2/27/2023

Gazeta de Holanda (Poesia), de Machado de Assis


GAZETA DE HOLANDA


N° 1
(1º de novembro de 1886)

Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

Um doutor da mula ruça,
Caolho, coxo e maneta,
É o homem que se embuça
No papel desta gazeta.

Gazeta que, se tivesse
Outra forma, outro formato,
Pode ser que merecesse
Vir com melhor aparato.

Mas é modesta, não passa
De uma folha de parreira,
Que dá uva, que dá passa,
Que dá vinho e borracheira.

Traz programa definido,
Para entrar no grande prélio;
Nem bemol, nem sustenido,
Nem Caim, nem Marco Aurélio.

Não traz ideias modernas,
Nem antigas; não traz nada.
Traz as suas duas pernas,
Uma sã, outra quebrada.

E vem, como é de ciência,
Entre muletas segura,
A muleta da inocência,
E a muleta da loucura.

Se uma não pega, outra pega,
E fica o corpo amparado;
Se para um lado escorrega,
Fica-lhe sempre outro lado.

De modo que, quanto diga,
Seja ou não o que a lei manda,
Há de achar entrada amiga
Esta Gazeta de Holanda.

Que traga ideias a folha
Liberal que se anuncia,
Que as espalhe, que as escolha,
Como a Reforma fazia.

Vá que seja — posto seja
Tarefa das mais reversas,
Fazer uma só igreja,
De tantas seitas diversas.

A prova é que, ainda agora,
Já pronta a bagagem sua,
Somente esperando a hora
De sair a folha à rua,

Feito um capítulo apenas,
De tão diversos capítulos,
E, contando boas penas,
Já traz a folha dois títulos.

Voz da Nação, ou — Gazeta
Nacional; só falta a escolha.
Já principia a marreta,
Antes de sair a folha.

Eu cá, perfeita unidade.
Ora aprovo, ora contesto,
Sem que haja necessidade
De ouvir protesto e protesto...

Exemplo: ao ler que se trata
De fazer um edifício
Para o júri: — colunata,
Vasto e grego frontispício,

E que esta ideia bizarra
Nasceu mesmo agora, agora,
Quando foi ali à barra
Uma distinta senhora;

Quando a afluência de gente
Era tal, que o magistrado
Teve de ir incontinente
Pedir sabão emprestado;

Comigo disse: — Bem feito
Que a Joaninha expirasse
De uma moléstia do peito,
E que a Eduarda cegasse.

Só assim tínhamos prédio
Para um tribunal sem nada;
Não foi morte, foi remédio;
Foi vida, não foi pancada.

Pangloss, o doutor profundo,
Mostra que há grande harmonia
Entre as coisas deste mundo,
Entre um dia e outro dia;

Que os narizes foram dados
Para os óculos; portanto,
Trazem óculos pousados...
Pangloss é o meu padre-santo.

Logo, se uma e outra escrava
Brigaram sem sentimento,
A razão de ação tão brava
Foi termos um monumento.

Neste ponto o ponto pingo,
E despeço-me no ponto
Em que cada novo pingo,
Já não é ponto, é posponto.

 

N° 2
(5 de novembro de 1886)

Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

Muito custa uma notícia!
Que ofício! E nada aparece,
Que canseira e que perícia!
Que andar desde que amanhece!

E tu, leitor sem entranhas,
Exiges mais, e não vês
Como perdemos as banhas
Em te dar tudo o que lês.

És assim como um janota
De maneiras superfinas,
Que não sabe o preço à bota
Com que cativa as meninas.

Agora mesmo, buscando
Saber de associação
Que se deu ao venerando
Ofício de proteção

Aos animais — não sabia
Onde achasse os documentos
Dessa obra de simpatia,
Para transmiti-la aos ventos.

Achei quatrocentas atas
De reuniões semanais,
Ofícios, notas e datas,
Tudo espalhado em jornais.

Mas das ações praticadas
Em favor da bicharia,
E das vitórias ganhadas,
Nada disso conhecia.

Então lembrei-me de um burro,
Sujeito de algum valor,
Nem grosseiro nem casmurro,
Menos burro que o senhor.

E pensei: Naturalmente
Traz toda a história sabida;
É burro, há de ter presente
A proteção recebida.

Lá fui. O animal estava
Em pé, com os olhos no chão,
Tinha um ar de quem cismava
Coisas de ponderação.

Que coisas, porém, que assunto
Tão grave, tão demorado,
Ocupava o seu bestunto,
Nada lhe foi perguntado.

Talvez, ao ver-se assim magro,
Cativo como um nagô,
Pensasse no velho onagro,
Que foi seu décimo avô.

Entrei, dizendo-lhe a causa
Daquela minha visita;
Ele, depois de uma pausa,
Como gente que medita,

Respondeu-me: — Em frases toscas
Mas verdadeiras, direi,
Enquanto sacudo as moscas,
Tudo o que sobre isto sei.

Juro-te que a sociedade,
Contra os nossos sofrimentos,
Tem obras de caridade,
Tem leis, tem regulamentos.

Tem um asilo, obra sua,
Belo, forte, amplo e capaz;
Já se não morre na rua,
Dá-se ali velhice e paz.

Gozam dessa benta esmola,
Em seus quartos separados,
Mais de uma onça espanhola,
E muitos gatos-pingados.

Todos os galos na testa
Acham lá milho e afeição;
Lá vive tudo o que resta
Da burra de Balaão.

Mora ali a vaca fria.
E mais a cabra Amalteia,
Única e só companhia
Do pobre leão de Nemeia.

Não posso fazer elipse
Dos bichos caretas, nem
Da besta do Apocalipse,
Que ali seu abrigo têm.

E o cisne de Leda, e um bode
Expiatório, e o cavalo
De Troia, escapar não pode;
Mas há outros que inda calo.

Peguei no papel, e a lápis
Escrevi tudo, e escrevi
Mais o nome do boi Ápis,
Que ele inda me disse ali.

E perguntei: — Meu amigo,
Por que é que a tantos amaina
O tempo, naquele abrigo,
E você anda na faina?

Ele, burro circunspecto,
Asno de boa feição,
Tirou de fino intelecto
Esta profunda razão:

— Se eu estivesse ali junto
Com outros da minha banda,
Você não tinha este assunto
Para a Gazeta de Holanda.

Vá consolado: que importa
Que eu viva cá fora ou lá?
Qualquer porta há de ser porta,
Para sair; vá, vá, vá.

E enquanto assim me dizia
frases que chamava toscas,
Chagas de pancadaria
Iam convidando as moscas.

Lá o deixei como estava,
Em pé, com os olhos no chão,
Parecendo que cismava
Coisas de ponderação.

 

N° 3
(12 de novembro de 1886)

Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

Aqui está, em folhas várias,
Uma coisa que se presta
A notas e luminárias.
Aqui vai a coisa, é esta:

— Na Rua Larga se aluga,
Em bom estado, uma beca. —
Parece uma simples nuga,
E é mais que uma biblioteca.

Eis aqui o que eu diria:
Há nesta beca alugada
Uma ideia que devia,
Há muito andar publicada.

Primeiramente, repare
Que esta beca não se vende
Por preço barato ou caro;
É que, alugada, mais rende.

Comprá-la, era possuí-la;
Alugá-la, é só trazê-la,
Usá-la e restituí-la,
Sem rompê-la ou descosê-la.

Não haverá neste caso
Um sintoma? Não parece
Que a beca tomada a prazo
Uma lição oferece?

Que, sem correr Seca e Meca,
Muita gente delicada,
Assim como traz a beca,
Traz a ciência alugada?

Que, sendo esta leve e pouca,
Apenas meia tigela
Não chega a entornar da boca,
E pouco pedem por ela?

Que, inda mesmo sendo um quarto
De tal tigela, e não meia,
Parece falar de fato
Quem fala de boca cheia?

E que esse pouco, bastando
A que o locatário almoce,
É tolice andar estando
Ciência de sobreposse?

Nada sei; mas ofereço
A toda a pessoa séria
Este problema de preço
E passo a outra matéria.

Escreve um correspondente
Cholera-Morbus chamado:
Conto que proximamente,
Malvólio, estou ao teu lado.

Aqui nesta Buenos-Aires,
Terra de belas meninas...
Que salero e que donaires!
Que formosas Argentinas!

Aqui, por mais que me esbofe,
Levo uma vida vadia;
Esperava um rega-bofe
E vou de pança vazia.

Quando mato uma pessoa,
Surge-me logo uma junta,
Que a declara viva e boa,
Por mais que a deixo defunta.

Negam-me tudo; o meu ato,
O nome, e até a existência;
Chamam-me simples boato
Sem razão nem consistência,

Aborrecido com isto,
Determinei ir-me embora
Por esse mundo de Cristo;
Estou aqui, estou lá fora.

Aí me vou, caro mio,
Só não sei de que maneira,
Se diretamente ao Rio,
Se atravessando a fronteira.

Ir por água é arriscado
A dar com o nariz na porta;
Se achar o porto trancado,
Eu fico de cara torta.

Enfim, veremos... Espero
Que, de um modo ou de outro modo,
Lá, entre; e aqui te assevero
Que com pouco me acomodo.

Saudade, tenho saudade
De outrora. Há mais de trinta anos
Que andei por essa cidade
Com grandes passos ufanos.

Mudou tudo? Existe ainda
O teatro Provisório?
Onde está Lagrua, a linda
Que teve um lapso amatório?

O gordo Tatti? O magano
Ferrari? A Charton divina?
Vive ainda o João Caetano?
Vive ainda a Ludovina?

A Loja do Paula Brito
Mudou de dono ou de praça?
Paranhos, grave e bonito,
Vive ainda? Vive o Graça?

Mora ainda no Rocio
Muita família? O teatro
Tem inda o mesmo feitio?
São ainda os mesmos quatro?

Publica-se inda o elegante
Mercantil? Que faz? Que escreve
Maneco? e o Muzzio? e o brilhante
Alencar de estilo leve?

Vou vê-los todos, e juro
Em honra aos dias passados,
Que ao meu golpe áspero e duro
Serão poupados, poupados...

 

N° 4
(17 de novembro de 1886)

Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

Que será do novo banco?
Interroga toda a gente;
Respondem uns que um barranco,
Outros dizem que uma enchente.

Certo é que andaram milhares
De contos, contos e contos,
Uns por terra, outros por mares
Contos de todos os pontos.

Caíam como sardinhas,
Pulavam como baleias;
Aí belas ambições minhas!
Ai sonho, que me incendeias!

E o Holman, o forte e ledo
Inglês abrasileirado,
Contemplava o Figueiredo,
Que olhava, grave e barbado.

Supunha que muita gente
Viesse; mas gente tanta
Não cuidavam certamente...
Obra abençoada e santa!

Da empresa, ora começada,
Há quem diga maravilhas;
Muita ideia cogitada;
Ouro a granel, ouro em pilhas.

Circulação recolhida,
Câmbio a vinte e seis ou sete,
Mudança da antiga vida,
Outra cara, outro topete.

Ai, sonho! ai, diva quimera!
Pudesse eu entrar na dança!
Ai viçosa primavera!
Ai verde flor da esperança!

Nem eu, nem o meu compadre
Eusébio Vaz Quintanilha,
Que, por mais que corra e ladre,
Nenhum grande emprego pilha.

Que, para matar a fome,
Vem matá-la em minha casa,
Sem poder dizer que come,
Mas que destrói, mata, arrasa.

Pobre Quintanilha! Um anjo!
Coitado! Afinal parece
Que lá teve algum arranjo
Que lhe dá certo interesse.

Há já dias que o não via;
Onde iria o desgraçado?
Quem sabe se morreria,
Faminto, desesperado?

Eis que ontem, quando passava
Pela Rua da Quitanda,
E nos negócios cismava
Desta Gazeta de Holanda,

Lá no outro lado da rua
Uma figurinha para;
Trazia a cabeça nua,
Bacia, opa e uma vara.

Era o pobre... Deu comigo
E veio, em quatro passadas,
Ao seu delicado amigo
Apertar as mãos pasmadas.

— És andador de irmandade?
Aprovo os teus sentimentos
De devoção, de piedade...
Toma um níquel de duzentos.

— Não, Malvólio, não, não ando
Como um andador professo...
— Andador de contrabando?
— Também não; ouve, eu t’o peço.

Esta opa, esta bacia
Alugo a alguma Irmandade:
Dou cinco mil réis por dia,
E corro toda a cidade.

Varia o lucro, segundo
Dou mais ou menos às pernas;
Não escandalizo o mundo
E mato as fomes eternas.

Rende-me oito ou nove, e há dias
De dez mil réis, dez e tanto.
Crês? Já faço economias,
Já deito algum cobre ao canto.

É este o meu banco. O fundo
É variável, mas certo;
Deus dá banco a todo o mundo;
Uns vão longe, outros vão perto.

Eu cá não ando com listas
De ações, nem faço rateio;
Todos são meus acionistas,
Gordo ou magro, lindo ou feio.

Que um só vintém esmolado
Vale no céu muitos contos;
E há muito vintém cobrado...
Vinténs de todos os pontos!”

 

N° 5
(21 de novembro de 1886)

Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

Com franqueza, esta Bulgária
Vai-me esgotando a paciência;
Lembra a ilha Baratária,
Onde, após uma audiência,

Sancho, que naquele dia
Começara a governá-la,
Foi, com muita cortesia,
Levado a uma grande sala.

Tinha uma fome de rato
O governador recente,
E viu prato, e prato, e prato,
Prato de atolar o dente.

Quanto manjar, quanto molho,
Não direi, por mais que diga;
Só a vista enchia o olho...
Restava encher a barriga.

Mas tão depressa acudia
Algum servo respeitoso,
Trazendo-lhe uma iguaria
De cheirinho apetitoso,

Um doutor, que se postara
Ao lado, sem mais demora
Fazia um gesto co’a vara,
E ia-se a iguaria embora.

Afinal, pergunta o Sancho
Que era aquela caçoada.
Responde o doutor, mui ancho,
Que nada, não era nada.

Que, como ele tinha a cargo
A sua saúde e vida,
Cabia-lhe pôr embargo
A uma ou outra comida.

— Bem, então dê-me essas belas,
Maravilhosas perdizes.
— Livre-o Deus de tocar nelas,
Nem de chegar-lhe os narizes.

— Mas, aquele gordo coelho
Espero que me não negue.
— Senhor, o melhor conselho
É que nem sequer lhe pegue.

— Naquele prato travesso
Cuido que há olha-podrida.
— Não coma, por Deus lho peço!
Aquilo espatifa a vida.

Deixe Vossa Senhoria
A cônegos e a reitores
Essa péssima iguaria
Que tanto estraga os humores.

E o pobre Sancho com fome,
Por mais que lhe dê na gana,
Tudo pede e nada come,
Até que se desengana.

Assim anda a tal Bulgária;
Elege, mas não elege,
Pois, como na Baratária,
Há um doutor que a protege.

Este príncipe! — Não presta;
Faz-lhe mal aos intestinos.
— Est'outro? — Escolha funesta.
— Aquel'outro? — Um valdevinos.

Para os seus humores basta
Este da Mingrélia; é moço,
Boa cara e boa casta;
Demais, pertence ao colosso.

E a Bulgária, se há de os braços
Estender e recebê-lo,
Fazendo assim com abraços,
Em vez de a murros fazê-lo,

Timeos Danaos, et dona
Ferentes, pensa consigo;
E com ar de valentona,
Recusa o presente amigo.

Bulgária dos meus pecados,
Imita o meu pobre Sancho,
Que, vendo os pratos negados,
Agarrou um pão a gancho.

Um pão seco e frescas uvas,
Acaba essas longas bodas.
Já tens véu, grinalda e luvas,
Escolhe uma vez por todas.

E, tomando a liberdade
De te chamar D. Amélia
(Ó rima! Ó necessidade!)
Bulgária, escolhe o Mingrélia!

 

Nº 6
(28 de novembro de 1886)

Voilà ce que l’on dit moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

Tu és Cólera, e sobre esta
Doença amiga edifico
A minha igreja, e uma sesta
Perpétua, em ficando rico.

Assim me dizia o Bento
Da Silva Luz, boticário,
Inventor de um cozimento,
Inócuo e pecuniário.

E, vendo que eu o escutara,
Cheio de alegria e riso,
Como alguém que se prepara
A ter igual paraíso,

Quis saber qual fosse a causa
Daquela expressão ridente;
Eu, depois de certa pausa,
Disse-lhe naturalmente:

— Quando cogito em que a peste
Pode entrar por nossa casa,
Cuido no favor celeste
Que trará pendente na asa.

Deu ela entre alienados
De Buenos-Aires, matando
Metade dos atacados,
E nova gente atacando.

Cada telegrama conta
Dois, três, cinco, oito, dez loucos,
Que ficam de mala pronta
E vão deixando isto aos poucos.

Não tarda que o derradeiro
Hóspede saia do asilo
E fique o edifício inteiro
Despovoado e tranquilo.

E calcule agora a soma
De palácios encantados,
Feitos de nácar e goma,
Telhados e destelhados;

Calcule os pássaros feios
De asas longas, longas pernas,
Que enchem por todos os meios
As frias noites eternas;

Calcule as meias ideias
Feitas de meias lembranças,
E a meia luz das candeias,
E a meia flor de esperanças;

E as gargalhadas sem boca,
Ouvidas perpetuamente,
Ora claras, ora roucas,
E as conversações sem gente.

Farrapos de consciência,
Cozidos pelo delírio,
E uma enorme concorrência
De patuscada e martírio;

Calcule agora essa vida
De doidos enclausurados,
De repente interrompida,
E os corpos amortalhados.

Nem sempre a peste é moléstia,
Sacramentos e ataúde;
Aos doidos vale uma réstia
De inesperada saúde.

Por isso é que, quando penso
Naquele monstro terrível,
Acho um benefício imenso,
Que o torna bom e aprazível.

E digo: Oh! abençoado
Destino que tal prescreve!
Que haja ao pé do alienado
A epidemia que o leve!

 

N° 7
(6 de dezembro de 1886)

Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

A lei darwínica é certa
Inda em acontecimentos...
Não fiquem de boca aberta,
Vão vê-lo em poucos momentos.

Há nelas a mesma luta
Pela vida, e de tal arte
A crua lei se executa,
Que é a mesma em toda a parte.

Há seleção, persistência
Do mais capaz ou mais forte,
Que continua a existência,
E os outros baixam à morte.

Demonstro: — O famoso caso
Da escola e pancadaria,
Caso que pôs tudo raso,
Tudo, até a epidemia.

Tal foi ele que, tomando
Todo ou quase todo o espaço,
Foi de um trago devorando
Quanto lhe embargava o passo.

Escapou a Cantagalo,
Por trazer comprido bico,
Unha capaz de matá-lo,
Peito largo e sangue rico.

Mas, por um só que resiste,
Quantos passaram calados
Na penumbra vaga e triste
Dos seres mal conformados!

Cito dois — um pequenino,
Um telegrama celeste,
Oficial e argentino
Sobre os destroços da peste.

Dava os óbitos do dia,
De modo tão encoberto,
Que o duvidoso morria
E só escapava o certo.

— Rua tal: um duvidoso,
Outro duvidoso ao lado...
Pois, com ser tão engenhoso,
Foi lido e não foi guardado.

Segundo caso: o de Arantes,
Arantes, a testemunha,
Que os juízes implicantes
Cuidam de pegar à unha.

Porquanto há necessidade
De ouvir-lhe a palavra de ouro,
Para saber a verdade
Do que houve no Matadouro.

Seja pró ou seja contra
Essa testemunha rara,
Onde é, onde é que se encontra?
Onde vive? Onde é que para?

Mandou-se às partes remotas
Da cidade, e logo ao centro;
Foram ao fundo das botas
E não o acharam lá dentro.

Em Minas? Vá precatório,
Rápido, para intimá-lo...
Esforço inútil e inglório!
Voltou sem lograr achá-lo.

Não sendo encontrado em Minas
Nem pelas matas cerradas,
Foram às ilhas Malvinas,
Ao Congo e ao reino das Fadas.

E bradaram-lhe: — Ó Arantes,
Chamado como quem sabe
O nome aos bois pleiteantes,
E o mais que no caso cabe;

Arantes, onde respiras?
Onde estás? Onde te escondes?
Na trama das casimiras?
Chamo-te e não me respondes.

Talvez no centro da Arábia,
Talvez na Rua da Ajuda,
Talvez estudando a Fábia,
Talvez adorando a Buda.

Donde quer que estejas, corre,
Acode ao nosso chamado:
Vem, que, se não corres, morre
O processo começado.

E passou esse episódio
Sem fazer maior barulho
Do que as saúdes de um bródio
Na Gávea ou no Pedregulho.

Porque nos próprios eventos
A lei darwínica é certa.
Provei-o em poucos momentos,
Não fiquem de boca aberta.

 

Nº 8
(14 de dezembro de 1886)

Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”

E disse o Diabo: — Fala,
Que queres ser nesta vida?
Antonino ou Caracala?
Capucho ou jardins de Armida?

Escolhe, e verás, Malvólio,
Tudo o que quiseres; pede
Um sólio, e terás um sólio,
Pede um culto, e és Mafamede.

E eu, respondendo-lhe, disse
Que nem tronos nem altares;
Que, na minha mandriice,
Tinha sonhos singulares.

Ou antes, um sonho apenas,
Um só desejo, um só, único,
Mais velho que a velha Atenas,
Mais velho que um vintém púnico.

Não era ter a coroa
Do Egito nem da Bulgária,
Nem ver as moças de Goa,
Nem ter os beijos da Icária,

Nem dormir o dia inteiro
Em tapetes persianos,
Sentindo o vento fagueiro
De numerosos abanos.

Digo abanos meneados
Por muitas damas formosas,
Feitos de fios delgados
De palma, e plumas, e rosas.

Nem comer em pratos de ouro
Figos secos da Turquia,
Acompanhados do louro
Néctar que há na Andaluzia.

Nem possuir as estrelas
Que são tão minhas amigas,
Para um dia convertê-las
Em meias-dobras antigas.

Pois tudo isso, e o mais que pode
Entrar no mesmo cortejo
Duvido que se acomode
Ao meu íntimo desejo.

Sabes tu o que eu quisera?
Quisera ser cartomante,
Dizer que espere ao que espera,
E dizer que ame ao amante.

Saber de coisas perdidas,
Saber de coisas futuras,
De verdades não sabidas,
De verdades não maduras.

Se uma senhora é amada,
Saber de coisas futuras,
De verdades não sabidas,
De verdades não maduras.

Se uma senhora é amada,
Ou se há lá na costa mouras;
Se a costureira — casada ­—
Chega a depor as tesouras.

Quem é certo moço que anda
De chapéu branco e luneta,
E algumas vezes lhe manda
Lembranças por uma preta.

Se a mulher de um diplomata
Vive enredando as pessoas...
Se há de esperar certa data...
Se as filhas hão de ser boas...

Onde para uma pulseira,
Um recibo, um cachorrinho...
Se a neta da lavadeira
Bifou algum colarinho...

Se há de morrer de um inchaço
Que traz na perna direita...
Ou se a luxação de um braço
Pode deixá-la imperfeita...

Tudo isso, e o mais que não cabe
Em verso rápido e breve,
E que a cartomante sabe,
Sabe, conta, e não escreve.

É o meu desejo. E tenho
Que, se essa coisa me ensinas,
Serei, com o meu engenho,
O doutor destas meninas,

Que a nós outros coube em sorte
Política e loteria,
Coisas que têm, como a morte,
Mistério e melancolia.

Mas que hão de fazer as damas
Com a alma incendiada
Das mesmas secretas flamas
E ao mesmo abismo inclinada?

Procuram timidazinhas
Aquelas claras vivendas
E crescem as adivinhas,
Não dão para as encomendas.

Pois se tu, Diabo amigo,
Me pões capelo de mestre,
Juro-te que dás comigo
No paraíso terrestre.

Cá virão as Evas novas,
Inquietas, desordenadas,
Pedir-me, com ou sem provas,
As verdades mascaradas.

E olha que farei no ofício
Notáveis melhoramentos,
Tapetes, largo edifício,
E o preço — mil e quinhentos.

 

N° 9
(21 de dezembro de 1886)

Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

À Cármen Silva, à rainha
Da Rumânia, à delicada,
Egrégia colega minha,
Pelas musas laureada,

Pobre trovador do Rio,
Cantor da pálida lua,
Esta breve carta envio,
E aguardo a resposta sua.

Note bem que lhe não falo
Das suas lindas novelas,
Nem do plácido regalo
Que nos dá com todas elas.

Não, augusta e bela moça,
Não é prosa nem poesia
O meu assunto... Ouça, ouça,
Verá que é sensaboria.

Cá se soube que um partido,
Que há muito não dava cacho,
Após combate renhido,
Tomou ao outro o penacho.

Fez-se isso eleitoralmente;
A gente que não queria
O partido então vigente,
Mudou de cenografia.

Se fez bem ou mal, lá isso
É com ela; a culpa inteira
Pertence-lhe de o feitiço
Virar contra a feiticeira.

Mas, como aqui neste canto,
Não há tal eleitorado,
Que faça nunca outro tanto,
E pense em coisas do Estado;

E também porque isto, às vezes,
Está em qualquer coisa (adágio,
Que herdamos dos portugueses,
E tem o nosso sufrágio),

Lembrou-me que poderia
Obter, por seu intermédio,
Para uma tal embolia
O apropriado remédio.

Serão pastilhas? xarope?
Pílulas de qualquer coisa?
Um cozimento de hissope?
Fricções de madeira e lousa?

Seja isto ou seja aquilo,
Peço a Vossa Majestade
Uma amostra, um frasco, um quilo
Para ensaiar na cidade.

Porque, como ora se trata
De uma operação sabida,
Que a gente que se maltrata
Torna a pôr amada e unida,

Operação que dissolve
Os grupos mais separados,
E rapidamente absolve
Todos os ódios passados;

Quisera, logo que esteja
Toda a obra recomposta,
E esta liberal igreja
De novo aos fiéis exposta,

Quisera ver se, tomando
A droga rumaica um dia,
Chegaríamos ao mando
Pela mesma e larga via.

De outro modo ficaremos
Nestas náuticas singelas
De largar o leme e os remos
E abrir à fortuna as velas.

Eia, pois, augusta musa,
Mande-me o remédio santo,
E não vos concedo escusa;
Quero tirar o quebranto.

Quero ver se, finalmente,
Depois de tão larga espera,
A nossa eleitoral gente
É gente, não é quimera.

Para que depois se queixe
De si e das culpas suas,
E por uma vez se deixe
De murmurar pelas ruas.

Vede, flor das maravilhas,
Como esta alma pede e roga:
Mandai-me as vossas pastilhas,
Pílulas ou qualquer droga.

 

Nº 10
(10 de janeiro de 1887)

Voilà ce que l’on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

Depois de férias tão longas;
Tão docemente cumpridas,
Ó musa, minhas candongas,
Voltemos às nossas lidas.

Assim faz a Pátria, às vezes,
E é certo que não estoura;
Descansa um mês ou dois meses
O nosso C. B. de Moura.

E a Pátria, meia enfadada
Daquelas extensas férias,
Volta mais fortificada
Aos combates e às pilhérias.

Eia, pois, minha gorducha,
Vê que recomeça a aurora,
Puxa daqui, puxa, puxa,
Vamos trabalhar lá fora.

E antes de tudo, inclinando
O gesto a todos os lados,
Vai a todos desejando
Plácidos dias folgados.

Desejarás uma boa
Vereança aos cariocas,
Que se não esgote à toa,
Em longas brigas e mocas;

Que eleja pacatamente,
Sem atos tumultuários,
O seu vice-presidente
E os restantes comissários.

Pouco calor, pouca chuva,
Nenhuma peste que assole,
Algum vinho feito de uva,
E menos gente que amole.

Grandes bailes mascarados
E passeatas nas ruas,
Câmaras de deputados
Sem as discussões tão cruas.

Boatos, sobre boatos,
De modo que quem passeie
Por esses bondes ingratos
Tenha coisa que recreie.

E mais que tudo, meu anjo;
Anjo meu do meu sacrário,
Desejo um bonito arranjo
Ao nosso estafado erário.

Não sei se leste a mensagem
De Cleveland, um documento
De americana homenagem
Lá, para o seu parlamento.

Pois conta-se aí (por esta
Luz do céu minh'alma jura
Que não é peta funesta,
Mas pura verdade, pura);

Conta-se que a renda é tanta
Que urge cortar-lhe os babados,
Que é demasiada a manta
Para tão vastos Estados.

Que, se vão nessa carreira,
Pagam aqueles senhores
Em breve a dívida inteira,
E ficarão sem credores.

Depois vem maior excesso
De renda, e será tamanho
Que não haverá processo
De o dar a melhor amanho,

Porque ou fica no tesouro,
Inútil, mudo e parado,
Ou saem carradas de ouro
Para os delírios do Estado.

Ora bem, estes fenômenos
Dados como desastrosos,
Terríveis paralipômenos
De grandes livros lustrosos,

Hás de pedi-los, amiga,
Mas pedi-los de maneira
Que uma segunda barriga
Coma sem dor da primeira.

Es decir, que aquela caixa
Que ronca de tanta altura,
Se quiser ficar mais baixa
Tem receita mais segura:

Pegue em si, tire metade
E verá como lhe pego,
Pego-lhe com ansiedade,
Com ansiedade de cego.

E digo ao Tesouro nosso
— Amigo, aqui tens dinheiro;
Precisas deles, aqui posso
Dá-lo às tuas mãos inteiro.

Vê tu que singular obra
A deste mundo peralta,
Geme um — pelo que lhe sobra,
E outro — pelo que lhe falta.

 

Nº 11
(20 de janeiro de 1887)

Voilà ce que l’on dit moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

Coisas que cá nos trouxeram
De outros remotos lugares,
Tão facilmente se deram
Com a terra e com os ares,

Que foram logo mui nossas
Como é nosso o Corcovado,
Como são nossas as roças,
Como é nosso o bom-bocado.

Dizem até que, não tendo
Firme a personalidade,
Vamos tudo recebendo
Alto e malo, na verdade.

Que é obra daquela musa
Da imitação, que nos guia,
E muita vez nos recusa
Toda a original porfia.

Ao que eu contesto, porquanto
A tudo damos um cunho
Local, nosso; e a cada canto
Acho disso testemunho.

Já não falo do quiosque,
Onde um rapagão barbado
Vive... não digo num bosque,
Que é consoante forçado,

Mas no meio de um enxame
(É menos mau) de cigarros,
Fósforos, não sei se arame;
Parati para os pigarros;

Café, charutos, bilhetes
Do Pará, das Alagoas,
Verdadeiros diabretes,
E outras muitas coisas boas.

Mas a polca? A polca veio
De longas terras estranhas,
Galgando o que achou permeio,
Mares, cidades, montanhas.

Aqui ficou, aqui mora;
Mas de feições tão mudadas,
Que até discute ou memora
Coisas velhas e intrincadas.

Pusemos-lhe a melhor graça,
No título, que é dengoso,
Já requebro, já chalaça,
Ou lépido ou langoroso.

Vem a polca: Tire as patas,
Nhonhô! — Vem a polca: Ó gentes!
Outra é: — Bife com batatas!
Outra: Que bonitos dentes!

—Ai, não me pegue, que morro!
— Nhonhô, seja menos seco!
— Você me adora? — Olhe, eu corro!
— Que graça! — Caia no beco!

E como se não bastara
Isto, já de casa, veio
Coisa muito mais que rara,
Coisa nova e de recreio.

Veio a polca de pergunta
Sobre qualquer coisa posta
Impressa, vendida e junta
Com a polca de resposta.

Exemplo: Já se sabia
Que esta câmara apurada,
Inda acabaria um dia
Numa grande trapalhada.

Chega a polca, e, sem detença,
Vendo a discussão, engancha-se,
E resolve: — Há diferença?
— Se há diferença, desmancha-se.

Digam-me se há ministério,
Juiz, conselho de Estado,
Que resolva este mistério
De modo mais modulado.

É simples, quatro compassos,
E muito saracoteio,
Cinturas presas nos braços,
Gravatas cheirando o seio.

— Há diferença? diz ela.
Logo ele: — Se há diferença,
Desmancha-se; e o belo e a bela
Voltam à primeira avença.

E polcam de novo: — Ai, morro!
— Nhonhô, seja menos seco!
— Você me adora? — Olhe, eu corro!
— Que graça! Caia no beco!

Desmancha, desmancha tudo,
Desmancha, se a vida empaca.
Desmancha, flor de veludo,
Desmancha, aba de casaca!

 

N° 12
(5 de fevereiro de 1887)

Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

Quem diria que o Cassino,
Onde a fina flor se ajunta,
Ficaria tão mofino,
Que é quase coisa defunta?

Aqueles lustres brilhantes,
Que viram colos e braços,
Pares e pares dançantes,
E os ardores e os cansaços;

Que viram andar em valsas,
Quadrilhas, polcas, mazurcas,
Moças finas como as alças,
Moças gordas como as turcas;

Que escutaram tanta coisa
Falada por tanta gente,
Que eternamente repousa,
Ou geme velha e doente;

Que viram ir tanta moda
De toucados e vestidos,
Vestidos de grande roda,
E vestidos escorridos;

Ministros e diplomatas,
E outros hóspedes ilustres,
E sábios e pataratas...
Ó vós, históricos lustres,

Que direis vós desse estado,
Cassino a beira de um pego;
Melhor direi pendurado
De um prego, lustres, de um prego?

Deve até o gás, aquele
Gás que encheu os vossos bicos,
Que deu vida, em tanta pele,
A tantos colares ricos.

Deve ordenados, impostos,
E gastos tão incorretos,
Que até não foram expostos
Por diretores discretos.

E vede mais que há ruínas
No edifício, e é necessário
Colher muitas esterlinas
Para torná-lo ao primário.

E há mais, há a ideia nova
De alguns acrescentamentos,
É pôr o Cassino à prova
Com outros divertimentos.

Oxalá que a coisa saia
Como se deseja. Entanto
Posto que a reforma atraia,
Acho outro melhor encanto.

Não basta que haja bilhares,
Conversações e leituras
Partidas familiares,
E algumas outras funduras.

Preciso é coisa mais certa,
Coisa que dê gente e cobres,
Disso que chama e que esperta
Vontades ricas e pobres!

Não digo elefante branco,
Nem galo de cinco pernas,
Nem a ossada de um rei franco,
Nem luminárias eternas.

Mas há coisa que isso tudo
Vale, e vale mais ainda,
Coisa de mira e de estudo,
Coisa finda e nunca finda.

Que seja? Um homem. E que homem?
Um homem de Deus, um Santos,
Que entre as dores que o consomem
Não esquece os seus encantos.

Esse general que estava
Há pouco em Paris, e voa
Quando apenas se curava.
Voa por mais que lhe doa,

Voa à pátria, onde uns pelintras,
A quem confiara o Estado,
Para ir ver as suas Cintras,
E tratar-se descansado,

Entenderam que podiam
Passos de pouco préstimo
Governar, e que o fariam,
Como seu, o que era empréstimo.

Homem tal, que mais não sente
Que a sede do eterno mando,
Que, inda prostrado e doente,
Quer morrer, mas governando,

Olhe o Cassino, valia
Algum esforço em pegá-lo
No dia, no próprio dia
Em que passasse, e guardá-lo.

Pois tão depressa a Assembleia
Oriental e aterrada
Soubesse disso — uma ideia
Seria logo votada.

Vejam que ideia e que tino:
Que anualmente o seu tesouro
Pagasse ao nosso Cassino
Trezentos mil pesos de ouro,

Quando à velha sociedade
Particular encomenda
De guardar nesta cidade
Aquela famosa prenda.

Com isso, e mais o cobrado
Às pessoas curiosas,
Passavas de endividado,
Cassino, a maré de rosas.

 

N° 13
(24 de fevereiro de 1887)

Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”

Há tanto tempo calado...
E sabem por quê? Por isto:
Pelo número fadado
Da ceia de Jesus Cristo.

Número treze. Com esta
São treze as minhas Gazetas.
Numeração mui funesta,
Cheira a cova e a calças pretas.

Há, porém, quem afiance
Que treze é dúzia de frade.
É opinião de alcance,
Que anima e que persuade.

Contudo, em uma pessoa
Sendo supersticiosa,
Antes que na coisa boa,
Crê na coisa perigosa.

Daí veio esta comprida
Vadiação; era medo,
Medo de perder a vida
Cedo, mais que nunca cedo.

Lembra-me inda certo dia,
Quando eu tinha treze anos;
Jantamos em companhia
Treze rapazes maganos.

Um acabou reprovado
Na Escola de medicina;
Outro está bem mal casado;
Outro teve pior sina.

Pior, digo, e em muitos pontos;
Geria a casa dos Bentos;
Fugiu, levando dez contos,
Em vez de levar quinhentos.

Outro é político, e anda,
Ora triste, ora sinistro;
Dizem-me que ele tresanda
Vontade de ser ministro.

Em dia de crise, voa
A meter-se em casa, à espera
De alguma notícia boa;
Espera que desespera.

Só sai quando o gabinete
Fica de todo formado,
E jura pelo cacete
Que há de pô-lo derreado.

Bufa, espuma. Abrem-se as câmaras,
E o meu companheiro e amigo
Aguarda o tempo das tâmaras,
E torna ao seu voto antigo.

Outro daqueles rapazes
Procura sinceramente
Entre os meios mais capazes
De encher a barriga à gente.

Um que seja imediato
E de graúdas prebendas,
Ou testamento, ou barato...
Já não há pr'as encomendas!

Cá por mim, tive um inchaço
Na perna esquerda; diziam
Que essa doença era andaço,
E até que muitos morriam.

Sarei; mas foi sobre queda
Coice. A morte tão sombria.
Que tantas casas depreda,
Poupou-me para este dia.

Pois, minha dona, aqui fico,
Já daqui me não arranco,
Achei um recurso rico:
Deixo este número em branco.

Não dou Gazeta nem nada;
Não falo em coisa nenhuma,
Gouvea, moção, espada;
Em suma, de nada, em suma.

E tanto mais ganho nisto
Que, como se fala em rolo,
Podia um lance imprevisto
Tirar-me o melhor consolo.

Que é este: olhar para a rua
Cheia de coisas chibantes,
E dizer — Feliz a lua...
Se é que não tem habitantes.

 

N° 14
(7 de março de 1887)

Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

Se eu fosse aquele Custódio
Gomes ou Bíblia chamado,
Que não deu esmola ou bródio,
Nem mimos por batizado,

Pela luz que me alumia,
Juro, e mais que nunca, juro,
Que pesaroso olharia
Para este processo escuro.

Daria grandes palmadas,
Ao ler tantas testemunhas,
Tantas coisas encontradas,
Tantas mãos e tantas unhas.

Pesquisas de parte a parte,
E um testamento que é tudo:
Ora forjado com arte,
Para uso e para estudo,

Ora verdadeiro e filho
Do próprio autor sepultado,
Que ajuntara tanto milho
Para não vê-lo espalhado.

Audiências e audiências,
Nomes, nomes, nomes, nomes,
Pendências sobre pendências;
Fosse eu o Custódio Gomes,

Suspiraria: —Bem tolo
Que fui eu em prepará-lo,
Esse rico e imenso bolo,
Se não tinha de papá-lo.

Que ajuntei, dia por dia,
Vintém a vintém suado,
Para deixar tal quantia
De dinheiro amontoado;

Que, quando havia desmancho
Na casa de um inquilino,
Em vez de dar esse gancho;
Sabia intrépido e fino,

Armado de cal, tijolo,
Colher e as coisas restantes,
E lograva recompô-lo,
Melhor do que estava dantes.

Que, se vagava algum prédio
Dos meus, ia ver se tinha
Uma taboa p’ra remédio,
Talha ou taco de cozinha,

Qualquer coisa que algum dia
Valesse às necessidades...
Com pouco e pouco (dizia)
Fazem-se as grandes cidades.

Comi o pão que o Diabo
Amassou; fui parco e ativo,
Trazia as botas no cabo,
Mas a mão firme, o olho vivo.

E no fim de tanta lida,
Não sei se boa ou má sorte,
Saí do rumor da vida,
Sem olhar a paz da morte.

Todos os dias cá leio
Impresso o meu triste nome;
Vejo escrito que fui meio
Maluco e unhas de fome.

A minha vida sem ócios,
Gente de casa e costumes,
E todos os meus negócios...
Já dá para encher volumes!

Ah! se em vez de andar c'o a sela
Na barriga a vida inteira,
Vida de meio tigela,
De poupança e de canseira,

Vivesse à larga, comesse
Deliciosas viandas,
E cauteloso bebesse
Vinho de todas as bandas;

Roupa fina, o meu teatro,
Uma ou outra vez berlinda;
Moças, o diabo a quatro
Até a existência finda;

Quem se lembraria agora
De mim? dormia esquecido,
Sem chegar a voz sonora
Dos prelos ao meu ouvido.

Convivas e devedores,
Pode ser que se lembrassem
Das ceias e dos favores,
E alguma vez me louvassem;

Mas tão baixinho e tão pouco
Que a voz não me chegaria,
E eu, que acabei meio louco,
Surdo e mudo acabaria.

 

N° 15
(20 de março de 1887)

Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

Câmara Municipal
Sem ter regimento interno!
Exclamou, com ar paterno
Vereador pontual.

Sem um acordo fraterno,
Um papel, um manual,
Certo, acabaremos mal,
Faremos disto um inferno.

Digo-vos que é usual,
Em qualquer lugar externo
Haver regimento interno
Para evitar todo o mal.

Em tom sossegado e terno
Diz outro municipal
Que o pau (físico ou moral)
É regime mais superno.

— Há de haver algum sinal
Aqui, pelo lado interno,
Do efeito vivo e fraterno
Desse estatuto formal.

Palavras (é dito eterno)
Às sopas não trazem sal;
Quero ação, ação real,
Venha do céu ou do averno.

E que outra menos verbal
Que a ação do cacete alterno,
Não como um vento galerno,
Porém, como um vendaval?

Se, assim amparado, externo
Meu parecer cordial,
Para que me serve o tal
Regimento de caderno?

Saiba a câmara atual
Que, se eu aqui não governo,
Tenho este dever paterno
De a não fazer trivial.

Paterno disse? Materno;
Quero outro tom pessoal.
Fique-lhe o tom paternal
Ao colega mais moderno.

Sim, o pau, é pau real
Venha do céu ou do averno,
E palavras (dito eterno)
Às sopas não trazem sal.

Não sei que disse o paterno
Vereador pontual;
Eu, por mim, prefiro a tal
Um copo do meu falerno.

Não que seja um casual,
Ruim, triste e subalterno
Modo de encontrar em erno
O consoante final,

É falerno e bom falerno
Sorrir da municipal
Que vive tant bien que mal,
Sem ter regimento interno.

Ou esse escrito legal
Que o outro chamou caderno,
Para o bom viver paterno
Vale tudo ou nada val.

Se não, por que é que o superno
Parlamento nacional
Conserva um trambolho igual,
Quer de verão, quer de inverno?

Se sim, como é curial,
Que não tenha esse uso interno,
Corpo tal, que vive alterno,
Conservador, liberal?

Relevem se um subalterno
Entrou nesse cipoal...
Olha a taça de cristal,
Leitor, vamos ao falerno!

 

N° 16
(27 de março de 1887)

Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

Coisa má ou coisa boa
Traz vantagem boa ou má;
O incêndio da Gamboa
Neste aforismo entrará.

Não fosse aquele medonho
Desastre que ali se deu,
E do qual nada aqui ponho,
Pois que o leitor tudo leu,

Não saberia eu agora,
Pelas narrações que vi,
Uma notícia que chora,
E que — essa, sim — ponho aqui.

Foi quando a água, correndo
Pela rua e para o mar,
Ia ardendo, ardendo, ardendo,
Ardendo de amedrontar.

Então li que os habitantes
De um beco, com tal horror
Viram as águas flamantes,
Arrastando a morte e a dor,

Que pensaram em deixá-lo,
O beco em que há muito estão,
Onde a morte, a fogo e a estalo,
Punha em gelo o coração.

Esse beco, o beco escuso,
O beco que nunca vi,
Beco de tão pouco uso,
Que nunca o nome lhe li,

Chama-se do conselheiro
Zacharias; leiam bem.
E vá, reflitam primeiro,
Como eu refleti também

Ó meu douto Zacharias!
Meu velho parlamentar!
Ó mestre das ironias?
Ó chefe ilustre e exemplar!

Quantas e quantas batalhas,
Deste contra iguais varões!
E de quantas, quantas gralhas,
Tiraste o ar de pavões!

Sólido, agudo, brilhante,
Sincero, que vale mais,
Depois da carreira ovante,
Depois de glórias reais,

Deram-te um beco... Olha, um beco...
De tantas coisas que dar,
Coube-te a ti, homem seco,
Triste beco ao pé do mar.

Não digas que são mofinas
Estas nossas distinções
Pintadas pelas esquinas;
Esquinas fazem barões.

Não cuides que, nesta lida
Em que andamos, tem de ser
Viva ainda a tua vida,
Escrita ou por escrever.

Logo, era uma honrosa graça
Se entrasses no grande rol
Com uma rua, uma praça,
Bem à vista, bem ao sol.

Mas, não. De quanto valias,
Agora nada valeis.
Há o beco Zacharias,
E a Rua Malvino Reis.

Daqui, amigo, derivo
Esta antiga e estranha flor:
Mais vale súdito vivo
Que enterrado imperador.

 

Nº 17
(6 de abril de 1887)

Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

Temos nova passarola,
De grandes asas escuras,
Mexidas por certa mola
Que dá sono às criaturas.

Chama-se — não sei maneira
De pôr este nome em verso...
Palavra, é grande canseira,
Tão duro é ele e reverso.

Deito sílabas de lado,
De outro sílabas arranco,
Trabalho desesperado
E fica o papel em branco.

Vá lá: medicina hipnótica,
Custou, mas saiu... Parece
A coisa um tanto estrambótica,
E mais se a gente adoece.

Notem bem — é medicina,
Posto a sugestão opere;
Cá o meu bestunto opina
Que um nome de outro difere.

Há em sugestão um jeito
Teórico feio, enigmático;
Mas medicina é perfeito,
Perfeito, rápido e prático.

Quando aqui há poucos anos,
Já me não lembra em que dia,
Deu entrada entre os humanos
A exata dosimetria,

Disse eu: Invenção potente!
Perfeição do formulário!
Consolação do doente!
Fortuna do boticário!

Mas daí a pouco ouvia
(Outro inimigo da métrica)
Em vez de dosimetria,
Medicina dosimétrica.

E isso que cuidava que era
Farmácia, era uma doutrina.
Uma escola em primavera
Contra a velha medicina.

Não digo que o sugestivo
Hipnotismo também seja
Ária sobre outro motivo,
Nem igreja contra igreja.

Digo... Não sei como diga...
Não sei como diga... Ai, musa
Do diabo e de uma figa!
Você ri! você abusa!

Digo (vá) digo que, quando
Cuidava que esta matéria,
Da qual não estou mofando,
Que é séria, três vezes séria,

Não pelas razões do grave
Apóstolo, que cogita
Não fazer dela uma chave
P'ra prender moça bonita;

Como se amor não tivesse
Outra sugestão nativa,
Que, quando menos parece,
Faz arder o esquivo e a esquiva.

Quando (como ia dizendo)
Supunha que a academia,
Por sua vez, lendo e vendo,
Ia explicar a teoria;

Que visse os graves problemas
Envoltos na descoberta,
E como antigos sistemas
Passam a questão aberta;

Que, como órgão da ciência,
Examinasse, estudasse
A vontade e a consciência
Pela novíssima face;

Que visse como a pessoa
Humana se multiplica,
Vai a Túnis e a Lisboa,
E cá reside, e cá fica;

Em vez disso, a academia
Dá-lhe duas passadelas
De escova, e manda a teoria
Curar as nossas mazelas.

Isto é que me põe os braços
Caídos, e a boca aberta...
E já daqui vejo os passos
Desta nova descoberta.

Atrás dos homens sabidos
Virão os que nada sabem,
E gritarão desabridos
Até que os astros desabem.

Chegaremos aos cartazes
E aos anúncios de vinhetas,
Pílulas Holloway capazes
De dar beleza às caretas.

Ora, há trinta anos havia
Xarope que se chamava
Do Bosque, e tanto valia,
Que tudo e algo mais curava.

Hoje, esse licor exótico
Não tem uso, interno ou externo...
Receio que o sono hipnótico
Chegue a tudo... e ao sono eterno.

 

N° 18
(13 de maio de 1887)

Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

Não neguei Bahia ou Minas,
Nem nunca fora capaz
De negar Crato ou Campinas...
Neguei, é certo, Goiás.

Pois que Goiás eu supunha
Uma simples convenção,
Sem existência nenhuma,
Menos inda que ilusão.

E achava uma prova disto
Naquele caso sem par,
Nunca dantes, nunca visto,
Nem por terra nem por mar:

O caso do presidente
Que por dez anos ficou
Presidenciando... Ó gente!
Dez anos! Quem tal sonhou?

Dez meses, vá; é costume,
E ninguém pode exigir
Que um homem perca o chorume
A trabalhar e a delir...

Ou, se é lícito em matéria
De tanta ponderação
Tão avessa ao chasco e à léria,
Ter alguma opinião,

Digo que nem dez semanas...
Dez dias podia ser.
Traduziria em bananas
O chegar, ver e vencer.

Não se impõe aos nossos climas
Ars longa... É abreviar,
Como eu abrevio as rimas;
Não coser, alinhavar.

Quem podia, em nossa terra,
A não ser entre galés,
Como os comuns de Inglaterra?
Trabalhar dez horas, dez?

Os nossos comuns gastaram
Três dias em eleger
Mesa e comissões; e andaram
Perfeitamente, a meu ver.

Não vamos crer, porque temos
Sistema parlamentar,
Que só copiar devemos
Os costumes de além-mar,

Mas, voltando à vaca fria...
Que vaca? Onde íamos nós?
Que diabo é que eu dizia?
A digressão, vício atroz.

Não era a dívida, creio,
Lamberti chamada, uns mil
Contos de papo e recheio,
Contos ou contões com til.

Também não era o desfalque
Do Recife... ai, uma flor
De esperanças... ai, não calque,
Não calque nisso, leitor!

Eu, que tinha o meu bilhete,
Pronto para enriquecer,
Estou como se um cacete
Me houvesse dado a valer.

Mas, com todos os diabos,
Que era então? Não eras tu,
Nariz dos grandes nababos;
Nem tu, céu de Honolulu.

Ah! Goiás... Goiás existe;
E tanto que, a vinte e dois
De março, saiu um triste
E longo bando de grous,

Como os de que fala o Dante,
Que van cantando lor lai;
Mas cá o pio ora ovante,
Era só: quebrai, quebrai!

Um dos grous é delegado,
Outros dizem que juiz;
E tudo foi arrasado,
Ou ficou só por um triz.

Defuntos, lavras do Abade,
Mulheres, que ora gemeis
De dor e necessidade,
Justiça esperar deveis.

Mas eu daquela ocorrência
Tiro uma lição vivaz:
Goiás tem certa a existência,
Goiás existe, Goiás.

 

N° 19
(12 de junho de 1887)

Voilà ce que l’on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

Parece que há divergências
Entre câmara e senado;
Comparam-se as influências,
Fala-se em patriciado.

Soube disso ultimamente
Pelas folhas... Pelas folhas
Sabe tudo toda a gente,
Votos, lãs, óbitos, rolhas.

E, antes de ir ao parlamento,
Direi que soube por elas
Negócio de algum momento,
De varões e moças belas.

Li que uma sociedade,
Sociedade Protetora
Dos Animais da cidade
(Ó minha Nossa Senhora!)

Ia dissolver-se, e dava
A razão do ato; era, em suma,
Que nenhum esteio achava
Nas leis nem em parte alguma.

Ora, eu que me ri, há meses,
De vê-la, toda capricho,
Falar de si muitas vezes
E mui rara vez de um bicho,

Injusto fui. Ora o vejo,
E confesso os meus remorsos.
Não fiz justiça ao desejo
Dela nem aos seus esforços,

Nem também principalmente
À sua audácia provada
De falar do bruto à gente,
Sem ser para bordoada.

Cuidar de cães... Ter piedade
De um triste e magro orelhudo,
Que arrasta pela cidade
Carroça, este mundo e tudo;

Isto a sério, isto sem medo
Do riso de outras pessoas;
Fazer disto ofício ledo,
Pôr isto entre as ações boas;

Quando é certo que cachorro,
Nem burro, cavalo ou gato,
Não sabem de tal socorro,
Nem dão charanga ou retrato;

Trabalhar sem recompensa
Imediata e tangível,
Não é de gente que pensa,
É maluquice visível.

Entretanto, a sociedade,
Depois de pensar uns dias,
Fica, e não se persuade
Que entra em baldadas porfias.

Baldadas e generosas...
Fique-lhe este prêmio, ao menos:
Espalha as mãos dadivosas
Aos pequenos mais pequenos.

Mas, voltando à vaca fria:
Li que a câmara conhece
No senado a primazia,
E se dói, e se aborrece.

Não tédio em dar, a ponto
De brigar abertamente;
Faz com tristeza o confronto
Sem magoar a outra gente.

Quando muito, ouve calada,
Alguma palavra nua,
E confessa encalistrada
Que ou cede ou vai para a rua.

Busca-se agora um remédio,
Alguma coisa que faça
Cessar esse amargo tédio...
Aqui lho trago de graça.

Deu-mo um espírito agudo,
Que também é deputado,
Varão conspícuo e sisudo,
Não sei se desanimado.

Droga fácil e sumária,
Que não traz dor, mas delícia;
É fazer da temporária
Uma coisa vitalícia.

Então, sim; iguais as damas,
Serão iguais os vestidos,
Iguais as perpétuas chamas
Nos peitos endurecidos.

Não respondi à pessoa
Que isto me dizia, nada;
Se a ideia é ruim ou boa,
Aí a deixo estampada.

 

N° 20
(18 de junho de 1887)

Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

Rosa de Malherbe, ó rosa
Velha como as botas velhas,
Que foste grata e cheirosa,
E ora desprezada engelhas;

Rosa de todos os vasos,
De todas as mãos humanas,
Trazida a todos os casos,
Com lírios e com bananas;

Rosa trivial e chocha,
Pior que as mal fabricadas,
Menos que rosa, uma trouxa
De folhas esfarrapadas,

Não por má, não que não prestes,
Não que não sejas ainda
A mesma rosa que deste
Vida e cor à estrofe linda,

Mas porque é nosso costume,
Se achamos um dito a jeito
Tirar-lhe todo o chorume
Até deixá-lo desfeito.

Às vezes, menos que um dito,
Uma locução somente,
Um verbo novo ou bonito,
Pelintra ou coisa decente...

Vagabundo é que não anda;
Terá tanto e tanto emprego
De salão ou de quitanda
Que nunca achará sossego;

Até que lá vem um dia,
Em que o infeliz surrado,
Gasto, podre, sem valia,
Ao lixo é abandonado.

Lá vou eu buscar-te, ó rosa
De Malherbe; é necessário
Fazer citação dengosa
Num caso extraordinário.

Não o caso pavoroso
Do sindicato, alta e baixa.
Negócio tão ponderoso
Que acabou quebrando a caixa.

Demais, ouço tais notícias,
Tantas coisas segredadas,
Que só pegando em milícias
Para rimar com pancadas.

Posto que essa rosa bela
Viveu, como as outras rosas,
Um dia, e sem mais aquela
Perdeu as folhas viçosas.

Não trato dessa, mas trato
Da rosa legislativa,
Nascida sem aparato,
Morta quando apenas viva.

Foi o senador Uchoa
Que lhe deu vida e nascença,
Pareceu-lhe a ideia boa,
Propô-la sem mais detença.

Em verdade, não contava
Ninguém com tal aditivo;
Foi como uma vaca brava
Ao pé de um par pensativo.

De mais a mais, sem discurso,
Modesto, calado e manso;
Mal comparando, era um urso
Metido em pernas de ganso.

Urso, embora parecesse
Ao golpe das mãos humanas,
Podia ser que vivesse
Uma, duas, três semanas.

Era vir, tambor à frente,
Polcando ao som de rabeca,
Lançando ao ar, como gente,
Foguete, bomba ou peteca.

Menos de um mês viveria;
Mas, surgindo assim calado,
Viveu apenas um dia,
Foi morto e foi sepultado.

Lá que mais tarde apareça
Em forma de ideia nova,
E que outrem se desvaneça
De o passar por outra prova,

De maneira que essa rosa,
Que foi rosa e que foi urso,
Ganso e vaca furiosa,
Passe a sol nalgum discurso,

Não me espantará. Comigo
Uma só coisa há que espante:
Se desta vez a não digo
É falta de consoante.

 

Nº 21
(4 de julho de 1887)

Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

Meu Otaviano amigo,
Que ideia foi essa vossa
De deixar que o inimigo
Inda uma vez ganhar possa?

Ruim verso, mas aí fica;
Pior que fosse, ficara;
Não há rima bela ou rica;
Brilhante, sólida ou rara,

Quando o espírito, pasmado,
Mal sabe o que vai dizendo...
E eu sinto-me apatetado
Ante esse conselho horrendo.

Sim, eu penso com Malvino
Que as abstenções são fatais.
É este o melhor ensino
Em coisas eleitorais.

Pois não há aí três pessoas...
Digo mal, duas somente,
Sinceras, válidas, boas,
Que lutem proximamente?

Que é a vida? Uma batalha,
Tiro ao longe, espada à cinta;
Para os barbeiros, navalha;
Para os escritores, tinta;

Para os candidatos, cédula.
Quantas vezes tenho visto
Confessar a gente incrédula
Que não soube atentar nisto!

Sim, eu penso com Malvino
Que as abstenções são fatais;
É esse o melhor ensino
Em coisas eleitorais.

Eu, em rapaz, era dado
Às moças! Lembra-me que uma
Tinha o corpo bem talhado
E olhos feito verruma.

Olhos tais que penetravam
Na gente, em reviradela;
E muitos moços sangravam
Da marcenaria dela.

Quis ver se era amado. Um tio,
Fazendo por dissuadir-me,
Andava num corrupio,
E eu firme, três vezes firme.

Sempre entendi com Malvino
Que as abstenções são fatais.
É esse o melhor ensino
Em coisas eleitorais.

E notem a coincidência;
Essa moça, esse pecado
Tinha a sua residência
Mesmo à Rua do Senado.

E notem mais que não era
Uma cadeira, mas duas...
Camões, que falou da hera,
Meta aí palavras suas.

Confesso que, ao recordá-la,
Sinto em mim tais pensamentos,
Que era capaz de arrancá-la
A cinco ou seis regimentos.

Nisto entendo, com Malvino,
Que as abstenções são fatais.
É esse o melhor ensino
Em coisas eleitorais.

Lutei muito. Ela fechava
Muitas vezes a janela,
Quando eu por ali passava
Para ver o rosto dela.

Outras vezes devolvia
Cartas escritas com sangue...
Lembra-me uma, que dizia:
Anjinho meu, não se zangue,

Se passo por sua casa;
Menos ainda, se temo
Em alimentar a brasa
Deste fogo em que me queimo.

Que eu penso, como Malvino,
Que as abstenções são fatais;
É esse o melhor ensino
Em coisas eleitorais.

E o certo é que fiz tanto,
Tanto andei por essa rua,
Gemi, gemi tanto canto,
Sem lua, e ainda mais com lua,

Que a moça, de compassiva,
Escutou meus ais tristonhos
E pegou da pena esquiva,
Para responder-me aos sonhos.

Sei que és coração perfeito,
Que me amas e que não cansas.
Mando-te aqui do meu peito,
Não amor, mas esperanças...

Crê, amigo, com Malvino,
Que as abstenções são fatais.
E' esse o melhor ensino
Em coisas eleitorais.

 

N° 22
(1° de agosto de 1887)

Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

Anda agora toda a imprensa,
Ou quase toda, cuidando
De alcançar que, sem detença,
Acabe um vício nefando.

Na brasileira linguagem,
Essa nacional usança
Chama-se capoeiragem;
É uma espécie de dança,

Obrigada a cabeçadas,
Rasteiras e desafios,
Facadas e punhaladas,
Tudo o que desperte os brios.

Há formados dois partidos,
Dizem, cada qual mais forte,
De tais rancores nutridos,
Que o melhor desforço é morte.

Ora, os jornais que desejam
Ver a boa paz nas ruas,
Reclamam, pedem, forcejam
Contra as duas nações cruas.

Referem casos horrendos,
Já tão vulgares que soam
Como simples dividendos
De bancos que se esboroam.

E zangam-se as tais gazetas,
Enchem-se todas de tédio,
Fazem caras e caretas
Por não ver ao mal remédio.

Vou consolá-las. É uso
Das alminhas bem nascidas
Dar, contra o pesar intruso
Consolações repetidas.

Eu (em tão boa hora o diga,
Que me não minta esta pena!)
Tenho aquela corda amiga
Que, em pena, dá eco à pena.


Inda quando a rima saia,
Como essa, um pouquinho dura,
(Ou esta da mesma laia)
É rima que dói, mas cura.

As consolações — ou antes
A consolação é uma;
Trepa tu pelas estantes,
Busca, arruma, desarruma:

E, se tens livros contendo
Decisões de Vinte e Quatro
(Há sessenta anos!) vai lendo
Um aviso áspero e atro.

Lê isto: Para que cessem
De uma vez os capoeiras,
Que as ruas entenebrecem,
Com insolentes canseiras,

Manda o imperador, que sabe
E quer pôr a isto cobro,
Dar a pena a que lhes cabe,
E se for preciso, em dobro.

Recomenda neste caso
Que haja a major energia,
Para que em estreito prazo
Acabe a patifaria;

E seja restituída
A paz aos bons habitantes,
De modo que tenham vida
Igual à que tinham dantes.

Ora, se este aviso expresso
(Que é de vinte e oito de maio)
Teve tão ruim sucesso
Que inda fulge o mesmo raio,

Concluo que o capoeira
Nasceu com a liberdade,
Ou deu a nota primeira
Se tem mais que a mesma idade.

Valha-nos isto, que ao menos
Consola a gente medrosa,
E faz de alguns agarenos
Cristã gente gloriosa.

Sete de abril, a Regência,
Depois a Maioridade,
Partidos em divergência,
Barulhos pela cidade,

Guerras cruas e compridas,
Exposições, grandes festas,
Paradas apetecidas,
Tudo viu a faca e a testa...

 

N° 23
(20 de agosto de 1887)

Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

Ouvi que algumas pessoas
Entendidas e capazes
De distribuir coroas,
Andam estudando as bases

Da festa que comemore
Uma grave ação recente:
Jantar que a pança devore,
Doce de atolar o dente,

Ou retrato a óleo, e banda,
Com algum palavreado,
Uso desta velha Holanda,
Antigo e repinicado.

Há quem pense em monumento,
Obra fina que reúna
Bronze, mármore e cimento,
Ou busto ou simples coluna.

Em suma, nada que cheire
A inquérito ou a devassa,
Ou coisa que se lhe abeire...
Grande obra e de grande traça.

Porquanto, se aquela preta,
Que ia sendo sepultada,
Não chega a fazer mareta,
E desce tranquila ao nada,

Se já no caixão metida
E levada ao necrotério,
Não suspira pela vida,
Mistério contra mistério,

Não tinha havido barulho,
É certo, nem artiguinhos;
Tudo acabava no entulho,
Bichinho entre mil bichinhos;

Mas também nem a vitória
Ao inspetor caberia,
Que mandou a preta à glória,
Aonde ela ir não queria.

Pois no rosto da sujeita,
Que ressurgiu com malícia,
Talvez porque em sua seita
Ninguém morre de polícia,

Tu, sagaz, tu descobriste
Que a morte era coisa certa,
E — vendo quanto era triste
Viver de ferida aberta

No meio desta cidade,
Por mais algum magro dia —
Encheste-te de piedade,
Vibraste de inspetoria.

E perdoando à coitada
O resto da vida horrenda,
Mandaste dar-lhe pousada
Debaixo da eterna tenda.

Ela, que tornou ao mundo,
Entre as cantatas da imprensa,
Torna ao báratro profundo,
Morre sem pedir licença.

Triunfa, inspetor, triunfa
Neste voltarete, filho,
Trunfa, trunfa, trunfa, trunfa,
Que a todos deste um codilho.

Imagina tu se abrissem
Inquérito sobre o caso,
E que afinal concluíssem
Que o teu ato era um desazo;

E que isto de meter gente
Viva em caixão de finado,
Sem exame competente,
Devia ser castigado,

Que cara com que ficávamos,
Agora que a preta é morta!
Seguramente tomávamos
Novas da nossa avó torta.

 

N° 24
(23 de agosto de 1887)

Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

Anda-se isto a desfiar:
Quem será o responsável
Dos atos que praticar
O poder irresponsável?

Há várias opiniões
Sobre esta questão pendente;
Contradizem-se as razões,
Um afirma, outro desmente.

Vão aos livros e aos Anais
Buscar uma extensa lista
De palavras textuais
Deste ou daquele estadista.

Nem só nacionais, também
Surgem nomes estrangeiros,
Nomes ilustres, que têm
Merecidos pregoeiros.

Um deles foi o senhor
Benjamin Constant, pessoa
Que o poder moderado
Criou e deu à coroa.

Foi ele, em escrito seu,
Que à constituição brasília,
Sem saber, o artigo deu
Que pôs a toda família

Dos poderes, um poder
Que a regesse e moderasse...
Outros porfiam em ver
O caso por outra face.

E tu, Benjamin, fatal,
Grande amador de pequenas,
Tu, morto, tu, imortal,
Lá das regiões serenas,

Que pensas, que pensas tu
Nesta questão, obra tua?
Tira do espírito nu
Opinião crua e nua,

Põe-lhe sobrescrito a mim,
Se achas melhor escrevê-la;
Ou brada-ma, Benjamin,
Que eu poderei entendê-la.

E logo uma bela voz
Me entrou pelo gabinete,
Fininha como um retrós,
Viva como um diabrete.

E disse: — Queres saber
O que nesta causa penso?
Qual o meu modo de ver?
A que partido pertenço?

Se acho que o moderador,
Nos atos em que modera,
Tem ou não algum senhor
Que responde e o desonera?

Se o poder, a quem chamei
Neutro, pode, irresponsável,
Ter por isso mesmo em lei
Um ministro responsável?...

— Sim, despacha, respondi
Já zangado e impaciente.
— Di-lo-ei a ti, a ti;
Se queres, di-lo a mais gente.

Não verás em mim a flor
Da modéstia, planta rara,
Responderei com rigor,
Certeza e palavra clara.

Digo que gostei de ouvir
Ideias finas e tantas,
Gostei de as ver discutir
Leão, Cotegipe e Dantas.

Mas, com franqueza, eu deitei
Tudo ao mar, nesta viagem.
Só uma coisa guardei
E trago-a cá na bagagem.

Não que julgue sem valor
Outras páginas escritas
Ou faladas, não, senhor;
São puras e são bonitas.

Foram feitas ao buril,
Pensadas e bem pensadas.
Deixei-as às mil e às mil,
Por esse mundo espalhadas.

Mas agora que aqui estou,
Livre de ruins cuidados,
Digo: o melhor que ficou
Dos escritos lá deixados

Foi... palavra que não sei,
Não sei bem como me exprima:
Foi um livrinho de lei,
Uma joia, uma obra-prima,

Um livro, um livrinho só,
Que entre os escritos passados,
Resiste ao mórbido pó —
Dos anos empoeirados.

Custa-me dizê-lo, crê:
Um romance, e pequenino;
Relê, amigo, relê
O meu Adolfo; é divino.

Do mais tanto cuido aqui
Como daquela camisa,
A primeira que vesti...
Diz a rima que era lisa.

 

N° 25
(30 de agosto de 1887)

Voilà ce que l’on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

Eu, pecador, me confesso
Ao leitor onipotente,
E a grã bondade lhe peço
De ouvir pacientemente

Uma lengalenga longa,
Uma longa lengalenga,
Áspera, como a araponga,
E tarda como um capenga.

Saiba Sua Senhoria
Que, em coisas parlamentares,
A minha sabedoria
Vale a de um ou dois muares.

Não? Isso é bondade sua...
Modéstia minha? Qual nada!
Digo-lhe a verdade crua,
Nua e desavergonhada.

Não entendo patavina,
Eu, que entendo a lei mosaica,
Humana, embora divina,
Límpida, conquanto ataica.

E disse o Senhor: Faze isto,
Moisés, faze aquilo, ordena,
Eu, c'o meu poder te assisto;
Põe esta pena e esta pena.

Eram assim leis sem voto,
Sem consulta, sem mais nada.
Deus falava ao grão devoto,
E vinha a lei promulgada.

Mas por que é que tanta gente,
Reunida numa sala,
Examina a lei pendente
Escuta, cogita e fala?

E por que vota? pergunto...
Nisto abro uma folha, e leio
Bem explicado este assunto:
Era um discurso alto e cheio.

O orador, um deputado
Do Ceará, respondia
A um que o tinha acusado
De manter a escravaria.

Defendia-se, mostrando
Que, desde anos longos, fora
Dos que viveram chamando
A aurora libertadora.

Que a obra da liberdade
Era também obra sua,
Fê-la com alacridade,
Sem proclamá-lo na rua.

Votou, é certo, em contrário
Ao projeto com que o Dantas
Criou o sexagenário
E umas outras coisas tantas.

Mas não foi porque o julgasse
Oposto ao que entende justo,
Nem porque ele lhe vibrasse
Qualquer sensação de susto.

Foi só porque o gabinete
Para o Ceará mandara
Um presidente e um cacete,
Ambos de muito má cara.

Ele, vendo os seus amigos
Perseguidos, destinados,
Depois de grandes perigos,
A serem exterminados.

Votou contra a lei; e a prova
De que lhe não era oposto,
É que, vindo gente nova,
Votou a lei, de bom rosto.

E conclui assim: Senhores,
Qualquer outro que se achasse,
Cheio de iguais amargores
E injúrias da mesma classe,

Faria o que fiz. Pasmado,
De tudo o que não sabia,
Vim confessá-lo humilhado
Ante Vossa Senhoria.

 

Nº 26
(6 de setembro de 1887)

Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

Eustáquio Primo de Seixas,
Morador em Santo Amaro
(Bahia), fez umas queixas
Sobre um caso duro e amaro.

Parece que um tal Francisco
De Paula Aragão e Souza,
Para reduzi-lo a cisco
E pôr-lhe em cima uma lousa,


Pegou de um revólver, obra
Bem feita, acabada,
Pior que dente de cobra,
Melhor que fio de espada;

E, indo ao sobredito Seixas,
Despejou-lhe, não a arma
Nem precisamente endechas,
Nem violetas de Parma,

Mas uma descompostura,
Como se diz vulgarmente,
Porque quando a gente cura
De falar mais finamente,

Diz torrentes de impropérios;
Tal foi o modo limado
Que, em seus artigos tão sérios,
Empregou este agravado.

Eustáquio estava na rua
Da Matriz — tão concorrida
De gente, que viu a sua
Pessoa assim ofendida.

De tais injúrias e acintes
Ouviu metade calado,
Até que, em tantos ouvintes,
Um houve, mais animado,

Que pôde dar escapula
Ao que ouvia tanta coisa,
Mas o diabo que açula
A alma a Aragão e Souza,

Faz com que lhe não estaque
A torrente de impropérios,
Sotaque sobre sotaque,
Ditérios sobre ditérios.

Já que em casa recolhido
Eustáquio, vai muita gente
Pôr-se ao lado do ofendido
Contra aquele ato insolente.

Vai mais; vai gente inimiga;
Vai mais; vai o próprio Souza
Pedir-lhe que o não persiga;
Que lhe perdoe tanta coisa.

Responde-lhe Seixas: Pronto
Estou a dar-lhe o que pede,
Mas só quero um ponto, um ponto,
E cederei se me cede.

Peço-lhe que se retrate
Das injúrias que me há dito...
Aragão, dado ao combate,
Repete, e repete escrito

Todas as injúrias feitas...
Aqui, meu leitor amigo,
Tu que buscas, tu que espreitas
Achar sentido ao que digo,

Não decifrando a charada,
Perguntas naturalmente:
Que tenho eu com isso? — Nada,
Respondo-te eu; e a Regente?

Porque o mais rico da coisa
E' que o tal Eustáquio Seixas,
Contra o Aragão e Souza,
Trouxe à imprensa as suas queixas,

Escrevendo: À Sereníssima
Princesa Regente. Ó dura
Condição triste e tristíssima,
Que mal sei como se atura!

Governar para ler estas
E outras ridiculezas...
Ó sorte das régias testas!
Ó destino de princesas!

Que um homem em Santo Amaro,
Ouvindo duas graçolas
(Caso antes comum que raro)
Toque no chapéu de molas,

Enfie a casaca, e calce
As botas envernizadas,
E, todo flor e realce,
Suba as imperiais escadas,

Para contar uma coisa
Que se conta ao delegado
Isto é, que Aragão e Souza
É pouco morigerado,

Palavra que desanima
De ocupar na terra um sólio:
Antes governar a rima,
Bem ou mal como o Malvólio.

 

N° 27
(13 de setembro de 1887)

Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

Se Deus me dissesse um dia:
— Que desejas tu, Malvólio?
Castelos na Normandia?
Uma biblioteca in-fólio?

Um punhado de brilhantes,
Grandes como ovos de pomba?
Um batalhão de elefantes,
Marfim puro e extensa tromba?

Moças, com as quais cantasses
A vida, e pelo estio,
Cantigas velhas que achasses,
Como esta, no peito frio:

Cajueiro pequenino,
Carregadinho de flores
Eu também sou pequenino,
Carregadinho de amores.

Ou tendo espíritos altos,
Ir correr desejarias
Perigos e sobressaltos
De Rússias e de Turquias,

Pegando, com alma icária
E braços impacientes
A coroa da Bulgária,
E defendê-la das gentes?

Responder-lhe-ia eu, contrito:
— Não desejo, ó verdadeiro
Deus grande, Deus infinito,
Ser castelão nem livreiro,

Nem ter pedras preciosas,
Nem legiões de tamanhas
Alimárias pavorosas,
Vindas de terras estranhas,

Nem bonitas raparigas
Com quem eu cantar pudera
Algumas velhas cantigas,
Cantigas de primavera,

Menos inda, muito menos,
Correr sem mais nada, à toa,
Pequeno entre os mais pequenos,
A apanhar uma coroa.

Não, o que eu quisera, ó divo
Senhor, que mandais a tudo,
O meu desejo mais vivo,
Que me corrói, longo e mudo,

Era entrar pela janela
Do senado... Olhai, não digo
Pela porta. A porta é bela,
Porém já não vai comigo.

A porta, traz como agora,
Obrigações superfinas;
Li-as em prosa canora,
Sobre as eleições de Minas.

A primeira é que resida
O candidato na terra,
Pois se acaso a própria vida
A outra terra o desterra,

Perca as tristes esperanças
De conservar eleitores.
Se há exemplos, são carranças,
Outra quadra, outros amores.

Olindas, Celsos, Correias,
Nabucos e Zacharias,
São estragadas candeias,
De outros homens e outros dias.

Agora, quanto à segunda
Obrigação do diabo,
É igualmente profunda...
Não se quer nenhum nababo,

Que ande assim, como um tesouro,
Em carruagens de prata,
Cavalos ferrados de ouro,
Um jantar em cada pata;

Mas se o candidato é pobre
E passa a vida lidada,
Não entra em funduras. Dobre,
Amigo, dobre a parada.

Ora, eu que há muito suspiro
Pelo senado, e aqui moro,
Lidando, que mal respiro,
Sem o vil metal que adoro,

Uma noite adormecia
Lendo alguma velha história
De Veneza ou da Turquia,
E acordava em plena glória,

Diante do presidente
Aparecia sentado.
Ai, Deus justo, ai, Deus clemente...
Janela... curul... senado...

 

N° 28
(20 de setembro de 1887)

Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

Quando tudo em paz corria
Cai uma nuvem prenhada
De chuva e de ventania,
De saraiva e trovoada.

E cai lá naquela banda
Do paço dos senadores,
O melhor paço da Holanda,
Boa pedra, arminho e flores.

Inda se fosse no paço
Dos deputados, vá feito;
Embora sendo embaraço,
Caía no próprio leito.

Pois se este paço figura
Ao pé do velho senado,
Que afigura e transfigura,
Como ele, o que lhe é levado,

Certo é que é mais dada a zona
Aos temporais desabridos;
Quem lá vai mete-se em lona,
Oleado e outros tecidos.

Mas, no senado, em verdade,
Posto não seja o primeiro
Exemplo de tempestade,
Nem talvez o derradeiro,

Causa espanto, porque tudo
Parecia que ia andando,
Não inteiramente mudo,
Mas lentamente calando.

Vai então, como eu buscasse
Saber por algum amigo,
Maneira com que explicasse
Este singular perigo,

Achei um vizinho, um magro,
Um que não tem este olho;
Chamá-lo-ia Meleagro,
Di-lo-ia autor de algum molho,

Se não parecesse abuso
Esse recurso mofino,
Mofino, mas não escuso...
Os versos têm seu destino!

Tenho sido belo, às vezes,
Só por exigi-lo a rima;
Chama-se a um homem Menezes
Quando não passa de um Lima.

Mas, qualquer que seja o nome
Do vizinho consultado,
Fui lá p'ra matar a fome
E saí esfomeado.

Procurei-o, como disse,
E no meio da palestra
Aconteceu que surgisse
Uma questão grave e mestra:

Se o senado é que governa
Ou a câmara. O sujeito,
Querendo passar-me a perna,
Tira estas vozes do peito:

— Dizem que a câmara baixa,
Conforme a prática inglesa,
Assim como tem a caixa
Da receita e da despesa,

Rege a política, e forma
Os homens à sua imagem,
Que é essa a única norma
Da parlamentar viagem.

Sendo, porém, coisa certa
Que os ingleses querem antes
Achar sempre a porta aberta.
Dos comuns representantes.

E comuns há que padecem,
Se a boa sorte lhes falta,
E após os pais que falecem
Vão para a câmara alta,

Onde é menor o trabalho,
Sessões curtas, pouca vida,
Galho do poder, mas galho
De folha amarelecida;

Cá buscamos o senado;
E se o que há mais forte e fino
Tem ali lugar marcado
É que ali mora o Destino.

 

N° 29
(27 de setembro de 1887)

Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

A semana que há passado...
Deixe leitor que me escuse,
E de um falar tão usado
Abuse também, abuse.

Há passado, hão carcomido...
Hão, hão, hão, hão posto em tudo,
Hão, hão, hão, hão recolhido...
Estilo de tartamudo.

Ai, gosto! ai, cultura! ai, gosto!
Demos um jeito e outro jeito:
Venha dispor e há disposto
Venha dispor e há desfeito.

Mas usar de uma maneira
Até reduzi-la ao fio,
Não é estilo, é canseira;
Não dá sabor, dá fastio.

Porém... Já me não recordo
Do que ia dizer. Diabo!
Naveguei para bombordo,
E fui esbarrar a um cabo.

Outro rumo... Ah! sim; falava
Da outra semana. Cheia
Esteve de gente escrava,
Desde o almoço até a ceia.

Projetos e mais projetos,
Planos atrás de outros planos,
Indiretos e diretos,
Dois anos ou cinco anos.

Fundo, depreciamento,
Liberdade nua e crua;
Era o assunto do momento,
No bonde, em casa, na rua.

Pois se os próprios advogados
(E quem mais que eles?) tiveram
Debates acalorados
No Instituto, em que nos deram

Uma questão — se, fundado
Este regime presente,
Pode ser considerado
O escravo inda escravo ou gente.

Digo mal: — inda é cativo
Ou statu liber? Qual seja
Correu lá debate vivo,
Melhor dizemos peleja.

Mas peleja de armas finas,
Sem deixar ninguém molesto:
Nem facas, nem colubrinas,
Digesto contra Digesto.

Uns acham que é este o caso
Do statu liber. Havendo
Condição marcada ou prazo,
Não há mais o nome horrendo.

Outros, que não são sujeitos
Ferozes nem sanguinários,
Combatem esses efeitos
Com argumentos contrários.

Eu, que suponho acertado,
Sempre nos casos como esses,
Indagar do interessado
Onde acha os seus interesses,

Chamei cá do meu poleiro
Um preto que ia passando,
Carregando um tabuleiro,
Carregando e apregoando.

E disse-lhe: Pai Silvério,
Guarda as alfaces e as couves;
Tenho negócio mais sério,
Quero que mo expliques. Ouves?

Contei-lhe em palavras lisas,
Quais as teses do Instituto,
Opiniões e divisas.
Que há de responder-me o bruto?

— Meu senhor, eu, entra ano,
Sai ano, trabalho nisto;
Há muito senhor humano,
Mas o meu é nunca visto.

Pancada, quando não vendo,
Pancada que dói, que arde;
Se vendo o que ando vendendo,
Pancada, por chegar tarde.

Dia santo nem domingo
Não tenho. Comida pouca:
Pires de feijão, e um pingo
De café, que molha a boca.

Por isso, digo ao perfeito
Instituto, grande e bravo:
Tu falou muito direito,
Tu tá livre, eu fico escravo.

 

N° 30
(4 de outubro de 1887)

Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

Há muito inglês já defunto,
Canning, Peel e consortes,
Que são o perpétuo assunto
Da eloquência e seus transportes.


Cada ano que passa, deixa
Nos anais parlamentares,
Entre um ataque e uma queixa,
Esses nomes singulares.

Assim, posto que vivamos
À moda francesa, é certo
Que todos imaginamos
Estar dos ingleses perto.

Vede, por exemplo, os nomes
Dos que escrevem de política;
Não são Barros, não são Gomes,
Nomes de fama somítica.

Entre um Guizot e um Horácio,
Quantos Walpoles facundos!
Pobre Gália! Pobre Lácio!
Britânia é mundo entre mundos.

E, na verdade, a Inglaterra
Tem de sobra exemplos grandes
Para ensinar toda a terra,
Do Cáucaso até os Andes.

Hão de dizer, com justiça,
Que até aqui tenho usado
O latim da velha missa,
Já sabido e decorado.

Que sou vulgar como um bule
De botequim, — como um homem
Que, perdendo ontem na pule,
Narra as dores que o consomem;

Vulgar como um par de botas
Rotas e desengraxadas,
Vulgar como as quatro sotas,
Copas, ouro, paus e espadas.

Muito bem; mas, tendo em vista
Embora a vulgaridade
Procurar alguma pista,
Por onde ache a realidade,

Li agora um documento,
Circular de candidato,
Feita com discernimento,
Bom estilo, ameno e grato.

Tão grato, que pede o voto
Como um favor, e confessa
Que, vencido o terremoto,
Fará que jamais o esqueça.

Que seja novo não digo,
Nem novo, nem menos raro;
É costume um pouco antigo,
Vulgar, sem ofensa e caro.

Pois o eleitor, de outro lado,
Não faz favores à toa,
Quer ser mui cumprimentado
Em palavras e em pessoa.

Há tal que o votinho nega
A gente que o não visite,
Não que queira ver se emprega
Bem a cédula que emite,

Perguntando ao candidato
Qual a escola que mais usa,
Se a de um governo barato,
Se a do que gaste e produza;

Não, senhor; mas tão somente
Para ouvir coisinhas finas,
E mostrar a sua gente,
A esposa, a sogra e as meninas.

Ouvir que a filha terceira
Há de ser uma figura
Como a segunda e a primeira,
Modelos de formosura,

Ouvir um bom elogio
À laranjinha da casa;
Dar notícia de algum tio,
Que perdeu na ilha Rasa.

Ver que o candidato mira
De quando em quando a poltrona,
Em que se alarga e se estira,
Gesto de louvor que a abona.

Se há tais entre os eleitores,
E pedes, ó candidato,
Como o favor dos favores,
O voto, e lhes ficas grato,

Para que tantos ingleses,
Que dormem nas sepulturas,
Virem bailar tantas vezes
Nas nossas legislaturas?

Nacionalizemos isto.
Queres citar? Cita, cita
Nome cá nascido e visto.
Deixe o Pitt; cita o Pitta!

 

Nº 31
(11 de outubro de 1887)

Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

Na semana que lá foi,
Houve coisas do diabo,
Já de vaca, não de boi,
Já com rabo, já sem rabo.

Sem rabo o que apareceu,
Foi a grande tartaruga,
Que naufragou e morreu
Em praia onde o mar se aluga.

Espécie nada comum,
Foi logo classificada,
Sem nenhum erro, nenhum,
E está no Museu guardada.

Ora, é muito de saber
Que a bicha, ao pousar na praia,
Sorriu consigo de ver
Tanta senhora sem saia.

E consigo murmurou,
Porque é animal sabido,
Tanto que Deus lhe botou
Nome latino e comprido:

— Mostra a gente ao pé do mar
O que numa sala esconde.
Tudo é conforme o lugar,
Preciso é saber aonde.

E tais encantos em flor,
Que ninguém arrastaria
Pela Rua do Ouvidor
De noite, e menos de dia,

Aqui publicados são
Sem bulha, nem matinada,
Aos olhos do camarão
Que nada, e do que não nada.

Pascal é que disse bem
Quando da justiça ria:
Verdade aqui, erro além.
Cabe o dito à rouparia.

Com rabo, houve o edital
Da câmara, um documento
Que apareceu no Jornal
No mesmo dia e momento

Em que deviam abrir
As propostas que acudissem...
Aos que ficaram a rir,
Bradaram que se não rissem.

Que o tenente-coronel
Presidente é que mandara
Compor aquele papel
Que a folha não publicara,

Conquanto a tempo o doutor
Secretário o remetesse...
Não sei se o comendador
Tesoureiro andou com esse.

Pode ser que o general
Procurador da fazenda,
Como é muito bom fiscal,
Não gostasse da encomenda.

Pode ser; mas pode ser
Também que o protonotário
Escrivão, em vez de ler
O Jornal, lesse o Diário.

Ora, em verdade, foi bom
O caso: fico inteirado
Que é de rigor e bom tom
Cargo com título ao lado.

E não escrever papel
Em que venha o presidente
Sem tenente-coronel,
Seria pouco e insolente.

Quanto ao que houve, não de boi,
Mas só de vaca, naquela
Semana que lá se foi,
Certo não foi bagatela.

Foi um projeto que quer
População vacinada,
Seja homem ou mulher,
Gente grande ou criançada.

E não mais se casará
Sem se provar que a menina
E o noivo tiveram já
Ultimamente vacina.

Mas, como falasse alguém
Na câmara contra isto,
Dizendo que a coisa tem
Pecha contra a lei de Cristo,

Responderam-lhe que sim,
Que os noivos terão dispensa
Bastará ao grande fim
Toda a mais lei, que é extensa.

Pois manda revacinar,
Além dos tenros infantes,
Soldados de terra e mar,
Funcionários e estudantes.

Mas por que se há de excluir
Desse dever mal cruento
Quem vai à gente pedir
Um lugar no parlamento?

Quero crer que as ambições
Hão de vir em grande malta,
Suprindo as vacinações
O mérito que lhes falta.

Dir-se-á de um legislador
Morto, que era homem honrado,
Bom caráter, bom senhor,
Modesto e revacinado.

E, pois que um caso esqueci
Da outra semana, digo
Muito à puridade aqui,
Que falta à lei outro artigo.

Falta artigo, pelo qual,
Em caso de desafio,
Pudesse um homem mortal
cortar à pendenga o fio.

Corta deste modo: ouvir
O outro, em lances extremos,
E responder-lhe a sorrir:
Vacine-se e falaremos.

 

N° 32
(18 de outubro de 1887)

Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

Tudo foge; fogem autos,
Fogem onças, foge tudo.
Ó guardas moles e incautos!
Ó corações de veludo!

Uma onça, que vivia
Em casa de uma senhora,
Viu aberta a porta um dia
Da gaiola, e foi-se embora.

Na roça? Não; na cidade.
Que cidade? É boa! a tua.
Dou mais esta claridade:
Era na rua... na rua...

Rua da América... Pronto!
Mas, se não leste a notícia,
Cuidarás que é isto um conto,
É talvez conto e malícia.

Não, amigo. Era uma onça,
Tinha aos três anos chegado;
Vivia discreta e sonsa
Em casa, num gradeado.

Vai senão quando, — um descuido —
Deixaram-lhe aberta a porta,
E a onça sentiu um fluido
Que não sente onça já morta.

Sentiu passar-lhe no lombo
O fluido da liberdade,
E, ligeira como um pombo,
Deixou a casa da grade.


Nenhum liberal, que o seja
Como deve, achará livro
De tantos da sua igreja
Que condene este carnívoro.

Pois se foge o papagaio,
O macaco, a patativa,
Seja outubro, seja maio,
Tenha ou não tenha mãe viva,

Que muito é lá que uma nobre
Onça das brasílias matas,
Logo que possa, recobre
O uso das suas patas?

Lá por viver entre gente
E canapés delicados,
Não acho suficiente
Para condená-la a brados.

Certo é que fugiu. Bem perto,
Duas casas logo abaixo,
Achou como que um deserto,
E resolveu: Lá me encaixo.

Era casa em obras. Passa
Todo o sábado e domingo,
Sem comer sombra de caça,
Sem beber de sangue um pingo.

Na segunda-feira, cedo
Sobe ali um operário,
Despido de qualquer medo:
Vai ganhar o seu salário.

Casualmente (bendito
Seja Deus!) o desgraçado
Vê o olhar da onça fito
De dentro de um tabuado.

Foge; muita gente acode
Armada, e com laço e rede,
A ver se apanhá-la pode;
Ela, com fome e com sede,

Fere o pé a um bom valente,
Mas é já laçada, e morre
Á faca da demais gente,
Que ali bravamente corre.

E porque não era grave
A ferida recebida,
Fechou-se com dura chave
A história, e mais a ferida.

E disse alguém, que não erra
Ocasião de uma vasa:
— Que há mais natural na terra
Que criar onças em casa?

Quando muito, demos graças
Aos deuses, que esta podia
Matar duas ou três praças,
E toda um inspetoria.

Não há onças espanholas?
Não há onças desgraçadas
Estas não rugem nas solas
Das botas acalcanhadas?

Virá tempo em que não ande
Pessoa que se respeite
Sem uma onça já grande,
Ou, pelo menos, de leite.

Que toda a senhora fina,
De passeio ou de passagem,
Tenha uma onça menina
Ao lado, na carruagem.

Que algumas fujam, que trinquem
O pé a qualquer pessoa,
Ou por mal, ou porque brinquem
Pode acontecer, é boa!

Mas quem já viu neste mundo
Progresso sem sacrifício?
Sangue que corre é fecundo,
E há virtude que foi vício.

Cavalo que anda direito
Já foi bravio e inquieto,
Onça que morde um sujeito,
Talvez não lhe morda o neto.

Vamos, pois, encomendemos
Onças, muitas onçazinhas,
E nos quintais as criemos,
Como se criam galinhas.

 

N° 33
(29 de outubro de 1887)

Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

Alá! por Alá! Cá tenho
Inda nos tristes ouvidos
O som duro, o som ferrenho,
Destes termos desabridos:

Os liberais padecemos
Como os cristãos da Bulgária
Padecem duros extremos
Da turca espada nefária.

E porque tenho uma veia
Com sangue de Mafamede,
Coisa que não acho feia,
Que não desdoura, nem fede;

Juro que andei azoinado
Com o dito do estadista,
Azoinado e envergonhado,
Sem voz, sem sabor, sem vista.

Mas (Alá é grande!) agora,
Agora, neste momento,
Chegam notícias de fora,
Da Bulgária e de espavento...

Vejo que o governo novo
Daquele povo inquieto,
Para aquietar o povo,
Achou um meio discreto.

Convidou madre Censura
Para rever os diários,
Enterrando a unha dura
Por modos crespos e vários,

Nos trechos em que apareça
Opinião tão à toa,
Que em tudo, se mostre avessa
Ao que ela entender que é boa.

Assim podem os censores
Riscando uma parte ou tudo,
Fazer dos espinhos flores,
Fazer do rudo veludo.

É pouco. Um dos jornalistas
Tantas fez que foi pegado,
E teve, de mãos artistas,
Não pouco, nem moderado,

Castigo de tal volume
Que era de ver... Cem açoites!
Quase lhe levam o lume,
Quase lhe dão boas noites.

E disseram-lhe ao soltá-lo.
Que se voltasse à escritura,
Haviam de castigá-lo,
De outra forma inda mais dura.

Ora, o que me espanta nisto
É que a gente que maltrata
Os pobres filhos de Cristo
São cristãos de pura nata.

Lá que impeçam tais diários,
Acho até bom, não somente
Nos dias incendiários,
Mas nos de vida corrente.

Nunca veio mal de um mudo,
E imprimir o que se pensa,
Tudo, tudo, ou quase tudo,
É desastre, não imprensa.

Assim, acho grão perigo
Que, em obséquio ao Ramalho
Ortigão, meu grande amigo,
Honra do engenho e trabalho,

Desse a Gazeta, uma festa,
De autores e jornalistas,
Cerrada e longa floresta
De opiniões e de vistas.

Conservadores sentados,
Em frente a republicanos,
E liberais afamados
Ao lado de ultramontanos.

Gente ruim, gente feia,
Merecia nessa noite,
Não festa, porém, cadeia,
Não Borgonha, mas açoite.

País de tal liberdade
E tolerância tamanha,
Vai com toda a alacridade
Ao lodo, ao delírio, à sanha.

Olhemos para a Bulgária;
Arruma, cristão amigo,
Simples pancada ordinária,
Cem açoites por artigo.

 

N° 34
(2 de novembro de 1887)

Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

Que fará, estando junto
Sócrates a um hotentote?
Falo de varão defunto,
Pode sair livre o mote...

E, antes de mais nada, digo
Que essa junção de pessoas
Vi hoje mesmo em artigo
Repleto de coisas boas.

O artigo é de sociedade
Espírita e brasileira;
Trata só da humanidade,
É divisa sua e inteira.

Que eu já sou meio espírita,
Não há negá-lo. Costumo
Pôr na cabeça uma fita,
Em vez do chapéu a prumo.

Chamo à vida uma grã bota
Calçada pelo diabo;
Quando escrevo alguma nota,
Princípio e não acabo.

Dou o João, velho amigo,
Nascido em cinquenta e sete;
E ele, quando isto lhe digo,
Todo se alegra e derrete.

E proclamam em recompensa,
Que sou de cinquenta e cinco;
Rimo-nos em boa avença,
Do meu brinco e do seu brinco.

Aqui há poucas semanas,
Puxei fieira na rua,
E comi sete bananas
Com pimenta e linha crua.

José Telha, que no sótão
Sustenta os seus macaquinhos,
Crê que alguns deles se botam
Para a casa dos vizinhos.

Mas eu respondo-lhe a cada
Palavra com heroísmo,
Que o que parece pancada,
É simples espiritismo.

E, voltando à vaca fria,
Sócrates era um sujeito
De grande filosofia,
Alta mente, heroico peito.

O hotentote, — conquanto
Lembre uma Vênus famosa
Pelo volumoso encanto,
Mas tão pouco volumosa,

Comparada àquela raça,
Tão pouco, como seria
Uma uva a uma taça,
A laranja à melancia;

O hotentote, em bestunto,
É pouco mais que um cavalo,
Dê-se-lhe um simples assunto,
Mal poderá penetrá-lo.

Mas, sendo um e outro feitos
Pela mesma mão divina,
Força é que sejam perfeitos,
Di-lo a grande Espiritina.

Daí a necessidade
De andar a gente em charola,
Não de cidade em cidade,
Mas de uma bola a outra bola.

Morre aqui algum peralta,
Que furtou grandes dinheiros,
Ressurge em bola mais alta,
Entre os simples caloteiros.

Vai a outra, e paga em dia
Todas as dívidas suas;
Vai a outra, e principia
A dar esmolas nas ruas.

Vai a outra, e já suprime
As ruas; chega à perfeita
Máxima pura e sublime
De só saber a direita.

Sobe finalmente à esfera
Onde uma sociedade
De arcanjos lindos o espera,
E o conduz à eternidade.

Ali Sócrates jucundo
Receberá o hotentote,
E falarão deste mundo,
E glosarão este mote:

— Para que há de haver juízes
Em Berlim, ou em outra parte?
Têm aqui iguais narizes
O inocente e Malazarte.

 

Nº 35
(8 de novembro de 1877)

Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

Vem cá, Gemma Cuniberti,
Dize-me aqui a esta gente
Quanto se deve ao Lamberti,
Exata, precisamente.

Que não és vereadora,
Escrivã, nem magistrada,
Bem o sei, minha senhora,
A mim não me escapa nada.

Nem é preciso que digas
Coisa alguma, não sabendo
As somas novas e antigas
Deste negócio estupendo.

Basta que me tenhas dado
Rima para o italiano.
Agora que está rimado,
Volta à paz de todo o ano.

Pois saber exato, exato,
Quanto é que lhe deve a gente,
Não é só trabalho ingrato,
É pôr um homem demente.

Uns dizem que cento e trinta
Contos — outros, mil e tantos;
Que isto se afirme ou desminta
Enche o coração de espantos.

Esperta logo o desejo
De não dar mais que um cruzado,
Ou perder de todo o pejo
E ir a um milhão quadrado.

Que, assim como nós quadramos
As léguas, quadrar podemos
O dinheiro que pagamos,
Jamais o que recebemos.

Explico-me: a vereança
Paga tarde e paga em dobro,
Porque o credor, quando cansa,
Não põe aos ímpetos cobro.

Mas para que o miserável
Contribuinte não gema,
Faz-se-lhe grata e afável;
Não é assim, minha Gemma?

Não põe aumento na taxa,
Mormente se é baratinha;
A taxa quanto mais baixa
Parece mais bonitinha.

Desta maneira a fazenda
Municipal, acusada,
Não de torva, nem de horrenda,
Mas só de desbarrigada,

Perde inteiramente o resto
Da pele que traz nos ossos;
Fica-lhe o corpo mais lesto,
Já sem casca, só caroços.

Então é que é ver o ufano
E gracioso esqueleto
(Falemos italiano)
Dançar o seu minuetto.

Dançar não paga comida,
Nem vestido, nem calçado,
Mas alegra um tanto a vida,
E o gozo é tão pouco usado!

O pior é se, na faina
Do ofício, os vereadores
Arranjarem uma andaina
De caixas e borradores.

Pois não há maior desgraça,
Nem pior melancolia,
Do que ter ostras na praça
E a escrituração em dia.

Ao menos, tudo confuso
Faz crer que inda poderemos
Guardar um traste em bom uso...
E então, evoé! bailemos!

 

N° 36
(15 de novembro de 1887)

Voilà, ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

Ora, mal sabe a pessoa
Que lê estas linhas toscas,
Compostas assim à toa,
Entregues ao prelo e às moscas,

Mal sabe o susto que tive
Nas eleições da semana:
Vi Cartago, vi Nínive,
Vi além da Taprobana:

Por isso darei ao verso
Certo tom grave e pausado,
Diverso, muito diverso
Do meu tom acostumado,

E, se não, amigo, veja:
Batendo a hora do voto,
Vesti-me e fui para a igreja
Como um eleitor devoto.

Tinha comigo o diploma,
E a lista dos meus eleitos,
Fechada com boa goma,
Juntinha, agarrada aos peitos.

Começou pela chamada...
Sei que sabe que ainda estamos
Nesta usança desusada
De só votar quem chamamos.

Dizia o mesário: — Antônio
Vaz de Souza, e repetia,
Depois: — Arlindo Teotônio
De Vasconcellos Faria.

E Arlindo, que era presente,
Levava o diploma aberto
Aos olhos do presidente,
Votava, e rápido, e certo,

Escrevia o nome: — Arlindo
Teotônio de Vasconcellos
Faria. — Trabalho findo,
Ia ao bife e ao Carcavelhos.

Mas o curioso, o incrível,
O trágico, o inopinado,
O que parece impossível
E entanto foi praticado,

É que entre os nomes dos vivos
Tinha nomes de defuntos,
De tantos que ora, entre os divos,
Gozam o descanso juntos.

E não defuntos de agora,
Mas de alguns anos passados,
Alguns que a pátria inda chora,
Outros pouco ou mal chorados.

Essa chamada de mortos
Trouxe-me um sono profundo,
Fui sentindo os olhos tortos,
E o mundo ao pé do outro mundo.

Primeiro vi Duque-Estrada
Teixeira — chegar sombrio
Para acudir à chamada
Feita no seu pátrio Rio.

Vi depois o Azevedo
Peçanha, vi a figura
Do Buarque de Macedo,
Labor, honradez, cordura.

Vi outros muitos, vi tudo,
E, continuando o mistério,
Vi, com gesto carrancudo,
A história e o seu cemitério.

Numerar os esqueletos
Que entrar vi na sacristia,
Já bolorentos ou pretos,
É obra que excede a um dia.

Vi César e mais as suas
Válidas tropas, vi Galba,
Maomé e as meias luas
E os três Curiácios de Alba.

Nino vi, Giges, e aquela
Semíramis, graça e fama,
Cleópatra, e a donzela
D'Orleans, Vasco da Gama,

Pedro o grande, Henrique Oitavo,
Amílcar, os comerciantes
Cartagineses, Gandavo,
Napoleão e Cervantes.

E vinham todos trazendo
Uma cédula entre os ossos
Ao mesário, que ia lendo,
Os nomes desses destroços.

Sonho foi... Quando desperto,
Não achei mais que o sacrista,
A mesa vazia perto,
Nem mais eleitor nem lista,

Tonto do meu pesadelo,
Contei-o ao sacrista, e o moço
Facilitou-me entendê-lo,
Ambos à mesa do almoço:

— Nada lhe aconteceria
Se a lista dos eleitores
Pudesse ter algum dia
Revisão e revisores.

Se fosse oportunamente
Cada morto eliminado,
Nenhum seria presente
E muito menos chamado.

Mas, como a preguiça é grande
E os trabalhos são massudos...
E não há quem nisto mande...
E os tempos andam bicudos...

 

N° 37
(22 de novembro de 1887)

Voilà, ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

Pessoas há... Por exemplo,
Que vale um desfalque triste
Cuja notícia contemplo?
Acho que já nem existe.

Pois, entrados os cobritos,
Desmancha-se a diferença,
E o que eram terríveis gritos
Chega a pura indiferença.

Pessoas há que detestam
Rimas daquele feitio;
São cadeias que molestam
A inspiração, mais o brio.

Eu cá sendo, necessário
Ir andando, vou andando;
Rimo Corsário e corsário,
E bando com contrabando,

Sem saber se o leitor gosta,
Ou não dessa rima rica.
Se eu quero a obra composta,
Menos que fazer me fica.

Se não sair boa a quadra,
Que saia, ao menos, completa;
Lá, se lhe quadra ou não quadra,
É queixar-se do poeta;

Não do triste gazeteiro,
Que rói o tempo e trabalha
Sem encontrar no tinteiro
Qualquer assunto que calha.

Ninguém me dirá que as notas
Falsas e germanizadas
Valem nunca um par de botas,
Novas ou acalcanhadas.

Pois que já tratara delas
O cronista do costume,
E ora são como panelas
A que não resta chorume.

Nem elas, nem os debates
Do Jockey-Club, e os palpites,
Nem os terríveis combates
De agudas encefalites.

De encefalites agudas,
Das quais não escrevo nada;
As rimas devem ser mudas,
Quando a matéria é pancada.

E brigar por dois cavalos,
Gastar suor, sangue e murros,
Defendê-los, levantá-los,
Para um amador de burros,

É completa maluquice.
Eu amo os burros, capazes,
Sem ardor nem casquilhice,
Maduros desde rapazes.

Barulhos entre campistas?
Cadeira de Torres Homem?
São matérias de altas vistas,
Que aos fracos olhos se somem.

Sobretudo, em medicina,
Basta-me um só documento,
Coisa séria, não mofina,
Obra séria e de momento,

A autópsia de um tal Garrido,
Que foi achado enforcado,
Sem ficar bem definido
Se era ou não um suicidado.

Se sim ou se não — responde
O auto que é impossível
Achar por onde se sonde
Esse problema terrível.

Mas, continuando a pena
Naquele labor ingrato,
De toda a descrita cena
Conclui que houve assassinato.

É por isso que os problemas
Nunca me meteram susto;
São simples estratagemas
Que a gente desfaz sem custo.

Assim desfizesse o dano
E a funda melancolia
De não ser pernambucano!
Teria visto, de dia,

Vênus, o astro, no Recife,
Onde apareceu agora...
Ah! tu rimas com patife,
Tu, Recife de má hora!

Lembra a notícia que Eneias,
Indo da troiana parte,
Viu assim a flor de ideias,
E assim a viu Bonaparte.

Foi o que li e acredito;
Que eu creio em tudo o que leio,
E como sigo um só rito
Só leio aquilo em que creio.

Faça o leitor outro tanto;
Se não crê nesta Gazeta
De Holanda, ponha-a num canto;
E rimará com Gazeta.

 

N° 38
(29 de novembro de 1887)

Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

Nascimento cura, cura,
Curandeiro Nascimento;
Curandeiro fura, fura,
Fura-vida e fura-vento;

Pois que tens a liberdade
De curar tantas mazelas
Que devastam a cidade,
Curar e viver por elas;

Tudo isso com quatro passes
De evocação de defuntos,
Que, sem que mostrem as faces,
Todos ali falam juntos;

Espíritos diferentes;
Um cura barriga da água,
Outro arranca um ou dois dentes,
Sem deixar sangue nem mágoa:

E mais que tudo, são grandes
Em ler, como as adivinhas,
Para o que, basta que mandes,
Com tais e tais palavrinhas;

Nascimento (apre! que custa
Desfiar um pensamento
Verso abaixo! Custa e assusta).
Dize-me cá, Nascimento,

Dize o que virá de Minas,
Se queijo, tabaco, ou lombo,
Se coisas mais superfinas,
Quem dá pulo e quem dá tombo.

Antes que tudo nos venha,
Veio muita porcaria,
Muita rixa e muita lenha,
Pulso de gente bravia.

Palavreada sem estilo...
Ao menos, se os escritores
Nos fizessem ler aquilo
Com alguns poucos lavores,

Dariam à pobre gente
Que vive de outros negócios
Um recreio de patente
Para entreter os seus ócios.

Então, padecesse o Veiga,
Calmon, Santa Helena e o resto,
Para uma pessoa leiga
Era um gosto puro e honesto.

Lia em boa e sã linguagem
Que o vizinho era um modelo
De ignorância e parolagem,
Um papagaio e um camelo.

E, vice-versa, diria
O vizinho assim tratado,
Que a maior patifaria
Tinha no outro o grão-mestrado.

Eram certamente afrontas,
Mas rendilhadas, cobertas
De corais e finas contas,
Menos que afrontas, ofertas.

Ah! mas justamente é isso
O que faria à polêmica
Perder o melhor feitiço,
E pô-la inválida e anêmica.

E por que tanto barulho?
Para ter lugar marcado
Na casa, que é nosso orgulho,
E a que chamamos senado.

Que vale a pena, isso vale!
Ponham-me ali já eleito
Pela serra ou pelo vale,
E verão se não aceito.

Aceito, fico e sustento,
Com alma, com heroísmo,
Esse forte monumento,
Flor do parlamentarismo.

Uma só condição, uma,
Para pleitear aquilo
Descompostura nenhuma,
Ou nenhuma, ou com estilo.

 

Nº 39
(6 de dezembro de 1887)

Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

Peguei da mais rica pena,
Molhei-a na melhor tinta,
E fiz uma cantilena:
Tinta que repinta e pinta.

Que haja nisso algum sentido,
Livre-me Deus de escrevê-lo;
Sentido, bem entendido,
No sentido de entendê-lo.

Mas que há nessa linha escura
Uma íntima harmonia
Com tudo o mais que se apura
De tantos casos do dia,

Isso é que não há negá-lo,
Exceto se uma pessoa
Quiser fazer de cavalo,
Assim, sem mais nada, à toa.

Pois não andou toda a gente
Com a imaginação acesa,
Em busca do presidente
Da República Francesa?

Havia apostas. Um era
Ferry, outro — homem de espada,
Outro Freycinet quisera,
Outro — Floquet, outro — nada.

E de tanta gente oposta
Sai um que a ninguém havia
Feito cuidar em aposta,
Se seria ou não seria...

Já sei... Não me explique, amigo;
Não seja de uns desfrutáveis
Que juram sempre consigo
Explicar os explicáveis.

Por exemplo, não me explique
O Ney, nem a delicada
Ação que faz com que fique
Toda a idade pasmada.

Essa joia, esses quinhentos
Mil réis dados de pronto,
Como quem espalha aos ventos
Palavras leves de um conto,

Ação foi de grande siso;
Ter-se entre duas pilhérias
Ney, o marechal do riso,
Consolador de misérias.

E muitos pasmados ficam,
Por não crer que alguém possua
Cobres que se multiplicam
E os lance estéreis à rua.

Depois disto vem aquilo
Que a nenhum de nós consola,
Nem deixa a ninguém tranquilo,
Nem traz figura de esmola.

Refiro-me às ameaças
Da Amazônia, que deseja,
Resguardar as suas graças
Do nosso amor, salvo seja.

Tudo porque há um sujeito,
Cardoso, ou coisa que o valha,
Que, não sei por que respeito,
Na tarefa em que trabalha,

Brigou com outra pessoa,
E os dois, que podiam juntos
Fazer muita coisa boa,
Em variados assuntos,

Agora não fazem nada;
Pregam-me até esta peça
De pôr a quadra acabada
Pendente da que começa.


Depois, daquilo, aquil'outro,
Expressão que ficaria,
Não rimando (e mal) com potro,
Sozinha, sem companhia.

Aquil’outro é a abundância
De roubos eclesiásticos,
Feitos com a petulância
Dos grandes dedos elásticos.

Sacrílegas limpaduras
Da casa de Deus — dos ouros,
Das pratas sacras e puras...
Naturalmente, só mouros.

Mouros — sejam da Mourama,
Ou mouros da Cristandade,
Que os há de uma e de outra rama
Por toda essa humanidade.

Não foram seguramente
Os capoeiras da rua
Que matam e francamente
Pela forte gente sua.

Adeus, versos duros, frouxos,
Sem inspiração nem graça,
Obra destes dias coxos,
Furtados e sem chalaça.

Por isso peguei da pena,
Por isso a molhei na tinta,
E fiz esta cantilena:
Tinta que repinta e pinta!

 

N° 40
(14 de dezembro de 1887)

Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

Por Júpiter! Cobre o rosto.
Risonha Hélade amiga,
Cobre-o de pejo e desgosto;
Chora a tua graça antiga.

Lembras-te daqueles tempos,
— Da galante mocidade,
Em que eram teus passatempos
Grave e fina agilidade?

Em que as tuas formas belas
Mostravam-se aos olhos puros,
Tempos quase sem mazelas,
Quase sem dias escuros?

Então floresciam jogos
De toda casta e destino,
E coros cheios de rogos
Ao céu e ao povo divino.

Já não falo dos famosos
Jogos de corridas — quando
Voavam carros briosos
Pelo solo venerando.

Falo (e serve ao que ora trato)
Falo daquelas usanças
Em que vinha o pugilato
Entre cantigas e danças.

Seguramente que havia
Pancada — porém pancada
De valor e bizarria
Por uma coisa sagrada.

Eram modos e maneiras
De lutar de língua e punho,
Traziam tantas canseiras,
Grécia, o teu amável cunho.

E agora, ai, chora pitanga!
Pitanga é fruta moderna,
Mas a qualquer mágoa ou zanga
Qualquer fruta é fruta eterna.

Contudo, se não te agrada,
Chora aquele mel do Himeto,
Que inda agora a abelha amada
Verte ao comum e ao seleto.

Chora o que for, chora, chora...
Vês este grego, chamado
Manuel Rottas, que aqui mora?
Foi há pouco encarcerado.

Que pensas tu que fazia
Este filho tão malandro,
Em cujas veias podia
Correr sangue de Lisandro?

Ouve... fecha os olhos... Cobre
O belo rosto, faceira;
Não há cautela que sobre...
Rotas era capoeira.

Sim, capoeira, repito.
E cometia na praça
Das Marinhas o delito
De dar aos colegas caça.

Chamavam-lhe por gracejo
O grego das ostras, nome
Que em si mesmo não dá pejo,
Antes creio que dá fome.

Grego e capoeira! Ó manes
Dos seus avós acabados!
Ó recordações inanes
De outros tempos e outros lados!

Bem conheço que, assim como
Cada roca tem seu fuso,
Cada macieira seu pomo,
Tem cada terra seu uso.

Nem é o uso que me espanta
Espanta-me esse contraste
Da terra e da sua planta,
Da habitação e do traste.

Bem sei que a Grécia recente
É outra da Grécia antiga,
Mas no coração da gente
És a mesma, Hélade amiga.

E por mais que a razão pura
Mostres que ora estás mudada,
Espanta-me esta figura:
Rasteira, grego e facada.

 

N° 41
(20 de dezembro de 1887)

Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

Nos quoque gens sumus, digo
Sem nenhum acanhamento;
Se é moda, eu a moda sigo;
Se é vento, acompanho o vento.

Não somente ao literato
Cabe descobrir mistérios;
Eu sou curioso nato,
Tão sério como os mais sérios.

Et quoque cavalgare
Sabemus, como ia expondo;
Lá se acaso errar, errare
Humanum est, respondo.

Eu, — não é porque me gabe,
Mas acho que o elogio
De um tio muito mais cabe
Na boca do próprio tio.

Esperar que outras pessoas
Descubram seus pensamentos
E cantem honrosas loas
Aos nossos merecimentos,

Palavra que me parece
Negócio muito arriscado;
Este cala, aquele esquece,
Nada fica publicado.

Vamos ao caso. Há dois dias
Recebi este bilhete
Do meu amigo Mathias,
Residente no Catete:

Pois que já fomos colegas,
Manda-me a razão bastante
Por que se diz: cá o degas.
Não corri à minha estante,

Corri à pena e ao tinteiro,
Porque trazia comigo
O histórico verdadeiro
Do que me pede este amigo.

E aqui lhe conto, — deixando
Que riam maus e praguentos:
Ouço o riso e vou andando
Cá com os meus bolorentos.

Ora bem, ninguém ignora,
(Menos que ninguém, Mathias)
Que houve um grande Egas outrora,
Varão de alias bizarrias.

Afonso, meio enteado,
De um tal Peres, se encastela
Em Guimarães já cercado
Pelas forças de Castela;

Vai então Egas, pensando
Em livrar o rei, caminha
Para o castelhano infando
E segreda-lhe ao que vinha.

Vinha prometer que o moço
Afonso obedeceria,
Sem mais sangue nem destroço.
Castela creu no que ouvia

Mas logo que os castelhanos
Daquele sítio abalaram,
Afonso e os seus lusitanos
Entregar-se recusaram.

Que faz o grão Egas? Vendo
Que faltara ao prometido,
Faz sacrifício horrendo,
Ele, pai, ele, marido.

Vai com a família, e dá-se
Ao inimigo. Ação única!
Outra não há que a ultrapasse,
Ou esta fé, ou fé púnica.

Tempos vindos, tempos idos,
Entrou no povo esta fala,
Quando alguém os ofendidos
Brios punha em grande gala:

Cá o Dom Egas não há de
Deixar de cumprir a jura.
Depois a celeridade
Do tempo, que tudo apura,

Foi diminuindo o adágio,
Perdeu-se o jura primeiro
E foi crescendo o naufrágio
Do primeiro ao derradeiro.

Já no século passado
Ia em tais e tantas penas
Que ficou — do que era usado,
Cá o Dom Egas — apenas.

Mas o Dom tanto se escreve
Na forma acima apontada,
Como por outra mais breve,
Um D, um ponto e mais nada.

Daí resultou que o povo,
Lendo, como lê, às cegas,
Faz um dito inda mais novo
E ficou só: — Cá o degas.

 

N° 42
(28 de dezembro de 1877)

Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

Eu cá, quando toda a gente
Chora ou treme de assustada,
Tenho um desejo veemente
De dar uma gargalhada.

E a razão, — se há razão nisto,
Não é senão porque é útil
Fazer deste mundo um misto
De terrífico e de fútil.

Outrora o teatro dava,
Ao riso afrouxando a rédea,
Depois de uma peça brava,
Uma farsa, uma comédia.

Acabado o Aristodemo,
Vinha uma ária do martinho;
Ao fel que chorava o demo,
Ao fel que sucedia o vinho.

Eu não, eu misturo tudo,
De modo que cada grito,
Angustioso ou sanhudo,
Não nos traga um faniquito.

Ou então uso o contrário;
Quando é geral alegria
Solto o verbo funerário
E misturo a noite e o dia.

Para não irmos mais longe,
Ninguém dirá que passamos
Uma existência de monge,
Que rezamos, que choramos.

Antes vejo anunciados
Bailes de vários feitios,
Teatros abarrotados
De cristãos e de gentios.

Malgrado o sol e a poeira,
Corridas de bons cavalos;
Toda uma cidade inteira
Brincando sem intervalos.

Pois é justamente agora
Que eu, por integrar a vida,
Deito a vista para fora,
Desordenada, insofrida.

E, ao ver do lado do norte
Aquele pobre diabo
Que encontrou comprida morte
Onde torce a porca o rabo;

Que foi com rara presteza,
Agarrado, arrebatado,
E com toda a ira acesa,
Crucificado e esfolado;

Vingando a sorte, vingando
Aquela porca mesquinha
Que, em suas roças entrando,
Foi morta e não foi rainha;

E, ao lado do sul, a dama
Que à preta engolir fazia,
Não garoupa sem escama,
Nem doce, nem malvasia;

Mas comidas singulares,
Não feitas por encomenda,
E a beber com tais manjares
Vinho de outra pipa horrenda;

E se a boca recusava
O petisco enjoativo,
Tição aceso lhe dava
Novo e forte aperitivo;

Sem contar a bordoada,
Que as rijas carnes alanha,
E era a música obrigada
Daquela ceata estranha;

Às pressas trago estas duras
Histórias com que tempero
As folias e aventuras,
E ato ao jovial o fero,

Para que, quando tomarmos
No Pascoal alguma coisa,
Ou algum colar mirarmos
Na loja do V. de Souza.

Digamos: — P’ra lá, menina,
Menina in-oitavo, in-fólio,
Dá cá tua mão divina
Ao teu amador Malvólio.

 

Nº 43
(3 de janeiro de 1888)

Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

Deus lhes dê muitos bons dias,
Deus lhes dê muitos bons anos,
Lençóis para as noites frias,
Para as de calor, abanos.

Se é certo que os novos planos
Melhoram as loterias,
Convém evitar enganos,
Devaneios e utopias.

Exemplo: as áreas vazias
Estão dos tais soberanos
Com que se pagam folias,
Prazeres e desenganos.

Logo os ímpetos insanos
De curar academias
Com os tais calomelanos
Das modernas francesias,

São custosas fantasias
Para a arte e seus arcanos;
Mil vezes as ferrovias
E os carros americanos.

Façamos com que dois manos,
Saindo às ave-marias
De Ubá ou Curitibanos,
Vão almoçar a Caxias.

Mas gastar novas quantias,
Para ter alguns maganos
Que pintem quatro marias
E as bodas de dois ciganos;

Ou meia dúzia de ulanos
Entre bélicas porfias,
Ou revoltas de oceanos...
Sou seu criado Mathias!

Lá para ver agonias
De um mártir, de dois tiranos,
Conheço melhores vias:
É ler casos mexicanos.

Se os Zeferinos ufanos
Podem ser seguros guias
Digam lá os paduanos;
Não sou dessas freguesias.

São talvez cerrancerias,
Chamam-me a flor dos marcianos,
Cá vou pelas simpatias
Cá dos meus paroquianos.

Neste tempo de pianos,
Lembra-me ainda as poesias
Em que falavam Albanos
Com as pastoras Armias.

Então quando as minhas tias,
Casadas com dois baianos,
Tinham as peles macias,
Inda sem rugas nem panos;

E nos meses marianos,
Cantavam as melodias,
Que os nossos peitos humanos
Enchem de melancolias;

Enquanto duras harpias
Com a guerra dos Cabanos,
Tiravam sangue às bacias,
Além de outros muitos danos;

E as velhas tinham bichanos,
Que eram as suas manias,
E os primos Salustianos
Iam às alcomanias;

Então as mesmas teorias
Tinha a arte e seus fulanos:
Tudo o que agora copias
Copiaram veteranos.

E os fulanos e sicranos,
Batizados noutras pias,
Podiam ser Ticianos,
Sem novas filosofias.

Concluo que as velharias,
Como os tabacos havanos,
Podem trazer alegrias
A nós, como aos turcomanos.

Que mais? Bahias? Tucanos?
São rimas de melodias...
Deus lhes dê muito bons anos,
Deus lhes dê muito bons dias.

 

N° 44
(18 de janeiro de 1888)

Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

Para quem gosta de sangue...
Peço à leitora querida
Não desmaie nem se zangue;
Não venho arrancar-lhe a vida.

A gente pode, em conversa,
Dizer alguns nomes duros,
Não por índole perversa,
Nem maus costumes impuros.

Se achar algum dito horrendo,
Não desmaie nem se zangue...
Porém, como ia dizendo,
Para quem gosta de sangue,

Houve-o em Moura, São Fidélis,
Grajaú, Piracicaba;
Esfriam muitas peles
Na própria grave Uberaba.

Ali, fogueira queimando,
Muito antes de Santo Antônio,
Cará de gosto execrando
Para a boca do demônio.

Mais longe, uma catequese;
Mais perto, uns tiros trocados...
Quem souber rezar que reze
Por alma de tais finados.

Eu, de todas essas cenas
Que acaso coincidiram,
E que outras melhores penas,
Em prosa, já referiram,

Confesso que a de Uberaba
Vale mais que outra nenhuma;
Tem luz que se não acaba,
Ensina e conforta, em suma.

Note-se que lá não houve
Sangue propriamente dito,
Omissão que é bom se louve
Em vista de outro conflito.

E por quê? Porque um Sampaio
Que, pelo nome não perca,
Para copiar o raio,
Que voa, mas não alterca,

Logo que viu a gente armada
Vociferando nas ruas,
Disposta, pronta, assentando
A ir a cenas mais cruas,

Bradar que ou lhe tiraria,
Sem compaixão a existência,
Ou ele a favorecia
Nada mais que com a ausência,

Ele, coronel e cabo
De partido, achou cabido
Não afrontar o diabo
Na gente do outro partido.

Saiu; logo a gente amiga
Para trazê-lo de novo,
Cuidou de uma vasta liga
E andou ajuntando povo.

De modo que, se lá volta,
Havia provavelmente
Nova e sangrenta revolta,
Em que morreria gente.

Poupou-se uma cena crua;
Sampaio ficou de fora.
Tem casa ali, casa sua;
Morava; já lá não mora.

Porém onde a luz do caso?
Que há aí que conforte e ensine?
Escute, ou vai tudo raso,
Depois de escutar, opine.

A luz é que tem Sampaio,
Com a maior segurança,
Nas mãos um futuro ensaio
De desforra e de vingança.

Ponha-se de lá à espreita
De ocasião valiosa,
E vá com a sua seita
Contra o Borges, contra a Rosa,

Contra o marques e os capangas
Ponha-os fora da cidade,
E entre vivas e charangas
Fique em paz e em liberdade.

Virá dia em que eles troquem
As bolas contra Sampaio,
E a toque de caixa o toquem
Nas asas de novo raio.

Fuja então; de novo espreite,
E a murro e a tiro os disperse,
Tranquilamente se deite
E alegremente converse.

E assim, aumentando a soma
Das proscrições alternadas,
Uberaba será Roma,
Ambas imortalizadas.

Ora Mário, agora Sila,
Um de dentro, outro de fora,
Ante-fila ou serra-fila,
Ora Sila, Mário agora.

E não haverá na vida,
Na vida em que tudo acaba,
Coisa mais apetecida
Que ir viver para Uberaba.

 

N° 45
(4 de fevereiro de 1888)

Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

Não, senhor, por mais que possa
Achar censura, confesso
Que não tenho medo à troça,
Referindo este sucesso.

Há muito que me pejava
Da botoeira que tenho,
Cava, inteiramente cava;
Sem qualquer sinal de engenho.

De serviço ou caridade,
Coisa que haja merecido
A particularidade
De me fazer distinguido.

Não é que imitar quisesse
O José Telha, que corre
Por fita que não merece,
E se lha não derem, morre.

Não quis hábito da Rosa,
Cristo nem Pedro Primeiro,
Avis ou mesmo a famosa
Fita do grave Cruzeiro.

São moedas da coroa,
E eu, democrata, não devo
Expor a minha pessoa
A ser contrária ao que escrevo.

Mas então, de que maneira
Preencheria o vazio
Desta minha botoeira
Sem diminuir o brio?

O que desde logo acode
É por uma flor bonita,
Ou Rosa ou cravo, que pode
Suprir muito bem a fita.

Porém, dês que a alma nossa
Tem casaca e bem talhada,
Preciso é fita que possa
Encher-lhe a casa sem nada.

Mas que fita? em que armarinho
Recente podia havê-la?
Encontrei logo o caminho:
Corri a Venezuela.

Venezuela tem uma
Ordem muito bem disposta,
Com que premiar costuma,
Costuma, procura e gosta.

Tem grã-cruzes, tem comenda,
Tem dignitárias e o resto.
Há para todas as prendas
Um sinal brilhante e honesto.

Ordem é mui bem fundada
Sobre a liberdade amiga,
Grave como a Anunciada,
Como o Banho, como a Liga.

Simão Bolívar se chama,
Grande nome e livre nome;
Coroou-o eterna fama
Do louro que se não some.

A venera é justamente
Como são outras veneras,
Usa-se ao colo pendente,
Ao peito, em forma de esferas.

A fita é de chamalote,
Como são as outras fitas,
Não é certo que desbote
E tem as cores bonitas.

Quanto ao efeito no rosto
Da multidão é perfeito;
Dá o mesmo grande gosto
E o mesmíssimo despeito.

Corri a Venezuela,
Venezuela escutou-me,
Pude logo convencê-la,
Ouviu-me, condecorou-me.

Não é só a monarquia
Que tem plantas reverendas;
Vento da democracia
Também faz brotar comendas.

 

N° 46
(10 de fevereiro de 1888)

Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

Eu, acionista do Banco
Do Brasil, que nunca saio,
Que nunca daqui me arranco,
Inda que me caia um raio,

Para saber como passa
O Banco em sua saúde,
Se alguma coisa o ameaça,
Se ganha ou perde em virtude.

Li (confesso) alegremente,
Li com estas minhas vistas,
O anúncio do presidente
Convocando os acionistas.

Para quê? Para o debate
Do reformado estatuto,
Obra em que há de haver combate,
Que traz gozo, que traz luto.

Pois nesse anúncio, à maneira
De censura, escreve o homem
Que é já esta a vez terceira
Que chama e que eles se somem.

Minto: sumiram-se duas.
Não tem culpa o anunciante,
Se há necessidades cruas
Do metro e de consoante.

Pela vez terceira os chama,
E agora é definitivo,
Muitos que fiquem na cama,
Um só punhado é preciso.

Mas eu pergunto, e comigo
Perguntam muitos colegas,
Que, indo pelo vezo antigo,
Não vão certamente às cegas;

— O acionista de um banco,
Só por ser triste acionista,
É algum escravo branco?
Não tem foro que lhe assista?

Não pode comer quieto
O seu costumado almoço,
Debaixo do próprio teto,
Velho já, maduro ou moço?

Barriga cheia, não pode
Dormitar o seu bocado,
Para que o não incomode
O que tiver almoçado?

Pois então a liberdade
Que tem toda a outra gente
Cidadã, meu Deus, não há de
Tê-la esta pobre inocente?

É certo que os diretores
Do Banco são reduzidos
A quatro, e que outros senhores
Vão a menos: suprimidos.

Em tal caso, é razão boa
Para que, firmes, valentes,
Compareçam em pessoas
Diretores e gerentes.

Res vestra agitur. Justo.
Mas que temos nós com isto?
Para que me metam susto
Só outra coisa, está visto.

Sim, o que algum susto mete,
Transtorna, escurece, arrasa,
Não é que eles sejam sete
Ou quatro os chefes da casa.

Sejam sete ou quatro, ou nove,
Disponham disto ou daquilo,
É coisa que me não move,
Posso digerir tranquilo.

Porquanto, digo, em havendo
Nas unhas dos pagadores
Um bonito dividendo,
Que nos importam divisores.

Tenham estes cara longa,
Cabelo amarelo ou preto,
Nasceram em Covadonga,
Em Tânger, em Orvieto;

Usem de barbas postiças,
Ou naturais, ou nenhumas;
Creiam em sermões, em missas,
Ou na sibila de Cumas;

Para mim é tudo mestre,
Contanto que haja, certinho,
No fim de cada semestre
O meu dividendozinho.

 

N° 47
(16 de fevereiro de 1888)

Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

Talvez o leitor não visse,
Entre editais publicados,
Uma boa gulodice?
Abra esses beiços amados.

Vamos, não tenha vergonha,
Estenda agora a linguinha,
Para que esta mão lhe ponha
Sobre ela esta cocadinha.

Disse nesse documento
A câmara que é vedado
Usar o divertimento
Entrudo, como é chamado.

Impôs as palavras duras
Do parágrafo e artigo
Do código de posturas,
Código já meio antigo.

A mim disse que a pessoa
Que outras pessoas molhasse,
Fosse a água má ou boa
Que das seringas jorrasse,

Incorreria na multa
De uns tantos mil-réis taxados,
E não ficaria inulta,
Se os não desse ali contados.

Porque iria nesse caso
Pagar suas tropelias
Na cadeia, por um prazo
De (no mínimo) dois dias.

E as laranjas, que se achassem
Na rua ou na estrada à venda,
Mandava que se quebrassem,
Como execrável fazenda.

Laranja, bem entendido,
Laranja, própria de entrudo,
Um globo de cera, enchido
Com água... às vezes, com tudo.

Ora, se o leitor compara
A exemplar compostura
Do povo (exemplar e rara)
Com o dizer da postura;

Se adverte que uma só pinga
De água não caiu na gente,
Que não houve uma seringa
Para acudir a um doente;

Que o belo colo das damas
Não viu o gesto brejeiro
De apagar-lhe internas chamas
Quebrando um limão de cheiro;

Conclui logo que a cidade
Obedece, antes de tudo,
A si (porque a edilidade
É ela) e deixou o entrudo.

Porém eu, que vi, em todos
Os anos, isto na imprensa,
Já desde o tempo dos godos
(João, com tua licença!);

E que, apesar de postura,
Vi seringas respeitáveis
De água cheirosa e água pura,
Terríveis e inopináveis;

Crioulas e molequinhos
Carregando em tabuleiros
Prontinhos e arrumadinhos
Infindos limões de cheiro;

Eu diversamente opino,
E digo que a lei se engana,
Se cuida ter no destino
Alguma ação soberana.

Recorda a mosca pousada
Na carroça, diz a fama,
Que, ao vê-la desatolada,
Cuidou tirá-la da lama.

Não, amiga lei. O entrudo
Desapareceu um dia
Entre calções de veludo,
Carnavalesca folia.

Reapareceu mais tarde;
Vingou por bastantes anos,
Com estrondo, com alarde,
Triunfos grandes e ufanos.

Chega a polícia de novo
E desterra o velho entrudo;
Troca de brinquedo o povo,
Fica somente veludo.

Mas quando houverem passado
O tempo e a polícia, a ponta
Da orelha do desterrado
Entre bisnagas aponta.

E porque legem habemus,
Seja branda ou seja dura,
Anualmente veremos
A mesma inútil postura.

 

N° 48
(24 de fevereiro de 1888)

Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.

Juro-lhe, meu caro amigo
Leitor, pelo que há sagrado,
Que eu, que a triste regra sigo
De viver apoquentado;

Que suporto as sanguessugas
Humanas e desumanas,
Que não ganhei estas rugas
Em redes e tranquitanas;

Que aturo todo o importuno,
Que me refere a maneira
Por que o demo de um gatuno
Lhe foi levando a carteira;

Ou me conta tudo, tudo
(Mas tudo!) o que há padecido,
Para que, após longo estudo,
Ver que foi indeferido;

Que com ânimo quieto,
Leio, depois de almoçado,
Tudo o que sobre o arquiteto
Magalhães se há publicado;

Juro-lhe, leitor, repito,
Que cometer não quisera
O mais pequeno delito
Que este mundo haver pudera.

Furtar um par de galinhas,
Dizer algum nome feio,
Chegar mesmo às facadinhas,
Dar dois cachações e meio.

Não porque a moral condene
Tais atos; condena, é certo,
De um modo grave e solene,
Determinativo e aberto;

Nem também porque, somadas
As contas, mais ganha a gente
Passando as horas caladas
No belo sono inocente.

Não, senhor; outra é a causa,
É outra, uma certa lista,
Que é preciso ler com pausa,
Mente clara e clara vista.

Do rol dos processos digo
Que ao tribunal dos jurados
Foram, para seu castigo,
Inda agora apresentados.

Que traz esse rol? Descubro
Entre outros muitos nomes
Que em oitenta e seis, outubro,
Foi preso um Antônio Gomes.

Pronunciado em janeiro
De oitenta e sete, entra agora
No julgamento primeiro
Do que fez em tão má hora!

Mais três, um Afonso Rosa,
Um Coelho, uma tal Francisca
Xavier, trempe graciosa,
Ao parecer, pouco arisca.

Visto que foi agarrada
Logo em março, dezessete,
Em março pronunciada,
Em março de oitenta e sete!

Há também na lista um certo
Francisco Peres Soares,
Já em abril descoberto
E mandado a tomar ares;

O qual logo em maio teve
Pronúncia do seu delito;
Fez um ferimento leve,
Foi preso ao som de um apito.

Ora, com franqueza, vale,
Ser criminoso em tal era?
Uma peça de percale
Paga tão comprida espera?

Um tabefe, uma rasteira,
Mesmo uma canivetada,
Pagou de alguma maneira
A espera desesperada;

Portanto, e vistos os autos,
Dou de conselho prudência,
E digo aos homens incautos
Que inda o melhor é a inocência.



---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023 

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