejo um só Deus,
Em Deus somente o amor;

Aqui, levam-me os ventos
Eu, nada tenho sorte!
No cume eu vejo a morte,
Nos vales morta a flor.

A mim pranto e saudade,
A mim fúnebre exílio,
Cantando umbroso idílio
Da morte à sombra fria:

Em pálida orfandade
As dores me acabam
Misérias me embalam
Nos berços da agonia.

Adeus... palma, que ouvias
Minha harpa à sombra tua:
Tu és a voz que é sua,
Eu sou tua criação.
Ó tarde dos meus dias!
Oi noite da minha alma!
A vida era tão calma
Em paz na solidão!

Adeus à doce vida,
Adeus à rósea esperança
E o céu! que era bonança
Cobrindo o campo e o lar;

Adeus, terra querida!
Adeus, formosa infante!
Por li, no mundo errante,
De novo eu corro o mar.

 

HINO

À liberdade os cantos!
A filha destes céus,
A filha do meu Deus
E minha irmã do peito,
Meus sonhos do meu leito,
Dos vales minha flor,
Da vida o meu amor:
Ó doce liberdade,
Imagem da verdade
Dos meus altares santos!

Na tua divindade
Os astros nos parecem
Que pelos montes descem;
O mar sobe o rochedo;
Os ventos o arvoredo
Disseras transportar;
A fonte a suspirar
Se perde na solidão:
Quem vibra o coração
Tu és, ó liberdade!

Ainda na saudade
Da pátria, na distância
És tu que dás constância,
Que fazes tanto amar
O sol, o campo e o lar!
O índio prisioneiro
Não teme o cativeiro,
Nem era por ser vivo
O tímido cativo
Chorando a liberdade...

Coitada filomela
Seu canto desfigura
Tirada da espessura:
Qual perde o murmúrio
Mudado o leito o rio:
Também a cor perderas,
Em tiras te fizeres...
E o mar que tens na face,
Que embebe um sol que nasce,
Foi só cadente estrela!

E o sol que do arvoredo
Crescia docemente
Raiando resplandente,
Por Deus despedaçado
No espaço foi lançado!
E o mundo todo eu trevas,
Confuso o tronco, e as ervas,
Os mares e o ribeiro
Em negro paradeiro,
Caiu monte e penedo!

E quando um astro novo
Viesse duvidando
Em vez do sol andando,
A vaga noutros climas,
O céu por outras cimas
A desdobra? se achara:
Tremera e se apagara!
Uns campos e outro monte
Já fôrma outro horizonte,
E a língua é de outro povo...

Virente-áurea bandeira,
Eu choro assim te olhando
No ar desenrolando:
A virgem de inocente
Ouviu o homem que mente:
Enleia-te ao pendão,
És morto coração:
A raça está perdida;
Nem fora denegrida
Não sendo brasileira...

Dos lábios criadores
E a fronte, ó liberdade,
Tu foste a claridade
Que o astro edificou,
Nossa alma irradiou;
À crença tu me elevas
Na voz do vento e as selvas;
Me levam nesta vida,
Qual ave ao céu perdida,
Os teus, os teus amores!

Bela árvore da glória,
Teus frutos já penderam,
Teus filhos já morreram:
Apenas à tua sombra,
Tão rota, e que inda assombra,
À morte se arrastando,
Teu nome estrebuchando
Os vejo! indiferentes
À terra e o Deus; descrentes
Rompendo a vil memória...

E de águia ensanguentada
Nas serras, pelo abismo
Gemendo ao despotismo,
Ó vítima piedosa,
À voz baça e ruinosa
Disseste à eternidade
O adeus! não há verdade,
Razão, virtude, amor,
Nos campos não há flor
Às mãos da foice afiada.

Ó mãe da humanidade,
Ó raio de meu Deus,
Oh! lança-te dos céus,
Que o gelo se desfaça!
Teu eco em plena praça
Desdobre a palma de ouro
Por entre o verde louro!
— Ao peso de sua dor
A força caía, horror!
Aos pés da liberdade.

Caudal açoita o rio
O mar, na alta corrente;
E o mar, que é mais potente,
Rugiu — às cabeceiras
Reflui pelas balseiras:
Assim quebrem-se os ferros
Do despotismo de erros
Nos infernais altares!
Repousa nos palmares,
Ó livre sol de estio.

 

AO SOL

Tímida e bela e taciturna virgem
Pelos campos, na zona solitária,
Do mar no isolamento, lá do azul
Banhando a terra de uma lua argêntea,
À matinada sobressalta e foge:
Chama aos seios o manto, os pés retira
Da terra e voa, descobrindo os bosques
Que estremecem, do monte a sombra arranca,
Toma à pressa os vestidos que vão soltos
E as grinaldas de estrelas, fugitiva.
Roda o plaustro de um príncipe, os cavalos
Vem nevados nos vales do oriente;
Cobre os ares a poeira do caminho
Alva como o pó d’água; se arrepiam
No ninho as aves desatando o bico;
Brisa fresca e geral passa acordando
Os vegetais, o oceano; belas nuvens
De marinhe coral, nuvens de pérola
Como a face de um lago os céus abriram;
Estende o colo o pássaro cantando
Por detrás da palmeira, qual pergunta
Aos pastores, ao gado apascentando
“Quem faz este rumor?” desliza o orvalho
Na flor, derrama o vento, o vento leva
Ondulações de incenso; a natureza
Nas barras da manhã respira amores:
A noiva docemente bocejando
Na alva da noite da esperança longa
Embalada nos berços conjugais.

Sol! ideia de meu Deus, me aquenta
Gelada a fronte pálida, sulcada
Do ceticismo horrendo; sol, me inspira
Um cântico de paz, que a musa afeita
Neste cantar selvagem, rude, aspérrimo,
Que o temporal da sorte ao peito ensina,
Como ao rochedo a vaga, ao monte o raio,
Como a torrente às sombras da espessura,
Duro golpe ao carvalho, ave enfezada
Jamais cantou de amor: abriu-me a boca
Esta sede eternal, que eu mesmo ignoro,
De um desejar... que seca-me a existência,
Que minha alma lacera, como ao peso
De um africo samoun sem fim rolando!

Abre um lado da abóbada celeste,
Amostra o rosto, só, centoclo e belo,
Rege de lá seu mundo: apaga os círios
Do seu altar da noite; arrasta a nuvem
E embalança nos ares, sombreando
O vale do pastor e das boninas;
Encarna de mil cores o arvoredo;
Pousa um raio na pétala das flores
Como virgens abrindo alegremente;
Espalha almo chuveiro. Sol! ó sol,
Deus dos meus olhos, meu caminho franco
A unidade invisível, me suspende
Deste lodo da terra onde hei manchado
A alma de meu Deus! rios, montanhas,
Levantai minha voz; aves, favônios,
Não pergunteis que nasce de alegria
Em vosso seio que vos move os ecos:
Cantai, cantai de amor, subi louvores,
Batei as asas, penetrai os ventos:
É nosso pai! enchendo os nossos campos
Da terra de mil dons; as nossas veias,
Como do pensamento Deus nossa alma,
Banha de sangue e vida. A borboleta
Sobre as folhas dormindo, a água passando,
À beira da corrente, a ti se eleva
Em turbilhões de luzes centelhando,
Deslaçando seus voos, que um raio fura;
De cada vez que brilha, matizado
Do pó das asas de íris; a velhice
Arrasta a li seus passos; minha vista
Amo cobrir de lágrimas te olhando,
Falar contigo, consultar-te o que és:
Embora a minha voz nos teus fulgores
Tu percas desdenhoso, e não respondas.

Quantas vezes passava a contemplar-te
Solitário no mar! sem pai nem mãe,
Teus raios ensopei com minhas lágrimas,
Que os teus raios secaram: então contigo
Somente e o mar, meu pensamento errava
Ante os meus olhos, mas sem ver abertos,
Nem despertava me roçando a fronte.
Amigos mendiguei, meu peito aos homens,
Meus braços, minha fronte, abri minha alma;
Como os homens vi rindo-me um momento!
Me odiavam depois, logo amanhã:
Outros buscava; mas, as mesmas ondas
Do mesmo oceano mentiroso e amargo;
Corri terras em fora e passei mares,
Vi novos climas — sempre os mesmos homens!
Nem um só... nem um só achei que o nome
Santo de amigo merecesse ao menos!
Ah! se um ente nascera, que eu amasse
Deste amor todo que meu peito espaça!
......................................................................
Sublime erupção, nasceu minha alma!
......................................................................

Desde então, na descrença ressequido
Murchou, caio meu coração, e os homens,
Que minh’alma lho rude calcinaram,
Nunca mais pude amar vou solitário
Pelas praias sombrias da existência.
Às vezes recostado num penhasco,
A minha criação faço ideal:
Formo um coro de virgens de; anos de ontem
Nuas e puras; me rodeiam, cantam,
Eu adormeço... mas, desperto, rujo!
Tu, deus imóvel, subalterno, seiva,
Despertador da terra, ergues meus sonhos,
Material hipérbole dos céus!
Mentira, ou não sei que vejo em sua frente
Que não entendo, e me repugna eu fujo
As minhas solidões, não posso amá-los:
Ah! se eu pudesse, bem feliz que eu fora!
— Mesmo de um Deus descri... perdão, Senhor!
E mirrado na dor, pelos desertos
Buscava sombra: — as árvores murchavam,
Desfolhavam! da fronte que eu sustinha
Descansar pelo colo de seus troncos,
Tocar meus pés sua leiva! exposto ao clima,
O sol fendeu-me o dorso, como açoite
Da Providência, e amei para sempre o sol.

Ó tu, dia primeiro, em que no espaço
A fogueira de ouro o sopro eterno
Acendeu: quando a terra estremecia
Em pasmo se revendo, e tudo em vozes
Naturalmente! Ó tu, dia vindouro,
Em que a mão, que a ergueu, desça apagá-la —
Que bela cena! quanto denso fumo
Não há de se exalar dentre os seus dedos,
Da tocha imensa no morrer! quisera
Sentir ranger meus ossos, perturbar-me
Nessa emoção de horror! ver-te apagando,
Qual ver-te ao mundo vindo, eu só quisera
Esses dois dias vida, entre eles morte.
Sol esplêndido e belo! deus visível!
Tu, corpo do meu Deus, queima o meu corpo;
Vá minh’alma à tua alma, ao Deus somente!

Silêncio. Passa o vento em meus ouvidos,
“Emudece!” disseram-me: quem foi?...
Rios, montanhas, íncolas do bosque,
Cegos nascemos, meus irmãos da morte,
Sem saber quem nós somos, onde vamos...
Para cantar?... Cantemos harmonias
Ao sol que se levanta do arvoredo,
Lá das terras de além, fruto de estio:
Enchamos nossos olhos de seus raios,
Nosso peito de fé — Deus é mais longe!

 

TE DEUM LAUDAMUS

Et ego, et terra, mareque
Coelumque, tibi canticum damus!

Já longe de mim vai comprida a margem
Da infância feliz: navego ao largo,
Da barca ao leme; os gonzos ferrugentos
Rangendo são custosos meneados
Pelo meu braço que os tufões cansaram.
Na pesada corrente eu vou descendo,
A brisa voa fresca, azul o céu;
Balança, entesa ou bate o pano ebúrneo,
Conforme a direção; na alta ribeira
Ondulações sonoras levantando
Indolente e penosa a vaga adunca
Arruinada em pedras, na fragura,
Na costa, no rochedo. Agora eu canto.
Os rios que deságuam se entorpecem;
A nuvem desce mais dos céus de seda,
Vem suspensa escutar-me; acalma o vento,
Caída vela; fora d’água os peixes
O dorso ondeiam; mudamente alcíone
Do úmido ninho serpenteia o colo;
Distante a voz do mar, distantes praias
Sobre si mesmas desterrando vão-se;
Aceleradas sombras das palmeiras
As seguem para o extremo, as cumiadas
As sombras deitam para trás da serra,
Que cobriam-lhe o rosto: é amplo o berço!
Calada a natureza espera em torno
Minha voz responder. Agora eu canto:

Meu Senhor Onipotente!
Minha harpa, as harpas do monte,
Do rio caudal e a fonte,
Librada a nuvem nos ares,
Perante etéreos altares
Se humilharam. Santo! Santo!

Deus imenso! eterno sopro
Os lábios teus fecundaram:
Os céus de soes se estrelaram,
Sobre os soes outros céus vão:
Nasce o mundo, a criação
Nasce, e canta. Santo! Santo!

Cheio o vácuo, o espaço ondula
Do infinito; retumbante
Geme o caos, e palpitante
Começa brilhar-viver
Contemplar-se, estremecer;
Rugir de horror! Santo! Santo!

E nos ventos, e nas ondas,
No universo equilibrado,
Harmonioso, animado
E num átomo da terra,
Numa flor, penedo ou serra
Teu nome está. Santo! Santo!

Eco infindo envolve o mundo
Infindo se renovando:
Ontem vi-me alevantando,
Hoje me vejo a cantar;
Amanhã no meu lugar
Talvez serei... Santo! Santo!

Ande o mar lambendo a areia
Manso e calmo e deleitoso,
Ou se estorça proceloso
Cortado da ventania,
O mar teu nome dizia,
Di-lo ainda. Santo! Santo!

Vezes quando o filho ingrato
Sobre o pó dorme indolente,
E renegado ou descrente
Não te vê na doce esperança,
Vingativo e sem bonança
Deixa os leitos. Santo! Santo!

Erre a lua em brancas noites,
Doure o sol rubras celagens;
Estas montanhas selvagens,
Estas compridas palmeiras
Cantando pelas ribeiras,
Dão louvores. Santo! Santo!

Meu Senhor Onipotente!
Senhor Deus da criação!
Escuto o meu coração,
Verguem-se os cumes do céu,
Queime o raio o azul do véu —
Repetiram! Santo! Santo!

Santo! Santo! Deus dos astros,
Que lá no Horebe Adonai,
O rubo cercar-te vai
Em flamas de um fogo inalo,
Camadas de um fumo grato
Circulando! Santo! Santo!”

Me obedeceram: pelos céus um coro
Vai ondulando de encantados órgãos —
A voz dos animais, dos elementos,
Das plantas o meu cântico entoando.

Tu, que enriqueces
Abrahão nos desertos,
Que livras da infâmia
Moisés e Jacob;
Que fazes David
Sonhar o Messias,
Que o nome estremece,
Destrói reis soberbos,
Suas águas que desce
Remonta o Jordão,
Suas altas muralhas
Desfaz Jericó
Aos olhos imóveis
Do sol suspendido
Nas mãos do Josué —
Teus filhos encontras
Na ingratidão!

No paraíso esquecem
Teu preceito: as feras
Fraternais, tão mansas,
Inimigas são;
Venenoso inseto
Os consome; os prados
Murcha como o sol!
Já cidades vingam,
Se corrompem, morrem
Do dilúvio aos pés.
No céu arco de rosas
Traçou nova aliança,
E novas plantas nascem.
Baltazar soberba

No festim ruidoso
Lá profana os vasos
De Jerusalém:
Da tua mão de fogo
Pelo muro errante
Daniel amostra
As impressões fatais
Ao assombrado conviva:
Deslocou-se o Eufrates!
Babilônia pream
Rubras mãos de Ciro!

Amavas Israel,
A idolatria a ruína;
Rainha que levantas,
Também perdes Judá!...
— Meu Deus, tão grande que és
A terra que não sente
Ignora-te, e sorri!
— Nos seios te compreendo,
Tua glória me engrandece,
Tu és minh’alma, ó Deus!
Minh’alma um reino teu.”

No firmamento os ares se embalaram;
Removidas as margens se aproximam;
Salta o peixe no mar, desprende alcíone
Atado o longo bico e já revoa;
A barca móbil nas argênteas asas
Pelas correntes líquidas se alegra.

 

A LEGENDA

“Onde vais? perturbado no semblante,
Da sombra de ti mesmo perseguido!
O que entre os dedos te reluz mal preso
Na mão se enegrecendo, ó desleal?
Não ouves um gemido lá no monte?
O Cristo é quem suspira... e por que foges?...”
Perguntava o plebeu de asco. O discípulo
Treme, seus olhos se desconcertaram.
A exalação de um beijo nos seus lábios
Inda fazia nuvens: é maldisse
Abominosa venda... ouro fatal!
— Lava Pontius suas mãos nas mãos da esposa,
“Tu disseste que eu sou” dizendo o justo:
Então ringiu-lhe o coração do crime,
E de remorsos afrouxando os braços,
O templo ressoou de argênteas moles
Os pés rodeando de Caifás: “sanguíneas,
A córbona as não quer, aos peregrinos
Sanguíneos campos de Haceldama comprem.”
— E no outro dia uma árvore encontrou-se
Estendida no chão, fogo nem tinha,
E em cinzas desfazia-se fumante!

Gemia o Nazareno ao longo açoite
Do fariseu. Chorava o caro Pedro
Quando o galo cantou: negar três vezes
O rei de Galileia! — em nardos — triste,
As oliveiras do horto entristecendo
E as torvas águas que de ouvi-lo voltam.

O sonho confirmou-se dos profetas:
O que viste morrendo era o Messias!

Falava Jeremias inspirado —
Sábias revelações: Caim primeiro
Invejou, foi traidor: dinheiros vis
Do primeiro assassino a terra os veja
Cometa errante despertando longe,
Longe, e fazê-la estremecer de assombra
Cada vez que gemerem malfadadas
Entroncadas irmãs no cofre impuro;

De ígneo facho perseguido,
Abre as mãos o irmão de Abel,
Vendidos serão de escravos
Tristes filhos de Israel;

Vendido verão de infâmia
Sagrado, puro Messias!
Muitos soes hão de turbar-se...
Porém, calou Jeremias.

Como ao chefe poderoso,
Fatal à bela Orleans,
Como ao rude pegureiro,
Como às rosas cortesãs!

E quantas vezes nas grutas
Não verás teu coração,
Como do demônio opresso,
Sacudir-te a vibração?...

Recolhe sobre o teu peito
Puras virgens argênteas;
Maculado nunca o ouro
Fatal a dor do Messias.

Quase ao sol posto, nos lugares santos
Romeiro velho, entrou, de pó coberto;
E de fora uma voz se ouviu correndo
Entre soluços por história longa:
Vês, filha minha, aquela cruz pendente?
Ali gemeu profundo, doce e manso;
Aqui estas naves assombrosas,
Açoitado de varas... arrastado...
Suores rubros derramou Jesus!
Estas paredes salpicadas, negras,
Sedenta a terra que pisavam monstros
Ensanguentou de pranto... e roto o corpo
De lançadas cruéis... desfalecia
Da lagrimosa mãe nos castos braços,
Que a fronte beija que os judeus cuspiram!
Fugiram seus discípulos; a preço
Seus vestidos os cães dilaceravam!...
Ali a fenda pavorosa, escura
Onde os suplícios uma vez descansam —
Cálix amargo de azedado fel,
Coroa tecida de espinhosa vime...
Inda este vento que na cruz se enleia
— Meu Deus! meu Deus! por que me abandonaste? —
Parece repetir como se o lenho
Nessa voz eternal fundida fora:
Dentro ainda de um sol vejo uma fronte,
E dentro dela uns olhos de piedade!...
O céu três horas se envolveu de sombra;
Do dia a nona o véu do templo rasga,
Como o raio divide a noite densa,
E caio trovejando em duas partes;
Tremeu a terra e se fenderam as pedras!
Erguem-se os mortos que dormiam, correm
Novos viventes visitar seus lares!
Sobre esta rocha deslocada um anjo
De semblante de luz, de argênteas vestias
Assentou-se, e de um braço tão nevado
O caminho apontou de Galileia
Sorrindo à lamentosa Madalena,
Que chora de prazer compridos dias,
Encarnada visão dourando as nuvens...

Ia falando como o vento grosso
Na mata, a filha pela mão, que ouvia
Movida e terna o compassar profético:
Na garganta gelou sua voz dorida,
Choro rouco vertendo: era tão triste,
Do passo tateando, os olhos cheios,
Uma entrada por onde ele saísse!
Os ecos descaíam das ruínas,
Entre os pés delas repousaram lentos.
— Santos sepulcros! perenal sossego,
Misteriosa paz, solidão profunda
Suspensa em sombras — qual vapor deixando
Levantar-se a verdade nua e bela!
Que não em cornos de loquace fama.

Onde vais, pobre donzela?
“Ah, senhor meu pai morreu!...”
A todos ela abraçava,
Corria louca e gritava:
“Vede a luz! a luz é bela...
Mas a órfã desgraçada
Hoje só por essa estrada...
Ah! senhor, meu pai morreu...”

A rouxidão do ocaso apenas dava
Pelas montanhas da cidade santa:
E num silêncio pensativo o velho,
Como o que a noite faz subindo os astros,
Descansou numa lasca da ruína;
Lavada do crepúsculo a fronte calva,
Ermo rochedo que as escumas cercam,
Nos ombros virginais da filha amada
Um pouco recostando adormecia...
E meiga infante com seus dedos róseos
Das faces lhe tirava os regos d’água.
— Da noite a brisa se alevanta e verte
Das suas asas em torno dela o sono:
Coros celestiais cantando ouvia
Em seráfica voz num sonho vago,
Quando ao seu grito despertou: d’aurora
Inundada — e seu pai buscava em vão!

Inda alguns dias, nessas mesmas horas,
O clarão boreal se apresentava;
Formado a pouco e pouco, e se extinguindo
Tão docemente. Nem notícias houve
Mais da pobre filhinha que o guiava.

 

A HÉCTICA

De amor e gozo, ela vai morrer;
apenas a laranjeira da vida começava
abrir-lhe a vigésima nona flor: suas
folhas crestaram no viço, a seiva não
circula mais... mulher!

Nascer ontem, morrer amanhã,
Um só dia na vida existir,
Hoje só! como a flor da romã,
Ver sua pétala rubra cair:

Mariposa das noites mimosa,
Vendo a aurora na bela candeia,
Sobressalta ao nascer, e amorosa
Seu encanto sua morte incendeia:

Alvo pó de suas asas trementes,
Todo o corpo em amor desfazendo;
Olhos grandes de Vênus umentes
Inda belos de morte languendo,

Inda amores pedindo famintos
No pesado levar derradeiro
Ou caindo, qual lâmpada extintos
Se envolvendo no crepe agoureiro:

Mulher! tu não vieste sobre a terra
Para a impura existência: nessa idade
De infantes anos, folha tenra e verde
Lançada pelo vento sobre o túmulo,
Contraída e mirrada. Ignorante,
Que de ti tu não sabes:... Providência!
Que ao menos morres sem sabê-lo ainda.
Sôfrega, acesa, devorando amores
Sem temperança, num só golpe o cálix,
Derramando de excesso e de ofegante,
Acabaste-o, caíste embriagada,
Voluptuosa; num suspiro longo
O veneno tomou-te. E tu nem pensas
Porque medrosa e trêmula palpitas;
Porque batem tuas fontes, fugitiva,
Inconstante te abraças toda inquieta
Céus frios braços de marfim; é as trancas
Desdobradas penduram-se em teu corpo:
Anelante, frenética, demente
De um gozar... que não há nem é da terra:
Fusão terrível do inferno e o céu!
Secos lábios em fogo e os olhos úmidos
Lampejando fugazes... E eu maldigo
De minha vez o amor! o amor, que é vida.
Mulher, anjo celeste que minha alma
Toda abranges n um riso, ó meus amores!
Não tu, que me ouves: eu te choro, sim,
Com piedade sincera e dor que sangra;
Mas sobre os teus meus lábios nem meu peito
Não se alimentam, não: mulher sem mancha,
Bela e simples, mulher como eu compreendo,
Anjo, irmã, doce esposa e mãe do homem,
Seu amor e ideal, com essa eu falo.
Ó desespero, ó fado! e sempre, e sempre
Nessa queda abismosa! lindo fruto
Da manhã suspendido à flórea coma
Que a borrasca fatal, que a mente acende,
Agita e lança ao pó: cobre-o a poeira,
Pasto dos bichos, apodrece e acaba!
E o mundo todo escarnecendo dela,
Sua vítima, se o brilho a cor apaga
E as faces murcham. Então passa mendiga;
E os homens que de amor ontem nutrira,
Que em seus lábios arderam, desdenhosos
Cospem-lhe a fronte! e na miséria some.
Amor material de imundas vítimas,
Nada tens de comum com os meus amores!

Ó sorte da mulher, destino horrendo
Se apascentando em casta virgindade,
Tigre tão farto! e descansar nem sabe
Do cândido rebanho todo avaro
Matar — somente o sangue bebe e a boca
Ama eterna em cruor banhada, e dorme!
Sem vida o coração, pisado o corpo,
Árido e vil bagaço agora o deixa
Sobre os campos aos corvos, à imundícia.
Ó sorte da mulher! Anjo coitado,
Sem asas, sem voar... quem fez-te assim?

É tua vida somente o despontar,
Quando longe do amor o peito dorme
De ecos vazio do estrondar das veias,
Que vão sombrias, e os sentidos livres
Inocente se expandem, como esta árvore!
Na face o fresco virginal, e os olhos
Cheios de humor de luz; é flor abrindo
Toda perfumes, nitidez e cores,
Que os insetos rodeiam — não na toquem!
Toda doçura e mansidão, agora
Toda selvagem, de infantis cruezas,
De inconstância infantil; ora piedosa,
Toda um riso e brincar, toda esquivança,
Vergôntea ao vento, singeleza toda —
Foi sua vida em botão. E o vento sopra:
E mais forte a vergôntea já resiste,
Para o breve estalar... e sopra o vento:
E já n’alma lhe anseia amor; seus olhos,
Seu coração, suas veias, todo o corpo
Emboborado em amor, o cálix pende,
A flor abre — ai, coitada, o fim está próximo,
As folhas pelo chão vão-se perder
— Se queres ser feliz, amor não queiras:
Mas onde há vida quando amor não ha?
Antes a morte — ou ama eternamente,
E nem te iludas porque não viveste...
A vida toda está no fugir dela.

E o homem ruge contra ti de impura,
Nojosa, imunda criação da terra,
Tu, fraco, sedutor, monstro falaz,
Por que de joelhos lhe beijaste os pés?
Donde veio-te a fala tão sonora,
Que em balido amoroso a ovelha arrasta,
Branca, indecisa da existência ao túmulo?
Donde veio-te o pranto, mentiroso?...
E a pobre crente, que tu dizes, finges
Ela o teu deus que teus desígnios rege,
Arrancou-te da morte, e triunfante,
Em seus delírios natural perdida,
Geme em teus braços... Pálida desperta,
Solitária se achou! espalha a vista
De si em torno, em solidões vazias,
E rompe fundos ais! ninguém a entende.
Baço medo escorreu-se-lhe no corpo;
Vestiu-se de mortalha, à terra, e só!
Longos adeuses, porém tarde, expira.
E o homem? como ave ensanguentada
Da rapina noturna alça o seu canto,
Nem olha para trás fugindo — a infame.
Oh! não te rias da pobreza sua:
Fraca e amante, que grandezas d’alma
Humana e franca! Bruto, que a calcaste
Às plantas vis, demônio dos infernos!

 

A***

Tu não és como a árabe infante
Encantada no branco corcel
Nos desertos de areia brilhante,
Áurea adaga no cinto de anel,
Ou na doce cabilda — ondulante
Nos amores de louro donzel;

Nos floridos quiosques saltando,
Ou na ogiva fumosa a dormir,
Coisas de Ásia amorosa sonhando,
Que sonhadas se fazem sentir:
Tu não és como a árabe — amando
Tens no rosto mais santo sorrir!

Nem semelha-te a rútila estrela,
Nem as ondas douradas do mar,
Nem a flor mais esplendida e bela;
Terra e céu não te sabe imitar:
Brilha uns olhos de bronze a donzela,
Docemente te vejo a me olhar.

 

VISÕES
Oui, mademoiselle, adieu...
adieu pour toujouras.

Sim, donzela, te amei, vítima pobre
Dos caprichos do homem vão do mundo:
Minha fala escutaste, a voz sonora
Dos lábios teus brandiu lá na minha alma,
Tanto dentro a calar e tão suave...
Mas, um momento: esvaecia aragem
Pelos sinos da torre que dormiam,
E passou. Indeciso inda o silêncio
Eslava e belo, quando estala o raio:
Cândidos seios virginais tremeram,
Sensitiva mimosa se fechava:
Formosa luz do sol se esverdeando
Por frescos ramos de frondoso estio,
Que a nuvem tolda, que o tufão desloca.
— Uns olhos infernais, blasfêmia a boca
Latiu danosa contra ti, ó deuses!
Nem tu mesma o sabias, de inocente
E descuidada amando, os sentimentos
De flores pela morte assim te davam.
Fizeram-te saber que era de amores
Que vermelha te vias, tão vaidosa,
O pensamento meu, no fundo espelho
A radiar de formosura e encanto
Passando, te enlevando, ora assaltada
Quando o sangue alterado refluía
Envenenado ao coração: me vendo,
Que tu amavas para sempre o creste.
Eras como avezinha que às primeiras
Ondas do sol sacode e estende as asas.
Ah, que o mesmo nascer dessa manhã
Foi pôr do sol do amor, ambos morremos!
Já foges diante mim, teus olhos belos
Sobre os meus, vergonhosos já se apagam
Em mudo prantear do que passou-se.

Sua cabeça me encostou no peito
Namorado, sua nuvem de cabelos
De ambrosiadas noites na montanha
Despejou nestes ombros longos crespos!
Cheirosa e pura, como os lírios são
No vaporoso e cândido crepúsculo
Do luar da lua — respirei, por nuvens,
O corpo seu de vaga suspirando.
Eu vi fundido um século numa hora!
E hoje as horas seculares sinto
Se desencadeando dos meus dias...

Soluçaste, ovelhinha mansa, ouvindo
O tronco de que és fruto à ventania
Rugir horrendo e mau: “amores vis,
Amor de poeta nos teus seios, louca!
Vaga criança, ou foge a lira torpe,
Ou de teu pai e a corte abandonada...
E os teus paços doirados, e esse mundo
Que luminoso te rodeia? oh, crime!
A filha da riqueza amando o artista
Que vive de ilusões! sonhar, que vale?
Seus cofres de papel somente aos vermes
Estão cheios, bem como os raios vergam
De seus armários de volumes áridos
Dos outros seus irmãos, que assim viveram.
Raça de loucos, pobres e orgulhosos,
Formando uma família e sós se amando,
Porque só uma sorte é para todos
Em todo o tempo; voam pelas nuvens,
Leves como elas: nós de ouro brilhantes,
Equilíbrio da terra, o céu gozamos!...”

Porém, tu, inocente, sim, perdoa:
Lancei ódio a teu pai; quis dentro em mim
Romper as leis da natureza, odiando-te!
À voz do pensamento eu vi minh’alma
Cair de horror! morrendo nos meus pés!
Eu pisei-a! e sorri-me, de tão fraca...
Ai tu, que me fizeste? amar somente,
E o homem ingrato te maldisse, anjo!

E hoje, enraivecido, hoje eu te deixo:
Odeio o mundo, és dele. Dá perdão,
Perdão... ó virgem! se me amaste um dia,
E se inda o podes: não porque eu mereça:
Por minha imagem não manchar teu peito:
Tão puro como o achei respire eterno.

Também não sei... não quero ver-te, e morro
Se penso que esse amor desses treze anos
Que primeiro por mim saiu-te n’alma
Como o sol no oriente que esperasse
Somente por seu dia inda nas trevas,
Para à voz do Senhor apresentar-se,
Tão de ontem faleça a luz das alvas!
Minha flor que eu plantei! Orvalho dela,
Zéfiro dela fui... quem que arrancou-te
Da terra própria, para transplantada
Noutro clima te dar, onde lá cresças,
E já planta mais fraca e triste e pálida?
Ah! com que viço o teu amor vingava!
Ah! se somente a mim, donzela, amasses,
Como feliz tu foras, ensopando
Num só amor lua alma!... Tu, sem crença,
ímpio, assassino, homem, que eu mordera
Teu sangue! mas, respeito: dele corre
Seiva de flor: a veia torna límpida
Álveo puro. Cobarde eu fui, ó meiga,
Pelo mundo fugir, dar-te o desprezo!
— O Luso como é belo ao deus da sorte
Vida, amor exalando! o Tasso amante,
Vítima assim, os dias seus prolonga
Num túmulo que os ecos lhe esfriavam
Dos ais doridos, de um ou dois seus passos
Na terra entrando: Josafá piedoso,
Teu pranto vai morrer no lago impuro,
Estéril às cidades, e o Sorrento
Mesmo, viste o Sorrento como as cinzas
Das prostitutas que cercavam o Asfaltito!
E o cantor de Marília, quando os campos
Suas ervas estremecem de escutá-lo
Em tão saudoso adeus lá se ausentando,
Branco touro amoroso das pastagens
Mugindo aos montes, arrastado o levam
Pelas torpes correntes da política
Gemer em negros climas! Inda amam
Todos eles morrendo: eu já não te amo —
Eu que te amava, e não com amor de lábios:
Com amor d’alma, em que eu amo angustiar-me,
Em contrações de morte me exaurindo;
Essa paixão de fúria ardente, horrível,
Que soe peito de poeta arder sem fim!

Dar-te ao mundo, sua filha, por no mundo
Esmagar-te infeliz, zombar de ti!
Não sabes, atro cão, que a branca virgem
De homem carece para amá-la, e amante
Doces harpas lhe afine, onde ela passe
Viva e mimosa à idade que não morre?...
Gasta o ouro a mão de homem, o tempo o mármor
Faz cair das cidades, podres frutos,
Vão-se com o tempo os deuses; mas a lira,
O século, as gerações passando ouviram
À eternidade, e o tempo asas nem corta.
E ver não temes da inocência os dias,
Longo viver, finados tristemente,
Escorrendo das mãos de vil matéria,
Quantas vezes no vício mergulhadas?

Oh! tu, por que me amaste? e os nobres tantos,
Que te incensam de roda, não basta vão?
Para que me quiseste, eu longe andando?
Foges deles para mim... Não: emudece
À pobreza, ao candor: também no bosque
Deixa a selva frondosa ingênua pomba,
Vai no pálido e fraco e humilde ramo
Recostar-se e gemer — assim no peito
Sonoro é livre, de singela, a virgem
Ama abrigar-se e suspirar, morrer.

Que longos dias, dos tão curtos, poucos
Dias que eu tenho a percorrer ligeiro
As campinas da vida, eu hei perdido
Em tua adoração, penosos, tristes!
Arrepender-me... não, que esta existência
Toda minha não vale um teu semblante,
Um teu rápido olhar. Quanto me custa
A tua ausência sopesar ainda!
Amo ao longe te ver; roçar os muros
Que habitas; estremecer julgando ouvir-te;
Nutrir-me de ilusões, de que me nutro,
Cantando nas solidões da minha vida,
Em úmidos suspiros meus amores
Expirando em teu peito; esta saudade
Que deixaste embalando-me nas lágrimas...
......................................................................

Eu sou ditoso de perder-te! adeus...
Adeus! perdoa, se inda o podes, virgem!

 

O ROUXINOL

Rouxinol, o que procuras
Por entre o verde murtinho,
Por entre a grama cheirosa,
Por entre as moitas da rosa:
Procuras acaso o ninho
Que a torrente deslocou?

Teu amor inda dormia
Na ramagem do espinheiro
Dando à prole almo calor:
E vais perguntando à flor,
Como às águas do ribeiro,
Quem teu ninho te levou.

Teu só possuir no mundo,
Doces filhos, doce amor,
Tudo, tudo te acabaram...
Ai, porque não te mataram
Essa torrente de horror
E os gritos do vendaval!

Ora somes na touceira,
Ora na pedra musgosa
E pelas fendas da terra,
Como quem se desenterra;
Levantas na voz queixosa
Teu canto, que diz teu mal.

Denegre a terra tuas penas,
Rompe tuas penas o espinho
Não sentes? e vais cantando,
Teus amores demandando,
Embora perdido o ninho
Cheio de frutos de amor.

Vês o sol como refulge
Depois que a chuva estiou,
Refletindo sobre o orvalho
Pelas folhas do carvalho?
Nunca o sol não rutilou,
Quando o peito anseia a dor.

Os pimpolhos resplandecem,
Perfuma a brisa o jasmim:
Nada sentes, filomela,
Que no mundo sem tua bela,
O mundo ledo carmim,
São trevas nos olhos teus.

Sobre a margem do ribeiro,
Túmido e torvo correndo,
Triste e muda a terna amante,
Desplumada e delirante,
De tempo em tempo gemendo
Acaba os instantes seus.

Ei-la junto de seus filhos,
Ambos mortos! roto o ninho
Rouxinol, para o teu canto,
Respeita seu mudo pranto,
Nas coifas do rosmaninho
Vai solitário chorar.

Ela não te ouve, não te olha,
Toda na prole sem vida!
Eles morreram da sorte;
A mãe lhes dará sua morte;
E tu à amante querida:
A todos vejo acabar!

Tu, amor, que cegas o homem,
Dás mortes mil à mulher;
Tu, que eu te chamo deus;
Tu, que dimanas dos céus,
Por que não fazes morrer
A mim que tudo perdi?

 

 CANÇÃO DE CUSSET

Se fosses, moreninha, sempre bela,
Tão bela como és hoje nesta idade,
Eu fora experimentar se amor perdura,
Te amando muito.

Eu sei que amor existe Enquanto brilha
A flor da mocidade resplandente;
Porém, que logo morre, quando os anos
A vão murchando.

O sonho que de noite nos embala
Em vagas estranhezas não sonhadas,
Apaga-se com o sol — rompendo as nuvens,
Ele é qual é:

Não sabes, moreninha, que os amores
São astros deste céu do nosso tempo?
É noite que, passando, além d’aurora
Deixa a lembrança?

Não quero pois amar, sentir não quero
A dor que sempre dói, que sempre dura
Daquilo que passou tão docemente
E tão de pressa!

Eu tenho inda saudades dos brinquedos
Dos tempos festivais da minha infância,
Dos beijos que bebi da mãe querida
E a benção de meu pai;

Eu tenho inda saudades da donzela,
A quem dei meu amor, o amor primeiro!
E ela ao romper d’anos tão queimada
Nessa paixão!

Os lares paternais, meu berço amado,
Com quem no bosque andava os companheiros,
Amigos que eu perdi... basta para a vida
Levar-me ao fim.

 

UM DIA É SEMELHANTE À ETERNIDADE

Nasce a menina, e suspensa
Como um fruto matinal
Dorme nos seios da mãe,
Bela serpente do mal.

Já desperta no outro dia,
Branca rosa abrindo amor,
Se cobre de pejo e graças,
Como os mistérios da flor.

E foi virgem só num dia,
E no outro dia é donzela,
Esposa e mãe já mais tarde
Também cria a prole bela.

Quando não foi prostituta
E n’alva a estrela apagou,
Nem foi a fria velhice
Que sob os pés a calcou...

Quando no crime e nos vícios
Não afoga o coração,
Quando maldita não some
Debaixo da perdição.

E é sempre a mesma cena
Que repete, ilude o mundo,
Como a página dos anos,
Como o sol no céu profundo.

 

MINH’ALMA AQUI!

Eis o céu todo estrelado.
Eis as campinas do prado,
Eis o monte cultivado
Que tantos anos não vi!

Andei por terras estranhas,
Entre amor, bélicas sanhas,
Grandezas eu vi tamanhas!
E sempre minh’alma aqui!

Pela cândida capela
Do vale, sonora e bela,
Onde o pastor, a donzela
Salvas cantão do Senhor;

Pela campestre harmonia,
Por esta vaga poesia,
Pela inata simpatia
Da natureza do amor;

Por este bosque de flores
Entreluzindo em verdores,
No país dos arredores
Ondeando o plano e o monte;

Por minha terra palmosa
À tarde, enferma e saudosa,
Quando manada formosa
Varia as margens da fonte;

Pela rústica choupana
Do lavrador, da silvana,
Da coberta americana
Erguendo espiral o fumo,

Qual no horizonte do mar
Branca vela a balançar,
A luz d’aurora a cortar
Sereno, transverso rumo:

Esqueço o mármore lavrado
Nas cidades levantado,
Como figuras do fado
Por nuvens metendo a coma;

Esqueço o céu sobre a terra;
Doirado gelo na serra,
As torres que desenterra
Sagrada, ruinosa Roma!

 

A VIRGENZINHA DAS SERRAS

Vês, ó mãe, que vão dizendo,
Toda a gente do arrabalde?
Que eu amo, porém de balde,
Que o meu amor vai-se embora,
Que na lira se evapora
Tanto amor que ele me tem...

Ele deu-me um beijo, ardente!
Tão doce como a sua fala,
Que de sua boca se exala
Como o perfume da flor;
Mas... foi um beijo de amor,
Que ainda me queima o rosto.

Meu coração estremece,
Minh’alma foge de mim:
Eu nunca senti assim
O correr da minha vida...
A paz da infância é perdida,
Minha mãe, eu vou morrer.

Eu agora o compreendo:
Ele chamou-me infeliz,
Nem mais afagar-me quis,
Nojento da sorte sua:
Hoje bela como a lua.
Para enoitar a manhã.

Ele chorou uma lágrima
Na minha face, coitado!
Era tão triste e mudado...
Meu Deus! me vendo, dizia,
E eu de ouvi-lo tremia
Sem saber o que ora entendo:

Sentir amor nessa idade,
Nesses treze anos de flor,
Qual manhã tinta de cor,
Que logo se esvai no dia...
Como a tua sorte, Maria,
Começa-te hoje enganar!

Tu sabes? eu vou partir...
Quem dera que eu não partisse!
Sempre comigo te visse
Em vida eterna de amar!
Adeus, Maria, chorar
Seja sempre a nossa vida.

Meu senhor! por que me olhaste?
Por que me ensinaste amar?
E tu vais correr o mar
E, talvez! queimar por aí
Teus olhos que sobre mi
De amorosos se extinguiam.

Que queres do mundo? e sabes
Onde vais? o que procuras
Nessa sede de loucuras?
Oh, não vás... fica comigo...
Por estes vales te sigo
Das minhas serras de Cintra.

Irei de rubra saloia
Plantar a terra lavrada,
E debaixo da ramada
Na calma te acolherei:
Teus suspiros beberei,
Na serra gemendo as águas.

Me vestirei como as flores...
Para a lira te enflorar,
Só por mim doce a tocar!
Humilde no teu mandado,
Pastora de nosso gado,
Eu serei, oh! tua escrava.

E uma escrava te não! basta
E uns amores de treze anos?
Pelos céus americanos
De Cintra a filha não queres...
Tu choras... não tem poderes
Os olhos que a pátria choram.

Eu te sigo... Queres livre
Ter no mundo o coração.
Uma cativa é prisão?
E só maldizes tua sorte,
E só me falas de morte:
Saberei te consolar.

— És selvagem dos teus bosques,
Dos teus climas do equador:
Solta a vida, solto o amor
Ao falar da natureza;
Tu amas pela aspereza
Resvalar teu pensamento.

Terás, ó vento da selva,
Terás, ó voz natural,
Com o meu amor virginal
O teu ser livre senhor...
Porém, chorando? sua dor,
Beijou-me... não sei... voou!

Sonhos mãos eu vi de noite,
Com rios d’água sonhei!
Meu choro, ó mãe, verterei,
E como as ondas andando
Tristemente e soluçando
Vou morrer também no mar.

Minha, infância perturbaram:
Com minha mãe sossegada;
Me deixaram desgraçada,
Que docemente eu vivia...
Era a noite! irmã do dia:
Meu amor tudo acabou!

Meu amor foi só duma hora,
Foi como o lírio sorrindo:
Sentia minh’alma abrindo
Qual filha do sol num raio!
Porém murcha já desmaio
Nos seios de minha mãe.

 

HORA COM VIDA

Eu contemplava o céu no pôr do sol,
Olhando para o sul. Ana comigo,
Depois de toda a tarde em nossos brincos,
No cair do crepúsculo assentou-se
Nos meus joelhos, pensativa olhando;
E depois nos meus ombros por dormir
Deixou pender sua fronte sonolenta,
Como essas flores de alegria, como
A rosa branca matutina, infante
Bela entristece no fechar da noite.
Dorme, flor da manhã, sono sem sonhos
Na árvore do amor, pomba celeste
Que adormeceu na terra, sê meu zéfiro
Com teu alento virginal: teus seios
Como nos seios de tua mãe eu sinto.

Como etéreo rochedo, negra nuvem
Começou a crescer; atrás se abriam
Relâmpagos, relâmpagos, que fendem
Como o fogo da casa dos pastores
Entre a parede rústica acendendo.
A noite desentrança-se em desordem
Por toda a terra; os ventos furiosos
Soltaram-se acocando a chuva adiante;
O bosque estronda, como em desfilada
Mil cavaleiros nos despenhadeiros;
O mar repete o céu; perto o trovão,
Qual sobre nós rolando pelos tetos,
Pesado brama, e sob a terra o sinto
Os meus pés levantar, qual de medrosa
Refletindo sua voz que cai dos ares,
E o mar debaixo arremessando os uivos!
Os raios despejavam-se em distância
Sobre uma torre negra: e o bronze rompem,
Todo o templo arruínam, como os anjos
Do fogo, que o Senhor aqui mandasse
Destruir seus altares profanados.
Mas, passou. Branquearam mansamente
As estreladas ondas, morre o vento,
Espalha-se o luar pela montanha,
A limpidez do céu brilha a torrente
Para os vales sonoros, e eu desperto
Como de um sonho matizado de êxtases.
Corri a minha mão no corpo de Ana:
Qual num raio do sol mimosa pomba
Arrepia o pescoço, estende as asas
Em sensações gostosas, se encolhendo,
Me apertando com os braços longos, brancos,
Estremece, e tão plácida ondulava!
No manto meu agasalhada, úmido
Pelas rajadas que de um lado entravam.

Eis uma hora da vida que me encanta.
Ah, que uma hora eu vivi nesta existência!
— Meus sentidos, minha alma à tempestade
Horrível, bela; e sobre o coração
Um anjo virginal, uma criança.
— Ela depois falou-me dos trovões,
Que vendo-me tão quieto não temia
Dormindo; e deu-me um beijo, e pela mão
Leva-me junto de sua mãe rezando.

 

VEM, Ó NOITE

Já partem do ocaso as sombras primogênitas da noite:
já imagens de amor diante mim revoam, nascem à meus lado,
chamam-me — e eu estremeço!

Vem, ó noite esperançosa,
Sobre a montanha descer,
Nas asas sombrias, longas,
Tantos crimes esconder.

Lá fuma a linda cabana
Onde irei morrer de amores.
Vem, ó noite, me arrebata
Para a filha dos pastores.

Com teus mádidos alentos,
Varrendo a flor e os perfumes,
Amorna o fogo embalado
Pelo aquilão dos ciúmes.

Fujo a Deus, que me condena,
Foge a filha ao velho par —
Para amor! oh, vem, ó noite,
Tantos crimes ocultar.

 

À***

Também por entre os cardos abre a rosa...

Amor! amor! na mangueira
Já cantaram os passarinhos:
Acorda, ó linda, no monte
Vamos ver nascer o alvor:
Mesmo assim desentrançada
Vem, não tardes, meu amor!

À frescura repousemos
Do boninoso pomar,
Meigas auras, meiga flor
Contemplando, ó doce amor!

A borboleta respira
E deslaca ébrios revoos,
Como a folha solta ao ar:
Mas às correntes do olor
Não, não anda, ó virgenzinha,
Louca, louca vai de amor.

Prateado rompe o lírio
Nevinitentes casulos,
Roda dele o beija-flor
Ilude-se vendo amor.

A laranjeira oferece
Lindo adorno à linda noiva...
Matiza os verdes raminhos
De cintilante candor:
E belo o pomar! mais graças
Vejo nele ao ver-te, amor!

Já se douram teus cabelos,
Dourou-se toda a manhã,
Teus olhos dão mais fulgor
Não fujas... ó doce amor!

Foi o sol como é formoso,
Leda barca em mar de azul —
Fazes do mundo um primor!
E mais que o mundo o teu rosto
De ebúrneo-róseo palor:
Por ele que tudo alegra,
Por ele rujo de amor.

Sobre nós verga a ramagem
O murmuroso espinheiro
Simbolizando o pudor:
Ó virgenzinha os espinhos
Nascem mais onde há mais flor:
Pudibunda e rigorosa
Também me foges, amor.

Tens medo que o sol te veja?
Deste zéfiro em tuas trancas?
Tens medo que o saiba a flor
Que tens nos olhos amor?

Coitadinha, anjo inocente!
As asas de musa temes
Manchar da manhã na cor
Do primeiro sol da vida!
E delirante em rubor
Ao seio as fechas, nem sabes!
Plantando rosais de amor.

 

SONHOS DA MANHÃ

Foge do sol, ó noite, lenta barca,
Vais no golfo do dia naufragar:
Aqui somente os temporãos me agitam:
Remonta ao largo mar.

Recomeça tuas horas sonolentas
Do cume das estrelas para o monte
Cadentes de astro em astro; o sol que morra
No fundo do horizonte.

Oh, maior do que um deus, dobrado escravo
Sobre a terra, meus olhos te adoravam!
Estranha de me ver assim, teus olhos
Castos se envergonha vão.

Eu beijava os teus pés, que nos meus lábios
Se contraíam fugitivos, frios,
Qual trêmula mimosa sensitiva
No calor dos estios.

De inocente, ignorante, qual murmuras
Tímidas negativas amorosas,
Que somente se leem na cor das faces
Como vermelhas rosas.

Cercada de uma luz religiosa,
Tens dentro das tuas mãos a minha mão:
Não se ouve uma voz, somente arqueja
A boca e o coração.

Nossos olhos formavam longo pranto...
Oh, quantas vezes límpidas torrentes
Engrossaram de novo adormecidas
Moribundas correntes!

Por sobre o nosso peito ondeante baixos
Debruçavam sua luz morta, embebida
Nas águas dos seus rios da esperança
Como de extinta vida:

Como dois corações que se buscavam,
Errantes sombras de solidão, de dó:
Quebrados de emoção estremeceram,
Só pranto... e pranto só.

Oh, tu nunca me olhaste! e o que mais fala
Do que essa lágrima espontânea, pura?
Como o sulco celeste, como as veias
Retratando a espessura.

E um respeito de amor prendeu-me os lábios,
E eu pedia aos céus tu não falasses,
Anjo mudo... terror belo subiu-me,
Julguei a voz soltasses:

Foi brando soluçar; como na areia
Cai suas ondas azuis queixoso mar,
Como a lua, passando as jardas nuvens,
Respira outro luar.

Já sentia no teto as andorinhas,
A calhandra no ramo, o rouxinol
Entrando pelas fendas, e os obreiros,
Tudo dizia o sol.

— Temeste acaso que de ti soubessem?...
Cabia a minha mão: eu despertava
Da tua adoração: perúlea sombra
Já longe se apagava.

Qual linfático sol vejo rodeando
Meu corpo como a terra, que fecundas
De força e vida; qual de amor, de esperança
Toda minh’alma inundas:

Depois, desfez-se em raios vaporosos;
Meu peito era só lágrimas: eu via,
Toda minha existência desgraçada
No sonho se esvaía.

E de hora em hora mais eu tenho amor:
Eu abro diante mim sombras da morte
Por ver-te no longínquo duvidoso,
Embora, embora a sorte!

É por ti que estes montes frutificam,
Que estes campos do mar são meus amores;
É por ti que nos céus tenho um só Deus,
No prado tantas flores!

Tu és a voz que exprimo, és o meu eco,
És minh’alma, és a minha eternidade!
Ó noite, volta a minha vida, apaga
Do dia a claridade!

 

M***

Maria, por que choravas
Na minha triste partida?
Sou tão longe, escuto ainda
A tua queixa perdida!

O nosso amor educado
Dos berços, na solidão,
Foi como a flor enganada
Aos bafos da viração.

Crescemos: e de inocente
Me davas o teu amor.
Amei-te! porque te amava,
Fui teu sevo ceifador.

Porém, essa flor colhida
A grata sombra da palma,
Encanto! ideal mimoso!
Aroma eterna minh’alma.

Amei-te! tua voz de aragem
Ainda ouço, donzela,
Nos olhos meus embebida
Foste para sempre bela.

És comigo em céus estranhos,
Toda formosa aldeã.
Inda juntos nos deitamos
Nas ramas do pirinã.

Os anos que vão descendo
Sejam dias de esperança;
A noite de tempestade
Sucede o sol da bonança.

Maria, dos olhos belos
As veias límpidas para,
Não laves do fogo as faces
Que eu amoroso beijara.

Maria, constância e vida,
E todo esse amor de outrora:
Os anos a flor não murcham
Quando o amor não descora.

 

POBRE FILHA DA POLÔNIA

Uns olhos de eterno, saudoso cantar
Que em ondas vanzeiam, se arqueiam no mar
Que em pranto se fazem
Que em luz se desfazem
Se enchendo de amor;
Uns lábios tão tintos
De vida e pudor
Não vendas, donzela
De fronte de estrela!
Embora mendiga, chorando na terra
De estranhos, sem pais,
Não manches essa alma no gozo mundano,
Que o céu vale mais!
Tiranos oprimem tua pobre família,
Tua pátria infeliz...
A França é tão bela! coitada avezinha,
Tu sejas feliz!
Encontres um ramo nas selvas gaulesas.
Oh, lua mãe te faltou, virgem, bem cedo,
Flor sem rocio, rouxinol sem ninho!
E nossa mãe perdida... chora! chora!
Qual para o viajante, e mudo e triste
Ante o abismo... não foi da morte a ideia:
E nem pranto e nudez sem dor os homens
Te viram, lindo céu de alvas estivas.

 

BERÇOS DO AMOR PRIMEIRO
(Episódio)

Tristes recordações! a mãe chorosa,
Como quem busca confirmar um sonho
Ante a sombra que fica do passado
Errante pelos sítios tão queridos
Numa saudade sem poder deixá-los,
Carpe sua filha amada: julgou vê-la
Naquela flor ao vento se inclinando;
Vaga promessa a natureza exprime
Em doces gestos de quem vai ser mãe,
E ela já sente palpitar-lhe os seios,
Ela embala-lhe os braços de esperança —
Espera — assalta — vai — porém sorriu-se,
Foi leve sussurrar daquele ramo.
O amor materno triunfou, quebrou-se
Mundano orgulho aos pés da humanidade:
Tudo a convida às lágrimas, e o mundo
É tão mesquinho, que um amor somente
O faz esvaziar! Delira e geme,
Vendo harmonia abençoada em tudo,
Sua filha amando como as aves amam,
Inocente e divina, e ser maldita
Fugitiva do lar: remorso a come —
Cerdosos javalis a acometendo,
Em gritos, sem lhe a voz sair dos lábios —
E seu vivo sonhar. E contra o filho
O homem, que é mais bruto, inda fremia!

Nos berços viviam de argêntea existência
Tenrinha donzela, éfebo gentil:
Mais eles cresciam, mais neles vibravam
Assônias de amores na crença infantil.

Tão linda era a virgem! mais linda que a lua
Na Rice das folhas, nas ondas do mar —
Seu rosto era nota de lira encantada,
Seu corpo cadência de um vago pensar:

E ele tão nobre, sisudo e formoso,
No raio dos olhos derrama a paixão —
Feridos centelham de morte, na calma
São órgãos sagrados cm branda canção.

Intriga se erguera, vai lisa serpente
Falaz, venenosa minando as famílias:
Os velhos rugiram vingança de sangue;
Os moços choravam compridas vigílias.

Furtivos uma hora no templo se viam:
Na hóstia e no cálix seus olhos juraram:
No eterno da noite da vida distante
Um sonho de um dia somente sonharam.

Em lábios ardidos não dormem suspiros,
Qual aves de fogo perdidas no espaço
Carpindo seu ninho, seus olhos se fecham,
Coitados amantes, ouvindo o fracasso.

E filhos da infância que amavam seus pais,
Já ouvem suas bênçãos em mudo terror:
Tão doce de outrora, sua mãe aborrece —
Mais crua se a leva, mais nutre-a de amor.

Sobre os joelhos paternais o moço
Delirante caiu nas mãos sustida
A fronte apaixonada. Ela inocente
As discórdias senis: “Senhor” dizia,
“Minha vida não dais, eu sou mendigo
Por serdes pai, e só... na divindade
Deste amor que é do céu minh’alma apuro:
Que não sejais maldito nos meus lábios
Meneai a cabeça
Crespa de cãs: debalde não são elas
O selo da prudência...”
Semblante de punhal cingiu-lhe o aspecto,
De amarelo clarão banhado e tinto
Dos olhos dentro de uma sombra negra,
Qual se gêmeos não fossem, transtornados;
Vacila o corpo; os dentes se arrastaram
Em seus rancores; convulsando os braços,
Víscida boca biliosa impreca:
“Vai-te!”e repete: “Vai-te!
E o pranto, fraco! desses olhos tira.”

Solitária estava a virgem
No seu exílio de amor,
Em torno dela gemia,
Enquanto a brisa corria
Indecisa, breve flor —
Timidamente exprimindo
Seu viver encantador.

Com seus pés sua mãe se abraça
Toda em lágrima banhada:
Seus olhos eram piedosos,
Seus cabelos envirosos,
Como a sua alma cortada,
Dolorosa a cruz do Cristo
Na mão de cera ajuntada.

Apresenta-lhe nos braços
Os lácteos seios que amou
De maternais vibrações,
Onda n’alva dos verões
Que o mar na praia ondulou:
“Pela nossa ilha prezada
E este sol que Deus criou,

Pelas flores que plantaste
Nas terras do teu jardim,
Por este lago dormente
E pela verde corrente
Que cerca os pés do jasmim,
Elas aves que te amaram,
Fruto que nasceu de mim!

Não queiras de um pranto fúnebre
Tudo murchar que foi teu:
Que valem do mundo amores,
Como estação de verdores,
“Como uma aurora do céu?...
Desgraçado o amor que a filha
Em fera vil converteu!

Meu caminho tu levaste
Pra o encontro do amor:
Eu era ovelha inocente,
Tu vias essa alma ardente,
E nem vias com terror
Uma paixão que crescia
Como para a morte a dor!

O amor com os anos muda
Em cada quadra da vida:
Hoje à mãe pertence a filha
Que depois o amor humilha.
És culpada, ó mãe querida,
Sigo as leis da natureza...
Nem sou maldita perdida.”

Ira de pais da terra sibilava
Contra o casal de Deus e de natura.

Flores, abri-vos, perfumai a relva
Nos braços da solidão; sombra da balsa,
Cai fresca e trêmula dos zéfiros;
Vinde do monte, estrelas taciturnas,
Do monte, ó sol de raios criadores,
Aos cantos matinais da cotovia!

E o colono cantava:
Nos meus vales da Germânia,
Meu amor junto de mim,
Nunca o dia foi tão belo,
Nunca a noite amei assim!

Morremos num sol — do céu
Nosso amor foi tão somente
Um raio puro do Eterno,
Que logo a si se recolhe
Destes pedestais do inferno.

— É voz etérea — os amantes
Dizem sempre quando a ouviam
Sair do rio ou do campo —
Morreram num sol! tão breve
Passa na esfera o relampo. —

Numa noite de prazeres
Quando as luzes se apagaram,
E longínquas desmaiaram
Sonorosas vibrações

Das copias que eles cantavam
No mui saudoso violão,
Como opresso coração
Almas irmãs exalando;

Quando pelo ameno rio
Subiam longas canoas
Longa palma em curvas proas,
Vela de ramos ao vento;

Pelos bancos de remeiros
Noturnas alas cantando,
Melodias balançando
No silêncio dos mangueiros,

Melodias encantadas,
Melodias que chora vão
Que nas correntes boiavam
Das mansas águas do Anil —

Dos regolfos à cadência
Do remo na pá tangida,
Como às vezes comprimida
Parece a nuvem cantar;

Quando num leito de sombras
Pálida lua descia,
Como que seu rosto erguia
Lá de trás dos horizontes —

Por ver os astros ficando,
Por ver a terra jazendo,
Por ver às auras correndo
Brando arfar o palmeira!

Esse rumor indeciso
Da natureza, a ardentia
Que ruga a proa e desfia
Subindo na maré cheia;

Quando o monte está dormindo
Sobre os vales debruçado,
E sombrio e rodeado
De vago e belo pavor —

Uma ave parou no teto,
Na asas o sono estendeu:
Nem mais o vento correu,
Nem mais ouviu-se uma voz.

Era o tempo em que os campos do outro ano
Queimam os pastores ao pascigo novo:
Um fogo oculto da juncosa terra
Os seios lavra e lambe. Sobre o rio.
Só, pendia a cabana graciosa
Do par amante em páramo espaçoso
Branco arbusto de flor entre a verdura.

Virentes trepadeiras nas paredes
O buxo e a primavera se estendiam,
Perfumadas de flor:
E arde o fogo na flor, arde a pindoba
Em rápido estridor.

Entre o fumo de altar, batendo as nuvens
Suave claridade entrou no céu.
Já nada existe!
Passando os pescadores na corrente,
Perguntam “Viste?”

E o boato correu. Conta na história
Junto do fogo de à noitinha à porta,
A calada da rústica família,
Cândida e crente o camponês vizinho:
“Não descambavam as estrelas ainda:
Vi florir no oriente uma roseira
Como o dia: sobre ela revoaram
Duas rodas de nuvem tão bonitas,
Tão límpidas, tão alvas como o pombo!
E a roseira as levou — rosas e o dia —
Lá para o fundo do anilado céu.
Tornou anoitecer: e sobre as margens
A cabana das vozes arcangélicas,
Qual na entrada do estio os passarinhos
Fazem seu ninho, se aninhando cantam,
Não viu-se mais; assim desaparecem
Lá nos mares do Norte ás luas mortas
Palácios encantados a desoras.”

Quanto é doce a desgraça dos amores,
A lembrança das lágrimas enxutas
Servindo de horas vagas namoradas
As camas de arabrosia, são prelúdios
De um eterno gozar que os céus ensaiam!
— Mas os dias felizes são tão poucos...
Já nada existe!
Passando os pescadores na corrente,
Perguntam “viste?”

 

O PRÍNCIPE AFRICANO
(Episódio)

O amor do céu vem à terra só
Por um dia, e morre como
as flores morrem.

“Bela escrava da minha alma,
Do leu príncipe senhora,
Adeus — a ilha me espera,
Já desponta a rubra aurora.”

“Não, ó príncipe, não fujas
Da sombra da tamareira:
Só contigo, como é doce
Descansar nesta ribeira!

Olha, a praia é tão deserta,
Tão deserto este areai...
Vejo o mar leão sanhudo
Com sua juba de cristal.”

“Filha da noite sem astros
Ó filha minha, Nydah!
Flor do verde sicômoro,
Dias de sol do Saara,

Mil homens levam a guerra
Às margens do Senegal:
Em ferros trarei mil homens
Nestes caminhos de sal.

Quando a lua andar três vezes,
Vindo depois a nascer,
Dos teus braços desatado
Nos meus braços te hás dever.”

“Não, ó príncipe, não fujas!
Não sei o que n’alma eu sinto...
Morrerei... se assim te fores:
Crê nos meus olhos, não minto.

A voz de abestruz na aurora,
Estes soluços do mar,
O vento morno, o céu triste
Não sentes tanto falar?...

Já debaixo do baobá
Veem com o sol saudar o dia:
Sagrado o fogo se acende,
Templo de folhas lumia:

Batendo o pé das raízes,
Dizem aos teus antepassados
Que jazem dentro do tronco
Há dois mil anos passados—

Que venham ver seus domínios,
Que ainda existe a nação —
Todos adoram cantando,
Todos joelhos no chão.

Acordam... vão pelos galhos
As sombras dos velhos reis...
O povo e o reino bendizem
Vivendo nas antigas leis...

Fizeram o giro... lá descem
Na ordem da sucessão...
Em torno o povo já dança,
Ruidosas palmas na mão.

Despediu-se o aniversário
Do que foi vivo primeiro.
Entraram as almas... só pende
Um braço do derradeiro...

Grita o átropos ao lado,
Fazendo voltas, zumbindo,
Crânio pálido em seu dorso.
Gestos sinistros abrindo...

Oh, não vás! calamidade
Move o braço e dá sinal:
A morte voa na guerra
Do peão ao principal.

E esse vegetal sarcófago
Onde dormem teus avós,
Nau perdida vejo em mares...
Servindo de terra a nós!...”

Amor de glória insensata
Vence os amores dá escrava:
E o coração que não mente
Vingança dele bradava.

Como ave a fugir do ramo,
Que prende o laço, a donzela
Sua alma tem pelas asas
Em forças nos braços dela:

E mais longe indo a piroga,
Mais a luta se animava:
E de asas longas o alado
Consigo o ramo arrancava.

Seus gritos aterram os ventos
Voltando as vagas no mar,
O cavo da vela ebúrnea
Veio-se oposto formar.

Rolou nas abas do monte,
Gemeu na beira arenosa,
As ondas vieram mansas
Lamber-lhe a pele mimosa:

Saíam d’água por vê-la,
Faziam-lhe um berço amigo,
Umas escumas de flores
Trazendo vozes consigo.

Pávidas fogem. Das praias
Longa o berro a penedia:
“Minha sorte ela sonhava,
Pendente o braço a dizia.”

Parou seus ramos o tronco,
Yalofo nobre ululando:
As rochas foram sensíveis,
Seu choro às rochas levando.

Inda os olhos se desfiam
Por negro-nítido rosto,
Inda gelava na boca
Mudas falas de desgosto,

Uns frutos nas mãos guardando,
Gostoso pasto de amor.
Tomou-a nos largos ombros:
“Morre o que comigo for!”

Como o elefante mordido
Do insondi no palmar,
De vê-lo as vagas recuam
Amedrontadas ao mar.

“As correntes! as correntes!
Tempestade e o vento largo!
Meu rumo o abismo, do nauta
Voz de agouro o pranto amargo.”

Passa a ilha de Coreia,
Passa as terras de Dacar,
Noutro dia o Cabo-Verde
Ficava longe a boiar.

Navegando à negra popa,
Ele a vive, ela o matava:
Seu pranto era fumo se exala
Do corpo frio que lava:

Ele a cinge sobre o peito
Comprimindo o coração:
A frialdade da morte
Faz-lhe querida ilusão.

Libra-se no ar indecisa,
Saudosa e tarda a pairar:
Olha aos céus, olha na terra,
Não pôde a terra deixar

A alma que a terra amou:
Ave muda esvoaçando
Em volta do belo pássaro,
Partindo sempre e ficando.

Morria contente o amante:
Por nuvens a sombra vendo,
Abraçava-se com a morte,
Membros a ela estendendo.

Ele já vê-se em caminho,
A vida na morte está;
Mas, vê-se vivo: me espera!
Brada “ó alma de Nydah!”

Ninguém sabe aonde o junco
Acaso fora encostar —
Naufragado, em terra inimiga,
Pelas costas de além mar:

Qual na areia a caravana
Vezes some nos desertos,
As ondas nada disseram
Nestes campos descobertos.

Inda hoje pelos vales,
Pelos montes vai gemendo
Errante, sombria gente,
Os nomes deles trazendo.

E, tão lenta, vem com a noite
Nos cumes da penedia
Arrancar ave estrangeira
Fundos pios de agonia:

Depois revoa, chorando
Sobre a praia e sobre o mar,
E se perde no horizonte
Para outro dia assomar.

Dizem ser a alma do príncipe
Que futuros vem contar:
Perderam seu rei, sua tribo
Terras altas de Dacar.
 


PRIMEIRAS-ÁGUAS

Ó tempo onde a poesia também nasce!
Coroa triunfal das mãos das auras,
Dão-te louvor os animais contentes;
Conversa a natureza com suas ervas;
Cresce a vegetação, cantando o rio;
O céu de transparente azul, e os mares
Pela corrente balançosa o levam
Num leito de liquor: eu também vivo

O céu, a terra sorri,
Brilham astros, nascem flores,
Cantam aves na montanha,
Formosa estação de amores!

Nas plantas do prado ameno
Favônio passa e volteia,
Falam náiades na fonte,
Fala na vaga a sereia:

Novo o campo, a rês esmalta,
Mimosa cria a pular;
Lisa fusca novilhinha
Anda a manada inquietar:

Roça as pontas aguçadas
No touro, foge ligeira,
Cava ou berra, e na planície
Doudeja incerta carreira.

Verdura matinal da criação!
Primeiros dias da existência, quando
Nas mãos de Deus o mundo palpitava!
Encantado prazer da natureza!
Nua donzela peregrina, cândida
A sair da espessura aos campos verdes
Abrindo as flores, despertando os zéfiros!
— O horizonte se embala, como os olhos
Da formosura preguiçosos libram
Vagas fôrmas de amor: matiza o monte;
Pela baixa odorante o inseto gira;
A serrania se trajou de galas;
Em seus galhos os troncos se encurvaram
Desdobrando suas folhas vigorosas,
Aos esmaltes do sol pendendo a fruta;
Deitou-se a onda, por adormentá-la
Desce apenas galerno; em seus clamores
Vai queixoso ribeiro, qual perdido,
As pedras compungindo e o penhasco.

Sobre a margem do ribeiro,
No regaço da espessura
Terno à voz quebrada d’água
Exalta o moço gentio
Os encantos da tapuia,
Da caça quando voltou;
Nos seus braços cor do coco
Doirado no manzari,
De ramo em ramo o japi,
Chuva de flores por ele,
De leito em leito a corrente,
Olhando ao céu descansou:
E tão ditoso de amores
Brincos engendra cora ela,
Tece-lhe as trancas corridas
E depois uma capela,
E depois, de vivas tintas
Enche-lhe a face de cores.

Como minha alma se engrandece ao ver-te
Princípio da existência do equador!
Nem os anos caducos envelhecem
Na zona perenal, formosa, esplendida:
Nasce o inverno em cândida menina,
Educada e nutrida do alvo leite
Da camponesa forte, e como a planta
Viçosa desenvolve-se uma virgem —
Vezes nos olhos centelhando o raio,
A bela voz nas asas do trovão,
Pelo corpo robusto lhe ondulando
Esta vegetação de Éden — às vezes
De uma tristeza pensativa e doce.
Ura vago contemplar — vezes risonha
Se difundindo em trinos contendores
Na fresquidão dos ramos, sobre a aurora
A espalhar-se de amor — ou se amostrando
Na flor aberta da geniparana,
Do maracujá roxo, aos afagos
Da natureza rindo-se, a fugir-se
Aos seus beijos na ponta da vergôntea.
Dos castelos argênteos do zodíaco
Venha agora o verão, nem desfalece
Dando-lhe o reino florescente a irmã,
Que seis meses depois torna a ser dela,
Quando às flechas do sol o campo fuma
Calcinado e fendido e o vento move
Branco areai os astros retratando;
Quando dos montes para a beira descem
Ledas tropas — eu amo ouvir suas vozes,
Dormir na choça, levantar-me cedo,
A malhada mugindo a alvoroçar-se,
Como o grupo das nuvens no oriente.

O bosque molemente se sacode
Nos vapores da terra embalsamada;
As palmeiras se abraçam pela encosta,
Amorosas donzelas se esquivando
Aos enleios dos zéfiros que gemem,
Seus esgalhos e as pencas arrebentam,
Aonde o sabiá guarda o seu ninho,
Os cachos pelo colo suspendidos;
Pericumã que passa bracejando
Pelo longo de areia ecos repete
Da voz dos vegetais, por toda a parte
Renascente harmonia; acordam os salmos
Entre as aves palustres pela borda
Da azulada lagoa; o cisne a corta
Formosa jaçanã dá-lhe acidentes
Erguendo as asas esmaltadas, longas;
Na moita do capim depõe seus ovos,
Qual outros picam, qual já estão tirando;
Atraída ao seu canto urubarana
Vem no bico morrer da bela alcíone;
Nos ares a araponga, alimentando
Doce pomba-sem-fel no ramo a prole.

Lá ronca o pecori, restruge a onça
Das entranhas da brenha — amor a leva,
Amor a mata no cair da sombra
Da taboca frondosa: as feras te amam,
Inocente sorrir da natureza!

Reúnem-se os vaqueiros nos currais,
Estão ferrando o gado: as ancas fumam
Na chapa dos senhores, berra a aneja:
Rompem-se as festas: das cortinas saltam
Para o touro que parte e a vaca brava
Se aproximando inquieta à voz dos filhos
Inda encostados: na planície amansam
Os poldros, e à parelha se desfilam.
Percorre a bacalar o senhorio,
Os agrícolas falam de suas lavras.

O camponês na rústica choupana
Passa alegre o serão junto da amante:
À terna viola que nas mãos lhe treme
Como em doce gemer se evaporando
Seus amores reconta apaixonado
Flores perenes aos que são ditosos
(Meu cipreste fatal que nunca murcha,
Com a negra lança me escrevendo letras):

“Te lembras, zagala, ainda
Quando o amor nos ferio?
Esses dias tão formosos
Da quente sesta do estio.
Esses floridos no inverno
Faziam pelos meus olhos,
Eu te não vendo, o inferno!
Dês que a terça escurecia,
Como a noite eu a chorar:
Mocho noturno me ouvia,
Ouvia-me a lua branca
Nestes céus a divagar;
Inda acordado me achava
O canário, o rouxinol
Quando a romper começava
Mimosas canções ao sol;
E eu sozinho levava
As ovelhas às campinas;
Não me alegravam matinas
Em lindo roxo arrebol...”
E desperta, e deixa o canto,
Nos olhos a pôr-lhe um beijo:
“Como tudo está sorrindo,
Zagala, que assim te vejo!”

Porém no prado da ribeira guiam
Em balada amorosa alvo armentio;
Reluz o orvalho no capim rasteiro,
Que mais se atenra pela sombra irmã:
E ali se brindam de murtinho e flores,
E em virentes juncais passam na sesta.

 

VAMOS JUNTOS!

Tu seras ma bergerette,
Je serai ton pastoureau:
A nous chante l’alouette,
A nous bondit le taureau.

Formosa Ana dos campos, vem comigo,
Vamos ver apascentar nosso rebanho,
Como salta na relva o teu castanho
Carneirinho que tanto e tanto estimas:

Vem trazer-lhe nas mãos cheiroso trevo,
A lã mimosa lhe afagar: tremente
Virá de manso, cândido, inocente
Resvalar em teus pés, lamber de amor.

A tarde já se estende na campina,
E já balando a ovelha ajunta os filhos
Tangendo para o cerco: os verdes trilhos,
As alvas ancas de alvas tetas banha.

O gado é todo alegre nesta quadra
Quando a terra floriu, primeiras águas;
Contente o peito humano esquece as mágoas,
O Janeiro a sorrir pintando os montes.

Risonhos céus, na lavra as plantas nascem:
Errar é doce os campos viridantes,
A vista dilatar pelas distantes
Solidões melancólicas, caladas;

Ver como brandamente embala o vento
As folhas meneantes da palmeira,
Como ao choro lá cantam da ribeira
As aves que com ela vão descendo.

Subiremos o cimo da coluna
A fresquidão gozar da tarde amena,
Das filhas do silvedo a cantilena
Nas sombra da espessura realçando;

Ver como do salgado já rumina
Nédia manada à sombra dos mangueiros,
Contemplando das ondas os cruzeiros
Quando passa a canoa a navegar.

E depois, o serão gostoso e grato
Em prática inocente e deleitosa:
Contarás em tua fala sonorosa
Aquilo que mais soube te agradar:

E eu te escutarei nessa harmonia
Que faz minh’alma delirar, morrer!
A lua tão vaidosa em seu correr
Nos ares sentirá tanta ventura.

Formosa Ana dos campos, vamos juntos
Pelos sítios do nosso alvo rebanho,
Pela relva onde brinca o teu castanho
Carneirinho gentil, que são teus mimos.

 

O INVERNO

São lágrimas, são lágrimas fecundas
A chuva no arvoredo carregado
Arrastando no chão sua flor e os ramos:
Exala o campo os mádidos aromas
As borboletas esmaltadas, belas,
De asas largas e azuis, aos mil confusos
Insetos de ouro: lá no bosque longe
O lago berrador. Fresca roseira
Toda aberta de rosas encarnadas,
Gomo um anjo da guarda se arrepia,
Sussurra ao beija-flor que ruge as asas,
Defendendo suas filhas: e amoroso
Ele pia e faz círculos, defuma
Suas penas em seus bafos virginais;
Porém, respeita a voz materna e maga,
Mimosas folhas, e os botões que inclina
O viço esplêndido e o cristal — humanas
Donzelas, que verteis na mocidade
A rúbea seiva que de excesso monta.

Salve! felicidade melancólica,
Doce estação da sombra e dos amores —
Eu amo o inverno do equador brilhante!
A terra me parece mais sensível.
Aqui as virgens não se despem negras
À voz do outono desdenhoso e déspota,
Ai delas fossem irmãs, filhas dos homens!
Aqui dos montes não nos foge o trono
Dessas aves perdidas, nem do prado
Desaparece a flor. À cobra mansa,
Cor de azougue, tardia, umbrosa e dúctil,
No marfim do caminho endurecido
Serpenteia, como onda de cabelos
Da formosura no ombro. A noite a lua,
Qual minha amante de inocente riso,
Com a face branca assenta-se nas palmas
Da montanha estendendo os seus candores,
Mãe da poesia, solitária, errante:
O sol nem queima o céu como os desertos,
Simpáticas manhãs é sempre o dia.
Geme às canções de aldeia apaixonadas
Mói saudoso violão: as vozes cantam
Com náutico e celeste modulado.
Chama às tácitas asas o silêncio
Ao repouso, aos amores: as torrentes
Prolongam uma saudade que medita:
Vaga contemplação descora um pouco
O adolescente e o velho: doce e triste
Eu vejo o meu sentir a natureza
Respirar do equador, selvagem bela
De olhos alados de viver, à sombra
Adormecendo de árvore espaçosa.

O touro muge; a ondulação passando
Deita o junco, que torna a levantar-se,
E de novo se acama e se embalança.
A filha das solidões e dos mistérios
Do meio dia e da tarde desmaiada,
A mãe dos ais, a rola desgraçada
Geme, geme! — se cala a natureza,
Tudo se despovoa e se deserta,
Entrando a revocar reminiscências,
Que a lembrança perdida ela desperta.
Vê-se um gênio a vagar por toda a parte
De mãos no rosto, de pendido colo
E os ébanos compridos em desfios —
Eu amo o inverno! — e o gênio que divaga
Descera coluna pelo vale às praias,
E lá perante as águas para e chora,
Irmãs tão belas que se simpatizam;
E os seus prantos consomem-se nas fendas
Enegrecidas pela encosta parda.

Cai a tarde dos serros emanando
Os vermelhos vapores do ocidente.
Não teve sol o dia, suspendido
Da chuva por detrás, vento nem houve
Grosso orvalho se escoa na espessura:
O céu dum azul vasto se evapora.
Sai da varanda do casal a filha,
Tão cheia da amplidão que está na tarde;
Pura e cândida e vaga, tudo amando,
Chega ao pé de uma flor, afaga-a e passa,
Como quem disse “não és tu”: se nascem
Das ervas que a rodeiam com suas flores
Borboletas de prata, se estremecem
E vem suas asas lhe encostar nos braços,
Pousar em seu vestido e seus cabelos
Dos seios almos umectando a alvura.
Virgem das brenhas, eu no teu regaço
Dormirei plácido? eu nesses teus olhos
Longos esquecerei meu pensamento,
O coração de amores se inflamando?...
Vai distraída pela estrada nova,
Do caju rubro e o limoeiro em fruto
No manto florescido se encobrindo.
Eu amo o inverno! ó mata silenciosa,
Onde suspira a nambu-preta, e canta
Salmos o sabiá de íntimas harpas!

Deu mais um passo a natureza, e nasce
A vi ração mimosa do crepúsculo:
Quando a canoa do anajá se abrindo
Da parte do poente a flor miúda
De ebúrnea fenda pelo tronco entorna,
Como a pérola corre perfumada
Dos lábios de uma esposa; se desprende
Um coco e faz a vibração no solo.
A cigarra se esvai penosa, e morre.
— Dá mais um passo a natureza, e se ergue
Noturna brisa pelos negros ramos;
E já somente senhoreia a noite
Juncada de luar. Espasma os gritos
O urutauí na umbaubeira alvar,
Tão conchegado a se perder no tronco,
Como se o tronco que desconcertasse
Uma voz vegetal pelas solidões.
Qual de estrelas em pó que os céus filtrassem,
Treme o horizonte de folhame argênteo,
Dorme aos piados de desagasalho
Do caboré friento. Agora estende-se
Uma nuvem de chumbo: e na alta noite
Gemia a chuva: a madrugada é bela,
Linda menina a amanhecer na fonte.

Estrala a ave no bosque, aves ignotas
Rompem alegre matinada: o rio
Enlaça o pé da lânguida juçara,
Onde o tucano embala-se engasgado
Cantando sobre os cachos: zumbe a abelha,
A silvestre uruçu se envermelhece
Nos úmidos matizes, se revolve
Na dourada resina que destila
O bacuri-panã de amenos bálsamos
E amorenada fruta. O sol fechou-se.

Doida acorda a avezinha que dormia,
Anjo da tempestade, ela a conhece,
E começa a gritar voando inquieta:
Os ramos fervem: fogem se abrigando
Pela barreira os róseos trova dores;
E ela só temperasse estridente
De ígneos carmes! o cedro range e os montes,
E entre os polos vanzeia a tempestade:
Vai lançada tinindo pelas nu véus
Contra os trovões que se arrebentam; guincha
Seguindo o raio, e, no cruzar dos ares,
Das asas solta elétricas faíscas!
Como ela, também prezo os balanços
Do vendaval furioso e do relâmpago,
E minha alma agitar na voz dos céus.
Eu amo o inverno! aqui durmo de amores,
Redobrando a galharda seriquara
Nos bamburrais do rio; a espreguiçar-se
Na montanha a palmeira ao doce fluido
Do áureo dedo do sol, doirada fênix
A renascer-se da cinérea noite —
Ou minh’alma agitando à voz dos céus.

 

À PARTIDA DE UM VELHO ENFERMO

“E eu deixar este céu... como este clima
Na sua eternidade de verdura...
Ó maravilha vegetal do Éden!
Trinta anos passei, como nos berços
Duma hora encantada: ouvia apenas
Arrastarem-se as águas pelos vales,
Em seus saltos partidas sobre a rocha...
Oh, vi por toda parte a natureza
Eloquente, orgulhosa em majestade
Como a lua de Agosto em flor aberta!
Fiz aqui minha pátria... hoje estrangeiro
O filho teu verás, fria Germânia,
Errante e deslocado como a ave
Que desconhece ao amanhecer seu pouso;
E tímido o meu passo não se fixa
Pelas margens do Reno... ah, sorte do homem!
E eu deixar este céu... Nem vim faminto
Somente ouro buscar: amei no peito
Minha alma dilatar ante a harmonia;
Extenso o coração sentir rugindo,
Meu ser engrandecendo!... Adeus, Brasil!...”
Os olhos alimpando, assim falava
O tão nobre ancião descendo às praias
No seu enfermo andar: embarca; e a vista
Elástica deixava sobre a terra
Como presa, quando ele já navega.
As costas para o rumo do navio,
Encostado na popa, em longo pranto
Generoso desfaz os céus e o monte
Onde jaz o gigante, e sob os mares
O Rio de Janeiro se escondia;
E ele inda nos pés se suspendendo
Procura as cumiadas no horizonte.

 

FRAGMENTOS DO MAR

Adeus, ó Luxembourg de árvores grandes,
De estátuas belas e marmóreo lago,
Eu não vos verei mais! Chorai comigo,
Eu só não vos amei, também me amastes,
No estrondo vegetal ouvi meu nome —
Adeus, Luxembourg! Tronco de outrora,
Frondoso castanheiro, a cuja sombra
Meditava as lições d’alta Sorbonne,
Meu velho amigo aonde eu recostei-me
Cheia a cabeça dessa vida d’alma
Que as sonoras paredes exalavam,
Qual feridas do eco de eloquência
Do Lévèque e Saint-Marc, senti meu peito
Abraçar-vos! da casca onde eu vos beijo
Rebente um galho, e nele um nome viva.
Inda ontem, dos ramos de esmeralda
Cheirosa e fresca e doce primavera
Escorríeis em mim: hoje somente
Estremeceis à minha voz, adeus!
Brisas do Luxembourg e as flores dele.

Qual dos bosques saindo, ainda se arma
A voz da pátria moribunda a filha
Do pastor, generoso anjo da guerra!
Foi seu primeiro amor a liberdade,
Seu esposo fatal desfalecendo
Por entre os homens! E ela enverga a espada,
Os seios tece virginais e a fronte
De aço luzido, e a cruz pende do Cristo
No cinto feminino. Ei-la heroína!
Dando pátria à sua pátria, ao rei sua coroa;
A sua voz de Josué treme Orleans
Esperançosa; e despe-se do manto
Ensanguentado que a cercava opressa.
Ei-la atada a coluna, qual detida
Para aos céus não voai pelas suas asas
Que as chamas crestam e os vales de Ruão
Da fogueira sua voz separam e dizem:
“Vendida na traição fraterna... vede-a,
Mártir do amor da pátria”; ó dores d’alma!
Aurora boreal nos céus suspensa,
E de vergonha a terra envermelhece
Ao longínquo clarão. Passando o vento,
As aves que a rodeiam quando canta o
Na vizinha ramagem, todos juntos,
“Donzela de Are!” repetimos sempre.
E de uma a uma percorria as alas
Destas mulheres mudas, pelo nome
Chamando-as e dizendo-lhes sua morte.

Ledo casal de cisnes sobre o lago
Corta dois sulcos docemente iguais:
Eu peço a Deus a vida destas aves,
E uma esposa feliz, anjo, amorosa,
Manso e piedoso e cândido cordeiro,
Mudos levando assim nossa existência.

Quantas meninas vão por entre as flores
De belas graças, de formoso corpo!
Pisando a relva de Diana a casta
Montanhesa e da mágica Velleda:
Virgens materiais, ó lindas flores!
Humanas flores, cândidas donzelas!
Minh’alma diante vós ama e revive
Em sol, orvalho, amor, brisas desfeita.

Eu parto, a torre já marcou meu tempo,
Adeus, Luxembourg! Inda as muralhas
Passando eu vou bater com as minhas mãos
Da longeva Sorbonne, a mãe das letras;
Inda uma vez eu vou mirar-lhe as ondas,
Como a desoras ao luar do Sena
Sobre a ponte das artes debruçado
Indo à pátria, indo à pátria às vozes d’água.

Golfo de Biscaia.
Como foge-me a terra dos pés,
Se envolvendo nesse amplo horizonte!
Vão-se terras da França, perdidas!
Lá sumiu-se Paris trás do monte:

Como o sol quando no ocaso
Palpitante desfalece.
Duvida uma hora entre nuvens,
Por nuvens desaparece.

“Sejas feliz!” me disseram.
Sejas feliz... ah, quem dera!
Não mais que um dia! e mais triste
Na minha infância eu morrera.

Quantas lágrimas dás-me, ó bela França!
Abri-vos, solidões, quero chorar;
Brisas da noite, emudecei; oceano,
Abafai minha voz nas vossas ondas...

Elo vasto de vozes grasnadoras
O horizonte cingiu, se enrouquecendo.
O vento alevantou; gritaram aves
Pelo em torno da nau; procura abrigo
A andorinha nas velas; meio corpo
Erguem-se os peixes; enfurece o mar;
Cruzam raios no céu em vez de estrelas,
Pousam nos montes de suspensas nuvens,
Raios nos mastros pousam: tudo horrores
E raiva, tudo ameaça! o claro verde,
O puro azul das águas florescidas,
Como campo murchou, que sangue anegra.
Amo viver no seio compulsado
Do vendaval, batendo impuras asas
De nócteo corvo; os ares corta o bosque,
Uiva o mar à sua sombra fugitiva:
E minha alma estremeça muito embora,
A morte os ombros a calcar-me, amigo
Minha face afagando à fala ao menos
Não dorme no ócio de cansada paz.
— Encastelam-se as ondas: qual cidade
De homens, que no orgulho vão suspendem
Seus ricos tetos sombreando os vales
E a casa humilde do pastor, que os raios
Aqueciam do sol subindo os montes.

Dá sinal de perigo, leva rota
Bandeira de socorro ao mastaréu:
Librados todos vão, ninguém socorre,
Nas asas infernais da tempestade.
Nem olha Deus à terra, o céu fechou-se.
A voz do oficial apenas se ouve
Lúgubre, como o vento que falasse,
Ou da vela que rasga-se e desfralda
Antes de ser colhida. Homens tão fracos,
O que fazeis agora murmurando
Debaixo do convés, mudado o rosto?...
— E a não que passou desarvorada,
Qual ferido tapir salvando abismos,
Lá quebrou-se na ponta do rochedo —
Dormindo, mudo! e os mares levantaram
Sua voz noturna à voz da ventania,
Aves, que no cair da presa morta
Soltam em desordem triunfante grito.
Lamentações humanas, tudo a morte
Respirou, consumiu em si, somente
Esparsos restos do naufrágio ondeiam:
Sanguinárias coroas tem na fronte,
O medonho livor mais carregando.
E as vagas toam, e túmidas se atiram
Sobre as vagas — mulheres desgraçadas,
Perdidos filhos, seus esposos mortos.

O tempo serenou; ri-se o semblante,
Como vai se compondo o mar: já sobem
À coberta, às ruínas se arrepiam,
Que jazem como a selva descomada.
Canta o nauta, redondam-se alvos panos.
Por ver brincar o atum, se ajuntam ledos
A tarde sobre a borda os passageiros.

Densas nuvens de fumo doloroso
Fazem-se em tiras, despregadas caem
Através do horizonte: a lua franca
Abre seus seios de donzela, e despe
Seus vestidos no mar, como estas ondas
Ardentia de prata espanejando;
Cândidas pombas vaporosas voam,
Tecem com as asas por seu rosto um véu —
Menina rubra pondo a mão nos olhos
Uma hora se escondeu, uma hora os astros
Amostram seu brilhar, depois se apagão.
A lua feminina, é fresca noiva:
As brancas nuvens que a rodeiam manso
Os enxovais de sedas ondulantes;
O céu cheio de estrelas o seu templo
Onde espera o amante, incensos auras;
E o oceano os órgãos levantando
Em doces, divinais epitalâmios.
Na batida em que vai, fareja e rosna
Alado negro cão mordendo as ondas.
Eu só medito, a Deus só me alevanto;
Confusa multidão povoa errante
O convés, e da terra os homens falam:
Para eles é mudo o isolamento
Do mar, caindo a tarde fria e triste.
E o mar sombrio despenteia a grenha,
Descrente e sem esperança, de loucura,
De frenesi, que o desespero arrasta:
Engolir-nos dum golpe, os nossos ossos
Despedaçar o vejo num momento!
E os homens reúnem-se, amontoam
Ouro sanguinho e jogam; se enraivecem
Uns contra os outros, sôfregos de sangue.
Na voz da natureza o Deus nem ouvem!
Amo-te, ó mar, em louca tempestade,
Mais do que os homens com bonança n’alma;
Com as coisas do mundo eles procuram
O Eterno esquecer! são condenados
Serrando ouvidos, sacudindo a fronte
À justiça que fala-lhes da vítima,
Que geme ainda ensanguentada e quente.

Traga o dia sobre a fronte
Aurora láctea dourada,
Ou distante precipite
Em sombra negra e pesada
Sanguento ocaso a seus pés:
— Deus quem é? quem é que adoro? —

Estas vagas eloquentes
Ao seio desçam das águas,
Ergam seu colo, se empinem,
Se despedacem nas fráguas,
Convulsas, enfermas, belas:
— Deus quem é? quem é que adoro? —
A onda pergunta ao vento,
Quando a levanta a passar;
Mas o vento a despertava:
Para lambem perguntar:
E a mesma voz se repele,
Vagando de mar era mar.

E somente a mudez destes desertos
Se responde ao seu eco no infinito

***

Oh, majestade do oceano! eu vi-te
Ampla fronte de céu de Deus: sobre ela,
Como ante o sol nevoeiro transparente,
O pensamento em ondas infinitas
Passar... passar! e calmo o rei do século
Nem toscaneja ou estremece a testa.
Eu senti-me nascer, e tu me viste
Turbado nos teus olhos, era um raio
Que mais lúcido raio engole e apaga:
Calor vital correu-me pelas veias
De prisioneiro que por muitos anos
Fechado em negros cárceres a vista
Abre ao dia, e de júbilo pranteia,
Delira o coração, de vida exulta!

Comparava tua fronte esse universo
De sentimento e meditar que exala;
Eu pesava tua voz nos meus ouvidos
Consultando a harmonia; um ar celeste
Palpitava umas ondas rodeando-te.
Guia na cerração, beijei tua destra,
Que se esfria nos anos mergulhada,
Coberta dessas rugas generosas;
Essa mão sujeitada envelhecida
No doce cativeiro das insônias,
Em metro moldurando o pensamento:
E de tua vez, senil, piedoso pranto
Em teus olhos quebrou-se! ó sentimento,
Que brande à alma do poeta sempre virgem
Límpido choro, que os verões não seção!

Pensador solitário, órfão, proscrito
Poeta! ei-lo assentado; estão com ele
Somente os seus dois cães, junto à lareira,
Brancos como a candura; mansos, tímidos
Como a fidelidade. E não encontras
Nos homens um amigo? e os animais
Amam-te mudos e naturalmente.

A paz te rodeava, e nas paredes
Pendiam quadros dos que amaste, e foram;
E todos no silêncio da saudade
A página da vida pareciam
Desenrolar a li, cora a vista lenta
Memorando o passado. Qual se membro
Dessa família eu fora, há longo tempo
Perdido, ausente, no meu lar chegado,
Senti minh’alma abrir-se ingênua e larga
A branda atmosfera que eu respiro:
Um dos cães te afagava, como vendo
Nos teus olhos luzir o amor paterno;
O outro vinha a mim lamber-me a face
E as mãos, inquieto de alegria e festas
Felicitar-me do rever meu pai!
......................................................................

Eu parti; tu virás à pátria ver-me.
......................................................................

Eis, minh’alma se expande! Como o vento
Tão livre e solto, meu irmão me entende,
Me esperta e espalha pela fronte ardente
Com pedaços de nuvens meus cabelos!
Qual amigos achados, que se abraçam
O coração no coração vibrando
De entusiasmo, e ofegos derramam
Da boca aberta generosa chama,
E os sentimentos às feições remontam.

Aqui Byron cantou. Mesmo esta pedra,
Que ora sente uma gota fria e rápida
Do meu pranto que apaga a viração,
Talvez estremecera de escutá-lo,
Qual do raio ferida. Oh! me parece
Que aqui te vejo, ó Byron, a meu lado,
A rainha esquerda unido me incitando
Ao desespero da descrença inimiga
Com tua voz infernal — verdade horrível!
— E à minha destra o tenho, anjo da guarda
Preso a meu braço contra a forca tua,
Me arrancando de ti: com um dedo santo
Aponta-me para o sol que sai das serras
Piedoso Lamartine! e o penhasco
Brandia e geme no pesar da luta:
E dum lado o demônio e o anjo doutro,
E eu no meio, minh’alma despedaçam!
— Voa comigo, ó anjo, nas tuas asas
Cândidas salva-me: o demônio embora
Me persiga mostrando-me os meus dias
Como são desgraçados... porém, antes
Falaz esperança, que a descrença eterna.

Aqui também virás, sol dos teus dias,
Sol dos dias depois, de todo o tempo,
De tua vez suspirar: e tu, ó pedra,
Hás de mover-te então, e não do medo
Da tempestade bela, e nem do pio
Da andorinha perdida que não sobe,
Que nas fendas descai; porém de ouvi-lo
Tão sonoro e divino, que no monte
Embatendo-se os montes e os penedos,
E o olmo e o pinheiro, que de antigos
Passa o vento e não dobram-se — entoaram
Como o coro do templo à voz solene
Que do altar se levanta: o plano e o vale
Aos céus, aos mares levaram seus ecos:
E do seio dormente a natureza
Ignoto o canto universal desperte!

Oh, minha alma se expande! ampla se exala
No céu! e o corpo que terreno à terra
Lânguido cai, ainda é belo ver-se
Sacudido das nuvens que o rodeiam.
— Meus olhos inda a vêm — lá vai minh’alma
Pelas torres de Mafra resvalando,
Pelo horizonte, além, nó mar azul,
No éter puro e sem fim, mais longe, era Deus,
Na minha pátria, que é de Deus tão perto!
Grandioso espetáculo! cena imensa
Que o pensamento ávido percorre!
Eu amo a vida assim... assim eu vivo
Eu amo a vida assim! lidoso vento
Oco varrendo sufocado estrondo,
À desramar o castanheiro anoso,
O basto pinheiro!, a mim se lança
Como águias etéreas, com suas asas
Agitando, espertando-a langue e lassa,
Pobre minh’alma em som no: em rijos gritos.
Sinto me suspenderem, meus cabelos,
Meus braços arrancando! — E a nuvem passa
Pelo vale com o gado dos pastores;
E o mar escuma além, se encruza e brama
Se perdendo no céu; levanta o éter.

Como se o Criador não acabasse
O edifício do mundo, e que estas pedras
Fossem materiais e estas montanhas;
Uma coluna, um pano da muralha
O Corcovado americano e os Andes;
Este mar que ficou à tempestade
Devera fonte ser deliciosa,
Não país de naufrágios; e estes ventos,
E estes vales chorosos, o arvoredo,
E a pobre humanidade ensaio fora
Para um céu eternal de harpas etéreas
Dum só cântico e amor: e, distraído,
Ou de cansado, ou morto o Autor-Supremo,
Ao acaso ficou tudo sem ordera,
Antros feios, montoadas penedias:
Tudo pergunta o que ó... que vale — tudo
Balbucia em sua dor! as aves trinam
Sem saber do seu canto; os homens choram;
Bale a ovelha no campo; as nuvens tremem,
Vão fugindo de horror, nada se entende;
E por falar se esforça a natureza,
Que de imperfeita está desfalecendo.
Que belo templo, se acabado o mundo!
Natural harmonia a um Deus somente,
Uma vista, uma voz; não este inferno:
O bruto contra o bruto, o homem do homem
Esconde-se da terra nas entranhas!
A fera amara ao cândido cordeiro,
Nem de morte manchara a lã mimosa;
As aves não perderam-se nas nuvens
Perdendo o ninho e o bosque de medrosas;
Nem os filhos do Cristo sangrariam
Nem morreram na lança muçulmana;
Não viram tantos séculos idolatras
Deuses de ouro banhar fumante sangue:
O mar sempre bonança, o céu de auroras,
O raio não voara entre o negrume
Pousar no velho tronco, ave de fogo,
E fazê-lo cair, gritando aos homens!

Ó grandeza sublime! oh, eu quisera
Ver com meus olhos esse dia, quando
O eco da palavra era o nascer,
Gravitar e cair, o amontoar
Dos seres — confusão negreja os ares,
Na hora tudo surgindo! oh, eu quisera
Meus ouvidos nutrir desses terrores
Do fracasso das águas e dos montes,
E ver divino o vulto suspendido
Pelo espaço, que rasga-se ante dele,
Atrás dele ondulando! Aberta e franca
Nasce a lua sem cor, cintilam astros,
Lampeia o sol... Porém, meu Deus dizia
Que só hoje eu devera remontar-me
Ao princípio e nascer, e contemplar,
Rugir de ignaro, e de blasfêmias vezes
Os lábios escumar, fender minh’alma!

E bando alado de fantasmas giram
Em manadas no ar comosas nuvens
Que o pastor Aquilão conduz ao sul:
Me envolvem, passam, amam estar comigo
A minha imagem projetando nelas;
Pela face do sol se espalham lentas,
O plano e o monte sombreando, e as flores
Arrefecendo e os homens do trabalho.

A lua desmaiada está na serra
De saudade e luar banhando o píncaro:
Simpatia e candor trouxe no rosto
Que move a terra, que emudece ao vê-la.
Sobre a grama cheirosa estendo o corpo,
Num meio sono amolecidos olhos,
Trêmulos raios sobre as minhas pálpebras
Envergam seus fulgores, que antevejo
Frescos, longínquos, límpidos, saudosos,
Como a luz virginal de alvas deleite.
— É tarde pura: muito longe encontro,
Tão longe! apenas onde a vista alcança,
Como elásticas águas se estendendo,
Como restos de luz, mimosa relva
Amena e verde; uma árvore a sombreia
Que belo monstro enrola, e frutos pende.
Um homem como o dia transparente,
Rodeado de sol, com fôrmas de homem,
Mas, que as perde se as buscas, que é tamanho,
Que na simples unidade é só visível!
Lá está no cume de dourado monte:
Um formoso casal anda a seu lado
De robusto mancebo e loura moca,
Redondos seios e os cabelos lisos,
Inocentes brincando com as feras
Que andam tão mansas que não fazem mal.
O vulto cristalino contemplando
A harmonia geral da criação,
Interdiz um só fruto! e os abençoa:
Entrou no seu repouso as sexto dia,
No cair do ocidente... Horror! das nuvens
Longa espada de fogo meneando,
Bradando um anjo dentro de asas desce
À voz de maldição tudo se aterra!
Fogem deles os brutos! vão banidos,
Coitados...Vão chorando desses campos...
Lá se assentaram tão cansados... olham
Para trás de saudade... árida a terra
Já regam de suor, pedindo um fruto...
Perseguidos do inseto o corpo cobrem,
Dantes tão belo ao sol!... filhos já nascem
Pervertidos também: nascem nas dores
Da mãe, que hão de amanhã, seios que os criam,
Partir de mágoa... de miséria os homens
Já desfazem-se! — O céu cresce de encantos;
Na porta da choupana há quem me espere:
As vozes de Macia as serras desço,
Respondendo ao meu nome, que ela chama.

Oh, selvagem que eu sou: maldigo uma hora
A inocência que eu amo! ela inda n’alva
Trêmula, esquiva e tímida de ver-me,
As vezes sobressalta, aperta os seios
Como sustendo o coração que foge
Com as mãos frias e brancas; se enrubesce
Nas faces ambas, e seus lábios tremem,
E seus olhos fugazes não se filam
Sobre os meus... e ela ama-me! ela foge!
E eu... quero assentá-la em meus joelhos,
Correr a minha mão nos seus cabelos,
Cobri-la minha irmã toda de beijos,
Nutrir-me da sua fala... Oh, desespero!
Eu manchá-la ela teme! e já tem n’alma
Esse amor de mulher, o amor do gozo,
Dele embora estremeça?... O anjo! ó virgem!
Meu amor não é esse, o amor da fera:
Eu nutro-me de amar, vivo porque amo
De existência e poesia encher minh’alma,
Que não de torpe e lânguida e cansada
Esvaece em desmaios, e os sentidos
Com o pensamento embrutecido morrem.
Mas, idade feliz! pobre inocente,
Hoje teus olhos só movem teu peito,
Teus ouvidos tua voz. Lá vai cantando
Seus cânticos de infância, que sua mãe
Ensinou-lhe levar a Deus. E eu rujo,
Não sei de que... de amor! bracejo os braços,
Sacudo a fronte ao respirar mais livre.
Oh, não cantes: se queres que eu te escute,
Seja dos meus joelhos, anjo! virgem!
— Aqui eu vivo: em mim tudo renasce,
Sentimento de amor e de esperança
Que a multidão gastava-me do peito.

Quando o sol de além das nuvens
Despeja os raios no mar,
Todo encarnado o horizonte,
Longe, longe a se afastar,
Começam auras do Tejo
Aberta vela a embalar.

Um chora o adeus da pátria,
Ura cai nos braços do amigo
Saudosos, sem perigo;
Aquele beijou sua mãe.

Uma só, mimosa e virgem,
Não teve quem abraçar,
Do pai aos lados pendente
Corria a vista no mar.

Tão órfã! tão piedosa... eu logo amei-a
E para sempre! eu creio... e a virgem amou-me!

Tinha treze anos de idade!
Idade da transição,
Quando da vida assaltada
Sente mimosa emoção.

Formosa e pálida e bela,
Toda expansiva de amor,
Na graça pudica verte
Emanações de pudor.

Ambos nós órfãos na terra,
Achados acaso assim...
Meus olhos iam sobre ela,
Seus olhos vem sobre mim.

Eis vultos nascem no horizonte, crescem,
Assombram céus e mar: quem sois, fantasmas?

Descobri vosso rosto e os vossos olhos...
Cintra! Cintra, que sem mim ficais!
Tudo de lá me acena, ó meus amores,
Monte saudoso, ó Pena! que me ouvias,
Bracejando com as nuvens e orgulhoso
Do céu, do sol, meu canto que ensinavas.
Tudo me acena! as fontes mais suspiram,
Maria jovem lá me bate o lenço
Alvo como ela, e úmido do pranto
Como o seu peito, que como ele ondula;
Alvoroçada grita... ai! que parece
Com os braços arrancar a alma e mandar-ma:
Dizer-me “novo amor guardam-te os mares:
Me foges: lá nos céus te encontrarei...”
Tão nova, como as breves primaveras
Que tem florido nesse vale ameno.
— Ó bela Cintra! arranca-me, saudade,
Meu coração do peito, e que palpite
Sobre as ondas da serra; ou vós, ó penhas.
Montes, erguei-vos, me segui com ela!
Cintra! Cintra, que ficais! ó mares,
Que a verde coma desfolhais ao vento,
Não regaceis o vosso colo undoso
Para encobri-la... ó nuvens derrocadas,
Não cai diante mim... Ó Cintra! ó Cintra!
Qual meus olhos no pranto, vos sepultam
No éter espaçoso os horizontes...

***

À palavra de Deus caia o mundo:
Foi um gigante o que surgiu no espaço!
De homem que era, abrindo os olhos ávidos
E a garganta inflamada, hiante — ri-se,
Julgando seu irmão defronte dele —
E sobre o Criador, à imagem humana
Enquanto sua obra contemplava um pouco,
Lança-se! — Deus se retirou de um lado:
E devorando o viu sua própria sombra,
Veloso coração rangendo, um monte
Nas cavernas do peito! de cansaço
A língua pendurava, imensa serpe,
Como espada de sangue fumegando
Que de dentro dos ombros arrancasse!
Horrendo berro, como o vendaval.
As nuvens separou — no desengano:
E de novo a cabeça suspendendo,
Ondulante muralha se antepunha
E o monstro gira por detrás mugindo.
— Então, contra esse filho o Deus dos astros
Seu raio de indignado fulminando,
O fez despedaçar: diz “do teu sangue
O oceano se forme, e dos teus membros
A dura terra, que produza vermes
Como tu és”: e novos homens nascera,
Nasce a serpe o germina a morte deles;
E este mar de verdete é sangue humana
Acre, e sempre a ferver polutas fezes;
A mais árida rocha, onde se quebram
Ventos, naufrágios cobrem, e nunca treme,
Vem do seu coração; e os outros órgãos
São essas outras terras, mato, abrolhos;
E o homem que do cérebro lhe sai,
Pior do que ele foi aqui respira,
Como essência volátil deletéria,
Mínimo em corpo, em ser cruel grandíssimo!

Por que não repousais uma hora, oceano?
Como o espírito do homem, que não dorme
Até morrer! um eco indo passando
Pela esfera: “quem sou? quem deu-me o ser?
Onde me levam? donde eu vim?...” perdeu-se
Vos espera também o fim do homem?
Quão grande não será, solene e bela,
De vossa morte a hora! num momento
Sulcando o céu, qual raio luminoso,
Do aceno da mão divina a sombra,
Contraireis; de imenso estremecendo
E como a vacilar da voz que ouvistes,
Levantando um gemido — e depois... nada!
E como o homem, sem saber que fostes,
Vossas cinzas varrendo o vento leva
Pelas solidões sem fim. Que sois, oceano?
Eterna agitação, suspiro eterno
Tendes no seio: emudecei, dormi...
Não podeis, qual minha alma, e força oculta,
Que sempre contra mim se ergue e me quebra
Como haste resistente, vos ameaça:
Além a tempestade se revolve
Para açoitar-vos. Já, como eu, convulso
Rugis, lutais; como eu vós pereceis,
Desangrado cais: inda expirando
Somos irmãos, oceano, inda o buscamos —
Embalde! e sem viver nós morreremos.
— Erguei, erguei a voz! ide entre os astros,
Batei as praias, sacudi os montes,
Despertai o universo, que responda,
Como depois do estrebuchar de um sonho
Em sublime acordar, terrível, forte —
Que nós somos, porque, Deus onde existe,
O que é... Na penedia negro sulco
De fogo um raio fez, rio de fumo
Sussurra e serpenteia; os céus tremeram!...
Silêncio! A sombra de meu pai me olhava...
Fechou suas nuvens, e se ergueu nos ares.

Vai-se a vida como passa
Leve esquife pelas ondas:
As águas abrem-se adiante,
Atrás se escoam desondas:

Seu rumo agulha no ocaso;
De lá se levanta a terra;
Mais próximo, a praia embranca
Lavando as plantas da serra.

Arrasta a quilha na areia,
Toca a proa n um penedo,
Noite! e o nauta incauto andando
Espanta um grito de medo.

Responde o eco da margem:
“Para! chegaste no porto.”
E o navegante do mundo
Baqueia na praia morto.

Donde veio? do nascente;
Aonde ia? ele o não soube:
Na direção do sol-pôr,
À noite chegar só pôde.

E nas trevas envolvido,
Somente uma voz lançou:
E nem se ouviu o que disse
Passando o triste — acabou.

E o mar todo é coalhado
De mil gentes passageiras,
De ledas vagas cercadas,
Susurrosas, lisonjeiras:

As vezes em tempestade,
Muitas vezes em bonança:
Porém vão-se desondando
A nossa vida é mudança.

À tarde, quando o sol da esfera atira-se
E no ocidente, qual guerreiro, morre
D’além funéreas nuvens que suspensas
Mil bizarras figuras, mil castelos,
Selvas, rui nas pelo céu desenham,
Iludindo de maga fantasia
Rubras campinas solitárias, amplas,
Como juncadas de sanguínea relva,
A sombra de um combate que ficara,
Que pelas fendas deixam ver as nuvens
Tão longe! sobre o sol pousa minh’alma,
Juntos naufragam. Então amo perder-me
Na soledade etérea, e divagando
À discrição da minha imagem, eu erro.
Mas a tarde se esvai, os céus se estrelam,
A meditar cansado ora me assento
Noturno e triste na sonora proa,
Solitário com o mar e a fresca brisa;
O pensamento aberto, mas torvado
Da grandeza ideal, pasma somente,
Admira e não sente o que compreende,
Como de amor embrutecido, cai.
Errante, agora me debruço à borda,
Vendo as ondas passar embranquecidas
Como plumas de cisne, minha fronte
A umedecer de pó. De noite eu vejo
Povoado de sombras, de florestas,
De fogos de pastor o mar deserto,
E rodeado de mudez, acordo.
Ana roçou-me o braço: fria, trêmula
Pelas sombras procura-me: “Que eu vejo”
Tanta tristeza e solidão na lua alma!
Enche-a de mim... Tua fronte desdobrada
Ao longo pensamento, o que tens nela
Que a faz tão pálida e piedosa e doce
Como a luz do crepúsculo longínquo?
Que frieza te banha o coração!
Murchando como à voz de ave agoureira
Amanhã inda há sol... não morres hoje...
Oh! desperta, brinquemos nesta idade
Da risonha manhã, nevada e pura,
Borboletas do campo, a flor colhamos!

E eu sonhava: e eu vi-me solitário,
Olhando o espaço balançando estrelas.

E esses sonhos que eu via, onde já foram
Da apaixonada aurora? e foi-se o dia:
E eu que fui? e amanhã, quando outro sol
Lançando-se em seu voo arrebatado
D’água que se abre para o cume azul
Novos sonhos prestar-me e nova esperança,
Que eu serei amanhã, nesse outro dia?...
Eu não tenho amanhã: minha existência
Toda acabo sempre hoje, embora triste,
Mais triste o meu porvir me aterra sempre.

E tu, esperança, e tu, consoladora
De todos, que me falas? oh, não queiras
Mais perseguir-me; vai-te, ó inimiga,
São mui longas tuas horas, mui comprido
Tu me fazes o tempo... que ele passe
Para mim, como um ai de moribundo!
Enfadonha, pesada, aborrecida,
Ó vida de esperança, que és penosa
Tortura deste inferno do existência!

Manga esvelta das nuvens se despenha
Farejando o mar, penoso e longe
A voz das vagas se embateu no ocaso:
Um braço de gigante monstruoso
De etérea serrania se alongando
Penetra as águas, famintando presa
As entranhas revolve; longas ondas
O rodeiam e bravejam, como feras
Seus irmãos defendendo: lentamente,
De um pulso cheio, convulsivo, igual,
Indiferente vai colhendo, engole-as,
E se recolhe, e sobre o peito encruza.
E o chuveiro passou, desfez-se a tromba,
A onda que a beijava ao mar se aplana
De recentes rosais: assim da torre
O preso se debruça e estende o corpo
Por a amante chegar, que se suspende
Nas pontas do alvo pé, que as mãos se tocam
Duma invisível atração chegadas.
Volta às sombras da torre o prisioneiro;
Pelas paredes resvalou saudosa
Qual raio fugitivo, e desparece.

Meneia a larga cauda e as barbatanas
Limoso leviatã cheio de conchas
Com dorso de rochedo que ondas cercam;
Cristalinos pendões planta nas ventas,
De brilhantes vapores, que em bandeiras
íris enrolam de formosa sombra.
Negra fragata lá circula as asas
Sobre a nuvem dos peixes voadores.
Agora rompe a não lençóis infindos
Que o mar tépido choca, e vindo a aurora
Já salta a criação de escamas belas.

Vem formosa galera a largos panos
Arquejando ansiosa; silva o apito,
A cortesia náutica responde-se.
Já ia bem monótona a viagem
Nesta mortificante calmaria:
Tristes campinas da água, se não foram
Essas novas surdindo-vos dos flancos,
Fazendo de alegria estes semblantes,
Ou torva tempestade a desfazê-los.
De novo já nos vamos isolando:
Apenas desta ilha sobre essa outra,
Que vai ficando atrás do pó que erguemos,
Os olhos inda estão; e os meus somente
Procuram naufragar, morrer... quem dera
Porto de salvação onde ancorassem!
— Um mar tempestuoso eu tenho dentro,
Como este mar desesperado eu ando:
Estes raios da noite almo fluentes
Não me afagam. A lua cor das alvas
Atravessa o ocidente matutino,
Hóstia cristã nas sacrossantas aras;
Em fogos de rubi fronteira rosa,
Luzente cálix se suspende no ar
Pela mão invisível criadora
Do sacerdote rei, do Deus dos astros.
Nem as horas do sol são minhas horas,
A noite para mim perde o seu sono,
Nem é meu nem sou dele o mundo — eu amo!

Quem foi que te ensinou tão triste pouso,
Ó solitária virgem? onde vagueiam
Teus pensamentos? que um suspiro corta
Nesse mimoso, cândido, tenuíssimo
Arfar — teus seios límpidos se erguendo
Igualmente, e de ti mesma esquecida,
Teus olhos onde vão? quanto és do céu
Pousada assim! de claro-azul vestida,
Esvelta e simples, singeleza toda,
Desmazelada e virginal e infante,
No braço longo reclinada, na haste
Botam pendido ao cristalino peso
Da aromosa manhã. Vezes se enrugam
Tua fronte e os olhos, sob o pensamento
Que numa ave passou na face d’água.
Ura doce encanto, amores espontâneos
Correm como onda do teu rosto, e o corpo
Quebrado pelo meio! E tu nem pensas,
Pobre inocente, o ar que tu respiras
É minha vida derramada em torno.

Meu pensamento delirante, oh, nunca
Com essas asas não voes! ave atrevida,
Arrojada num céu delicioso
De fantasias magas! tenho zelos
Do meu louco ideal pensando nela,
Zelos dos sonhos meus minh’alma açoito,
Repreendo os meus olhos, meus desejos,
Quando por ela líquidos fluindo,
Querem morrer, devanear de amores
Desterrados por ela e tão coitada,
Tão de inocente mansidão... Horror!
Oh, remorsos! manchei-a na minh’alma:
Sombrio abismo, um antro, abri-me o inferno,
Onde eu possa esconder-me do meu Deus!

***

Salve! píncaros frondosos
Do meu frondoso Brasil,
Os pés em verde esmeralda,
A fronte num céu de anil.

São meus irmãos estes ares
Que vem meu rosto afagar,
No meu encontro saudosos
Correndo por sobre o mar.

As aves sobem que eu venho,
Escuto seu doce canto
Na montanha realçando
Pelo céu longo descanto.

Requebrando-se as palmeiras
Respiram suavemente,
Como virgens encantadas;
O regato ergue a corrente.

O sol desonda seus raios
Pelos declívios do monte;
As nuvens se purpureiam,
Vestem galas o horizonte:

Como a família que espera
O filho por muito ausente,
Em festas tudo se enova,
Tudo alvoroça contente.

Ó terras que o ser me deram,
Recolhei-me em vosso seio,
Como os irmãos a José,
Quando de escravo lhes veio.

Da cara pátria, ó musa do crepúsculo,
Ao céu azul que está sorrindo, acorda
Os pretos olhos, e os cabelos de ébano
Aos ventos, solta aos ventos, doce amada!
A voz d’alma desprende à voz do monte
Das palmeiras sonoras e dos rios

Que nos campos se erguendo ao mar se lançam!
Ó musa, ó musa! acorda o sono eterno
Do leito de além-mar, da fria Europa.
À sombra do deserto, erguido o vento,
Sob tuas mãos tuas harpas se desatem:
De tua vez adormenta a selva antiga
Que te soube educar feliz de outrora
Na vida maternal d’alva dos anos,
Escutar-te o vagido acalentado
No canto de seus pássaros brilhantes.
Recebe o filho teu, pátria adorada;
Mãe piedosa, não sequeis-lhe o seio.

***

Nem olhes para o chão servil dos homens,
Falcão divino; das tuas nuvens sente
Da terra a vida, o inspirado encanto:
Qual índia virgem das florestas suas,
Que seu leito são ramos de folhagem
Onde ela dorme à natureza e cresce
Enérgica e selvagem, nua e bela,
Ao eco de Amazonas e palmeiras
Que em toda parte lhe renasce, e embala
O deserto e os sertões. Ela divaga
Porque a alma tem cheia de existência:
Ora pende no rio e dá-lhe ouvidos
Por entender-lhe a ondulação das vozes,
Vendo com os braços se uma estrela apanha,
Luzentes boias nos espelhos d’água;
Ora abraça uma selva e lhe pergunta
Que diz no seu falar — quando ela acena
Com seus ramos ao céu — que diz o vento?
— E a criação seus cânticos esmalta
Aos órgãos perenais da natureza,
E a índia virgem por seus montes erra
Sem medo de homens, sem temer as feras.

Torrentes de poesia, essa poesia
Que a muita dor talvez, talvez a idade
Represou no teu peito, há de exalar-se
Com tua alma desfeita, como o fumo
Que do cedro que arde ergue-se puro
Em longínquo horizonte do crepúsculo
Sem ser dos ventos perturbado aos céus.
E as douradas cadeias sonorosas
Que em bons tempos viris eternizavas,
O mundo todo arrastaram de novo
Com místico poder que tens dos céus.

Este céu tão azul, e o sol num fogo
De americana luz; este mar verde
Subindo pela encosta enegrecida
Dos píncaros do sul sempre de galas,
Roxas nuvens no cimo, um régio manto
De opulenta, eternal, fresca e cheirosa
Vegetação ondeando-lhes nos flancos,
Saias por corpo de mulher formosa,
Romperam... romperam, cisne celeste,
O teu canto final! que vais partir...
Porém, tudo isto, ó pai, dá-me só lágrimas,
Não entendo porque: parou no peito
Meu coração, minh’alma de medrosa
Sob si se recolhe, e de uma noite
Tão pálida como ela envolta, cai.
É minha vida um pesadelo eterno
Duma noite afrontosa: quando um dia
Raiará para mim? quando este peso
Poderei sacudir, que tanto mata?
Acordar, levantar-me deste leito
Da terra, duro e triste, e sudorado
Do meu peito que em forças se desfaz?...

***

Ó minha sorte de hoje! ó sorte de ontem!
Não me viste passando, ó mar, tão ledo
Nas asas da esperança? e uns doces ares
Sem esforço levavam-me inspirado
Num círculo de amores vaporoso,
Primaverosas graças respirando,
Rosa encarnada ao sol exposta abrindo.

Que viagem feliz! quanta bonança,
Quanto galerno! as ondas se humilhavam
Por deixá-la passar, que amor sentiam
E murmurando amor se debruçavam
Nos braços do oceano indo em suspiros...
Dia, encanto difunde em torno dela
Doce luz de inocência erguendo os raios.
Não a viste, matrona brasileira,
Passar na glauca relva? pomba nova
Num voar titubante à flor do lago —
Roçando a ponta de asas docemente
Lâminas deixa vinculando, tintas
Do carmim matinal, do verde lácteo,
Respirações do dia em frescos berços.
— Meigas rolas azuis do umbroso norte,
Vossa irmã se perdeu, gemei na selva.

Nem ouro nem riquezas a faziam,
Seu ser todo era ela, uma flor nua,
Toda cheirosa e bela de si mesma:
Doces nuvens de um puro firmamento
Depois da chuva à tarde, os seus vestidos
Pelo seu corpo algodoso e tenro,
Os braços longos de vergôntea, os ombros
De seda, se anilando se abrandavam;
Espreguiça no seio alvóreas pérolas,
Como às bonanças do alto mar vivendo;
Nas conchas de marfim, como de pétalas,
Astros nos polos dois orvalhos tremem:
Singela como a estrela do crepúsculo
Do céu azul trajada, e como o lírio
Somente de suas folhas inocentes,
Eu via-a minha noiva! matutina,
Nessa idade fatal, quando eu as amo;
Quando esparso o pudor na luz do rosto,
Duvidosa a paixão, ignoram e temem;
Porque naturalmente inda só sentem
A dor que os olhos vertem, e assaltadas
Com vaga timidez nos fogem: pensão
No seu recolhimento, e de piedosas
Só nos sabem fugir; pobres! nos amam
De um amor virginal apenas d’alma,
Que os vis sentidos não se nutrem dele.
— Cai tuas folhas, Bahia, das mangueiras,
Da jaca murcha a flor, teus frutos morre;
— Vós, ó rolas azuis do umbroso norte,
Deixai as penas: a perdi... perdi-vos.

Novilúnio na úmida montanha
Brando claro das faces estilando
De azulado cristal, que lava o templo
Das compridas palmeiras, que amorosas
Estremecem dos pés à rama e envergam
Doces arcos aos zéfiros dos cumes,
Enquanto a baixa de sereno empasta:
O astro se perdeu; deste horizonte
Vejo a terra em meus pés desfalecendo!
Agora os temporais são meus encantos,
Mesmo o naufrágio amara, em noite horrenda
Brigar com a morte: compulsar minha alma
Gosto em sonhos de amor, ou nos perigos
Então eu vivo. Os mares estão mudados,
Oh, ela não vem mais... olhai as ondas!
Caio a noite em mim, nem mais seus olhos
O dia me alevantam, como dantes.

***

Salve, ó barca formosa! Salve, ó barca!
País dos meus amores do alto mar:
Sem tê-la vossas asas vos erguendo,
Como as ondas correis? onde a deixastes?
— A direção do acaso, nos meus olhos
Mil vezes eu a vi, que nela eu penso:
Foi somente a ilusão da imagem pura
Emanando-me d’alma à diante... ó sombra,
Que em tua sombra me cansas fugitiva!
Inda a impressão guardais dos pés mimosos,
Ó barca, no convés — quando ela andava
Distraindo, radiando o pensamento
Pela verdura da água? Que respeito!
Começavam nos céus as tempestades,
As nuvens desfaziam-se ao vê-la!
— Debalde a multidão rompe de noite,
Estrela subalterna que perdeu-se
Do seu astro, e, sem luz, por trás do espaço
Vai apagada errante; oh, foi debalde
Que tudo pareceu-me a ti! não era.
Por que deixaste o teu vestido azul?
Que fazia-me ao longe conhecer-te,
Como pelas suas flores qual a planta,
Como pelas suas nuvens a manhã.

***

De sob a proa se levanta d’água
Tão pura como o céu, coroada de ervas
Bela ninfa do norte: o Pindo heleno
O sol que tessalino alumiava
Lembrar fazia; americana Palas
Se enlevando no mar, como vaidosa
Corre os olhos em torno pelos ombros
Nos filhos, como selvas que a rodeiam:
— Aquele vê, que as tabas desenterra
Sepultas na folhagem do carvalho,
Ao clima das palmeiras transplantado,
Enche-as das festas do guerreiro e os cantos
A voz do maracá ruidoso e belo;
Caminho de Pascal, sobe os altares
Beijar suas mãos, sacrificar a Newton,
Cingida a fronte; a corrupção moderna
Açoita voz romana. Já mais perto,
A minha vista me perturba, sinto
Banhar-me o peito um ar... que eu não estranho,
Mas, que procuro conhecer... Eu amo
Estas costas, aquele pedregulho,
Que a resposta de um índio fez o nome.
Isolado e limoso ali suspenso,
Estrela refletindo ao navegante,
Apertado nos braços das escumas,
Rei d’água sacudindo a cabeleira
Entre as brancas oceânidas risonhas!
Mais longe espalha-se uma terra... Alcântara!
Negra ossada de incógnito cadáver
Era sepultura abandonada, bela
Cingida das barreiras como sangue;
E pelas torres tristemente errando
Vejo as sombras dos meus antepassados,
Pelos ávitos túmulos se encostam.

Ilha de São Luiz! meu Deus, eu morro!
Bandeira de São Marcos, entre as palmas
Verdes como ela! Doce claridade
Circunda-me, em transportes, qual a morte
Me adormece de enlevos! Deus, ó Deus!
Nas águas deste mar lava a minha alma,
Ao lado de meus pais deixa o meu corpo
Nesta hora de rever o Maranhão
As rainhas terras, minhas ondas glaucas
E o meu sol do equador meu céu minh’alma
Que é tudo isto que fôrma a minha pátria!

Selvagem sou, nos montes eu nasci
Por entre as camponesas e os pastores
Amo a vida levar entre os louvores
Das aves do meu lar cantando a mi;

Amo os costumes em que fui criado,
Correr livre no bosque e na ribeira,
Meus amores à sombra da palmeira
Descantar, e dormir sono enlevado;

Amo a voz de poesia na floresta,
E o zumbido noturno dos insetos,
Invernosos concertos incompletos
Dos lagos, invernosa a tarde e nesta;

Eu amo o trovejar, tremer do monte
Quando em lascas o tronco atira o raio,
Ver os astros caindo em seu desmaio,
Nas torrentes perder seu leito a fonte;

Na mata o sabiá melodiando
Quando, a chuva estiou, e os passarinhos
Da meia-noite; andar pelos caminhos,
Amo ouvir os tropeiros ir cantando;

Amo a voz da cigarra no horizonte,
A tarde quando pousa ave sombria
Ante a fronte da noite e os pés do dia,
A mãe com os filhos a voltar da fonte:

É esta a minha terra, este o meu sol,
Estes meus ares que eu respiro n’alma,
Esta a rama que abriga-me da calma,
Este o meu céu da tarde e do arrebol.

Suspenso nestes cumes arenosos
Sou ave do seu ninho em torno olhando,
E, vaidosa! suas asas levantando
Canta, e percorre os climas tão saudosos;

Triunfante adormece, inebriada
De êxtase e prazer ao som das vagas
Caindo no areal, batendo as fragas,
Encantando os jardins d’água salgada;

E longa o eco pelas praias lento;
De sensações as penas arrepia,
Estremece de amor, e a onda fria
Nos desertos lhe leva o pensamento.

Este país é meu! tudo me fala:
Ando na terra, os areais e a relva
Engolem, rangem nos meus pés; a selva
Seus ramos docemente em mim resvala.

Abrem-se à minha vista os céus, se ampliam;
Os zéfiros me afagam, meus cabelos
Banhando de perfume, e os hinos belos
Meus ouvidos harmônicos enleiam.

Subi, vagas! subi — vinde abraçar-me,
Não receeis de mim, sou vosso irmão:
Julgastes embalar meu coração.
A sombra do meu corpo a embalançar-me.

Como é belo o navio que navega,
Ofegante escaler preso na popa,
Longas velas o nauta ao vento ensopa
E pelo mar à terra o peito nega!

De noite o mar de pescadores coalha —
Um côncavo rumor de tudo ecoa,
O remo tomba surdo na canoa;
Desce o gênio desta hora, a dor se espalha

— Um náutico estrondar na margem oposta,
— Uns lamentos fatais se alavantando,
No fundo dos desertos ululando,
De vozes a cercar toda esta costa...

Como descantes do ruidoso dia
Que na terra calou, que se evaporam,
Gemidos que mui longe se descoram
Das harpas que a gemer no sol se ouvia:

Encantado pavor, etéreo e mago,
Silêncio — cheio de uma voz amada,
Voz — de silêncio místico impregnada,
Rugir das roupas desse gênio vago!

Quanto tempo não faz que eu não ouvia
O terço dos soldados no quartel,
Qual voz do derradeiro menestrel
No monte quando sua harpa suspendia!

Inda à sombra da lua na choupana
Baixo canta na viola essas cantigas,
Que eu amava da infância, tão antigas,
Triste escravo... é sua dor que ali dimana.

Pelas dunas me estendo, qual de amor
Abraço-as mesmo à face do luar;
De dia inda me sentem delirar
Entre os raios plangentes do equador.

Dum céu de negro azul tépido velo
Grosso e límpido cai, nevando a terra,
A mim e os vales e o rochedo e a serra,
E eu m envolvo da noite e o céu tão belo!

Dias do meu país! como eu revivo
Debaixo do meu sol de um clima ardente!
O vento muge e sopra duramente
Fendida encosta do calor estivo.

Vejo em torno de mim minhas irmãs,
E as minhas virgenzinhas mais crescidas,
Mais tímidas, sisudas, mais queridas,
Meus amigos, meus velhos de alvas cãs:
Em todos braços eu me lanço e choro,
E todos emudecem me revendo,
Doce pranto dos olhos escorrendo,
Doce peito me abrindo, aonde eu moro:

Escutam minha fala, a reconhecem;
Meus ouvidos eu encho de harmonias:
Oh, que eu torno encontrar meus outros dias
Dos outros tempos, que nos anos descem!

Da minha vida recomeço o fio:
Do dia de hoje ao dia da partida,
Deus! apaguemos... à estação florida
Inverno sucedeu, renasça o estio!

Qual num sonho eu vacilo, eu paro, eu olho,
Vácuo o peito de ausência quero encher...
Sinto necessidade de morrer!
Na minh’alma sombria me recolho.

Porém de novo o círculo me estreitam
Contemplativos, tocam-me, se chegam;
Um momento meus olhos não enxergam,
Nos seus ombros me atiro, em meus se deitam.

Aqui a vida corre docemente
Como a existência dos primeiros anos,
Lhana e despida e límpida de enganos,
Onda azul pelas voltas da corrente.

Aqui sinto nascer alegre o dia —
A andorinha no teto, a voz de infante
Chorando, o rouxinol: marmórea amante,
A lua que comigo adormecia,

Desmaiou, se escondeu nos meus lençóis
Fugindo como adultera; e, zeloso,
Belos dardos despede o belo esposo
Guerreiro sobre mim dos arrebóis.

E no silêncio a lua vai tão bela!
Deixo minh’alma, deixo o pensamento
Perder-se na amplidão do isolamento,
Enquanto eu vou saudar minha donzela.

 

NOITES
Nem presumo serem meus os pensamentos filosóficos nesta segunda parte: em todo o tempo eles existiram, desde que o homem, descendo os braços estendidos ao céu, olhou sobre si, e interrogou a natureza com a razão que lhe dá a verdade de uma Existência infinita, e que parece negar-lhe a vida além. Foram simples dissertações escritas em verso. Eu respeito, amo a ideia universal — encantadora! Sublime!


O CIPRESTE

Em horas silenciosas,
Quando a lua desmaiada
Roça os declívios celestes,
De pranto a face cortada;

Quando arranca dos meus ramos
Trêmula sombra e restampa,
Como o voo sobre o cadáver,
Na lisa face da campa —

Se estendendo, alva balança
Pendida lá no ocidente;
Que volta e beija-me os pós,
Voando bela e crescente —

Eu sinto pelo meu tronco,
Desatadas sobre a aragem,
Trancas leves se abraçarem,
Caindo prantos na lajem.

Prantos regam-me as raízes,
Banham-me as folhas, suspiros,
Abro os seios aos gemidos
Dos mais longínquos retiros.

Os queixumes soluçados
No sepulcro materna!
Penetram, vibram meu corpo,
Fantasma piramidal.

Da viúva meiga e triste
Lacerados sentimentos
Seus lábios vertendo puros,
Embalam-me como os ventos.

Solitário e mudo e grave
No meio do cemitério,
Terra pálida de mortos
Envolvo em fundo mistério:

Dou sombra aos ossos da campa,
Faço o passante pensar,
Do negro bosque do inverno
Eu presido o desfolhar;

Trajado de folhas negras,
Pinta-me o gesto a tristeza...
Mas, aos túmulos dou sombra,
E uma voz à natureza.

Medrosa e tão fida aos votos,
Amparo a virgem que chora,
A minha seiva alimenta
A que ela perde e descora;

Louco amante, qual fechado
Na minha vestia fatal,
Sobre a campa da donzela
Deixa o corpo e um punhal:

E do peito que inda bate
Arranca a alma! e qual vento
Passando leva-me, às nuvens
Lançada num pensamento!

E no sossego da noite,
Quando as estrelas esvoaçam,
Até que os raios do dia
Mui de longe a terra ameaçam,

No frio jardim dos mortos
Eu vejo espectros nascer:
Todos irmãos me rodeiam,
Ave noturna a gemer;

Desaparecem numa hora,
Num duvidoso rumor;
Renascem, vagam, murmuram
Sombrias longas de amor;

Pelas muralhas contemplam,
Acenam passada a vida...
Porém, tão tristes caminhão
Para a eternal dormida:

Nas sepulturas os vejo
Sobre os ossos se estendendo,
E depois com o véu da terra,
Que romperam, se envolvendo:

A cada pedra que abate
Longo gemido se exala.
Acorda o mundo dos vivos;
No meu país tudo cala.

E do nascer ao sol por
Plantam mortos no jardim,
Novas flores que com a noite
Vingam em torno de mim.

Mística sombra da vida,
Da morte a negra expressão —
Eu amo o cipreste; a rosa
Não me esmalta o coração:

Encantos do afortunado
Amoroso trovador.
De cipreste a minha lira
Meneia canções de dor.

 

A VELHICE

Talvez ainda uma noite... seus olhos
foram no horizonte: um vinculo de lágrima
assomou: e o velho distraio o pensamento.

Fria e pálida velhice
Desce lá no fundo vale —
Tão fundo, que não se enxerga
Nas sombras envolto o leito!

Desce, a paz leva no peito
Como quando a palma enverga
Do justo a vida se exale
Nos berços da meninice.

Gemendo ao peso da idade
Fraqueja o lânguido passo;
E desce, e para, rodeia
Por toda a parte seus olhos:

Adiante tecem-se abrolhos!
Atrás um monte se arqueia!
Deste lado encontra o espaço!
Deste lado enche a saudade!

E depois num mar de pranto
Naufraga, banha o horizonte;
E depois... sem remo e barca
Não tem senão mar e céu!

Toda a esperança perdeu,
Seu pulso a vida não marca,
Apaga-se o sol no monte
Por entre noturno canto.

Monte fatal de anos seus
De seus dias tão pesados,
Erguidos tão lentamente,
Tudo jaz no pôr do sol!

No cume está murcha a frol;
Roda a terra do ocidente
Em passos tão apressados
Para o nascente de Deus!

Já sua fronte empalidece,
Seus olhos lá se fitaram
Longe, além... riso da morte
Roça-lhe o velo da face:

Celeste expressão já nasce
Em seu semblante. Tão forte,
Como sua alma arrancaram,
Olhando oblíquo estremece!

Coragem! mais um só passo,
Da porta não recueis:
A casa de vosso pai,
Donde partistes, chegastes:

No caminho não cansastes?
Descansai, entrai, entrai!
— Ele passou. Percebeis
Do viajante o fracasso?...

Nada. Tudo emudeceu:
A poeira do caminho
Sobre os seus rastos caio:
Morre uma voz no horizonte.

Secou a veia da fonte
Que pela terra sumiu,
A ave parte ao seu ninho,
Um homem hoje morreu.

 

A ESCRAVA

“Triste sorte me arrasta nesta vida!
Escrava eu sou, não tenho liberdade!
Tenho inveja da branca, que tem dela
Todas horas do dia!

Eu sinto me crescer vida nos anos,
E mais veloz que a vida amor eu sinto
Querer abrir em mim... eu sou escrava,
Minha fronte é servil.

Por estes céus meus olhos amorteço,
Nestas plagas de anil piedosa os canso;
Ah! neste horror da escravidão perdida...
Nestes céus não há Deus!

Tenho amor, sinto dor, minha alma é bela
Aqui na primavera a espanejar-se!
Porém nas próprias asas me recolho,
O cativeiro as cresta.

Um só raio do sol não me pertence,
Eu nunca o vi nascer; quando ele morre
Ainda o encarnado do ocidente
Não posso contemplar:

Mesmo esta hora que furto à meia-noite
Ao meu repouso do alquebrado corpo,
A ver as estrelinhas nos meus olhos
Como no manso rio,

Eu não tenho segura! o vento leve,
A lua como eu sou de alvas camisas,
Fazem-me estremecer; eu vejo em tudo
Meus soberbos senhores.

Eu me escondo, que a terra não me veja,
Nas sombras da folhosa bananeira:
E os insetos noturnos me parecem
Denunciar meu crime...

Oh! não digam que eu venho ao astro pálido
Minha sorte chorar... Eu tenho inveja
Da branca, porque tem todas as horas
Do dia todo inteiro!

Eu sou bela também, minha alma épura,
Mais do que ela talvez... cansa o meu corpo
Somente o cru servir, nervosos medos
E o delírio da morte...

Do mundo o meu amor não se alimenta,
Que não há liberdade: eu sonho os céus...
Mas, nos céus não há Deus... na minha vida
Não há nenhuma esperança!

Embora, o sangue do meu peito seja
Preces ao Criador, meu coração
Virgem dei-lhe: gemendo ao sacrifício,
Por ele inda se exale.

Tenho inveja da branca, com tal sorte
Quanto eu fora feliz! os dias todos!
Passara todo o tempo aos céus olhando,
Quisera ver meu Deus!

Ouvira todo o cântico dos pássaros,
Dos ventos e das selvas e dos mares;
As flores eu amara como adorno
Do meu templo de estrelas...

Escrava eu sou, embora abra-se a vida,
Esmorece-me tudo e desanima;
Além deste horizonte eu nada espero,
Aqui me vexa a sorte...”

Cantava o galo preto: ela esquecida,
Veio a aurora encontrá-la, que até hoje
Não vira, nunca. Lhe pasmava a vista,
Mas enlevada e doce, prolongando
Nas faces novas reluzentes fios:
E de um encanto rodeada esteve,
Quando o açoite vibrou longe. — Era um preso
Que gemia ao nascer, ao pôr do sol,
Harpas memnônias se escorrendo em dores,
Até que desmaiasse, e adormecia
À cadência dos golpes que o rompiam.
E o deixavam jazendo: a vida e o sangue
Bofa em golfadas de expirante boca.
— Todo o dia dormiu, talvez sonhasse...
Inda dormindo está, no braço o corpo
Em desmembros lanhado se amontoa
Transudando uma água: a ver se é morto,
Com a ponta do açoite o tocam: imóvel,
Ergue os olhos de vidro, e lento os cai
Da luz aos passos lhe inundando os ferros
De sombria prisão. Vive: e começa
De novo a desfazer nos ais um nome;
E tornava a dormir, até que acaba:
Inda o sacodem, gritam, e ferem ainda!
— Era da escrava o irmão: jovem como ela,
Gêmeos do mesmo amor, ambos sonhando
Deste ideal que as almas arrebata
De generoso enlevo. A linda filha
De seus senhores, da crioula inveja,
Ele amara, coitado! ó cor, ó sorte,
Que negro e escravo o fez! Sentenciado
Foi aos ferros morrer de fome lenta,
De sede lenta; e na manhã, no ocaso,
Simbolizando o sol, ir pouco e pouco
A vida mais sensível derramando
Nos laços infernais do viramundo!
E do seu peito retalhado nasce
Como da terra um som subterrâneo,
Puros órgãos de amor crescendo aos céus.

Tímida espanta-se a crioula, e foge:
Leva o dia a vagar sozinha errante,
Como quem da existência em despedida
Saúda o sol e os campos.

Mendigando piedade, chora às portas
Da fazenda vizinha: os homens riam,
Em troco lhe pediam seus amores,
Sobre o seu colo uma hora:

E ela estremecia, e, de inocente
Qual vagas de pudor vinham sobre ela.
E como o sol caísse, ela voltava
De si mesma ao senhor.

Seu erro a confessar, os pés lhe beija,
Que a magoam: soluços não lhe valem
Nem pranto virginal nem Deus do céu,
Tudo emudece à escrava!

Estendida no chão de finas pedras,
Que já sangram-lhe o corpo que se arqueia,
Pedia a Deus justiça da inocência,
Compaixão ao tirano.

Peiada em duros nós, lhe começavam
Despir o corpo e o seio: ela transiu:
Gargalhada infernal oblíqua ao mundo...
Emudeceu. Mistério!

E seu irmão gemeu no mesmo tempo,
Em seu túmulo o sol também fechou-se,
E todos para o Deus partiram juntos —
Crioula, escravo e sol.
 


A MALDIÇÃO DO CATIVO

Sou cativo, na cor trago a noite
Desta vida de escravo tão má!
Mãos do dia que algemas nos tecem
Sanguinosas, no inferno são lá!

No silêncio de umbroso passado
Um gemido recorda sua dor:
E o fracasso dos soes que inda vem
Serão sempre gemidos de horror.

Inda mesmo que mude-se a sorte,
Inda mesmo que mude a nação,
Terra onde gememos em ferros
Junquem flores servis — maldição!

Não dormido nos braços da esposa,
Que por terras estranhas vendida
Nunca mais eu verei: eu que a via
Entre os dentes duma onça incendida.

Vi seu colo arquejante cruzado,
Magoada sua face de amor...
Muito embora, mas nunca dobrada
De mulher que era minha ao senhor!

Entrançada com peias na escada,
Compassados açoites sibilam,
E banhados da carne que trazem
Vão na areia, e de novo cintilam:

E a cadência do golpe e dos gritos
Mais o horrível da cena redobra:
Ruge a fera de um lado; a inocente
Oh, de dores se morde, se encubra!

Vi seu corpo de negras correntes
Enleado, que o roto vestido
Bem mostrava-lhe, e os ferros e o corpo...
Muito embora, mas nunca vendido!

Muda e lenta passou, fatigada
De um trabalho de insano sofrer:
E os seus olhos e os meus se encontraram,
E entre pranto vi pranto correr.

Dura vida, que amava, onde foi?
E nem mais minha filha e mulher,
Que em labores de escravo eram brisas
Que em seus seios me vinham colher.

A desoras, sopito o tirano,
Ao mortiço clarão da candeia
Minha filha afagou minha destra
Lá no rancho palhoso de aldeia.

Minha filha cresceu, e formosa
Como a flor lhe nascia a feição —
Eram faces de um preto retinto,
Eram olhos de um vivo loução.

E, depois da ignóbil vingança,
Já vendida na praça, e por aí,
Sem respeitos à igreja — qual Deus,
Faz uma órfã, uma viúva, ai de mi!

E, da mágoa infantil esquecido,
Doce mãe quando a obriga açoitar...
E eu cravei-lhe as cadeias... nós ambos
Só por ela esta vida a levar —

Abre os olhos de fera sedenta,
Amoroso da pobre filhinha,
Amoroso... que fera não ama:
Diz, fazê-la, rendida, rainha

Porém eu que no peito cozia
Ódio ingrato de um vil coração,
Aguardava pretido a donzela
Da serpeia, falaz sedução.

Mas a filha de outrora paterna,
Bem depressa, qual sempre a mulher
Delirante do mundo, de amores
Em seus braços se foi recolher:

Desprezou minha benção! perdido,
Destruí-los pensei: desgraçado,
Ambos juntos segui pelas sombras,
Como espectro de infernos armado.

Não que em sangue insensato almejasse
Minha faca tingir: que ante o riso
Da filhinha a quebrara, coitada,
Também Eva pecou no Paraíso:

Mas nas ervas da dor, mutilado
Do tão cru meu senhor vingativo —
Cepa fértil, que frutos lhe dava
De alimento e de amor... ah! E cativo

Eu fui cão de farejos danados
Trás da prole infeliz e o senhor:
E esta faca como inda se escorre
Em dois sangues! mas de uma só cor.

E eu agora por brenhas erradas,
Por ínvias me fujo a vagar;
Secas folhas meu leito da noite,
Negra coifa por cima a embalar:

E fantasmas me cercam, medrosas
Vão-se as feras no antro esconder;
Leve aragem, passando por longe,
Sinto os gritos quebrar do descrer:

Tudo pasma de ver-me! natura
Treme q monstro como ela não gera!
Não, sou homem também... E eu matara
Mais mil vezes laivada pantera!

Fujo as mádidas horas da tarde,
Moles raios da lua me aterram,
E esses hinos do sol dessas aves
São sibilas que dentro me berram.

E no eterno da dor sombras lúbricas
Vem-me a fronte de insônias pisar,
Se destorce o meu corpo, em minh’alma
Se desfarpa o remorso a calar!

Mas de Deus não sou réprobo, o peito
Nem malvado nem brônzeo é meu:
Ensopado nos óleos do crime
Onde geme a inocência, acendeu.

E de impuro que era, inda sinto
Os meus ossos tremerem rangendo;
Oh! são lavas que as veias me inundam,
Fébreas línguas minha pele refrangendo.

E eu matar minha filha... e nem prezo
De abrir sangue tirânico, ignavo.
Porém, sou renegado, assassino —
E eis a sorte, e eis a vida do escravo.

Baldo em corpo, que outro homem domina;
Alma estéril minando nos vícios,
Desgarrada nas trevas da morte,
Longo inferno de longos suplícios:

Oh! quem foi que forjou-nos os ferros?
Oh! quem fez neste mundo o cativo?
Açoitado, faminto, sem crença,
Sem amor — sem um Deus! — vingativo.

Vós, ó brancos, calcando soberbos,
Inumanos assombros sangrentos,
Negra relva de humildes cabeças,
Como alados de presa sedentos:

Não sentis esfolhada no peito
Murcha paz de esmaiada virtude,
E de grata poesia estalar-vos
Áureas cordas de um santo alaúde?

Não sentis sentimentos sublimes,
Céus divinos de enlevo e paixão,
Estrangeiros medrosos fugir-vos
Sem asilo no mão coração?...

Vossos filhos já nascem amando
As delícias do açoite brandido,
Como os cães esfaimados se agarram
Pelo flanco ao tapir perseguido:

Nascem vendo essa nuvem agoureira
A formar-se de em torno dos olhos,
Quando fazem-se em vidros, raivosos
Despejando sanguíneos desolhos.

Castigando sua mãe tão querida
Mãos piedosas de trêmula filha —
Quem fizera! e sorrira-se ao choro
Que ante os olhos maternos humilha?...

Oh, no inferno viveis que vivemos,
Para nós não, os céus não se espraiam:
Vós abutres as carnes nos comem;
Dos cordeiros as pragas vos caiam.

E mirrado da vida que sofro,
Quero a triste na morte acabar:
E o abismo que a voz me sepulta,
Vá meu corpo também sepultar...

De escura grota à pedregosa borda
Lançando maldição
O escravo sumiu. Oco fracasso
Bateu na solidão.

E as aves em coro levantaram
Triste cantar,
Monótono e carpido, eram lamentos
De longe mar.

E na selva ululada do fugido
O silêncio caio.
E o vento estendeu compridas asas,
E a folhagem estrugiu.

E eu prendo o ouvido contra a terra
Que vibra os seios:
Sonora ondulação de longe traz-me
Latidos feios:

Traz-me por pedras deslocadas lenta
Cadeia longa
De elos de ferro, que arrastada eterna,
Lá se prolonga:

Traz-me rugir de fera; à voz do açoite
Gemer profundo,
Tão doloroso, tão de piedade —
Num vasto mundo!

 

VISÕES

Eis-me só! nem os zéfiros me cercam,
Nem ouço a voz da natureza ê do homem:
Que para sempre os meus ouvidos percam
Esses horrores que o meu ser consomem!

Um momento feliz da solidão —
Quanto tempo não faz que eu não respiro!
Como treme de amor meu coração:
Se estrebuchando esta alma! Oh, que eu deliro!

Eu só! nem o meu Deus! que, desdenhoso,
Em troco de um amor do peito ardente,
Dos meus ais e do pranto esperançoso,
Despede sobre mim sarcasmo algente.

Nem o meu Deus! que enchia-me de vida:
Ó minha doce esperança! ó minha crença!
Ó desespero, ó alma perseguida,
— Sem crimes — quem te deu tão má sentença?

Na miséria eu nasci, nela crescido
Para nela morrer, sempre miséria!
Por toda a parte, e sempre! um vão gemido —
Choro e morte a cair da vil matéria.

Que! tudo é miserável neste mundo!
Como as coisas se dão tanto valor!...
Lamentei-o de o ver o verme imundo
Se julgando feliz, se dando amor...

Secou meu pranto; e se inda o vou chorar,
Eu delire, me espasmo de risada!
Cuspo sobre o meu ser: vi o pisar
Primeiro o Deus e o levantou do nada!

Não quero a luz do sol: se apague o dia
Para o meu existir... que mundo horrível!
Fugi de mim, perseguição sombria,
Pensamento de um Deus, e o ser visível.

Negra noite, eu vos amo, quando a terra
Passos de homem não vibra, e nem dá estreita
Um só clarão; profundo o mocho berra:
Amo essa ave, de horror essa hora é bela!

Antro da fera, esconde-me como ela
De sua pele nas dobras mosqueadas.
Sois meu anjo do amor, desgraça bela;
Sois meu Éden, cavernas assombradas.

Aqui podem meus olhos apagados
Se tornar acender, se encandear;
Mordido o corpo em tênebros rosnados,
Felicidade pôde inda encontrar...

Vida, que és tu? Estorce-se convulsa
Minh’alma, e estala! O rei lá se embebeda
Na farsa da existência... A morte impulsa
Todos à mesma barca, à mesma queda:

Sobre os olhos aperta estreita fronte;
Acena escarnicando: “ei-la, embarcai”:
E passa a humanidade humilde, insonte;
Do alto mar nos escolhos: “naufragai!”

E o que resta do homem? Ventos, vagas,
Astros brilhantes, não emudecei...
Oh, verdade fatal, que assim me tragas!
Embora inda ficais e eu acabei,

Tendes noites também na vida evada,
Não triunfais de mim, nem vos lamento:
Todos! descemos às solidões do nada,
Nobres, eu, e o mendigo vil, nojento.

E tu ouves, acaso, Deus, tu ouves
Em contorções me arrebentarem as veias
Negras de agro cruor? Não, não me louves,
Dá-me pálido rir; porém, me creias!

 

DOS RUBROS FLANCOS DO REDONDO OCEANO

Dos rubros flancos do redondo oceano
Com suas asas de luz prendendo a terra
O sol eu vi nascer, jovem formoso
Desordenando pelos ombros de ouro
A perfumada luminosa coma,
Nas faces de um calor que amor acende
Sorriso de coral deixava errante.
Em torno de mim não tragas os teus raios,
Suspende, sol de fogo! tu, que outrora
Em cândidas canções eu te saudava
Nesta hora de esperança, ergue-te e passa
Sem ouvir minha lira. Quando infante
Nos pés do laranjal adormecido,
Orvalhado das flores que choviam
Cheirosas dentre o ramo e a bela fruta,
Na terra de meus pais eu despertava,
Minhas irmãs sorrindo, e o canto e aromas,
E o sussurrar da rúbida mangueira
Eram teus raios que primeiro vinham
Roçar-me as cordas do alaúde brando
Nos meus joelhos tímidos vagindo.
Ouviste, sol, minh’alma tênue de anos
Toda inocente e tua, como o arroio
Em pedras estendido, em seus soluços
Andando, como o fez a natureza:
De uma luz piedosa me cercavas
Aquecendo-me o peito e a fronte bela.
Inda apareces como antigamente,
Mas o mesmo eu não sou: hoje me encontras
A beira do meu túmulo assentado
Com a maldição nos lábios branquecidos,
Azedo o peito, resfriada cinza
Onde resvalas como em rocha lôbrega:
Escurece essa esfera, os raios quebra,
Apaga-te para mim, que tu me cansas!
A flor que lá nos vales levantaste
Subindo o monte, já na terra inclina.

Eu vi caindo o sol: como relevos
Dos etéreos salões, nuvens bordaram
As cintas do horizonte, e nas paredes
Estátuas negras para mim voltadas,
Tristes sombras daqueles que morreram;
Logo depois de funerais cobriu-se
Toda amplidão do céu, que recolheu-me.

As flores da trindade se fecharam,
E já abrem no céu tímidos astros;
Apenas se amostrou marmórea deusa.
Que sossego! me deito nesta lajem,
Meus ouvidos eu curvo, o pensamento
Penetra a sepultura: o caminhante
Assim vai pernoitar em fora de horas,
E bate ao pouso, e descansando espera.
Belos túmulos, verde ciparisso,
Dai-me um berço e uma sombra. Como invejo
Esta vegetação dos mortos! rosas
Meu corpo também pôde alimentar.
Além passa o sussurro da cidade,
E nem quero dormir neste retiro
Pelo amor de ócio: mais feliz o julgo
Quem faz este mistério que me enleva,
Deus somente alumia este caminho.

Nasce de mim, prolonga-se qual sombra,
Negra serpe crescendo-se anelando,
Cadeia horrível: sonoroso e lento
Ura elo cada dia vem com a noite
Rolando dessas fráguas da existência
Prender-se lá no fim — a morte de hoje
Que procurava a de ontem; a de amanhã
Virá unir-se a ela... e vai tão longa!
Como palpita! E eu deste princípio,
Mudo, e sem poder fugir-me dele,
Já estou traçando com dormentes olhos
Lá diante o meu lugar — oh, dores tristes!
Todos então ao nada cairemos!
E o ruído do crime esses anéis
Não, não hão de fazer: num só gemido,
Fundo, emudeceram sono da paz.

Oh, este choro natural dos túmulos
Onde dormem os pais, indica, amigos,
Perda... nem as asas ao futuro
Não sei voar: a dor é do passado
Que se esquece na vista enfraquecida,
Como fica o deserto muito longe.
Senão a morte me trazendo a noite,
Nada mais se aproxima: solitário
As bordas me debruço do horizonte,
Nutro o abismo de mágoas, de misérias!
Porto de salvação não há na vida,
Desmaia o céu de estreitos arenoso...
Eu fui amado... e hoje me abandonam...
Meiões do nada, desaparecei-me!

 

QUANDO NESSAS HORAS VAGAS

Quando nessas horas vagas
Docemente me encantavas
O pensamento de amor,
Por essas delícias magas
Novo sol me alumiavas
Campos formados de flor:

E eram minhas horas vagas
O feliz passar contigo...
Sob a voz de murmúrio
Como da fonte nas fragas,
Como de mar sem perigo,
Como das folhas de estio.

Seguimos sol da vida até o ocaso,
E o passado e os anos e a idade
Seguindo os nossos passos nos despertam
Em repetidos gritos: morre o eco
No latejante abismo, as flores murcham...
Nas florestas do horror a alma se enoita,
Vai gemendo a rasgar-se pelos troncos.
A vida está minada de desgostos:
Do pão da vil miséria se alimenta
Na mesa da desgraça, a sede amansa
Nas águas da amargura; vem a morte
Piedosa embalar seu leito e estende
A mão que alveja de ossos amarelos,
Entoa uma voz pálida, qual choro
Que em moribundos lábios adormece:

“Inda tens de ver a aurora,
Ver o ocidente a cair,
Inda do mundo ao sorrir
Tens de sofrer, de gemer;

Ainda verão teus olhos
Ódio e sangue os céus de Deus!
Mentira nos lábios seus
Nos teus ouvidos de horror!

Dorme, filho da desgraça,
Sono da pobre inocência,
Dorme, dorme — na existência
Inda terás de acordar.”

Bem cedo eu despertei; antes quisera
Dormir eternamente. Achei verdade
Só na morte: o porvir estremecendo,
Apagando o que passa, e o dia de hoje
Por trás das costas sacudindo ao nada,
E, por desprezo, ao sol somente ossadas.
Dei um passo, escutei, voltando os olhos
Era um festim: as luzes se apagaram
Subitamente à exalação da turba:
Confusão infernal! na escuridade
Os dentes batera, se mordiam os homens.
Nova luz aparece, o sangue lava,
E para envergonhar-se um só não vive.

Nem olho ao mundo sem me rir de vê-lo:
Saltadores delfins ledos de vida,
Se abraçando com a morte, dançam. Sente:
Teu passo mais risonho à morte chega;
Pela senda mais doce e mais florida
Pelas mãos ao destino ela te leva;
As luzes do prazer mentem que há céu,
Atrás dos prismas da ilusão jogando:
Olha sobre li mesmo — homem, que horror!
Desde ti a perder-se pude tu penses
Tudo é miséria, e tudo é só desgraça.

 

VISÕES

I
Varre aquilão: frondoso etéreo bosque
Despe as folhas do dia; sazonado
Cai através da tarde o fruto de ouro,
Entre nuvens de aroma o sol vermelho;
Noturno prado de matizes cheio
Roça a lua com as asas prateadas;
Encostado no sul pende o cruzeiro;
Vai de estreitos Urano rodeado.

Tudo perdi na vida... hei muito amado
Todavia, e sem fim! meus dias, noites,
Meus anos todos, todas minhas horas
A amor eu dei: bem vezes soluçando...
Minha alma é secas folhas em pedaços
Partidas pelo vento; pelo espaço
Perde-se estéril som meu pensamento
De quebrado alaúde. Em teu sossego,
Sombra da tarde, fugitivo guarda-me:
Só tu sabes calar-me a voz dos lábios
Amargozos, descrentes; branda calma
Estender sobre mim no desespero
Me roxeando em contusões de morte —
Eu não sei o que eu sou, porque amo e choro:
Delírio, esforço vão! Sombra da tarde,
Faze cair a noite na minha alma
Para um sono sem sonhos. Como és bela,
Falecendo entre coros de suspiros
Indo por toda a parte! é melancólico
Silencioso o bosque, a voz do vento;
Melancólico o mar, nos seus desertos
Embalando a canção dos marinheiros;
A montanha palmosa, o rio mudo,
Os campos melancólicos, gemendo
A lenta voz do gado, e dos pastores
Pelas cortinas tristemente, e baixo,
Ou sentados à porta da choupana.
Horas da tarde, quem vos fez tão frias
Para me adormecer?... Mão pesadelo,
Foge, noite, de mim; tuas sombras caiam,
Quero ver inda o sol! Oh! malfadada
Sorte do homem: quanto mais fadigas,
Quanto mais existência — mais um dia,
Para ainda sofrer na mesma terra
Onde em vão desesperas, tu mendigas!
Um só dia é tua vida, o mesmo sol
To repete continuo, o mesmo sempre
Com a mesma noite e aurora, e os sonhos mesmos
Só promete a esperança; ela só mente.

Meu destino fatal! de meu não tenho
Nem uma hora sequer: esta em que eu falo,
Julguei-a minha, quis de egoísmo tê-la,
Para dá-la ao meu túmulo... passou,
E perdeu-se. Meu Deus, como eu te vejo
Presidindo o teu orbe, e a mira no leito
Do sofrimento que me dás, e a terra
Em mil fôrmas — de frutos, de homens, de aves
Hoje a fazer-se, por comer-se inda hoje,
De tão má, tão faminta que a fizeste!
E ris deste espetáculo, impassivo
Lá no teu céu dormindo ao nosso pranto!
E ris mofando ao moribundo em vascas,
Quando em berros estorce o corpo e os braços,
Debaixo do carrasco em negra luta,
Em sinistro brandear ringindo o leito!

Réptil criador comendo os filhos,
Quis comparar-me a ti! fui assassino,
Por ver a dor, que tu amas, no meu peito.

Amei a formosura: mansa e tímida
À minha voz seguiu-me... como inda amo,
Que estremeço de ouvir-me a negra história!
Amando por amar, toda ela amores,
Um desmazelo virginal, infante;
Meu amor, minha escrava, minha filha,
Cândida mãe, senhora, que adorava;
Sua vida minha só, vida que eu dei-lhe;
Que ela soube me dar, sua minha alma:
Criação de nós ambos nós somente.
Depois que dentro dos desertos vi-me,
Só com ela e contigo, Deus, ferindo
Essa corda afinada ao som mais alto;
Quando a vi delirante a desalmar-se
Se envergando em meus braços, de inocente
De um choro natural, senti-me fera,
Enfezada e com sede, aos teus escárnios!
E um deus me vendo (como tu, criei-a,
Única esfera sua, em mim te via;
Quis matá-la lambem, nem criminoso
Eu sou, qual tu não és, tu, enlevado
Nos dolorosos gritos de teus filhos),
Ave branca, rompi-lhe o liso colo
Nas minhas mãos de ferro! Ela expirava...
Inda o meu nome doce em seus suspiros
Formava, e desfazia-se; inda uns olhos
Líquidos, lentos, trêmulos voltavam
Nos meus olhos de inferno! Tão piedosa,
Duvidar, parecia do meu peito
Ferino e monstro! como em sonhos, busca
Feliz realidade, ouvir-me ainda
A voz do caro amante: repudiada...
Numa comprida esperança esvaecendo
Em lágrimas em ondas, desfalece
Pendente aos braços pálidos da morte,
Que o homem bruto lhe estender não soube,
Cândido lírio vivo. Eram meus olhos
Lançando um fogo... e o que lança vão era alma!
Ave branca! ondulou morrendo, e a terra
Onde fria caio foi no meu peito.

Quero a morte deter tomo-a nos braços,
Sacudo-a, grito — que me digam antes
Do alento final esse mistério
Que faz desesperar... Somente um nome
Achei, meu nome lhe passou nos lábios:
Negra morte nos meus, quando eu dizia,
Predispondo os sentidos miseráveis,
“Espera — espera — agora — morre — morre!”

Os teus fiéis a ti no passamento
Bradam também, também mandas que morram.
Ali tudo ficou, gelou no sangue
O ar que é nossa vida Enquanto ondula
Quente e agita o coração e as veias,
Faz o peito sonoro e as faces tintas.
Onde a alma?... Eu vi! seu corpo à terra
Tudo arrastou, se consumiu com ela.

Como eu era, Senhor, te encontro sempre
Sem ter descanso, pelos teus domínios.
Uma vítima só dor deu-me eterna;
Mil em cada momento apenas podem
De suspiros formar o ar que respiras!
Uma só voz extinta a mim gritava,
Uns olhos só me olharam: Deus somente
De uma só criatura, uma só vida
Minha foi, acabei-a, exausto eu morro.
Porém tu viverás: quando este mundo
Já não der-te alimento, crias mundos.
Do teu rebanho os últimos balidos
Dizem teu nome, como te exprobrando;
Espasma-se nos teus o derradeiro
Branquear dos seus olhos, tão mendigos
E tão fiéis à prometida esperança...
Tal nas mãos do pastor agno mimoso,
Que deu tantos carinhos, que dormia
Entre os seus pós, nos rastos seus andava —
O sangue derramando, espera ainda
(Material esperança!) e crê na vida.
Porém, juro-te, Deus — farto para sempre,
Sinto minha alma de remorsos cheia!
E tu?... Com a vista me rodeio: as aves,
Que no entrar da espessura nos saudaram,
Tinham fugido; pelos ramos inda
Seus desplumes seu medo me disseram;
E os meus cabelos eriçados, grossos,
Se alisavam com a fronte; o rio, os ventos,
O tronco vegetal tinham parado
Me vendo! Eu despertava em meu delírio
Ante a realidade! a virgem morta,
Pálida e fria a reconheço, eu rujo!
E de homem ver-me, comecei chorar.
— Quis seu corpo aquecer sobre o meu corpo;
Uni sua boca à minha, a voz lhe dando,
Que o túmulo não guarda. Em verdes folhas
Nua deitei-a, as mãos postas, e as trancas
Escorreram-lhe em torno. Dias, dias
Preso a seus pés levei a contemplá-la!
Grandes e abertos sobre mim ficarão
Seus olhos fixos e vidrados, longos
Como a meditação de uma sentença!

E a terra animada desfigura-se:
Grão de poeira que o vento ergueu numa hora,
Passeou sobre a massa de que é parte,
E sobre si caio, se envolve e perde.
Eu vi! — seu corpo transparente inchando;
Perderem-se os seus olhos nas suas faces;
Humor fétido escoa-se da carne,
Tão pura e fresca, tão cheirosa inda ontem,
Que ela amou apertar em mira, de insonte
Frenética de amor, nervosa e trêmula!
Formosa ondulação das castas ancas,
Dos seios virginais, da alva cintura
Bela voluptuosa... disformou-se
Em repugnante, (quem que a vira e amara!)
Em nojenta, esverdeada, monstruosa
Onda de podridão! Zumbiam moscas,
Famintos corvos sobre mim se atiram,
Recurvas unhas regaçando e abrindo
Negras asas e o bico, triunfantes
Soltando agouros! Eu a defendia
Da ave e do inseto, que irritados vem-me.

Presenciei desfazer-se esse mistério,
Que foi meu céu na terra, onde eu pensava
Existir e morrer! Homem o que és?...
De dia vinha o sol ferir sobre ela,
E como a lua o nítido cadáver
De azulado ambiente rodeou-se;
Vapores levantavam-se era coroas
Se inflamando, perdendo-se: de noite
Branco fogo pairava docemente,
Como as roupas de um anjo sobre as pontas
De verdoso juncal, no espaço aonde
Enfraquecia a exalação na aragem
Vaporoso espalhando-se. E depois,
Vermes internos que espontâneos nascem
Vem rompendo-lhe a pele se delindo...
Os lábios pudibundos rebentaram...
Seus olhos!... se fendiam seios, faces
E os castos flancos!... um soroso líquido
Correndo pela terra... Eu quis limpá-la
Desses monstros horríveis, que a comiam
Diante mim! porém, tudo era imundícia.
Oh! quantas vezes me lancei sobre ela,
Julgando tudo amores, tudo encantos
Dela emanando em límpidos arroios!
Fujo de nojo... de piedade eu volto...
Depois, como as enchentes pluviais
Escoando, que os troncos já se amostram,
Seus ossos vão ficando descobertos.
Oh! mirrado eu fiquei do sofrimento,
De tanta dor curtir! E tu, ó Deus,
Que tudo acabas, sofrerás também?
Por que tão miseráveis nos fizeste,
Deus de escárnio? teus filhos nós não somos...
Que sorte de alimento ou de deleite
Encontras na desgraça desumana?
Belo horror da existência — formosura.
Filha da natureza engrandecida
No seu pecado e morte, meteoro
Enganoso da noite, flor vermelha
Em veneno banhada, mulher bela!
— Tudo ali está! — ó mundo! mundo... mundo...

Inda é meu amor esse esqueleto,
Vive comigo: dou-lhe cor às faces;
Muito sorriso à boca descarnada;
Às órbitas sombrias moles olhos,
Como de nuvens rodeado o sol;
Melífluas tranças à caveira branca,
Errando os crespos na aridez do peito
Que encho de frutos, de suspiros, vozes.
De um terno coração vibrando amante!
Mas... essência imortal não saiu dela:
Embalde interroguei mudo cadáver,
E os ossos amarelos nem respondem!
Mas, aqui a mulher não é perjura:
Só lembrança de amor santo evapora —
A beleza se fôrma ao pensamento,
A saudade suas vestias se derramam.

No cimo da montanha solitária
Vou levantar-me: grito, Deus, teu nome,
Deito os ouvidos... surdo o eco apenas
Rompendo vai-se do pendor ao vale,
Pelos rochedos, na caverna umbrosa,
No tronco das palmeiras, olho ao longe:
Ara o campo o colono, o sulco exala
Cheirosa emanação lépida, umente;
O carro cantador passa no vale
Entre as rústicas vozes sonolento;
Cobrem a selva os areais de prata,
Cobrem o dorso dos bois; verte lamentos
Moribundo acauã no fundo bosque,
Mesta espessura de soluço enchendo.
Mas, inda o que eu sou não mo disseste,
Ninguém mo respondeu: me fale embora
Que tu sejas, a mata, este penhasco,
O sopro deste vento assim mugindo,
Como as almas dos mortos te buscando —
Nelas não posso crer, não posso crer-te,
Que em mim não creio! Deus, dá-me outra essência.
Muda o meu ser, substitui minh’alma
Para poder te amar, crente e feliz,
Feliz! É meu sofrer o desespero,
Este desejo e carecer... que aspiro...
Minha morte eternal! muda o meu ser.

E és tu mesmo que dás minha descrença!
Passava a vida a procurar-te — Escuta:
De dia ao desespero me levaste;
Tiram meu sono à noite os teus sarcasmos.
Num deserto, mui só, de terras vastas,
Sem um vento e nem voz, o sol somente
Sobre a minha cabeça achei batendo;
Não havia mais ar, baldava as forças
Por soltar-me, e mil braços me enleavam;
E eu apenas pensava na existência,
Alma e corpo, e um Deus. O sol se apaga:
Em cima dele um monte alcantilou-ser
E uma face de ferro se brunia
Sob ele, como liso era o meu plano:
Asas nasceram.; e uma mão, que o tinha,
O larga sobre mim — foi um momento:
Mais negra se fazia a escuridade
Ele mais perto já; lá vem! lá vem!
Faz um vento, que a sombra espessa, acalca;
Penetra a atmosfera, que se estala;
Já range e arrebenta-se nos ares,
Furacão na floresta à meia-noite,
Aos ecos infernais deixando lascas,
Centelhas vivas. Esmagou-me em átomos.
Uma dor me passou, qual uma nuvem
Que se inunda de luz, vai-se escoando:
Leve fumaça alevantou, perdeu-se.
Assustado acordei — lá ia o sol.
— Outras vezes sonhei prisões de inferno,
Por onde eu era horror, e horror vi tudo.
Outras vezes sonhei na concha de ouro.
Só, no ar embalado. Outras sonhava.
Então cora asas de mimoso fogo
Ígneos pés abraçar da Eternidade,
E de lá ver o tempo sobre o mundo
Voando, de que eu mais não carecia.
Outras vezes sonhei, morrer meu corpo
Porque morria a alma dentro dele.
Outras, que não há morte: o corpo e a alma
Era sua luta final que se separam,
Como a que a sorte das nações decide:
Ela por ir viver por aí — no céu —
Em descanso talvez, ou livre ao menos,
Ou nova terra, e amar novos amores;
Ele por desfazer-se em outros seres,
Que se desfazem noutros, a perder-se
De vida era vida. E eu inda acordava
Nas torturas do adeus, nesses estorços,
Para trás a cabeça, em vasca os olhos,
A mastigada língua despejando.
Oh! dá-me ao menos que de ti me esqueça:
Na paz dos corações talvez tu desças
Estes estéreis, desgraçados campos
Florir verdes — de li, do amor, da crença.

Nasce a manhã no céu, alvas formosas
São turbantes do sol: hino encantado
Rompe a terra, que leva ao som dos órgãos
Etéreos, do regato e do arvoredo;
Vai no horizonte uma ave; pelos campos
Saltam flores e orvalhos, mil doiradas
Borboletas ao sol se embalançando.
Ainda a minha voz diz o teu nome,
Inda te escuto... mas, descreio ainda!

Que minha alma arrancou de mim passando,
Como folhas do mato o vento leva?
Que músicas divinas oprimiram
Meus ouvidos de afagos de harmonias!
Que é isto que me enleia, que me prende,
Que me atira para as nuvens que me embalam
No ocidente de fogo, e a voz me abafa?

Senhor! Senhor! perdoa, Deus, perdoa!
Ouvi tuas harpas, na sua voz esta vão
Vozes celestiais — líquidas veias
Teciam-se na relva do teu solo,
Pelos teus pés divinos se humilha vão.
Para o verme vaidoso em térreo lodo
Desdenhaste falar; porém eu te ouço
Nas vibrações sonoras do instrumento
Que em suspiros degela o peito meu.

Sob um montão de ruínas, um tugúrio,
De palácio que foi, ora ocultava
Do sol do mundo uma família: outrora
Soberba e radiosa, de mil homens
Ou de amigos (nojentos mascarados,
Homens e amigos, raça desgraçada)
Rodeada de incensos, de sorrisos,
De meiga adulação. Fulmina a sorte;
As ondas inconstantes da fortuna
Sobre si refluindo, à praia seca
Deixou ao desamparo o pobre náufrago:
E, esse bando de abutres, quando o viram
Só, dessecado, desapareceram!

Hoje somente o caminhante para,
Descansa uma hora à sombra das paredes,
Caindo os torreões, passeia a vista,
Medita a vida, e se levanta e segue,
Ao punhal da saudade abrindo o sangue
Das veias da alma. No montar das ruínas,
Contempla. Ali a sala onde rugira
Ouro sanguinho, no fulgor das luzes
No veludo e cristal: pulverulenta,
Desbotada a pintura, ondeia o teto
De aranhoso tecume, o umbral pendente;
Quebrados moveis, apagados, térreos:
Ali a seda resvalou das belas,
Ali jorrou clarão de amor, que excita...
Luzente o chão — lá está, fendido e sujo,
Que não pôde fender ruidosa dança...
O tempo, a sorte como tudo estraga!
Um escravo que apenas da rasoura
Escapou, lento passa, mal coberto;
O vento o leva, os olhos fundos, tristes,
Dantes tão ledos nos serões cantados;
Magro, só geme, que sua mãe vendida,
Vendidos seus irmãos, vai acabando
Em mudo trabalhar penosos dias...
Dias da escravidão vós sois bem longos!
Tempo, correi, passai, sumi sua vida.
— Um eco doloroso prolongava-se
Por esses desolados aposentos
Sombrios — de outrora... E tu fizeste mais...

O mar vanzeia preguiçosas ondas
No oleoso deserto, e muge e berra
Sobre a praia arenosa, longe: ó mar
Ó meu irmão do isolamento e lágrimas,
Ó mar, como eu te amo! O que tu dizes
Nesse choro profundo? acaso triste
Lamentas meu delírio? acaso sabes
Quem deu-te a voz a ti, dor à minha alma?
Responde, mar! Ai! não, também demandas
Quem prendeu-te nas margens, que não salvas,
E dentro delas assanhado bramas,
O peito ensanguentando pelas rochas.
— E árido este céu com tantos astros,
Cemitério de espectros luminosos
Com ar de menosprezo cortesão,
Só reflete monótonos esgares —
Incentivo da dor, do desespero;
Do desprezo, talvez! Descrença eterna,
Inesgotável cálice me encheste
Neste mundo sem fim, para nutrir-me
Nesta morte eternal que arranco às noites!
Dias d’alma, que o sol luz à matéria.


II
Aonde eu vou, Senhor, onde me levas?
E isto que me arrasta, e que eu não vejo,
É tua mão? Oh, então leva-me, leva-me!

Tenho fome: mas, sangue não me nutre,
Repugno de comer os meus irmãos,
Sentar-me à mesa dos humanos corvos,
Áridos olhos de faminta chama,
Pastar sanguentas postas de cadáver —
Teus filhos como eu sou, nasci da terra.
Tenho sede: horroriza-me sorvê-las
Límpidas ondas nos meus pés tão mansas!
Mas, tenho sede... Leva-me à tua fonte,
Ó Deus, dá-me beber a água da crença.

Por que fujo dos homens? porque eu amo,
Vagar pela montanha e pelas praias,
Qual de outra essência, qual de areia ou de onda
Formado, e como espectro, e como sombra,
Errante uma hora e desaparecendo,
Para nascer de novo e inda perder-se,
Figura hebraica que os desertos formam
Pela face arenosa escorregando?...
Não tenho uma família na minh’alma
De irmãos, de irmãs tamanha? e por que amo
Só tê-los na minh’alma, e longe deles?
É que a distância prende mais o amigo,
Como a dor que Deus dá faz mais amá-lo?
Que encantos vejo em ver-me só comigo,
Com a lembrança dos mortos e o passado,
Cemitério de crânios florescido?
Estar com minha lágrima espontânea,
Que eu nem sei porque choro; e solitário
Numa isolada solidão, que eu veja
Muito longe, que eu só viva no meio
E por mim, sem ninguém que dê-me a vida,
Sombra pesada e vil?... (“não tens nas mãos
Teus dias?... Deus te enjeita... Deixa os vivos,
Enteado da terra, estéril peso,
Eles respirem livre...” Ouço o demônio!)
Mas, no deserto eu vivo, nem procuro
Rama de árvore: o sol me queima a fronte,
De seus raios me visto qual de fogo,
Chamo o sol meu irmão e a natureza;
A manhã minha virgem nova e bela
Por quem morro de amores; amo a tarde,
Que minha mãe semelha; o vento, os montes
São meus amigos; minha musa a noite;
Noite minha alma, os sonhos as estreitos
Que me adormecem na piedosa luz;
O rio, o mar, o lago melancólico,
Meu ser de hoje e o passado; e o meu futuro...
Oh, meu futuro! a tempestade e o raio
Sonoras velas do navio rasgam
Tão quase a naufragar cortando o golfo.

Quando cair meu corpo sobre a terra,
Se uma alma eu tiver que Deus não queira,
Irei então morar sobre um rochedo
Como ave do mar, que dê só pouso
A mim, o mais, cercado de oceano
Por toda a parte e céu que perca a vista;
Oceano remoto, onde não passe
Uma vela, que qual fanal me veja
Suspenso no horizonte. E se minh’alma
Deus a quiser, ó vós que mais me amastes,
Nessa pedra isolada como eu sonho,
Lançai meus tristes ossos espalhados
Sobre essa pedra de solidão: à noite
Branca aurora virá trazendo orvalhos
Cair fagueira. E se alma nós não temos...
Deixai-os inda lá dormir tranquilos,
Tão cansados da vida! com suas ondas
Somente e o sol e a tempestade bela,
Com os irmãos que eu amava os rodeando.

Tu, essência imortal do nosso corpo,
Nasces com ele? és filha dele? o crias?...
Vive sem alma o bruto, o homem morrera!
E por quê? Se organizados todos somos,
A alma, que do corpo não carece,
Ela que vive só mais venturosa,
Porque o não deixa como o bruto, quando
Indigno dela? Conjunção sublimei
Sublime aniquilar! A eternidade
Somente a Deus: a nós, homens de argila,
O gênio para olhá-lo, o amor, o canto,
E este vago anelar... alma, existência
Do pensamento, que mais sobe e luze,
A ele todo! Nutre-se em desgostos
Grosseira esperança, e nada a satisfaz:
Triste e cansada a bem-aventurança
Desse dia sem noite, que descansa,
Não valera depois: “e Deus que importa,
Separamos aqui...” também o avaro
Nunca se farta de ouro, a águia mais alta
Mais quer subir as solitárias nuvens;
Ao mármore da estátua que talhaste
Deras vida, também morrera humana;
Fizera-te imortal, mil outros deuses
Quiseram derribar seu pai, mais gozo
Sonhariam além. A eternidade
No homem!... Deus, perdoa; deste o sonho,
Tão fresco embalançar, suave engano
Da vaidosa loucura. Quanta vida,
Quanta felicidade neste mundo!
Amor desde o nascer, e sempre amor
Até nas tristes lágrimas da morte!
(Religioso terror! lá passa enterro...
Sons de sino rodeiam-me tão fúnebres!...
Avante!) às nossas mãos fecunda terra
Doira rubentes frutos, flores abre;
Uma voz doce e maternal no berço,
Ledice inata vê sorrir a infância;
Os amores depois; inda a velhice
Tem prazer e ilusão. Diz-nos cada ano
As estações o círculo da vida,
Di-lo um dia ligeiro: vejo a esfera
Sair das frias sombras e tornar,
Das mesmas cinzas renascerem vidas.
Qual instruída a terra de seus filhos,
Dores hoje, amanhã gozos lhes verte,
Que seriam monótonos. Senhor!
Nada sei. No mistério que gerou-te
Irás perder-te, luz de teda pálida
Que arde enquanto o ar rodeia flama:
Acenderam-te aqui, além te apagam,
E depois? e depois!... Olha a teu lado,
Eis teus ossos ali! A eternidade
A nós nos levantando desta terra,
Está na sucessão da vida e morte:
Ondulação dos ventos animados
Que já vimos vivendo neste tempo.
Digam embora os profetas, não sabemos
Qual foi seu nascimento: vejo tudo
Sempre na mesma idade; houveram sempre
Sábios e hão de existir; o dia é mudo
Desde a aurora ao sol pôr. Giro dos ventos!
Círculo eterno que descreve o sol!
Saímos de uma noite, entramos noutra,
Nós somos um só dia, e nós contamos
Nossos minutos pelas nossas dores.

Alma do homem, se imortal tu és,
Como cresces com os anos da criança?
Como desmaias quando o corpo enferma?
Pendurados nos seios maternais
O da Grécia, o de Roma sempre foram
Como quando da idade aos ecos longos
Se encostavam ao bordão septuagenário,
Pendiam a vista, o pensamento imenso,
Como se ao peso dele opresso o corpo
Frouxo se desfizesse em eternidade.
Não tens idade, és infinita, és uma:
E à matéria momentânea desces,
Segui-la engrandecendo-te com ela;
Inimiga que é tua, vens amá-la,
Vestir a virgem de pudor, de encantos,
Apodrecer ao pestilente clima
Da prostituta imunda, e por vontade,
Que do corcel as rédeas tu governas!
O que vens cá buscar? romper tuas asas
Que são divinas, sucumbir às dores,
As torturas da carne: oh! foras louça,
Hóspede errante das regiões etéreas,
Vir sobre a pedra repousar tão vil,
Descansar uma sesta, e já partida
A presença de um Deus ir ser julgada!
E não foi ele que mandou-te à terra,
E porque tudo fez; tudo sabendo,
Medindo os passos teus antes que os movas?.
Fazem de Deus um monstro, te fazendo
Simples escárnio seu. Morta a razão
E o sentimento livre e a consciência,
O corpo vale mais: cândida filha,
A glória do Senhor, leu ser eterno
Medem teus altos voos; mais vais, mais vives,
Que a Deus somente a absoluta vida!

Nossa vida este sangue, a seiva de árvore,
Desta árvore pensante e divinal;
São perfumes nossa alma, diferentes,
Sempre anelante a se perder nos céus;
O pensamento, o resplendor que a cinge,
A atmosfera vegetal ambiente;
É seu tronco o amor, a glória; os ramos,
Os frutos e o sombrio gasalhoso
E as flores — a virtude, o crime. É belo
Amar um Deus, oh! sim, que um pai nós temos
Amor, que fazes dor, que a dor esqueces!
E para amar nem peço alma infinita —
Material condição do mundo aos céus.
Amemos de amor santo, amor sem esperança,
Mãe enganosa da ambição, dos vícios:
Esse amor natural é mais divino,
Do que quando nos dizem duramente:
“Adora o que a vingança aguarda, o raio
Manda e a peste, o Deus de sangue e morte!”
E curvam-se os cobardes, mas não amam,
Do medo infame e do terror; escravos
Amantes!... como o pai vibrando o açoite
Pede a benção do filho. Amor mais puro
Demos ao Deus dos homens, por nós mesmos,
Como os pássaros cantam na espessura.
Embora o sol se apague, os rios sequem,
Não vamos de interesse ante os altares
Lágrimas de olhos espalhar, vilmente
Misérias confessar aos impostores,
Mais miseráveis inda, que se enovam
Na esperança de que eles purificam.
Comercio d’alma nos marmóreos céus
Entre o povo e o ministro, o rei sopito
Pela alta nuvem: e, quando despertado
Aos latidos do crime, iremos, nojo!
Chorar, pedir... Choremos todo o dia,
Porém, movidos de um amor — da crença!
Triunfo à consciência, e sufocado
Estale dentro o coração perverso!

Deus deu-nos para nós o mundo todo,
O sol, os astros e este maré a selva;
Deu-nos vida e saber. E o homem pede,
Por pedir, por sonhar pede somente,
O salário do gozo em recompensa
De uma existência de asas soltas, pura,
Que ele próprio só mancha! então gemendo
Sente do vício as farpas. O inocente
Bem vezes sofre: mas, o sangue dele
Banha a sociedade que o condena:
O homem cria o mal — por consumi-lo —
Contra o seu deus, oh, prole generosa!
A eternidade em recompensa ainda
Pela sua morte e as horas que passasse
Na adoração divina! e Deus nem fê-lo
Para ideia tão vil: negando bruto
A justiça infinita, ele não sendo
Também por esses céus infindo n’alma.
— É céu em si a caridade, o amor:
Cândidas palmas seu caminho junção,
Lágrimas vê correr sua morte, e rindo
Em piedosa alegria extingue os olhos.
D’alma eterna a virtude não carece;
Nem por não ser eterna o crime, os vícios
Da natureza pendem. Em letras ígneas
Sobre o rosto da lua aparecesse
A verdade imortal, e as leis da terra
Não fossem mais — ó mundo desgraçado,
Eu quisera te ver... a lua fora
Mentirosa: — a verdade faz escravos: —
Duvidar é viver: o homem é livre!
— Se eu lenho eternidade, não mo digam
Homens como eu: no espelho do universo
Vejo uma só imagem refletida:
Pura religião da consciência,
Do sentimento da moral divina
Me levaram naturalmente e cego.
Vejo só pedras o falar dos homens:
A fera de razão berre aos cordeiros.
— Nem quero recompensa à minha vida,
Às minhas dores, meu amor de um Deus —
Amando tenho o céu, tenho o meu Pai!
Eu sou da terra: a terra, o vento, às águas
Dão por preço seus cantos? não são eles
Preço de amor à criação somente?...
Ser feliz é amar, feliz eu era
Amando a doce mãe na doce infância.
— O navegante sol passa na esfera,
Miram-se estreitos nele, e dá-nos dia
Aos nossos olhos e o calor ao sangue:
Voa ao sol deste sol, muito além dele,
A alma do meu corpo na existência,
Ao clima etéreo de sua vida e flores.

Não é amor divino o amor da terra,
Onde é fanal da longitude o lucro.
Ó santo, ó generoso amor da pátria!
Ai dele o que disser: “os sacrifícios
Ao nosso corpo, que o Senhor amansam,
A nós as portas das delícias abre;
A pátria dá-vos ouro, augustas glórias,
Combatei peto pátria, salvo a morte!”
Hão de cair teus dentes, e os teus lábios
Baba infecta derramem do teu peito!
— Caiam os templos aos pés da natureza,
É mais belo este sol de luz de dia:
Como do moribundo à cabeceira
Parece a vela insinuar piedosa
O caminho a passar, mudo-eloquente
Ele nos diz “além!” mais do que os ecos
Deslavados, que estão se desmaiando
Ante a paternidade desses homens,
Que se dizem do Cristo a imagem pura,
Por dizerem: “batei! feri os peitos!
Chorai agora!” e as lágrimas se entornam,
Gela o terror a vista pela terra:
Interesse servi!! “brandi o remo
Do baixei da esperança, além dos mares
Da vida — o porto de inefável gozo!”

Não me ensinem os cânticos sagrados.
Enquanto lava de harmonia a abóbada
As imagens que impuras mãos talharam,
Entre as paredes tão mesquinhas postas;
Enquanto verte luz de terra o círio
Sobre a turba sonora, gemem órgãos
E o sino — que o dinheiro vil comprou
Vou na campina me deitar cheirosa
Debaixo deste céu à voz do vento,
Das águas e do bosque, e a natureza
Cheia dum solitário sol! como ela,
Sentir meu coração valente e novo
De inspirações formosas; que não dessas
Frases diárias que aprendi, monótonas,
Insensíveis na máquina dos lábios.

É tão feliz, embora o mundo e a sorte,
Sem ser por gratidão do leite e a cama,
Naturalmente amar o filho os seios
Onde nascera, a mãe seu filho amando!
E essa mãe que adoramos nos promete
Outro sonoro berço além da morte?
Não é na morte que ela é mais querida?
Por que a perdemos que a amamos tanto?...
O puro amor não tem, não tem esperança.
Amai a Deus na paz, na rubra guerra,
Nas ondas do prazer amai a Deus,
Na abundância ou no fundo da miséria,
Na morte, desgraçada amai-o ainda.
Tire-se o filho, a mãe seu leite perde:
Deus morrera, seu mundo aniquilando:
Perdida a voz da natureza e os astros,
O mar e os homens, quem seu nome ouvira?
Quem dissera que ele é?... Cedro infinito,
Seus frutos somos nós aos céus olhando.
Ele o quis. Se consuma a alma do ingrato!
Erga-se a crença que natura ensina,
Como a corrente perenal descendo!
— Esperança do gozo o amor dos homens,
E sempre esperança e gozo! Amor da terra
Querem dar-te, Senhor: não alimenta
Delicado manjar corruptos seios.

A unidade os cegou: multiplicaram
Deuses aqui nascidos filhos deles;
E pelos mil altares que divagam
Dão migalhas de amor. Eu não conheço
Nem mais que um Deus, nem deuses subalternos:
Ao primeiro me elevo, amo o primeiro.
— Idolatria eterna! as bentas águas
Brutal gentilidade não lavaram:
A família cristã se degenera
Desde a morte de um pai. Elege o povo
Um para santo, e dá poder divino
De suas mãos às dele... Homens da terra,
Tão néscios, que buscais? como os insetos
Noturnos, ante o dia deslumbrados,
A caírem se agarram pelas folhas.
— Lá se embala na praça o enforcado:
O carrasco em seus pés se dependura,
Vai nos ombros saltar-lhe... esperta o peito
Ao tímido mancebo — a turba aplaude!
As carpideiras torres não choraram:
Nem se alegrão passando o inocentinho
Que viu antes a morte que o batismo:
Já leva deste mundo o julgamento:
Era fogo lento vai gemer, nem pôde
Em coros celestiais ser querubim...
Anjos te negam, Senhor Deus, não sendo
Educados e feitos por mãos deles!
Hipócritas, eu vi monstros do incesto,
Que ungidos foram, que inda o são no ocaso!
— Curvaram os animais antigamente
As rubras aras de ouro a fronte do homem:
De mil homens os pés hoje beijamos.
Todos um coração sangrando mordem,
Todos vivem da vida que era de outrem,
Que para si aos seus irmãos arrancam.
Humanas feras, muito mais que os homens,
Ferinos homens, muito mais que as feras,
A natureza verte: indiferente
Um e outro adorara, se não fosse
Meu amor todo só de um Deus — um Deus!
E só de um sentimento pio e irmão
Vejo o mundo — do monte ao bruto ao homem.

Lia a Bíblia por noite indo os gemidos
Do Cristo neste dia de endoenças;
Logo o enfado da vida adormeceu-me.
“Voa, terra do sol que vem nascendo,
Receber os seus raios que se perdem
No árido espaço, de fecundas flores
Murchas regiões abrir...” Eu sobressalto,
Caindo o livro. Pelas ruas corro,
Como levado de uma mão: no peito
Se engrossando o coração me estronda;
Em destroçado pensamento a fronte
Me sussurrava. Agora tudo para.
O círculo em que eu ia, se escoando,
Desencantou-me em terra. Deus! a sombra
De Ana fronteira a mim! Quantos amores
De um sentir tão místico se libram
Neste espaço, infinito! encadeado,
Dentre os meus olhos e os seus olhos!... e ela,
E eu, mão grado nosso, nos fugindo,
Gênio invisível nos sustinha: encanto,
Flecha atrativa se irradia dela,
Eu era o astro do meu centro em torno.
Eu senti uma voz úmida e vaga
Como brisas de seda me enleando
De asas vaporosas, e um perfume
De boca virginal; rumor depois,
Como do estremecer das folhas verdes,
E as rolas quando voam. Que me arrasta?...
Como de aurora afugentado sonho,
Minha alma foi de mim. Rangeram pedras,
Bem como outrora na cidade santa.
Chamou-me louco atropelada turba.
— Mais divina que amor, oh, mais celeste
Do que o reino dos céus e o ser dos anjos!
E eu bem cansado desta vida morta,
Viveu-me o seu amor! Dentro de um astro
Correndo penetrei na minha gruta
Sem luz: tudo uma sombra povoava.
Estendi-me no chão dando uns abraços,
Beijando uns pés em soluçar de amante
Feliz — felicidade o amor somente —
Eu era o esposo dessas sombras todas,
Todas uma, ou meus olhos todas elas,
Ternas de mira, chorando aos meus delírios.
— Tu me fazes cristão, tu dás-me a crença,
Tu és o signo santo dos meus lábios
Quando a aluada em límpidas endechas
De ti falando despertar-me vem:
Ó ave da manhã, quem que ensinou-te
Dizê-la?... Me alevanto, e vejo o dia
No oriente indeciso. Então, brandindo
Na minha voz teu nome, eu vi a erguer-se
Das montanhas o sol; risonhas luzes
Se suspenderam nas fitaceas palmas,
Que se dobraram refletindo orvalhos
Adiante dele; balançou-se o vento;
Estremeceu a selva, como as virgens
No fim do sono sem sonhar suspiram;
É pelo em torno se afinaram rústicos
Saltérios de alegria. Viste, ó Ana,
Ó sombra da mulher que não existe,
Duma existência dúbia a natureza
Abrir-se como a flor? assim minha alma.
Porém, eu sonho que de mim te arrancam:
Meus gritos, meu chorar de nada valem...
Mesmo sombra de amor, que eu ame, eu perco!

Tudo é mentira em miserável mundo!
Tu, que eu julguei-te dom celeste e santo,
A maldição a ti, que me enganaste,
Falsa amizade... não és mais que do homem
Hipocrisia e Serpe. E eu pensava
Do amor na eternidade... maldição
A toda esta existência! Nuvem bela
Cobria uma hora a flor que o vale cresce.
Apareceu o sol — negra verdade!
E tudo não foi mais do que uma sombra,
Uma estação da momentânea infância.

Hoje, ó irmã, eu recebi tua carta,
Na flor do amanhecer me alevantando,
Como essas aves que na aurora cantam
No teto da choupana e estão dizendo
Que o sol já nasce: e eu que no meu leito
Arquejava dobrado dos mãos sonhos,
Foste lágrimas de alva, o dia de hoje...
Encheste-me de amor todo este dia!
De nossa mãe, tão doce, me falavas:
“Deus lembre-se de sua alma... eu sou tua mãe...
Não me fales assim... morrer tão longe,
De dor e de saudade, onde não saibam
De ti homens e o mundo... ó meu amigo,
Quantos punhais no coração me embebes!...
Deus quer nos consolar... do esposo ao lado,
Um bem perto do outro nós vivamos
Sempre, sempre, meu Deus!... serei tua mãe,
Teu consolo, depois desse grande Pai
Soberano, a quem sempre eu rogarei
Tão triste pressentir, e os sonhos mude,
Tire do solitário pensamento...
Não desanimes — tão esmorecido!...
Já estás cansado de viver? é cedo —
Oh! é tão cedo — vive mais um dia!...”
Que palavras do céu! ainda a terra
Dá flores que nos deem tão grato aroma?...
Oh, fala sempre dela, nossa mãe!
Há tanto tempo morta... oh, fala sempre!
O que derrama no meu peito a lágrima,
Dor, orfandade, dá-me também vida:
E minha alma viver, é na tristeza
Solitária exilar-se; o dó dos túmulos,
Da saudade cobri-la. Me rodeiam
Tristes sombras da noite, frias, mudas,
São mistérios do morto: e tu disseras
Meu limite amanhã, hoje chorando;
Porém não, é minh’alma que é tão triste,
Nem tenho tanto amor, que a vida chore.

São teus melhores dons o pranto e as dores,
Senhor, porque mais perto a ti nos levam:
Por isso eu amo a noite, amo o deserto —
Lá se desatam as prisões magoadas,
E só contigo estou, e não nos ouvem.
Nos perigos do mar, sobre o naufrágio,
Quem teu nome ensinou, que o nauta ignora?
Ao moribundo que se estorce e dobra,
Que sua vida passou salteando os montes,
Descrente as veias que inda rompem sangue
Com suas unhas cortou — seus ais da morte
Quem do teu nome encheu, ferindo os troncos
E as penedias que seu leito o ouviram?...
Ó Pai, ó Deus dos homens, Deus dos astros,
Que nessa hora tua mão piedosa estendes
E uma esmola de graças nela brilha!
Horas felizes do perigo e dores,
Solenes, belas, do Senhor tão perto!
— São teus filhos eleitos esses bardos
Gemendo pela terra sem ter pátria,
Rodeados de morte, os pés te beijam.

Sobre o mar, procurando o céu, se eleva
Em colunas de sombra e de ar e d’água
Um templo: vejo um ser baixar sobre ele,
Que as colunas brandeiam, o mar se arqueia,
Humildemente geme, e o mar indômito!
Mais puro do que a noite, eu mal o enxergo,
Como o sol... não, não é, que o sol num disco
Encerra as fôrmas de ouro: não tem fôrma,
Parece a eternidade e o infinito!
Disseras qual uma ave transparente
Que com as asas envolve a imensidade!
Uma luz, que concentra-se a extinguir-se,
Dando mais claridade ao pensamento,
Quanto a tire aos sentidos; que tão pura
Estende-se dali por toda a parte,
A terra, os astros e os celestes ares
Sem refração seus raios trespassando,
Embebendo de vida e de piedade;
Que tudo anima e faz amor tão santo,
Que de um só pulso inteiro este universo
Uma respiração palpita eterna
A ela só! Nela só tudo desperta:
As aves vivem mais a ela cantando;
As plantas quando o zéfiro as agita;
O mar quando mugindo balbucia,
Infante o nome de seu pai, mais vive;
O bosque amigos não teria e os ventos
Se fossem mudos, não dissessem — Deus!
Eu também vivo mais, morrendo nele;
Oh, tudo vive mais nele vivendo!

Sai minha alma de mim, ante os altares
Não subiu: filho ingrato, arrependido,
Que aproxima seu pai timidamente;
Cão que mordera seu senhor, que humilde
Se arrasta e esconde-se em lugar sozinho,
A vista lenta, e doce como a crença,
Espiando-o por ver se ele o perdoa —
Assim piedosa por detrás das ondas
Pede sombra às colunas... Mas, quem tudo
Afugentou, cobriu de horror do mundo?...
Geme a festa nos flancos do castelo,
Impura ondulação de infrenes vozes
Tolda o espaço: minha alma recolheu-se
Trêmula e fria a emudecer de susto;
E da poeira sonora que ergue a terra
Eu não vejo mais nada, os olhos turvos.

E depois outras vozes me perguntam:
“Se fosses um caminho, onde encontrasses
Salteadores mil e um homem preso,
E te dissessem: este homem vai morrer:
Se queres passar livre, mata-o; ou morres:
És simples instrumento. O que farias?”
Respondi: eu sou livre, não matara,
Me perseguira a sombra do assassino;
Morresse embora. Riram-se de mim.
Perguntei-lhes: se fosse o prisioneiro
Vosso amigo mais íntimo? “Matávamos;
Porque ele ia morrer, e nós somente
Nossa vida salvávamos, podendo
Ser úteis inda a ele e aos que ficassem.”
Se fosse vossa amante, vossa filha,
Se fosse vossa mãe? “Inda matávamos;
Assassinos não éramos, da morte
Sendo o punhal por mãos de outrem vibrado.”
Ri-me deles então. Mas, vossa mãe
Com um semblante de céu pelo seu rosto;
Com seus olhos de lágrimas olhando
Seu filho que ela amou, beijou na infância,
Com seu canto da tarde sobre o leito
Embalou e adormeceu — seu filho
Que ela abençoava ao sol nascendo,
Nas estreitos da noite, e à flor do campo,
Ao vento quando move a natureza;
Sua alma da existência era o seu filho,
Seu filho os seios lhe romper, sangrá-lo
De morte! donde a vida em lácteas ondas
Corria-lhe, num rio espontâneo
Do céu por climas divinais passando!
Ela piedosa vos pedira a morte,
Sim, por vida inda dar-vos: leopardos!
E a maternal doçura feminina
O peito de homem não brandira — egoísmo!
Por um dia talvez já só no mundo,
Que se passa a dormir, que nada vale,
Déreis a morte ao que teria inda anos
De vivo ter-vos na moral do amor...
Um cão já vi morrer salvando um homem!
— E eu matar minha mãe... meu Deus! viessem
Raios do inferno sobre mim, serpentes
De asas e olhos de fogo, com mil mortes
Todas esfaimadas, com mil deuses, todos
Unhas e dentes regaçando em fúria
Para acabar-me — ainda eu me sorrira —
Os monstros friamente desdenhando,
Nos pés de minha mãe eu suspirara
Meu último suspiro; e ela morrera,
Nós ambos morreríamos! Ó homens,
Deixai-me com meus sonhos, com minh’alma,
Não vinde perturbá-la; diferentes
Vós não sois meus irmãos, vos tenho horror!
Naqueles ares, vede, há pouco estava
Edificado um templo: eu sossegado
À sombra do meu Deus parava uma hora:
Falastes, tudo se sumiu! deixai-me
C'o a minha noite e as minhas ondas, tendes
O dia inquieto para vós e o mundo.

Vem, ó musa, modesta divindade,
Em pedaços minha alma na poesia
Verter: eu te amo! que minha alma rompes
E mais leve me deixas do seu peso,
Tão descorada! quem das faces úmidas
O veludo celeste matutino,
As rosas virginais tão cedo esfolha?
Também a dor apaga, como a onda
O dourado fulgor da areia branca,
As faces; nos teus olhos lá se extingue
A esperança: mulher enganadora,
Por quem morrem os homens iludidos,
Esgotados de vida e crentes nela.
Dizendo inda ela no cair do túmulo
Com os braços de cadáver suplicantes,
E ela voa risonha de inconstância.
Minha terrível inimiga, esperança!
Secaste os meus jardins e as minhas linfas;
Eu morra ao menos sem te ouvir longínqua
Teu canto sirenal; roçar tua vestia
Crepitante a caírem minhas pálpebras,
Se estendendo na morte; deusa falsa,
Vá tranquila, minh’alma deste inferno,
Onde à tua voz somente errante andava;
E cansada da vida, outra não pede;
Mas, inda viverá se Deus o manda.
Nem para os céus nem para a terra, esperança,
Não careço de ti, mulher perdida!

Pelos vales do espaço a vista eu solto
Por detrás do horizonte, quando as nuvens
Ao céu limpo não traçam seus limites;
Tão amplo e tão vazio o Armamento
Só adormece e eleva: então me sinto
Túmido o cérebro, esquecer meu peito
Meu coração, duma alma entorpecida,
E de um pesado pensamento assombras
Abatem-me: Senhor, dá vida e força
Que eu possa compreender-te para amar-te,
Dizem-mo os homens; mas a voa dos homens
Estéril para mim, ouvir nem posso:
Sou como eles; me fala tu somente!
— Tu vens no galopar da tempestade?
Vens no pavor da noite e sobre o sol?
No tempo derribando nos seus passos
Tão largas gerações e gerações?
Com pés de fogo a terra verdejante
Fazer passando adusta, esses impérios,
Cidades em pedaços palpitantes? —
Mas os meus olhos materiais não bastam!
Vem tu mesmo, a verdade e o infinito,
Refletir na minh’alma, que se esmaga
Sob o impossível no estupor que fazes!
— Como tu fazes delirar è matas
O que em terra se arrasta ínvio às tuas portas!
Oh! que pai que tu és! oh! maldição!
Se eu pudesse dormir sono de um morto,
Por não sonhar em ti, dera esta vida!
Balar da vaga humilde, és só às praias.

E aquele sol cobarde vai fugindo
A voltar-me o seu rosto! se eu pudesse
Pelos cabelos arrancá-lo ó ocaso,
E destes braços o suster imóvel
Lá no meio do espaço, e frente a frente,
Fender-lhe o peito, que uma voz soltasse
Em fumo envolta!... A lua desmaiando
Se encobre por detrás dos arvoredos,
Uns olhos timoratos da donzela
Dissimulando a ideia, e detençosa
Fez dois passos no azul, tremeu de mim.
E este vento, que há pouco nos meus ombros
As elásticas asas meneava,
Escapou-se também, me ouvindo — eu só!...

Mas, o rio que passa azul, vermelho,
Conforme a cor do céu, quem foi que o fez?
Quem é que do despenho alcantilado
Leva-o saudar os campos e esses vales?
E este vento que me açoita as faces
De condenado e arranca-me os cabelos?
E este coro florestal da terra,
Solene e cheio, como dos altares,
Vozes, órgãos, incensos todo o templo?
Este meu pensamento pressuroso
Rolando dentro em mim? este meu corpo
Ninho dessa ave de tão Vastas asas?...
Quanto é sublime todo este universo!
Quem te negara o ser? — quando houve tempo
Quando nada existiu, que tudo fez-se!
Más, o infinito compreender não posso.
Donde saíste, Deus, onde vivias,
Rodeado do espaço? ele gerou-te
Por dominá-lo sol onipotente?
Mais ele fora. Não. Acaso o caos,
Revolvido incessante às tempestades,
Estalado em lascões, lavas brilhantes,
Outras térreas, librando-se embaladas
Nas asas da atração fraterna entre elas,
Qual presas pelas mãos por não perderem-se,
Ordenou-se por si? ou fora acaso
A criação fatal, tudo se erguendo
Segundo as circunstâncias? Oh, inferno
Da obscura razão — mofa, ludibrio
Com que Deus pisa o homem! Um Deus fez tudo!
Um Deus... palavra abstrata, incompreensível...
Mas a sinto tão ampla, que me perde!
— E então, quem aos mares suspendidos
A verdura defende, e que se atirem
Uns astros sobre os outros? Deus... um Deus
Ao sol dá cetro e luz, asas ao vento,
Leito às águas dormir, delírio ao homem
Quando queira abraçá-lo. Dorme o infante
Sob os pés de sua mãe, que ama e não sabe:
A natureza ao Criador se humilhe.
Não tenho alma infinita, porque é cega
A verdade imortal: visse ela o eterno —
Quanto eu amara! quanto! Eu sou bastardo,
Não sei quem são meus pais... se amar não posso,
A existência me enfada: enjeito-a, e morro!

Eu estava num mar de calmaria
Amplo e cheio de sol, meu peito o esquife
Mudo arquejava; as velas da minha alma
Não arredonda nem um vento — descem,
Pelo coração se escorrem; durmo
No meio das solidões de minhas mágoas.
Senti na minha face um doce alento
Trazer os meus cabelos: fria e tímida
Mão seráfica a testa levantou-me
Com liberdade fraternal; meus olhos
De pranto escuros não puderam vê-la.
Duvidava uma voz de sensitiva,
De flexível luar, longínquo incerto,
Porque era virgem e amante; mas, coragem
Deu-lhe a piedade, o amor: eu tenho ouro,
“Muito ouro para dar-te; ergue a tua vista
Da terra, qual meditas que ela guarda
Tantas riquezas, te denega escassa
O teu pão de amanhã... sê meu esposo...
Meu esposo feliz! — além desta alma,
Uns anos alvorais e os meus amores
Castos, muito ouro para dar-te eu tenho.”
Os meus olhos na terra pelo ouro!...
Não, pesados de morte descaiam:
Um só meu pensamento ao ser mundano,
Ao sanguíneo motor nunca eu dei,
Eu andava bem longe! Se eriçava
A longas dobras de um espanto belo
E de nervosas comoções minha alma
Sobre as bordas do nada: lá nascia
O mundo, os campos se estendiam, os montes
Sobrepunham-se, e logo o bosque, as ervas
Coroam e cobrem de folhagem e sombra;
Eu sentia esmagarem-se na esfera
Os astros seu caminho procurando,
Rebanho alvoroçado em campo estranho,
Depois se acomodavam; o sol despede
Seus raios primogênitos; mais fracas
Estreitos às mais fortes se rodeiam,
Como o rei do Oriente está no meio
De mulheres tão brancas, tão mimosas.
Porém sem luz, que o seu amor reflete
Em distância. Eu choro, virgem moça,
O amor, porém não o amor da carne;
Eu choro a dor que o corpo não conhece
Nem teu ouro não cura. — De repente
O mar tremeu; as ondas sepultavam-se
Assim, perto de nós, como só a terra
Debaixo as devorasse, nos ouvindo;
Surdo estrondo banhou todo o horizonte,
Terremoto passou submarino.
As mãos prende nos seios assustados,
Respirando perdão nos olhos belos
No rosto meia-cor, tal pousalousa
Folheia as asas que de sol se orvalham
Por céu de brando, de inocente azul.

Não te aterres de mim, fala um defunto
A virgem longos braços amorosos.
Eu já não vivo mais: vês, como eu fujo
De ti, mugindo às solidões e às noites,
De monte em monte, como a fera errante?
Amo abraçar a rocha sonorosa,
Quanto amava a mulher inda homem mesmo
Meu peito aquece a pedra, e destas mãos
Afago as ondas suas que me cercam.
O bardo de ilusões, que ia cantando
Mimosos carmes do equador esplêndido
Pelas margens risonhas da esperança,
Acabou:tenho ódio aos céus, aos homens,
Troco a luz peto sombra, e só respiro
Destruição e tempestade e morte!

Como ia tão fresca a primavera!
E eu me sinto cair do verde cume,
Qual fruto apodrecido pelo inverno,
O velho de alvas cãs de envira branca
Que de viver cansou; nem tenho inveja
Ao homem que em seus cálidos estios
Contempla o vasto da existência. Ai dele
O que desesperou deste mistério!
Deste silêncio estúpido nos céus!
O pavoroso assombro de natura
Em vago e néscio sussurrar! Ai dele...
Desprezo ao mundo, e maldição a esta alma,
Que os olhos abre para ser mais cega!

Uma onda no mar levando o eco,
Meu coração é campa solitária
Errante petos naves ruinosas
De túmulos desfeitos, rotas sombras
Do peito meu; é como ave ferida,
Que somente estrebucha, entesa as asas
Para os gemidos no estertor da morte:
Nem Líbano sagrado eu sou, e a gleba
Da eternidade os cedros meus não plantão;
Nem olho para o longe, envolta a fronte
Em negros braços de ataúde, eu durmo.

Cansado viajor, descanso à base
Do monte que desci — frondosos campos!
Onde as imagens duvidosas, belas,
Verdes folhas arrancam-me passando
Os ventos a perder: eu estremeço
Que nos véus de ilusão que além se estendem
Não durma o raio da desgraça, e as flores
De pétalos rosados não me arrojem
Com seu peso de ferro. Oh! doce aurora! —

Era fantasma; a voz de escuridão
Na carreira dos ventos misturou-se:
“Que faço, que inda existo? a morte! a morte!
E os teólogos dizem — nossa vida
Pertence a Deus, que a dá — Miséria ao homem
Vil existência mendigando, fraco!
Inda aos dias mais fundos de desgraça!
E eu inútil no mundo, e lasso dele,
Minha vida nas mãos, não quero os dias...
Espinhados cabelos se amoleçam,
A fronte alise-se aos que me ouvem mudos
Com fixo terror passar nas sombras
Pela esfera infernal das minhas noites —”

Sonho, sonho de amor, que me adormece
Tumultuosa, amotinada esta alma!
Uma inefável ambição me segue:
Mulher, uma somente, como os anjos,
Em cujas mãos eu desfolhasse todo
Este amor que me anseia, vaga viva
A querer se perder. Feliz da virgem
Que nasceu para mim! que eu acordá-la
Ao meio dia do amor! como essas flores
Que abrem à força do calor do sol;
Por isso ainda mortas vertem cheiro
E o vivo do escarlate não descoram,
Como as de aurora que favônio anima
Só Enquanto do orvalho umedecidas,
De fresca mocidade as faces tintas.
Essa que sobre mim primeiro os olhos
Acender de paixão, que ainda estavam
Entre as capelas virginais fechados;
Essa, onde o candor de um riso infante
Envergonhou primeiro o gesto ameno,
E o coração repreenda è de mimosa
Busque, pobre! tirar de si minh’alma;
Essa, dormindo da existência o sono
Desde os seios da mãe até ao meu peito,
Alto o sol, viu-se nua diante dele —
Não era volúpias sensuais enferma
Descamisando-se, espasmando o corpo —
Num assalto de amor vago, encantado,
Pudica rosa em flor, se esconde, crente
Que no seu rosto o coração lhe salta:
Ó virgem, onde estás? ó rainha noiva!...
— Lá das partes do céu a vejo... vem...
Vós podeis começar os nossos dias,
Lácteas manhãs e as brisas da montanha!
Casal ditoso, nós não pecaremos,
Aqui não há serpente. A minha fronte
Somente por dormir o teu regaço,
Teus pés hão de embalar, nos meus cabelos
Sentindo o afago da tua mão cheirosa.
Nosso universo só de nós composto,
Amores respirando no ar, amores
O coração banhando, iremos longe...
Onde só testemunhe a natureza,
A terra, o vento e as estreitos altas
O nosso corpo nu... anjos selvagens!
Os berços de roseiras e a ramada
Não murcharão neste Éden: novo sol
Há de ver se murchando o velho monte,
Novas flores nascer, nova esmeralda
Dourando nova relva, se estendendo
Dos pés aos joelhos, como à luz aspira,
Por o cinto lamber, braços de esposo
No enlear de enlevos — oh, triunfo!
Nestes jardins há Deus, sobre este clima
Ondula o Armamento dos amores.
A tempestade, o mar, a voz de ameaças
Nos provocara o riso: o sol somente
Nossos quentes vestidos, muda lua
Nos seus serões de luar tão só nos vira —
Longe dós vivos, evocando os céus!
Eterna vida! amor eterno! esta alma,
Ave perdida, errante, hoje somente
Ao ninho conhecido, ao ninho amado
Levantará seus voos, e do passado
Sem ler nem crença não terá saudades.

— Vê-la saudoso-olhar mui longamente
O caminho que eu fui, quando lhe ouvia:
“Adeus, vem cedo”: e vê-la inda sozinha,
Qual presa à minha imagem que a circunda,
Pensativa e bem triste: e quando, bela
Como céu, num relâmpago assaltada
Voando me encontrar, dar-me tão linda
Uma face de amor ao beijo amante,
E de alegre de mim desapareça...
E sempre, sempre no primeiro dia,
E dizer-me lá da alma: “Como podes
Essas horas passar sem mim tamanhas?...”

Embora o sonho se rompesse, eu vi-te!
Chamei-te anjo dos mares: oh! me salva,
Terra onde eu tenho de aportar, ou morro
Nos escolhos da sorte, a não perdida!
Chamei-te estrela do pastor; chamei-te
A flor dos céus, que eu vejo solitária
Minha irmã, como eu sou, no mundo de homens
A mim teus olhos só te amostrem, como
Ao sol nos céus do dia os astros morrem.
— Mas, nada foi: embalde nos meus olhos,
Como a luz, eu julguei tudo ela ser;
As árvores em flor eu sacudia,
As que eu achava mais como ela; embalde
Eu vi brancas imagens se gerando
Na rainha voz — perdiam-se qual nuvens,
Qual pombas vaporosas no horizonte
De alvas da esperança e da felicidade:
Um eco prolongava-se, e somente,
Em rápidos, sensíveis ondulados,
Canto de ave da tarde após a chuva.
— Anjo mimoso, de nevadas roupas,
E os cabelos de sol, os pés argênteos!...
Amo esta sombra — tu, mulher não és.

Porém tu me dizias no descermos
Daquele morro à tarde: “nestas virgens
Amor não há, poeta, ouro somente
Os pais lhes mostram; teu cantar desdenham,
És pobre, nada vales: e que importa
Alma capaz de suspender os céus
Abaixados aqui na vida íntima,
Que à natureza o coração desdobra
E o corpo despe desta impura terra?...
Que importa — és pobre, nada vales. Olha,
O homem que lá vês delas cercada
É vil traficador, nasceu tão baixo:
E hoje um potentado numeroso,
Vai às salas do rei, brilhante o peito!
A velha pobre mãe está pelas ruas
A mendigar o pão, ele a desmente
Quando a benção lhe dá! Órfãos, viúvas
O nome seu maldizem; mas tem ouro
Tanto, à vista perturbar! Suas filhas
Mais límpidas e tenras são presentes
Que os pais ricos lhe levam; e esses olhos
Tintos em menosprezo, resvalados
Pelas costas a amor, que ouro só quebra,
Arrasta nos seus pés, deita era seu chão
Marmórea cortesã de frios risos,
De fáceis prantos que seu peito ignora.
Não há felicidade, isto que é d’alma
Nas metálicas fôrmas se mareia;
Amor do corpo só — n um dia, cansa,
Enfastia a existência, a alma se fecha.”
— Mas, eu te respondia: e que me imporia
O ouro e os amores das mulheres?
Eu, descrente do mundo, adeus eterno
Disse às suas virgens. Fale a natureza,
Cala a fortuna: a timidez dos campos,
Ou a filha do príncipe soberbo
Há de ser minha, morrerei por ela,
Mão grado o meu destino: indiferença,
Eu desprezo o que possa a terra dar-mo.

Amava uma criança outrora, quando
Aos seus brinquedos inocentes via
Voltar minha existência; e tanto amou-me,
Aos carinhos deixar da mãe querida
Pelo vir suspendesse em meu pescoço
Beijando-me, apertando-me: parece
Que nela estava a aurora dos meus dias
Em cada amanhecer se enrubescendo;
E já corriam negros de tristeza
E de orfandade. Oh! tudo era alegria
Diante dela, nascer: luz matutina
Que um zéfiro alevanta afugentando
Os primeiros negrumes da minha alma.
Borboleta do prado ao sol voando
As asas brilha e esmalta, a mim se lança
Nos raios de um amor do coração:
Vejo-a límpido lírio rodeado
Do candor virginal, despenteada,
C'o a camisa infantil nevada e pura,
Os braços nus e o colo, os pés de rosas,
Levantar-se do leito e vir correndo,
Mimosa e barulheira como a cria
Que salta na campina ao vir do dia,
Seus beijos matinais pôr-me na fronte,
As mãozinhas correr nas minhas faces,
Que no seio lhe encosto perfumado
Ondeando de angélica inocência,
De vapores de amor, que exalam anjos.
Vejo-a no sol pender, cantando os pássaros
Com saudade, e nos hinos vegetais
Pelos desterros da montanha e o vale;
Nas palmeiras cadentes no horizonte
Qual lâmpadas etéreas, ou de noite
Alvejando-se os campos estrelosos
Como frota no mar; e sempre exata
Minha sombra, meu raio me seguindo
Num cativeiro que o amor prendia,
Linda abelha que em mim seu mel formava.
Caminhando o céu de astros, nos cobrimos
Dos seus moles e trêmulos clarões,
Como das barras da manhã vermelha
Do formoso equador; e eu lhe mostrava
A natureza esplendida nas flores.

“Vem comigo: desponta alvo açucena!”
Eu lhe disse, e por vê-la acompanhou-me
Um meu contemporâneo, meu amigo
De infância, belo, namorado e ledo,
Quanto eu era sombrio e mudo e triste:
Cadeias trança deslumbrantes, grossas;
Era a flor dos salões e da beleza
E na lira cantava os seus amores.
— Olhou-nos a menina friamente,
E dentre os meus joelhos desdenhosa
Foge ao gentil, ao festival mancebo;
E os anéis afagando que pendiam,
Fez um ar de mulher e abandonou-me!
Eu senti meus cabelos se entesarem!
Mofou da minha voz desconcertada,
E que o luto e a pobreza me cobriam,
E nunca mais amou-me. Ó natureza,
Ó Deus, que fazes a mulher tão bela
Desde o berço, e tão fraca! inocentinha,
Que má sorte é a tua, que o teu peito
Sangue tão mão banhou! e eu te amava,
Com que amor eu não sei, mas é verdade.
Hoje mais fortes te coroam os anos,
E a minha voz escutaras piedosa.
— Espera a natureza aos teus amores:
A terra é falsa, não te iluda a terra.
E eu de minha vez jurei que o ouro
Nunca brilhara sobre mim: não quero
Que por ele me adorem. Quando a virgem,
Quando eu nos encontrarmos, que a corrente
Do amor nos junga e comunique, entre ambos
Mais nada além de nós — triunfe o amor!

 

Ó NOITES INFERNAIS DA MINHA VIDA!

Ó noites infernais da minha vida!
Desespero e descrença os céus e a terra:
Lá não tem uma voz que diga — esperança!
Aqui não há sorrir que diga — amor!

Uma lua cansada e sempre morta,
Dormindo pelos cumes das montanhas;
Uma hipérbole bruta; uns pirilampos
Numa abóbada férrea pendurados —

Áridos campos onde moram pedras!
Não vejo a aurora mais do que um semblante
De escárnio à humanidade; o feio ocaso
Os olhos a fechar só lembra a morte.

A terra por si mesma faz-se em homens:
Zumbe espectro inconstante de urnas horas,
Nem mata a fome, e vai-se desfazendo —
Inda a sonhar, que não viveu, sonhava.

Meu sonho dos felizes, que passou-se,
Porque me despertaste? Entrei num céu.
Ouvindo — eu te amo! — foi mentira. O inferno
Hoje me envolve, me envolvendo o amor!

De esperança em esperança corre a vida —
Existir é esperar: porque eu morri
Desde que a vela suspendendo ó acaso
O meu canto entoei desta desgraçai

Mar sem praias! — seus ventos me diziam;
Não vês lá no horizonte os verdes cumes
Juntos ao céu? — Andei! fagueiro e ledo.
E tão cansado, e sem chegar mata nunca,

Vi caindo a verdade! Eis porque eu morro:
Vive quem dorme e sonha. A dor me uivando,
Eu quis aniquilar minha existência,
Que era fantasma o ser, mentira a vida.

Meus ecos delirantes retumbaram
Na minha alma em suas chamas consumida,
Em vão!... Quero viver — vem, céu da noite,
Banhar-me do teu sono: eu durmo, eu vivo.
Demônio d’alma, ceticismo horrendo,
Filosofia cega, oh, vai-te! vai-te!
Das opressoras escarnadas garras
Solta-me — aos vales da obscura crença.

Esquece-te de mim, fecha-me as asas
Sinistras de sombrio noitibó:
Eu quero amar a Deus, homem e os anjos:
Vai-te! deixa-me em paz — feliz eu sou!

Consumiste minha alma enegrecida.
Tu disseste, que um Deus não me acompanha;
Vã fumaça minha alma, que meu corpo
Em cinzas perderá passando o vento.

Me negas um repouso, um doce amigo;
Me incitas duvidar no amor da virgem:
E murcho e frio me recolho às sombras
Da minha vida a me abraçar com a morte.

Olhei... Meus dias vi do sol caindo.
Escutei... Foi meus lábios estalando
Em maldições ao ser desta existência,
Ao Ser que sobre o sol conta os meus dias!

E eu que me assentava ao pé da serra,
Vendo as estreitos como ninfas de ouro
Subindo lá do fundo da corrente,
Começando-se a noite a encher de sombras;

Esperando que a lua atravessasse
No vale, por saudá-la destes nomes —
“Ana e minha mãe” — achei só túmulos:
Pálido o amor, pálida amizade!

Achei a minha vida ser tão longa!
Como o passar da eternidade: embalde
Dormia as horas, e nas dores de hoje
Meus dias de depois eu descontei.

 

SOLIDÕES
(À minha irmã Maria José)

Não mais o amor fatal, o amor do inferno:
Encanto o amor da natureza — Salve!

Quando fores mais crescida,
Quando souberes falar
Quando mudares os dentes,
Deixaremos o palmar:
E este pé de mangueiro
Que sombreia este lugar
Há de cair de saudade
Sobre estas águas do mar.

Na leiva de terra estranha
Cai do bico de ave errante
O grão que preso levava
Era seu voar inconstante;
E dali nasce uma planta:
Quem foi que a plantou? Avante,
Por entre as moitas da urze
Desmaia enjeitada infante:

Nem da quadra cultivada
Pelas mãos do lavrador,
Nem da semente aquecida
Em seios fortes de amor,
Ela não foi... desfalece,
Como os mistérios da flor,
Olhando a sorte de Deus
Em muda, inocente dor.

Nos seus banquetes o mundo
Espera a filha sem pai;
Os homens lançam-lhe o preço;
Em vil miséria descai:
Rode a os olhos mendigos,
E nada encontra... um só ai!
A morte sua presa arrasta;
Porém, eu digo: esperai!

Triunfo! triunfo, ó Deus!
Não morres, filha, sou eu;
És aos lados de teu pai,
Ergue a fronte, o sol é teu.
— Não mintas... como eu te amara!
Meu pranto nunca escorreu
Por uma felicidade...
Estou nas portas do céu! —

Órfã da mãe perdida,
Nem és a filha do amor,
Que o fogo de alva dos anos
Só queima, não ama a flor:
Nesse qual vago saudoso,
Nesse qual perder da cor
Bem dizes que és débil fruto
De adolescente candor:

Desanimado crepúsculo
Em teu semblante esmorece,
És botão misterioso
Que de manhã desfalece:
Nem a brancura da rosa
O corpo teu não aquece;
O pardo destas campinas
Sobre o teu colo adormece:

És a irmã da parda rola
Solitária e só donzela,
Quando com a voz despovoa
A tarde assombrada e bela:
Como o gênio da tristeza,
Tudo cala em torno dela;
Se ela passa, tudo exila,
Coitada flor amarela!

Corça morena dos montes,
Bastarda cor do anajá,
Todo o mundo te despreza,
Como a tua sorte é tão má!
Não!... do mundo eu nada quero:
Filha amor, tudo aqui está!
Vivamos como as correntes
Do tortuoso Mapa. —

***

Escondido na espessura
Lá da Vitória deserta:
Que eu seja tudo o que tenhas.
Teu astro da vida incerta;
E só tu minha existência
Que eu sinto que em ti desperta,
Meu canto da nambu-preta,
Flor nos meus jardins aberta.

Ó filha da escrava negra!
Eu encontro em ti poesia.
Mesmo no teu nascimento
Do crepúsculo do dia,
E no abandono dos brancos,
Que te faz tão triste e fria:
Tudo passa, a fira vive,
Tu não tens noite sombria.
Cativa no ocaso de ontem,
Eis o sol da liberdade!...
Eu choro, que tenho o peito:
Tão cheio desta amizade I...
Ao leito impuro desceras,
Desceras antes da idade —
Horror! as asas de um anjo
Só voem à Eternidade.

Quando fores mais crescida
E já souberes faltar,
Quando mudarei os dente
Deixaremos o palmar:
Fazenda de meus paia.
Iremos ver o Vesúvio
Suas lavas aos céus lançar,
A bela França há de ver-te,
E as louras filhas do mar.

Tu, perfume dos meus dias,
Que dar somente quis Deus:
Ele o soube... é que na terra
Eu nada tenho dos céus,
Além dos vago delírios
Que vejo nos sonhos meus;
Os meus amores são sonhos,
Inda um sonho eu julgo os teus.

Tu serás a companheira
Da minha triste existencial
Te mostrarei dos estreitos
A harmoniosa cadência;
Das harpas misteriosas
A virginal confidência,
Ouvirás meus sons noturnos
Da noite na alta dormência.

E estas aves da tarde,
E estas terras do lar
Chorando te acompanharão
No deixarmos o palmar;
E este pé de mangueiro
Que sombreia este lugar
Há de cair de saudade
Sobre estas águas do mar.

Ia tão triste o meu choro,
Que o rio, o vento chorava;
Mesmo a sombra do mangueiro
Como a tristeza esfolhava:
A minha pobre filhinha
Ignorante e terna olhava,
E de tímida e medrosa
No meu corpo se apertava.

Sobre os pés do velho mangue
A minha fronte pendia,
E minha filha brincando
Parece mimosa cria
Na relva do praturá;
Longe a tarde se esvaía:
As noites do Mariano
Pelos meus olhos eu via...
Margens do Pericumã

 

DIA DE NATAL
(Aos meus contemporâneos do Pericumã)

Raia o sol, brilha no talo;
Morre o sol, fenece a flor.

Tudo passa e vai com o tempo,
Nossa vida e nosso amor;
Doce quadra em que gozamos
Logo muda em dissabor.

Fazem anos que na aldeia,
Pátria nossa onde nascemos,
Leda gente concorria,
Ledas festas desfrutemos:

Nossas virgens matizavam
Nosso prado como a flor;
Corria o vento nas folhas,
Meigas palavras de amor:

Estendia-se o horizonte
De fumarentas choupanas,
Nos países de arredores
Cantavam brando as silvanas:

Rugia o tambor alpestre,
Cadência vão os cativos
Toada africana às danças
Das crioulas de olhos vivos:

Uma viola harmoniosa,
Doce frauta pastoril,
Mimosa esteira de relva,
Nosso teto um céu de anil,

Noite e dia eram momentos
Que como o vento passavam!
Na minha infante donzela
Meus olhos não se fitavam:

Nem mais os tempos meus dias
Com suas asas me arrancaram,
Em sombras de amor desfeitos
Em torno dela abaixarão.

E nessa pura inocência
Tanto amor me arrebatava,
Que minh’alma no meu peite
Belos sonhes delirava:

“Anjo do céu, flor do campo,
Que me disseste que eu sou!
Fui como a noite obscura
Que na alva o sol despertou;

Levantaste a minha fronte,
Meus olhos de órfão cabidos:
Minha vida, amor, esperança
Eu vejo em ti renascidos!

Oh! juro pela minh’alma,
Por ti, que dizes que eu sou,
Por este amor que me deste,
E à vida que me embalou:

Ou morrer, ou suspender-te
Nos louros da eternidade,
Combater pelo teu nome
A sorte, a adversidade!

Arrancar-te deste inferno
Para o meu clima dos céus,
Arrancar-te à morte, ao nada,
Se possível fosse, a Deus!...

No romper desses nove anos,
Expande as asas de amor,
Pura e cândida, remonta
Nas harpas do teu cantor.”

Porém hoje no desterro
Deste longínquo saudoso
Minh’alma perde-se, esvai-se
Onda do eco vaporoso;

Minhas horas vão pesadas
Sobre a corrente da vida:
Me desanima a existência
De uma tarde esmorecida.

E eu a choro, que a amava!
A ela meu doce amor:
Feliz! que os homens ignoram
Quem dá-me tão pura dor:

A ela que apareceu-me
De formosura radiante,
E deu-me o dia à minh’alma
Pela noite escura errante:

A ela sombra encantada
Que de inocente me amou;
A ela que despertou-me
E que me disse, que eu sou.

 

A MUSA

O primeiro me falaste ao coração
doce da infância. Minha musa despertou:
e ao pôr-do-sol da vida efêmera,
ainda se exala ao seu astro
da aurora.

É noite e solidão! noite e silêncio!
Noite e minh’alma! noite e meus amores!
Límpidas alvas não respira a lua,
Nem ondas de harpa eólia nem de vozes
Não vagam: desce a sombra e cobre os vales
Da penedia, na verdura umbrosa.
Recolhe-me em teu seio, nos teus ombros
Deixa cair-me a fronte mutilada
Do triste pensamento e da tristeza;
Deixa correr meu choro e os meus soluços,
Filha da noite, minha musa, deixai
Minha coitada mãe por toda a parte
Erguendo-me piedosa se enfraqueço
No caminho da vida tão difícil;
Com os cabelos me enxuga a fronte e os olhos
Da mágoa e do sofrer pisados, mortos:
Diz-me “Coragem!”e me consola e anima.
— Qual será meu destino? porque eu choro,
Como quem vai morrer na alva do dia,
Deixando a pátria e toda esta existência
Que eu tinha no meu gênio, e toda esta alma
Que me embala num céu que tanto eu sonho?
Tu, que és do céu, ó minha musa, fala...
Ah! estremeces... é que eu vou morrer.

Solitário nas plagas do deserto,
Errante como o vento, ou pelos mares,
Na sepultura de meus pais chorando,
De sombra em sombra procurando abrigo
Nos ramos do cipreste, eu só contigo
Tenho me achado, minha filha e amores,
Tu, mãe que minha mãe deu-me em morrendo,
Bafejando o meu corpo nos teus braços
Como um berço de infante, como um pássaro
Movendo-me em seu ramo à viração;
Tu, fiel junto a mim sempre te encontro,
Sempre tu, sempre tu — numa alegria,
Olhando para trás desse passado
De lágrima e saudade, olhando adiante
O astro d’amanhã longínquo e frio
Na sua luz duvidoso. Oh! quanta vida,
Quanta poesia, quanto amor eu tinha,
Qual num globo de ferro um sol fechado
Somente à espera de uma voz divina,
Da inspiração de Deus para nascer,
Dentro desta alma de ontem! vacilante,
Que há de se apagar voltando a aurora,
Logo no amanhecer! Perdido Cignus,
Não mais, não te ouviram... Quantas mil flores
Hei plantado! e um sol somente ao tempo,
Deus, pedia por dar-tas perfumadas
Nos jardins do ideal, puras e abertas.

Melancólica noite, minha musa,
Como eu te amo assim! sombra nos campos,
Sombra nos montes, nem a lua e estreitos;
Somente o vento no deserto, longe
O mar na costa, um lépido sussurro
Exalando a folhagem. Horas tristes!
Meu corpo de cansado se desmembra,
O dia nem passei rasgando a terra.
Meus cabelos sombrearam minha fronte
Que pende no meu peito, que a levanta
No pesado bater, vibram-me as fontes.
Então rios de mágoa e de tristeza
Nas suas ondas me levam. Tremo a morte
Que sinto vir andando; eu abro os olhos
Ao tacto de sua mão: vejo um sepulcro
Aonde eu vou cair! já está tão cheio...
As cinzas de meu pai, de minha mãe,
Tantos amigos, muito amor perdido
Pela foice do tempo, na minh’alma
Coros, incensos, luzes do meu templo,
Que além do meu peito se extinguiram!...
Hiante para mira, não vos fecheis,
Sepulcro de meus pais — eu venho já,
Quero ver minha mãe... porém, me aterra,
Tenho medo da morte, nesta idade,
Nem sei porque... os tempos não me esperam,
Glória não vinga pobre flor dos vales,
Coroas do carvalho da montanha.
Porém à minha pátria, às minhas virgens
Vindo abrindo tão puras, encantadas,
Porém à minha mãe deixar quisera
Pendurada ao seu túmulo uma lâmpada
De luz, de óleos eternos; ao cipreste
Que dá-lhe sombra uma harpa que gemesse
Passando o vento, ao homem que sozinho
Repousasse sob ela, a dor no peito:
Sob o musgo do tempo, na folhagem
Temporã, não perdera-se hoje mesmo
Dum noturno clarão piedoso e doce
Seu leito de anjo alumiado em sombras:
Viria o coração sensível, triste
No caminho da luz peregrinando,
Derramar-lhe seus beijos com suas flores,
Dorido pranto sufocando n’alma.

Oh, não mates ainda, o sol nascendo!
Mais um dia, meu Deus! dá mais um dia
À minha vida como a flor, tão pouco
Te pede um filho — dá! na eternidade
Um dia o que é? Senhor! adiante!
Adiante! vai morrer: em negra torre
Do destino a tua hora está soando:
Chegaste ao porto de manhã; Ó musa,
Filha da noite, abraça-me e morramos!
Adeus, belo universo de poesia,
Que de em torno o meu corpo, nos meus olhos
E na mente ralava-me: um chãos vivo,
Que, como tu fazias num aceno
As estreitos e o sol, na harpa que inspiras,
Que sabes dar, Senhor, puros arroios
De harmonia tu viras, teus incensos;
Da casa do pastor humilde fumo
Sumido aos turbilhões que os céus escurão
Dos castelos dos reis; mas, receberas
A pobre criação, também divina...
O homem, o inseto são teus filhos, te amam:
Vale tanto para ti zumbido incerto
Como um hino, que o mesmo amor os move.

Tão tristes minhas cândidas irmãs,
Amigos que tenho hoje, e mesmo os outros
Que de outrora eu amei — ah, não me amavam!
E esse límpido coro de inocentes
Que inda não sabem amar, que inda não sentem
Feridas que homens fazem à morte eterna;
Por isso rindo e amando, rindo ignaras,
Que o outro amor só chora; as minhas rosas,
Meus anjos do meu céu do pensamento —
Vejo-as errantes, pálidas vestidas,
Bradando por meu nome; eu não respondo:
Desentrançam-se e choram pelas margens
Do rio onde eu vaguei por esta vida;
Perguntam-lhe por mim, pegam suas águas
Por uma onda deter nas mãos tão frias,
Que lhes diga onde estou; escutam, esperam...
E nas águas suas vozes vão perdidas
Tão belas que a ave emudeceu no ramo!
Os louros da Vitória que inda esperam
Estremecer à minha voz sob eles,
Suas folhas me chovendo e a grata sombra,
Onde espiam-me os pássaros calados
Reconhecendo-me a tão longa ausência,
Gemendo murcharam de mil saudades,
De desesperança mugiram na ruína.
— Eis porque eu choro de morrer tão cedo:
Porém, dos anjos rodeado, eu morro:
Qual palmeira de argênteas borboletas
Se cobre esvoando na manhã de estio,
Que fogem, quando ao golpe do colono
Caio; coitadas, cintilando as asas
Vem de novo pousar, erram nos ares
Onde a rama ondeava, e se retiram;
A metade inda volta, uma só, duas,
Que mais o orvalho e o som beber-lhe amaram,
Chegam perto, porém desaparecem,
De acostumadas; por si mesma, triste,
Inda o dia seguinte aquela vinha
Que ainda o amor engana; então sumiram
Por uma vez, e a palma a terra envolve.
Assim quero morrer; inda descendo
À noite quero ouvi-las suspirando,
Em trepida candura as asas de ave
Tremendo desdobradas na corrente;
Ouvi-las medrontadas do cadáver
Que amaram apertar; mesmo fugindo
Perdendo-me, esquecendo, amara vê-las
No horizonte do túmulo espalhadas.

Fora belo voltar depois da morte
E muda vista percorrer ao mundo;
E, antes de tornar ao pouso eterno,
Cantar saudoso adeus, nessa tristeza
Desse solene soluçar dos montes:
E traçar sobre as páginas da lajem
Seus mistérios, mistérios desta vida
Que eu não posso entender, e o Deus que adoro

 

O TRONCO DE PALMEIRA

Oh! eu sou como a palma sem folhas
Solitária nas praias do mar:
Minha fronte seus ventos romperam
Inda branca da infância dourar.

Os passantes aqui nesta fonte,
Quando outrora, tão doce, corria,
Vinham todos beber: hoje seca,
Dizem tristes olhando “um só dia!”

A verdura perdeu-se com as aves
Deste monte coberto de relva,
Nem as sombras por ele se estendem
Como vagas dos ramos da selva;

Como em fendas que o raio fizera,
Hoje o vento só vem sibilar,
Lisas pedras da encosta rolando,
Pó fumante no cume a soprar.

Debruçadas no roto penhasco.
Longas águas seu canto entristecem
Pelas sombras da tarde, e com ela
Do horizonte selváticos descem

Lentos ecos pousar, lentas rolas,
Tristes filhas, do isolamento,
Abstratas no tronco sem folhas,
Sem ter vozes, sem ter pensamento.

Descobertas raízes lhe secam,
Envergar-se disseras de dor:
Sobre as ondas seus arcos descreve
Ante os raios do sol do equador.

Sem a veia que cerque-lhe os pés,
Suspendida na pedra cortada,
Qual da foice do íncola negro
Esquecida na terra queimada,

Inda é bela a gemer aos tufões,
Rama a rama perdendo a murchar
Oh! eu sou como a palma sem folhas.
Solitária nas praias do mar!

 

NOITE SILENCIOSA!

Noite silenciosa! único abrigo
Que ficou-me no mundo! nesta praia
Tão solitária me lançaram: triste,
Indiferente, mudo, nada encontra
Minha vista por longe — murchas ervas
E o tronco desfolhado me rodeiam.
Não sai deste rochedo veia d’água
Para o vale sem flor; e a onda amarga
Um choro estéril nos meus pés derrama.
O cipreste espiral dá-me somente
Sua mão de túmulo! túmulo piedoso
E a sombra frouxa, moribunda à fronte
Pendida minha, branca e sem esperança:
E no deserto dela eu sinto errante
A nuvem da alma... ó musa desgraçada!
Apagam-se os meus olhos friamente,
Sem uma onda de luz, sem raio extremo,
Em fundo ocaso pálido: minha alma
Nem mais corre de amor, de amor os gritos
Nem mais a chama do meu peito espertam.
Minhas asas caíram, como outono
Vera despindo o meu corpo; folhas mortas
A crepitar se escoam... tudo era torno
Nada lenho de mim! dorme o silêncio
No caminho deserto, e só palpitam
Meus rastos apagados pelo vento:
E mugibundo ao longe o mar contando
Os meus desgostos às sonoras plagas,
Ao peito meu sonoro de oco tronco,
Que o vapor fraco do meu pranto exala,
Fendido ao coração que se convulsa
Sem verter uma seiva! Eu sou cadáver
À mão divina estremecendo — chora! —
E minha alma começa nos meus olhos
Desfazer-se e cair, se esvaecendo.

Silenciosa noite! um céu apenas
Adiante eu vi raiar: mostrou-me a terra
Dos meus pedaços espalhada, e eu só,
A dor me contraiu: oh! como é longo
O caminho que eu vou! — por este monte
Eu tenho de passar: cada uma pedra
Que eu ergo, e sinto atrás de mira cair,
Um passo eu dou — de menos este sol
Me deixa respirar. Cansado e morto
Na minha tumba eu já me deito: noite,
Oculta-me em tua sombra!... Já branqueia
Abertas margens do horizonte a aurora:
Ave de Juno desplumando estreitos
Nas saias ondulantes, tu mentiste!
O perfumado mel que dás à abelha,
Com a mão de ouro espremendo dos cabelos;
Tão mimoso sorrir com que te inundas
E faz poesia aos pássaros e ao vento.
De que valem para mim? Na terra onde
Não há vegetação, tua luz de lua
Que vem fazer? nasci perto da morte,
O meu nascente escureceu no ocaso.
— Julguei a noite eterna! e desdenhoso
O céu mostra-me ainda o dia de ontem
Que mata-me de novo em cada dia...
A noite do infeliz não tem manhã.
Leito da vida, morte, leito da alma,
Seca a fonte de mim, que inda esperais?
Acabei de viver — nem soube o mundo.
Meu incógnito adeus somente à noite,
Cora quem lenho vivido, ao monte, às praias!

Na aurora — eu penso no descer da tarde;
Mal fecha a noite — já procuro o dia:
Quem me dera esquecer dormindo as horas,
Consumi-las!... desperto, e vejo o tempo
Em seu lento cair! pouco avancei
No querer apressar minha existência:
O tempo de asas para mim não voa,
Falta muito para noite, oh! muito! muito!

Chega trêmulo velho suspirando
A beira do seu túmulo, com a vista
O fundo mede, e foge horrorizado:
Volta ainda, e vacila: ó tempo — olha
Distante o mundo com saudade e pranto.
Espanta, se uma brisa fria e leve
Um pedaço da neve ergueu-lhe à fronte
Que as idades sombreiam, quando um eco
Vago perto passou, atrás sentindo
Rumor de inseto: a morte sai de tudo,
De toda a parte surde — da florzinha,
Da corrente que deita-se no vale
Do ramo que no pé se meneou —
“Como tudo era morte, natureza,
Debaixo dessas fôrmas bem fagueiras
Com que tu me iludias, te escondendo
Nuns vestidos de amor, ledice e vida!
Hoje, por que rompeste as fantasias
Que em outro tempo eu vi te embelezavam?
Ocultavas na flor tantos fantasmas?
Esta a verdade, dura, horrenda, feia,
Que com tanto sorrir preludiaste?...
A bondade de Deus não está nas dores
“Que o fim da vida magoado pisam...”
E volta-se; e de novo arrepiado
Estremece, correr tenta, debalde:
Para aonde? — chegaste em toda a parte!
Não há partida ao porto do infinito!
O mundo todo é sepultura aberta,
Lousa silenciosa o céu; da esperança
Não reverdecem os ramos que murcharam.
O pensamento tímido afrouxado
Da vista, pelos raios, se irradia.
— Que tens, velho? inda queres vida? ainda?...
Como és feliz, que tanto vives! e eu,
Tão cansado dos meus primeiros dias,
Vazia a terra achei, sem ter esperança.
Cerro os olhos, e atiro-me contente
Na eternidade sossegar — ao Nada!
Fica no meu lugar, dá-me a tua noite,
Desta manhã teus anos recomeça.
— É tempo! sente no cair das horas
Quebrar-se o coração, como hei sentido
Passando a vida. Aqui deixarás a alma
Na saudade do mundo e dos amores,
Se primeiro não visses descarnada
Serpe com as faces da mulher sorrindo,
Feições exteriores de natura:
Bárbara a doce morte antes das dores,
Na alegria não salva, ela assassina.
— Nem mais o amor, o amigo! horror ao mundo:
Nem olhes para trás saindo dele.
Manhã por entre as noites da existência
A esperança lá está nas mãos de Deus...
E Deus está na dor — nossa alma inteira
A ele, no sofrer divinizada.

Amor, felicidade é toda a terra,
O infeliz sou eu: em círculo estreito
Rodeia-me o prazer e a vida; e triste,
Duma outra natureza, em mi me fecho —
Nem digo a minha dor que o homem sinta,
Os homens não me podem consolar.

 

O CASAL PATERNO

Eu era o Benjamin querido
destes lugares...

Tetos! que o vagido ouviram
Quando despertou-me o mundo;
Montes! que abaixei subindo;
Vales! que descendo ergui;
Troncos! meus contemporâneos,
Julguei que estivésseis mortos.

Lua! que correndo eu via
Ama a segurar meus passos;
Sol! que meu pai mostrou-me,
Venho viver convosco.

Sítios da minha infância! então qual concha
Pelas auras tangida ao mar d’aurora,
Cândidos anos foram-me, ó infância!
Ó árvores, que vistes-me em seus ombros
Aos embalos da voz adormecido,
Qual vosso fruto balançais ao vento;
Seguindo-me a crescer, depois ao lado
Pela mão de meu pai de um passo lento
A correr e saltar, e me ensinando
O nome deles e do céu, ó árvores,
Eu vos saúdo! não desconheçais,
Cobri-me deste ramo — a calma é forte...
Hei medo de estar só com estas sombras
Ó meu casal, ó meu casal amigo!
Como está repetindo a natureza
Tudo o que já passou!... fala! que existes.
Como as flores se erguem diante dela!
Como crescem suas folhas!... Enganosas
Imagens através às minhas lágrimas:
Depois que o pranto cai, tudo é tristeza.

Acorda, minha mãe, que tanto dormes
Lá na pálida campa! vem ouvir-me
Dilacerado o canto das ruínas,
Deste assombrado solitário o canto.
— Tudo é silêncio, solidões é tudo:
Apenas o eco magoado e lento
Da minha voz expira no fracasso
Da folhagem cadente, nos rumores
De amortecido vento pelas fendas
Musgosas, e os destroços espalhados
Da fazenda, que foi, que assola o tempo.

Foi um gozo e brincar a infância minha,
Foi delícias de amor:
Meus dias matinais! dias que eu tinha,
Linfas no pé da flor.

Porém, tão poucos! despontando a vida
Cerrou-se o meu nascente;
A noite se despenha denegrida
Caindo tristemente.

E esses lindos verdores
Desse belo sol-nascer,
Penhores por entre o riso,
Por entre a voz a correr,
Tudo passou tão de pressa,
Foi tão de pressa morrer!

Doce nome de mãe, que eu amei tanto
Dentro do coração!
Doce nome de mãe que era o meu canto
Do anoitecer na benção.

E perdeu-se para sempre
No meu peito a minha vida,
Como nos céus enublados
A minha estrela querida:

Assim de tarde aparece
Ramo de ouro na espessura
Cercado de aves cantando:
Passa o Natal, e não dura.

E como o ledo pau-d’arco
Só numa tarde sorri,
Mimosas tão breves flores
Murchas nos meus pés as vi.

Seus olhos por seu rosto se estendendo,
Errava a claridade que espalhavam.
Tão boa minha mãe! tão maternal!...
Tão má! tão homicida esta saudade!
— As árvores viúvas se despiram
Do verde-mar esplêndido e frondoso,
Pelo silêncio místico e sombrio:
Sentimentos fiéis que estão guardando
Os túmulos sagrados de seus reis,
Qual domésticos Velhos mudos vagam
Pelos salões vazios dos senhores.
Acompanhar-vos venho; neste pórtico
Tomo o meu posto, aqui fico encostado:
Choremos juntos, companheiras minhas;
Chorai, amigas, soluçai comigo.

Tinha sua fronte o repouso
Da piedade e do amor;
Bonança divina, eterna
Formava seu resplendor:
Essas coroas se romperam,
Sobre um cadáver penderam.

Beijei seus lábios tão frios,
Beijei seus olhos fechados:
Inda amor seus lábios tinham,
Inda em pranto desfiados
Seus olhos eu vi chorando,
Pelos seus órfãos clamando.

A escravidão toda errante,
Que sonho inquieto inspirava,
Por meio da noite andando,
Noturnamente ululava?
Mesmo os cedros pareciam
Que soluçando se erguiam.

As laranjeiras do sítio
Umas morreram, murcharam;
A criação fugitiva,
Os pombais se abandonaram;
Tudo mudava num dia,
O vale fundo gemia.

O olho d’água secou,
Perderam o trilho os caminhos,
Deixaram as folhas os troncos,
Deixaram as aves os ninhos:
Tudo num dia mudava,
O monte longe chorava.

Todas as aves e o gado,
Tudo o que a viu nestes sítios
Tudo morreu de saudades,
Tudo com ela acabou:
Murcharam flores no prado,
No monte o cedro murchou.
***

E eu penetro os anos que passaram,
Do minha mãe ao lado aqui me assento;
Ouço tocar a campa ave-maria,
Do pai religioso o grave acento.
Como é triste o espetáculo da tapera!
No fundo do deserto ondeia o vento.
— O eco de uma pedra... desmoronam
Antigos torreões onde eu nasci!
Um gemido... suspira moribundo
O confidente velho, esse africano
Filho da liberdade, escravo aqui.

Esquecera o velho de África
O país onde há poesia,
A longa margem que o Zaire
Por mês de inverno floria;
Esquecera a lua argêntea,
As luzes do sol do dia,
Pelo nome dos finados
Que revive na agonia.

Nesta orfandade desbotada eu vivo...
Meu Deus! quero fugir aos vossos reinos.

Nesse tempo eu não sonhava:
Não viu-me o sol delirar,
Não viu-me o cume dos astros
Nos fundos vales do mar.
Porém, desço dessas nuvens
E sou na terra a chorar,
No meio da soledade
Dos desertos do palmar;
Sou debaixo das fruteiras
Renascer vendo o passado:
Em cima responde a rola
O meu suspiro cortado:
De meus pais a Deus eu falo
Lá no oratório sagrado.
Imagens mortas povoam
O mundo do desgraçado.

Minha mãe, pede que eu morra,
Pede que eu morra, meu pai;
Pede a Deus descendo às pontas
Da montanha do Sinai,
Quando a lei gravou nas tábuas,
Diz ao profeta “espalhai!”

 

FRONDOSOS CEDROS DE OUTRORA

Frondosos cedros de outrora,
Que destes sombra ao meu gado,
Quando na calma do estio
Andava errante no prado;

Pequizeiro envelhecido,
Que lhe estendeste a ramada
Cheia de trêmula sombra,
Do tosco fruto envergada;

Meus campos de antigamente,
Que longas olas cercavam;
Bela colina, o penhasco
Que no ocidente enrouxavam:

Salve! — céus da natureza
Só viva para chorar —
Foste agigantada virgem,
És murcho outono a esfolhar.

Ó dias dos outros tempos!
Ó dias da minha aurora!
Como encantado me vistes,
Frondosos cedros de outrora!

Brada a noite, e despovoa
Os negros cumes do céu;
Os vossos vestidos novos
Também a noite os rompeu.

Era o sol da minha idade,
Éramos gêmeos da selva,
Com ele brincava junto
Nestas campinas de relva:

Às mesmas horas dormimos,
As mesmas nos despertaram,
A mesma fonte banhou-nos,
E as mesmas aves cantaram.

Eu era gêmeo com as palmas,
A crescer nos comparando —
Ura dia achei-as mais altas,
Viram-me noutro as passando.

Belo pássaro que amava
Bateu as asas, voou:
Aqui — nos pés destes troncos
Minha existência findou...

 

MEUS NOVE ANOS NA ALDEIA

Quem? numa pedra do caminho descansando uma hora
já pelas sombras da vida, não volverá em religioso silêncio
uns olhos vagarosos aos vales da infância? já vão tão longe
na extensão profunda e obscura, e apenas a lembrança
os amolece ainda de fresquidão e de relva, 
caindo o pranto saudável e tão terno 
como esses mesmos nove anos de aldeia!

Nove anos eu tinha e vivia
Nos desertos do Pericumã,
E meu pai ensinava-me a Bíblia
E os preceitos da igreja cristã;

E meu pai educava minh’alma,
Minha mãe faz o meu coração
Cada dia mais amplo, de amores
Qual de flores o enchendo com a mão.

Como eu era feliz nesse tempo!
Sem da vida a lembrança de horror,
Alegrando meus olhos num riso,
Espontâneos chorados na dor.

Muitas vezes à pedra assentado,
Quando o sol começava a sumir,
Meditando confuso no livro,
Eu perdia com o sol o existir!

Entre as mãos o meu rosto escondido,
Crendo imagens, que eu via, apagar;
Minha fronte estalava e batia,
Turbilhões vindo nela roçar:

Abismavam-me os astros da noite,
Quando a lua suas fases mudava;
O prazer da manhã há minh’alma,
Qual meu pai, não sei que me animava.

E pensando que o mundo só era
Entre as nossas montanhas de aldeia,
Que depois do horizonte só Deus,
Eu tremia no mar dessa ideia:

Qual sabido de um sonho me olhava,
Que sentia me o ar comprimir;
E medroso fugindo das trevas
Às irmãs que lá brincam me Unir —

Meu semblante inda pálido viam;
Porém nunca ninguém revelou:
Tinha medo dizer meu pensar,
Conhecê-lo inda mais me aterrou!

— Bem amava do velho africano
Grave o aspeto, nevada sua fronte;
Longa história lhe ouvi, tão saudosa,
Como a chuva descendo do monte.

Procurava-o à tarde: assentado
No batente, rugia na mão
Loura palma, vedando à palhoça
Pobre e limpa gentil criação.

Ver o índio, suas penas, sua flecha;
Dos ciganos o bando esmaltado,
Fui confuso que Deus outras gentes
Mais que a nós tanto houvesse criado!

E eu dizia: por tua grandeza
Não bastaram teus filhos, meu Deus,
E estes montes e o vale florido
E as estreitas que pisas nos céus?

Porém, tudo me inova, me alegra:
Nédia rês conduzindo o vaqueiro,
Apascentar o rebanho, a chegada
Quase à noite de um cavaleiro.
— Salvas santas amei de Maria,
Foi-me noite de festas o sábado,
Lento o sino dobrando sonoro,
Repetindo na selva e no prado.

E propínquas vizinhas famílias
Juntas ledo passavam o serão:
Exultou-nos a infância de vida,
Mesmo infância exultou no ancião.

Altas alvas tocavam matinas,
Quando brilha o domingo no céu;
Bela, acesa, fumosa a capela
Era arpejos de um cântico hebreu.

Derramavam-se sobre a montanha
Longas ondas de um sol tão formoso,
Como vestias, como harpas etéreas
Desdobradas pelo ar vaporoso.

Calmo o tempo, o descanso de Deus
Amplas horas faziam lembrar,
Muito ao longe uma pomba arrulhando,
Longe harmônico o galo a cantar:

Tinha o dia mais eco, nas árvores
Balançava-se o vento mais brando,
Doce e mesta canção das senzalas
Minha mãe no seu fuso levando:

Toda a casa mais clara, mais nova;
Eram os trilhos mais longos, nitentes,
Que o da lua nascendo angústia,
Murcha as flores do sol inocentes.

Eu corria nos ralos do ocaso
Me vestir todo de ouro no campo,
Inda as filhas da noite me achavam
Esperando acender pirilampo.

— O inverno pasmávamos juntos
Reunidos no grande casal,
No verão nossos pais nos levavam
Aos retiros, à roça, ao curral.

Nos dissemos a prole da lua
Recolhidos no seio de uma asa;
Indo o sol para a tarde, brincamos
Pelas sombras da beira da casa.

Via o monte, as palmeiras suspensas
Pelas bordas de um céu todo em cor —
Belas campas, qual flores de fogo
Nas vermelhas manhãs do equador.

De amoroso estendi-me na relva
Da campina coberta de enfeite,
Ou na tosca fumante ramada
Dos pastores das vacas de leite;

De amoroso nos pés me deitava
Da laranja cheirosa e florida,
Como a cria que a sombra procura,
Que sozinha encontrou-se perdida:

Esperando cantar filomela
Que suspira na moita do mato,
E as palmeiras sonoras erguerem
Belos órgãos com a voz do regato.

Perto o vento passava longínquo
E o pomar de sensível tremia,
Como a fonte que vai modulada,
Que entre as huraidas ervas corria.

Tinha areia de prata o olho-d’água,
Tinha conchas e encantos sem fim,
Redolentes suas margens, seus peixes
Vinham mansos em torno de mim.

— Como as rolas do sítio a conhecem
Que em seus ombros desciam pousar!
Revoavam seus pombos sobre ela,
Minha mãe vindo a aurora saudar:

Leda escolta das aves domesticas
Vai trás dela num coro selvagem;
E ela fez seu passeio matino,
Colhe um fruto envergando a ramagem.

O terreiro lhes cobre de grãos,
Onde fervem qual folhas na serra;
E depois estendendo suas asas
Inda estão se lavando na terra:

E levantam-se as rolas aos galhos
Onde passam nas calmas do dia,
Para dar às irmãs a criar
Seus filhinhos do ninho eu pedia.

Como pousa na rês, tão coitado
Perguntou-me gentil bem-te-vi:
“Onde a vida me levas nos filhos?”
Um açor eu não sou: respondi.

“Tu quiseras que à mãe te arrancassem?
Ver seu pranto que os olhos vertessem?...
Só as vozes de mãe adormentam;
Outras asas, que a mãe não aquecem.

Tu me queres tirar do trabalho?
Como é doce o trabalho dos filhos!
Eu não vejo tua mãe doces frutas
Apanhando por dar-te nos trilhos?

Terei sempre o que dar-lhes nos ares;
Quando a mim me faltar, oh, com beijos
Minha fome eu irei enganando,
Minha sede e os meus outros desejos:

Molhes vês a garganta batendo
Quando os tocas, abrindo o biquinho?
Como quando eu chegava no ramo
São suas vozes, oh, dá-me o meu ninho!

Eles choram tremendo de frio,
Já tem fome: não queiras trocar
Essa cama que eu fiz-lhes das penas
Que eu podia do corpo arrancar,

E estas asas que os cobre da noite,
Um calor natural neles dando,
E a comida já meia digesta
Do meu seio em seus seios passando,

Elos panos que aquentas no fogo,
Ela dura e tão fria comida...
Como é grato o viver com sua mãe!
Como ó triste o perder-se essa vida!...”

Apertou-se-me o meu coração,
Nunca mais nem um ninho eu tirei:
Qual da minha estar junto eu amava,
Vê-los juntos sua mãe eu amei.

E ficou-me um pesar no meu peito...
Como quando ave triste cantou,
Como quando suspira a ribeira
Que a torrente passando deixou.

Toda a parte por onde eu andasse
Rodeou-me um temor de perdê-la:
Eu corria abraçar minha mãe,
Nunca farto de amá-la e revê-la.

Aquela ave falou-me para sempre,
Todas mais ela só repetiam;
Eu pedi minha mãe não cantasse,
Porque mesmo os seus cantos diziam.

Apertava-a sensível, suas faces
Nos meus beijos de filho amoroso —
Que entristece-a mil vezes olhando
Como agouro em meu rosto piedoso...

— Ide hoje à Vitória, e vereis...
Cai o dia formoso do sol,
Porém sobre ruínas, vestígios
Do que foi meu amor no arrebol;

Uma só laranjeira e nem flores,
O olho-d’água secou! nem as casas...
Só tu ficas, ó tempo, ó eterno,
Tudo a nós nos arrancas com as asas!

— Minha vida era toda o presente,
Foi-me um sonho da noite o passado
Que se apaga com a luz matutina,
Meu porvir um só passo apressado:

Minha vida era um vale obscuro,
Brilho honesto de cândida estrela...
Onde fostes, meus belos nove anos?
Onde fostes, aldeia tão bela?...

Ó descanso no colo materno!
Ó desertos do Periçumã!...
E meu pai ensinava-me a Bíblia
E os preceitos da igreja cristã.

 

Ó TU! QUE NOS RELÂMPAGOS DOS OLHOS

Dorme em leito de bonança
O feliz, na paz da crença:
Sem sonhos no sono plácido;
Sonhando, só sonha amor.
Eu sonho quando não durmo,
Por viver nesse passado:
Dormindo, maus pesadelos
Me sobressaltam de horror.

Ó tu! que nos relâmpagos dos olhos
Embalaste minh’alma, vaga incerta
Caída nos tens pés, n um céu de amores
Levada por encanto — e convulsosa,
E ávida de ti, ampla qual nuvens,
Me enlouqueceste de uma vida eterna!
Aonde foste? onde estás? por que morreste,
Virgem com as formas da nevada nuvem
Na alvacenta manhã com a graça angélica?...

Tu, que beijaste minha face e amante
Deslizavas por mim, me estremecendo,
Mimosa e mansa, linda rosa de ontem,
Era suspirar só teu, abrindo ao zéfiro;
Tu, que era teus seios, tão feliz, sentias
O latejar da minha fronte cálida,
Meus lábios quentes ofegando amores;
Que aos meus delírios piedosa andavas
Teus olhos sobre mim, de apaixonados
Numa luz pranteada se quebrando;
Enleando os teus braços indolentes
Pelos meus ombros... onde foste? — Inda amo!
Amo-te, eu sinto, de tuas sombras fujo,
Da vida eu fujo que contigo amei.
A música celeste, essa poesia
Que foi minha de harmônicos enlevos,
Quando em teu peito tresbordava esta alma
Em ondas de um pensar tão melancólico
De tantos ignorados sentimentos,
Não quero ouvira música, essas harpas
Que no meu coração notas coavam;
Não quero o canto nem tremor dos bosques
Nem voz da fonte nem clarão da lua!

Sonhos tão belos, que no amor se geram,
No meu passado, como horror trazeis
Tão de sombria morte a rodear-me,
Me roçando a passar! eu estremeço:
Porém não sei correr da minha sorte;
E por quê? como a ovelha ignorante
Que pasma ao céu, que relampeia e estala
Como o pestanejar do deus das sombras,
E sacode a cabeça e nada entende,
Ou que aos olhos da fera os seus aperta
E balido inocente apenas solta
Na morte penetrante: eu sou como ela.
— Ó vida desgraçada, ó minha vida,
Quem que te fez assim? quem te vivera
Se eu não fora? faminta, miserável,
Fugindo aos homens, só, assim na terra
A rugir do meu ser à voz que eu sinto
Lá dentro d’alma remorder-me! os vivos
Aterrando de mim; persigo os mortos.

Eu careço de amar, viver careço
Nos montes do Brasil, no Maranhão,
Dormir aos berros da arenosa praia
Da ruinosa Alcântara, evocando
Amor...Pericumã!... morrer... meu Deus!
Quero fugir de Europa, nem meus ossos
Descansar em Paris, não quero, não!
Oh! porque a vida desprezei dos lares,
Onde minh’alma sempre forças tinha
Para elevar-se à natureza e os astros?
Aqui tenho somente uma janela
E uma jeira de céu, que uma só nuvem
A seu grado me tira; e o sol me passa
Ave rápida, ou como o cavaleiro:
E lá! a terra toda, este sol todo —
E num céu anilado eu me envolvia,
Como a águia se perde dentro dele.

Ingrato o filho que não ama os berços
Do seu primeiro sol. Eu se algum dia
Tiver de descansar a vida errante,
Caminhos de Paris não me verão:
A través os meus vales solitários
Eu irei me assentar, e as brisas tépidas
Que os meus cabelos pretos perfumavam,
Dos meus cabelos velhos a asa trêmula
Embranqueceram: quando eu nascia
Meu primeiro suspiro elas me deram;
Meu último suspiro eu lhes darei.

Quando eu for navegando à minha terra,
A viração mareira no meu rosto,
Espanejando esta alma no oceano,
Começarei amar! e o sol com os raios,
Como braços de amante, as mariposas,
As inconstantes ondas afagando,
Amansando-as de amor em rebeldia;
E a lua formosa, como a rosa
Quando as pétalas todas desdobrando
Vai, qual virgem de amor descamisada
Nevado seio a arregaçar dormindo
Em seus leitos de azul resvala, ondula;
E as longínquas montanhas fumarentas
A balançarem na água; e o nevoeiro
Desrolando dos céus, difuso ao longa
No horizonte; e quando sobre as margens
Enlevado da pátria o meu baixei,
Ginete inquieto aos conhecidos sítios,
Eu vir; sob os meus olhos, que uma lágrima
Partem, partem de alegres as palmeiras,
Esses rios e serras, esses campos,
Irmãs, amigos, tudo... então morrer!

Prenhes de raios, de trovões as nuvens
Arrastam pelos céus pesados elos
De cadeia inegual, por despertar-me.
O céu estremeceu: de azul, prescito
As faces retraiu; negrento fumo
Correu; a terra densa vestia cai.
E eu dormia o meu sono de acordado
Quando a dor amortece: olhos desvairos,
Deslavados das lágrimas, não olham.
Minha alma errante, de voar nas trevas
Fecha as cansadas escorridas asas;
Meu pensar afadiga-me: do mundo
Fugitivo eu serei... oh, minha sorte!
Minha mãe pelos céus abandonou-me
Inda infante, meu pai também morreu;
Amei doces irmãs, eu não sei delas;
Companheiros gentis da meninice,
Da carreira nos prados, se perderam;
Meigas adolescêntulas celestes,
Que descer dos mais anos me faziam
No jardinoso albor andar com elas,
Fechadas flores, tão cheirosas, foram!
Perdi tudo o que amei! tudo me foge,
E nem a morte eu sou — tudo o que eu toco
Desfaz-se, horror! E o meu céu, meu berço,
E os anjos do meu sonho, e o meu sol de ouro,
Sisudo ancião cora fronte de meu pai,
E os meus amores... Não! quando sonhando
Auguram-me abandono, e solitário
Como o Jó piedoso, ainda a vejo
Gêmea do meu amor, em nós nascido,
Por nós criado, que ela amou primeiro,
Que primeiro eu amei, que amemos tanto!
Vejo-a correndo não sei donde, e doida,
Seus vestidos no vento desdobrados
E os úmidos cabelos; braços longos
Despedaçando o ar, que diante ondeia,
Por mais solta chegar; incertos gestos
Na face, nos seus lábios, nos seus olhos
De choro, de alegria ou de piedade,
Tremente por ditosa e de tristeza
Vendo-me como o Jó: dos céus, do mundo
Exulado e faminto, e sem abrigo
A ventania, aos vermes! pobre filha,
Pobre escrava de amor, por que inda o amas?
Verte consolações, traz salvamento,
Doces afagos tão de mãe saudosa,
Doce fresco da tarde me alentando;
Com seus cabelos a nudez me cobre,
Moles ondas no mar se desfazendo,
Se desdobrando, rodeando a praia;
Palma ao sol, sobre mim seu corpo inclina,
Eu sinto a sombra me passar na fronte
Caindo com o murmúrio da sua fala,
Quando eu acordo!... E que me importa o mundo,
E que me importa o céu que me abandona!
Unidade o poeta absoluta
Sem depender dos astros nem da terra,
Canta por natureza como o pássaro.
Por natureza as lágrimas espalha,
Vendo os homens miséria, ele miséria;
A escorregar com os mais sobre a desgraça,
Curte saudades do que vai passando
Arrastado do tempo, e que ele amara:
Amor, de que se nutre, e nunca farto,
Seu alimento devorando, morre!
— Sofre o homem vivente, ao menos o homem
Sabe dizer sua dor, que Deus afaga,
Não sare embora; mas o pobre bardo,
Ai dele — de gemer suas veias rompe,
Como ignoto do Ser, vai delirante,
Vai sem saber de si, do que sentira,
Que foi tão fundo; que ninguém lhe entende!
Um fantasma sumiu-se espavorido,
Belo voando à noitidão do abismo,
Donde aparece: “passa, eleva o eco
Da tua voz, ó sombra misteriosa,
Que nós da crença” dizem “não sabemos
Teus latidos ouvir, delírios torvos
Em candentes marasmos revezados.”
— Secava, se ergue e se balança a onda
Em seus trêmulos pés sobre o oceano:
Filho dos mares, filho das estreitos,
Errante como a onda ao polo eu sigo.

A sombra da palhoça americana
Ei-la assentada ao lado de sua mãe
Aprendendo a tecer na alva almofada,
Pobre inocente! Eis-me abandonado
No meio da Vitória, entre as ruínas,
Por entre os laranjais sem flor nem folhas,
Sem raízes nem fruto, semeados
Por mãos do furacão por sobre a terra!
Corro abraçar os seios tão fecundos,
Beijar tão ampla, tão piedosa fronte,
Difusos meus afagos derramar-lhe
No pensamento, que se lança, ondeia
Expansivo e materno, aos pés de Deus
Nos olhos de seu filho... os lábios firo
Na dura casca do longevo tronco
Do bacurizeiro e a pedra; em vez da boca
Perfumada da voz celeste e tépida,
Em vez do colo amorenado e fresco
De minha mãe de vibrações pacíficas!
— Me debruçava lá na infância longe,
Tão fértil, matinal e tão amada...
Como é árido o pranto que eu espalho!

A erva, o musgo não estavam nela,
Eu vejo a sala em chão enegrecido
E liso pelo tempo, alegre e limpa,
Com seus rústicos moveis de angelim;
Atada a branca rede neste canto,
Rainha minha mãe do trono argênteo
Repartindo suas ordens brandamente:
Amiga escravidão contente a escuta,
Basta mata derriba, os montes queima.
Da terra quente e úmida do fogo
Emanam das entranhas os vapores,
Do lavrador o sacrifício aos céus,
Inócuo, a cada passo repetido
No cair de uma enxada, erguer dum eco,
A voz saudosa e náutica da escrava
Acompanhando os cavadores no eito;
No braço pende a cesta de pindoba
Com a semente do outro ano conservada,
Melhor à plantação; e o vento leve
Monta e balança as oblações divinas
Do tronco quê inda fuma e os longos sulcos
Que o grão sepultam. Já loureia o milho,
Verdeja o arrozal na baixa, e sobe
Na ladeira viçosa o algodoeiro,
Que vermelha maniva a cima entouça:
Depois, rica a colheita — oh, tão felizes!
E Deus tudo nos dava, largas eiras,
Amplos terreiros abundante enchia.

Na lavra a padroeira se festeja
Com festas, com selváticos cântaros,
Que dera inverno copioso às plantas,
Para o rio que sai do fundo leito;
Verão formoso na colheita, aos campos,
Às pingues pescas e ubertosos bosques.

Em fresca madrugada nós partimos
Gratos dias passar na doce quinta
Cora sua vida de um ano ou dois; a lua
Nos raios da manhã sua luz perdia.
No seio do caminho se encobrindo,
Gritando por seus pais, que cedo abraçam,
Vão saltando os crioulos; vão nos mansos,
Nos esbeltos corcéis branco-mimosos
Meu pai, minhas irmãs; atrás os servos,
E os cães ladrando à fugitiva corsa
Que na volta da lua sai na estrada;
No meio minha mãe, eu no seu colo,
No carro cantador, sonoro e lento,
Por formosa parelha igual tirado,
Fumante o dorso, sacudindo a fronte
De ramos enfeitada, um lácteo bafo
Exalando saudável; pelos ares
Poenta nuvem de marfim desonda
Do caminho de fita. A voz confusa
Da leda caravana matinava
Harmonia selvagem, mas tão bela!

Que risonho país, que novidade
Sobressaltou minha alma! alto horizonte
O tujupar domina, se amontoa
Áurea colheita pelo em torno; as aves
Cantam no meio do arrozal que ondeia
Ao vento estivo; serpenteia o rio
Turvo e plácido, além perdido, além
Passando à sombra do algodão plumoso
Que das margens se abraça, entrança os ramos;
Cortado, além, da estiva que debruço
Formou naturalmente o pequizeiro;
E pela riba as verdes cabaceiras
Era floridos cordões se dependuram:
Nuvem cobre o terreiro, vagam nuvens
Matizadas no ar, como folhagem
Rugidora que o vento cerca e arranca,
A árvore queimada enverdecendo,
Tristes, pálidas torres que não dobram,
Inconstante despindo o móbil manto
Para outra enramar, cobrir de flores
Com a breve estação desta que esfolha.

Voltávamos, passada uma semana,
Mui saudosos, da lavra. Nos traziam
Nossa mãe preta e todos os escravos
Mil presentes de infância: a cuia nova
Tingida e resinosa; o cará roxo;
Dois ovos de perdiz, da glauca tona;
A leda, berradeira seriquara
De pés e olhos vermelhos, verdoengos
Longo bico e a plumagem; uns filhinhos
Do como viridante em quentes plumas.

À tarde, quando a lua no horizonte
Descobria de prata o rosto umente
Agitado no mar de um céu de azul,
Os cumes do ocidente se extinguindo,
Como o casal do Éden se assentavam
Meus pais à fresca porta no batente
Vendo o nosso folgar: interrompido
Quando o sino vibrava na capela
Angelus-ave; renascendo logo.
Lá chegava o feitor, depunha a foice,
E a meu pai relatava o dia findo;
Sobre a queima lhe fala, as chuvas teme:
“Corre mais abundante no caminho
Tortuoso Mapa, banhou das margens
A lustrosa cantã, que se ergue olente;
Já taiocas se alastram doidamente
Ou vão subterrâneas; na alta mata
O acauã cantou, ecos de longe
Levaram por mais longe os outros ecos;
Acimam-se nos céus os sete-estrelos,
Acentrada num forno a lua pende —
Outros sinais eu vi — todos os astros
São maiores mais luzem; são mais fundos
Os campos, perto os matos de outra banda,
E mais amplo o horizonte; à madrugada
Gritavam gansos para o sul passando;
Comprido bando eu vi passar à tarde
Da colhereira rósea; o sol no poente
Vermelho: tudo as chuvas anuncia.”

Nos braços maternais que me embalavam,
Em ondas de alegria derramando
O cansaço infantil, eu me atirei
Um dia e, de prazer, preso em soluços.
Já mudo e descansado olhando os outros
No tecume em que andavam, despedir-me,
Por entre eles perder-me, ia pensando:
No lançar-me, senti na minha fronte
Cair gotas de pranto, eu estremeço...
Minha mãe me apertava, e como alegre
Foi dizendo: “Hoje brincas, no meu colo,
Qual na pátria, depois da vida errante,
Hoje vens descansar... oculta sorte
Quantas vezes não muda os seios almos,
Delícias da mãe terna e o doce filho,
Por um leito de pedra! estes rosais,
Tanto céu, tanto amor, por tantas dores,
Longo penar, morrer! oh, Deus te salve
Dos frios dentes de assassina sorte...”
Nada pude entender; mas, comoveu-me
A voz dorida lhe escutar, tão triste!
E assim como a progne implume ainda
Se encolhendo tremente sob as asas
Estendidas da mãe, quando na torre
Quebrou a tempestade, eu a seu lado
Ignaro emudeci também chorando.
— Induziu-me a voltar aos meus brinquedos,
Enquanto era feliz, Enquanto infante.
Nunca mais ser contente eu não sabia:
Minha mãe nunca mais contente olhou-me
Com sua vista de esperança: um que piedoso
E de tristeza estava em seu semblante
Olhando para mim, tão carinhosa!
Comecei a passar todos meus dias
Junto dela, onde quer que ela estivesse,
Ou na rede da sala, ou passeando
Por entre a laranjeira, ou nos pombais;
Dormia no seu leito, a voz lhe ouvindo —
Tremendo adormecer! — e quando na alva
Cantava o galo, eu despertava, a via,
E como triunfante e prazenteiro
Dessa noite salvar, beijei-lhe a fronte!
Não podia perdê-la um só momento,
Temia não sei que, porque nem sei...

E morreu minha mãe, perdi meu pai,
A Vitória, os escravos acabaram!...
Sou órfã, sou perdida andorinha
Arrancada do ninho pelo vento,
Não sei por onde eu vou... murchando a vida
Nesta minha invernosa primavera.

Assim, meu Deus, no mundo os justos passam,
Sem ruído — vai sombra solitária
Que refletiste uma hora. Ah! se eu pudesse
Voltaram meu país ah, se eu pudesse!
Passando, resgatar à liberdade
Esses vendidos, miserandos velhos
Da Vitória felizes! pobres crias
De minha mãe, por aí morrendo, céus!
Dar-lhes a respirar no fim da vida
Os ares do palmar onde nasceram:
E pasmados de encanto ao ninho amado.
Qual aves da saudade erguendo o coto
Para o colo esconder fechando os olhos.
Então morrerem... mas, ouvindo ainda
O som dos bosques, o gemer da rola,
E o lago berrador por muda noite
Harmoniosa, e as aves da alvorada,
E o suspiro exalarem no seu canto!

Ainda a solidão nos conhecera,
O deserto ecoara, e sob os pés
Sentíramos a terra estremecer!
A campa quando mãos de amor a tocam,
Escorrendo uma voz quebrada, um pranto.
Nossa casa ergueríamos da noite
Dessas mesmas ruínas do casal,
Entre elas; serviria a mesma porta,
Os esteios os mesmos, o batente,
Esses mesmos terrões desmoronados
Novas paredes levantarão; tudo
Nos falara o passado... tudo lágrimas!
É fagueiro chorar por muitos olhos,
Por muitos corações, por muitos lábios
O mesmo choro, o sentimento e amores
Dos tempos que já foram! — Se eu pudesse
Meus amigos vendidos libertar!
Ainda ver passando a colhereira,
O ganso à madrugada, os meus palmares
E a rola da Vitória e as aves todas!...
E mudo a minha dor come a minha alma
Nos anos verdes, como verde fruto
Mastigado com força nos vorazes,
Nos rijos dentes a estralar quebrando
Da homicida, fatal, da minha sorte:
Porém, não perca o fio da existência,
Deus no meu peito, amor nos olhos ambos,
Longe do mundo, o rústico alaúde
Na destra sonorosa — hei de vencê-la!

Sou como a cria desmamada e triste,
Que uma gota de leite mendigando
Bale em torno de todas as ovelhas:
Abanam-lhe a cabeça: eu não sou filho.
Andorinha dos mares, sobre as ondas
Perdida, as asas de cansada arrasta;
Passa a frota alvejando qual cidade,
Voa aos mastros de um, de outro navio,
Os marinheiros gritam, e ela volta
De tímida outro bordo, e deste aquele:
Ai de ti coitadinha, fecha as asas,
Solta um gemido e lança-te da vida,
Vai na morte pousar; cai desse cume
Dos teus dias bem lúgubres na aurora!
Ah, se eu tivesse mãe! então... ah! sim,
Nem como ave do mar, nem como a ovelha:
A seus lados feliz, bem junto dela,
Meus braços enlaçando-lhe o pescoço,
Bebendo os olhos seus, seus doces lábios,
Sua respiração branda, amorosa,
Que alentou minha infância e fora eterna;
Vivendo nela só, toda minha alma
Derramando sobre ela, ao mundo, ao tempo
Mostrara o meu amor! — Ó vós, que a tendes,
Amai a vossa mãe, amai-a sempre,
Amai ainda — quanto amei, quanto amo
Minha mãe... minha mãe!... tu, divindade,
Meu sol da infância que me davas tudo
Senti meu pranto como triste corre;
Vede meus dias solitários, áridos,
Fruto que não vingou: tão cedo, a selva
Morreu, caio: à calma exposto, o sueco
Se perdeu, e mirrou não tenho mãe.

Com o são lentos, longos, e pesados
Os dias deste mundo! como custa
Arrastar este arado da existência,
Rompendo a leiva pedregosa e seca
Que não dá uma flor! Tu me abandonas,
Deus, na terra ingrata? — eu vou seguir-te,
Se depois deste mundo asas me derdes...

 

SOMBRIA MORTE ME ACOMPANHA

Tua voz na infância adormeceu no berço
Meu dormir de flor;
E de saudade e amor,
Ó mãe, é sobre um túmulo que eu canto.

Sombria morte me acompanha, eu sinto
Seu faminto alentar: cada um meu passo
Abre um sepulcro, e me desaparece.
A luz me aterra, desconheço o dia,
Noite que treme apresentar-se ao sol
Antes da vida eu morro. Olhava apenas
Essa terra de vastos horizontes...
Meus olhos cambaleiam pelas faces,
Como o ocaso despede-se dos píncaros.
Nascem ecos distante... um só minuto,
Ó ecos, esperai-me — eu vou cair!

Não me vês, minha mãe, neste deserto?
Sem pátria, como a nuvem desgarrada
Resvalando por céus de noite pálida:
Sem parar numa terra de existência —
Corrente cristalina por amores,
Por amores a cúpula palmosa,
Sombria e mui sonora, do folhedo
Seus aromas com os cânticos das aves
Sobre mim derramando em casto leito
De vai cheiroso, do penhasco ao seio
Descansada a cabeça, e o junco e as flores
Do pá ramo por virgens do meu peito,
E por meu teto o céu; cândida lua
No meio da cerúlea cabeleira
Exalando o seu rosto de donzela,
Claro manto de sedas perfumadas
Cobrindo-me da noite, árida esta alma
Me embevecendo de orvalhoso eflúvio;
Dormindo o sono plácido da crença,
Afagar-te em meus sonhos de ventura,
Ver-me infante em teus braços, em tua fronte
Juncar, juncar meus beijos... minha mãe!
Não me vês, doce mãe, neste deserto?

E o jardineiro sol da madrugada
Banhando as flores de perfume e tintas,
Ou quando da palmeira aos pés arroja
A meneante imagem, no ocidente
Carminizando o mar, e a natureza
Entre as místicas sombras de uma tarde,
Quanto eu amara! que esta vida enchera
De todo este universo, minha mãe!

Não tenho um só amigo, sou tão pobre...
Que eu vejo um mundo... ninguém sabe ao menos:
Extintos olhos e uma térrea fronte
Não vão com o ledo romanesco em galas.
Oh, quem pudesse penetrar-lhe o exílio,
Sondar seus mares de ilusões e abismo,
E os mistérios erguer n alma do bardo —
Sombria diante o sol, por entre as luzes,
Para os dias da noite solitária!
Sem gemer uma dor, chora-as consigo,
Ao mundo que sorri, sorriso empresta;
Na paz da solidão rasga sua alma;
Lucubrações à hora evosa e tácita,
E umas gotas de lágrima espontânea
Sobre essas flores de tristeza e insônia.
Meu corpo à terra abandonei misérrimo:
De saudades, de amor, sonhos, esperanças,
De ti, de um Deus alimentei meu peito —
E para o mundo, minha mãe, tão pobre!...

Errante pelas ondas do oceano,
O som das vagas temperou-me a lira,
Ecos delas seus ecos repetiram.
Solitário dos homens, forasteiro,
Na soledade do ideal ouvi-as
Simpáticas, soluços me ensinando
Arrancar ao coração; com elas
Errei a mente na amplidão calada;
Gemi com elas na canção do nauta,
Realçando na proa sonorosa
Em silêncio a desoras; pelo bojo
Rompendo as trancas, quando a lua enflora,
Quando a lua umedece, bela em mares,
Bela no céu azul, no cavo pano.
Suspenso ebúrneo pelas vergas longas;
Chorei com elas na extensão profunda
Povoada do éter anilado,
Quando da noite a balançar-se ao colo
Sem bosque ave sentida ia piando;
Ensinaram-me a voz rude e selvagem
Arando o vendaval rouco e ruinoso;
Em calma eu vi-as açoitando as rochas
De Marrocos, de Espanha, ou docemente
As velas balouçando, e, qual mulheres
De ardentia vestidas, debruçadas
Pelo Mediterrâneo, o pensamento
A descantar perdidas, suspirando;
E quando à matinada saltam peixes,
Rubente caravela esmalta à tona,
E de mansas e lânguidas dormiam
Desfalecidos ventos nos seus braços.
E no vago ondular da vida alheia
Não busco a natureza, amo-a: nos homens
Encontrar meus irmãos... ah! minha mãe,
Ao meu amor só tu. Foste: — a tua sombra,
Alma, ou o que houvesse de imortal em ti,
Ficou-me triste musa do crepúsculo;
Da saudade uma lira encordoei
No meu pranto por ti, no amor a Deus.
— Balbo, flébil infante ao desamparo,
Senti necessidade: eu quis vibrá-la
Por meu consolo; e tímido, aos meus olhos
Envolveu-me pudor, fugia crê-la;
Rubesce a musa, inocentinha virgem
Meiga nota de amor passar sentindo.
E eu cresci na crença de meu pai.
Meu pai também morreu, ergui-lhe as cordas
Da lira que me deste, em noite escura
Ao mundo esquivo às sombras do sepulcro.

Em pálida orfandade eu fui qual folha
Nas asas dos tufões ludibriada:
Da selva me arrancaram tenra e murcha,
Quando o sol rodeava-me num berço
De flores e favônios, quando as aves
No trino virginal de argêntea infância...
Que amanhecer, ó mãe, quanto era horror!
Colocado me achei num horizonte
Onde o fogo queimara a terra, as flores,
Tanto sorriso pradinal no monte,
No vale a pragana aureando ao sol!
A terra estava negra, rebuçada
Em camadas de cinza; além, além
Crepe alvacento levantando apenas —
E o céu nem soube dar-me um fresco orvalho!
Chorei! perdidas lágrimas de órfão.
Pedi consolações! porém, à terra.
E os meus gemidos as solidões comeram;
Meu pranto aquece resfriada cinza;
E ninguém me entendeu. Divago ignoto.

Leviano baixei das águas todas,
Vergôntea exile do frescor movida,
Amei, oh, quanto amei! anjos da infância,
Que os meus anos d’aurora matizaram!
Eram ondas saltando, se infiltravam,
Como em praia, em meu peito sonoroso;
E como ondas de vida os meus suspiros
Piedosos caindo, me escutaram:
Doces cantos teci de amor travessos,
Desalentada mansidão da serpe.
Um rápido sorriso à flor dos lábios
Nasceu, tingiu de amor, passou, morreu.
Suavíssima aragem desprendendo
Amena rosa de recentes cores,
Fagueira linfa vinculando a concha,
E nem mais divaguei... morreste?... virgem!
Anjo coitado, que tremeu de amar-me,
Arder as asas na silvestre chama
Do meu amor; alâmpada sagrada,
Luz delirante me sentir nos seios
De óleos divinos suspirar, morrer.

Longos, pranteados embalava os olhos,
Que a face afrescam de uma luz infante,
Ao céu de azul asserenado, manso,
Ideal de harmonias respirando,
Como a rosa em seus bafos se difunde;
E nos fracassos desse peito alheio
Anjos, nuvens divinas se exalavam:
“Virgem de vaporosas criações,
Dá-me um beijo por asas, dá com elas
Que eu suba à salvação, ó casta! ó noiva!
Tu, que alvoreces entre o coro e as harpas
Da natureza, que as montanhas vibram
Por estes vales onde o vento dorme;
Tu, que te inclinas à espaçosa sombra
Da tarde, como a tépida lembrança,
E o saudoso passado, dá-me um beijo!
Enche meu coração dos teus mistérios!”
— E ela não falou: confusa e bela,
Deixou nos olhos melindroso assomo.
— E ela não falou: meus olhos baixos
Lampejaram-lhe aos pés, doce mendigo
Dobrado ante os altares da esperança.
Suaves línguas de mimosa flama
Sentia-se a sair no puro alento
Da aromosa boca: arbena alpina
Que na calma foi do ávido assaltada,
Em cansaço e medrosa um ar faminta.
Vaguei por sobre as pálidas ruínas,
À rota sombra do espinheiro agreste:
Nem mais ouvi a rola solitária,
Lamentoso acauã deu-me o seu canto
Nas horas do silêncio taciturno,
E outras aves do sol desconcertadas
Solenizaram o amanhecer e a tarde.
Percorri as campinas lá da infância,
Não encontrei-as, de mudadas que eram;
Regou meu pranto os cardos do alpestrio
Crescidos no álveo do olho-d’água. As flores
Que plantavas no pátio, o pé ramoso
Do bugari morreu, nem mato as cobre!
A capela das salvas Oh! quem pôde
O casal da Vitória interdizer-me?
Já vacila o esteio, alta parede
Era seus pés se amontoa, abate o teclo;
Em sentido assobio lá se envolta
Amarela jiboia, ao lado geme
A coruja de agouro, das ruínas
Presidindo o cair, noturno esvoaça
O morcego e pende, rumoreia o vento.

E o teu casal me foi negado um dia
Pela terra tão má! pecoreando
Ao relento passei noite sem fim,
No meio das solidões do meu passado,
Em pedras estendido. Quantas dores
Abafavam-me as sombras! meus gemidos
Apenas iam se perder no vale.
De lassidão sonhava, adormecia:
Eu era o teu sepulcro misterioso,
Na minh’alma encerrei teu pensamento,
Meu peito a lousa do epitáfio: em mim
Visões senti que os túmulos rodeiam
Roçarem fugitivas como o vento
Por muda folha; imagens dolorosas
Me acenavam de longe, revoavam,
Caíam como! do ar, feridas pombas
Quando cegas do sol vão contra os muros,
Em saudade convulsas me abraçando;
De tão chorosas me acordaram Eu só!
Nas ondas do suor, espectro errante,
Descabelado e pálido entre as árvores —
Despovoado céu! Ó mãe, ó mãe!

Meu Deus! por que mataste minha mãe?
Por que mudaste as flores destes sítios?
Por que murchaste todas estas árvores?
Como tantas ruínas se amontoam!
A verdura risonha do outro tempo
Desfalece do prado, e triste as aves
Levantam-se às colinas do horizonte
Enegrecidas, áridas. Quem dera
Vivesses inda aqui! doce velhice,
Apoiada em meus ombros, titubantes
Nossos passos, feliz te conduzira
Nas margens odorantes de tua fonte
(Seca e perdida em carrascais sem flor),
Te dando água na mão, que tanto amavas
Na folha da cantã, e à tua vista
Sorrindo as linfas gárrulas passaram;
A tarde, vagarosa, em doce prática,
No teu passeio a respirar no monte
Do bosque perfumado brasileiro
Ar tépido e saudável: sobre a pedra
Da ladeira, encostada-a mim, por longe
Vagando os olhos de afrouxada vista
Como esses cantos vesperais desmaiam,
Numa história sem fim, mas agradável,
Branda fita de mel, por entre as frases.
O nome do teu filho acentuando;
E depois, quando a sombra já caísse
Dos laranjais perante os astros todos,
Pelos trívios à morta claridade
Virmos trazidos para o teto amado,
Onde já passam as primeiras luzes;
Descansando no toro de pau-d’arco,
Tu falarás então, porém sem lágrimas:
“Aqui tuas irmãs contigo juntas
Há vinte anos brincavam; lá, teu pai
Esse pé de loureiro que inda cresce
Plantou quando nasceste, esperançoso
No teu futuro — a idade dele é a tua.”
E no terreiro se ajuntando os pretos,
Começam-se acender os fogos rústicos.
Nem mais o canto das senzalas ouço...
Oh, quantas coisas tem mudado o tempo!
Ó Deus, por que mataste minha mãe?

Curvei-me à rama do palmar atlante,
No esto de uma quadra da existência,
Perto à sorte minguada ouvindo a morte...
Mas, foi sonho. Açoitado do destino
Perdi as margens que eu amava, ingratas!
Minha dor comprimi, pranto de sangue
Por dormi-la chorei! chorei saudades,
Do peito a fronte a levantar gravosa
Vergada ao pensamento, fundos olhos
Tremulando no vulto do gigante
Rebuçado em seu manto de penhascos,
Entre os céus a cabeça, lhe entoucando
Silencioso nevoeiro a grenha;
Falecendo no azul das serranias
Dos Órgãos endentados — qual na areia
Do líbico deserto, o sol aceso,
Se embalançam palmeiras no espelhoso,
Encantadas cidades, ilha ou selva,
Onde eleva-se muda a caravana —
No remanso das águas desenhadas
Melífluas do Janeiro. Oh, meus encantos!
Mãe despiedada que seu filho enjeita,
A pátria me negaram... Posto às chuvas,
Senti murchar meus anos inda abrindo;
Minha vida pendeu extenuada
De suspiros e dores; esta seiva
Da minha alma se evapora, esvai-se;
Pela aérea raiz repousa o outono,
E os turbilhões ardentes a laceram.

Eu vou subindo o rio da existência
Contra as correntes em penosa balsa:
Estendo a vista pelo esteiro, busco
Deter com as mãos as ondas, que me fogem!
Grito, que se não perca o meu passado —
E perde-se com o eco... e pelas margens
Apenas uma luz se extingue, um monte
Empalidece e seca, as minhas torres
Desfazem-se em ruínas, um cipreste
Lá no fim do horizonte o corpo estende!...
E volto-me ao caminho para adiante:
O tempo se aproxima, e passa: e digo,
O futuro lá jaz atrás da nuvem —
Porém branqueia a nuvem... peço ainda
À noite, que me espere Enquanto há dia —
O sol desaparece, e tudo é noite!
— Está minh’alma se escorrendo em chagas
Tão vivas, de sanguíneos meteoros
Nela cheia de noite, ou como os raios
Na sua tempestade serpenteiam!

Eu via o tempo segundar-me às pressas:
“Corre! corre! que eu passo.” Eu corri tanto,
Que a vida toda numa aurora andei
Até aos pedestais desta muralha!
Ainda as verdes púrpuras me cercam,
E esta desgraça que eu radeio as cresta.
Não posso mais seguir: num desalento,
Eu caio, e de fadiga mal me arrasto
À beira de uma sombra, sobre o marco
A fronte deleixar em descabelos
Indiferente pela terra o corpo:
Meus olhos apagados, pelo vale
Embalde se demoram nos meus rastos,
Que palpitam, que somem-se e os aturvam.
O sol vacila a contemplar-me, e para!
Volto-lhe as costas, meu desprezo ao sol,
Que não é mais a mim como da noiva
O banho perfumado do noivado;
Porém onda que o lívido cadáver
Umedece insensível. O abandono
É meu leito da morte: expiro, acabo,
Sem terno pranto, sem amigos braços:
Vejo um inverno a desfolhar-me apenas,
E púrpuras crestadas; vozes mortas
Sinto apenas vibradas na montanha.
......................................................................

Que leito belo, e preguiçoso, e morno!
......................................................................

Neste enjoo da vida ao menos diga:
Eternidade de dor bebeu minha alma,
Por ela fui nutrido, e me sepulta;
Só aqui não achei mentira o mundo.
— É rochedo meu peito à flor estranho:
E do prazer nas gélidas cavernas
Somente encova horror, linfas amargas!
Criação desgraçada — nasce o bardo
Para sofrer, e maldizer os céus.

Ensopada nos bálsamos do gozo,
Dos amores, da vida a infância minha
Foi uma hora, e passou, tão leda e bela!
Meu corpo da doença corrompido
Mistura-se com a terra; anoitecido,
A noite empresta-me as sombrias fôrmas:
E nem espero amanhecer mais nunca...
Morrer! tão cedo, no quartel primeiro,
O sol no monte a palpitar de esperanças
Num vidroso fulgor... Oh, Senhor Deus!
Os dias eu não choro para o mundo,
Não carecem de mim gozos, prazeres:
Donzela vacilante minha pátria,
Nova e rica de encantos, e tão pobre,
Tão órfã como eu sou de pais e amores,
De todo o peito meu quisera amá-la,
Abrir com ela no subir dos anos
Que não sabem murchar celestes flores —
Misérrimo sonhar! vão-se os meus dias
Na corrente indomável tropelados
Dos pendores da sorte ao fundo abismo.
Por que, Deus, me criaste? em minha aurora
Sou vítima — o que fiz? — Corre, homem louco!
Ave magra e sem ninho vai cantando,
De morta a descansar de voo em voo,
Conforme a terra ataviada, mia,
Dum céu alpestre, ou desatando encantos.

Doloroso cipresteda minha alma
Ondeia no meu rosto a sombra errante
Dos ramos denegridos, anuncia
Como os embalos de noturno sino
O enterro que passa, a minha morte —
Minha morte amanhã... talvez inda hoje.
Choram ver-me exalar a vida de ontem
No berço adolescente; eu sinto o pranto
Do fundo peito, que só meu julgava,
Nos olhos estranhos, a doer na fronte
Dos que me cercam, repetindo mudos:
“Morrer tão cedo!” Como é belo, vede,
A morte do poeta nesta idade!
Mimoso cisne pelo céu de um lago
Desplumando suas alvas sem ter mancha
Como as virgens gemeu, gemeu l gemeu!
Nem sabe se inda à terra um corpo fica,
Se fica a terra, as flores e as campinas;
Sem para cima os olhos de esperança,
Mudo e candidamente está sorrindo —
Expirando e sorrindo. — Mas, a pátria?
Se enlevando inexperta pousalousa
No sorriso falaz, da humana serpe,
Ora, com sede, seduzindo a cega;
Logo depois, escarnecendo a néscia
Desflorada: “só farta os vis desejos,
Tão vazia de amor divino!” Ó pátria!
Senhor, salva-a! Senhor! Eu morra, embora.

— Do descobrimento não morreram os déspotas,
Não, que o cândido povo, o povo infante
Não cessou de gemer. — Ah! contra o débil
O forte não triunfa: ele envilece.
Tem a alma no peito espaço igual
Do mesquinho senhor, do escravo fraco.
Cobardia é pisar o choro humilde,
Cobardia é chorar nos pés tiranos:
A sorte comutada, eles semelham.
Não tem sorte o magnânimo, tão alto
Está no trono ou no servil grabato.
— Rapina simulada, a fronte é clara
Perante o dia, no favor das sombras
Desusando ao través, te insulta, e passa:
Com ar de escravidão te distraíste!
— Tão indolente, quem te dá piedade
Vendo os teus campos se esterilizarem?
O Deus, o próprio Deus, se ofende e vinga:
Peste, desolação, miséria, seca,
Gritos de cativeiro e maldições,
O horror que fazes, só nas mãos te estende!
— Desprezível te olharam, em torpe estagno
A ressonar, em gurgitada em gula
De tão pesada tradição retrógrada:
Olharam-te vistosa, como a Limace
Arrastando na concha o fátuo egoísmo
Debruçar-se mui lenta sobre as praias
De um vasto mar, em camas de ouro — de ouro
Se alimentando ali do limo e de ervas
Que as ondas trazem das opostas margens,
Das margens todas que não sejam suas,
Move a cabeça apenas, e um dos cornos,
Aonde os olhos se arredondam, fura
As cápreas zonas, e no Prata o molha;
O outro, ao norte pelas nuvens dentro,
Acende no equador por entre os signos,
E nas águas seus arcos esverdeia
Do primo-nato filho dos oceanos!
E o corpo se perdeu quase nos Andes,
E além dos Andes, lhe abraçando as plantas,
Com voz dos séculos que o futuro abalam,
Responde o grande mar ao mar Atlântico!

— Ergue-te! move-te! sê senhora, impera,
Estende as asas, voa ao sol candente,
Campeia sobranceira pelas nuvens,
Imagem do condor das serranias!
Arma a justiça no amazônio braço,
Ergue os teus filhos que te erguer sonharam;
Curva os teus filhos quando ingratos foram;
Lava tua fronte que os estranhos cospem,
Saliva ínvida, mas desprezo há nela!
— A onde é viva a riqueza o homem corre,
Todos amam viver, a pátria encontram:
Em seu jazer dormente, não amigos,
Exauri-la só vem, como bandidos
Que imbele vítima inda insultam quando
Em seus congressos da montanha bailam.
— Oh, desperta! dormindo em pleno dia...
O bruto pesadelo da política
Não dá sonhos — afoga e cansa e mata —
Pisando nos seus pés a Liberdade...
E a Liberdade nos teus seios geme!
Por amor de si mesma. A nuvem presa
Desespera e se arroja na tormenta:
Após os seus destroços miserandos
A bonança virá, porém, tão tarde!...
Se briosa, prepara à natureza
Templos à eterna luz: — na superfície
Vem rolando do globo: ei-la bem perto,
Saúda nossas plagas os primeiros
Clarões e o crepitar! Vejo o Oriente
Cinza vasta, por onde ela passara,
De um fumo branco se perdendo e leve.
Abarbarando vão-se os que ela deixa,
O tempo embora lhe não lave os traços,
E o bárbaro Ocidente ora resplende.
As ondas transporá: que já se espelha
Nas Colômbias dos Andes e dos mares;
E a sombra então, que nos envolve ainda,
Irá longe de nós, e a cauda fria
Estenderá no céu que nos eclipsa —
O dia aqui estará — Foi lei do Sol.

 

ÚLTIMA PÁGINA

Se eu escrevesse um prólogo, seria tão somente pedindo ao público me desculpasse de lhe haver oferecido os meus concertos — frios, tão mal entoados e rústicos. A dor, os sofrimentos, a saudade foram o anjo desgraçado dessas inspirações como o grito fatal das aves da noite. Eu nunca os pretendi publicar — os restos disputados aos vermes e ao tempo seriam roto cipreste ao meu túmulo — que, se um dia o pensasse, certamente não os teria escrito, nunca eu seria poeta, ainda só pelos escrever. Eu os cantava descuidado, sem dar-lhes nome os perdia — quando o peito mais leve como que adormeceu. Porém, a sorte falou mais perto... e hoje os procuro para dá-los. Estremeço às fráguas por onde eles tem de rolar, e tenho remorsos de haver dado cousa tão má. Eu nunca os pretendi publicar: foi a sorte que falou de mais perto: perdoai. Safara e inculta, aos auspícios da Infortuna pálida, a terra só produziu flores venenosas: não as respireis; passai longe do vale — eis o caminho. Toda via, eu amo naturalmente esta vida errante, sem lei nem futuro: inseto em arribação contínua, tuas asas cortaram, cairás em teus primeiros zumbidos. À sombra do teu nome, doce irmã, bela e feliz Maria-José, eu teria abrigado os meus primeiros ensaios; porém, não encontrei neles um reflexo divino da poesia de que só mereces de ser rodeada, e encolhi o meu desejo. É a sorte que me anda iludindo, eu não morrerei ainda.

Eu vejo um firmamento de vasto azul, um astro se levanta no meio. Tudo desmaia em torno de mim: é que nada era estável; e tu, única realidade que eu vejo, eu vivo, tu existirás!

Abstenho-me de ajuntar a este volume, por já tão longo e decerto fatigante, notas sobre lugares, costumes e nomes naturais, que por falta de indagações científicas possam ainda ser desconhecidos.

JOAQUIM DE SOUSA ANDRADE



---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

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