3/07/2023

Graça Aranha de "Canaã" (Resenha), por: Paulo Marçaioli


Por: Paulo Marçaioli
Blog: esperandopaulo
 No ensino de literatura no ensino médio somos ensinados e compreender a evolução da literatura brasileira de acordo com “escolas” que se sucedem de forma cronológica e linear: do romantismo ao realismo; do realismo ao naturalismo; do naturalismo ao simbolismo, etc. etc. 

Dentre estas categorias, uma daquelas mais discutíveis é a de pré-modernismo, que se situaria entre 1900 e 1922, tendo como termo final a primeira irrupção modernista oriunda da Semana de Arte Moderna. Dentro desta categoria residual se situam autores absolutamente diferentes em termos de estilo e objetos de análise e descrição: Lima Barreto, Euclides da Cunha e Graça Aranha são comumente associados ao dito pré-modernismo. 

Contudo, pode-se de fato pensar este período da trajetória da nossa literatura como um momento de transição: nela ainda se observam aspectos caros do naturalismo, perspectiva em que o homem olha objetivamente a realidade, sem enfeites de imaginação que, frequentemente, resultam da impossibilidade ou da impotência em explicá-la. Tal qual um cientista que analisa os fatos da natureza, o escritor naturalista expressa o mundo onde pousa os seus pés. Ao menos em Canaã, estão igualmente presentes os pressupostos teóricos da escola naturalista envolvendo determinismo, o darwinismo social e as teorias evolucionistas. 

Além disso, no mais conhecido romance de Graça Aranha já se antecipa uma preocupação central do modernismo brasileiro. Nem tanto a experimentação formal influenciada pelas vanguardas europeias mas a preocupação subjacente daquele movimento de se explicar o Brasil através de sua experiência histórica para assim apontar perspectivas de futuro do país.

Canaã pode ser entendido como um romance de tese, que expressa o debate intelectual da época. 

O livro trata das colônias alemãs situadas no interior do Espírito Santo. As colônias decorriam de um movimento iniciado ainda no século XIX de estímulo da vinda de imigrantes europeus ao Brasil, não só como meio de substituir o trabalho escravo, cuja abolição deu-se em 1888, mas por conta de considerações raciais relacionadas ao debate intelectual da época. 

Os dois principais personagens, os alemães Milkau e Lentz, expressam dois pontos de vistas distintos relacionados às discussões do período em torno de raça, cultura e o futuro do Brasil. 

Milkau, desiludido com a Europa, busca no Brasil o recomeço de sua existência na virgindade de um mundo que estava para ser construído. Via na miscigenação brasileira algo positivo, já que pensava a evolução humana relacionada à confluência de raças. Rejeitava o patriotismo alemão e entendia que as guerras e a luta entre os homens, no futuro, seriam superadas pela solidariedade e o amor. 

Há quem diga que este personagem fora inspirado em Tolstói e de fato suas intervenções remetem a algo próximo de um socialismo utópico. 

Lentz parece ser o exato oposto de seu amigo Milkau. Via a imigração alemã como uma oportunidade de subjugar os negros e mestiços do país. Línguas, culturas e civilizações duelam até a prevalência da raça mais forte, no caso a alemã. Enquanto seu companheiro via beleza na harmonia entre o homem e a exuberância da natureza brasileira, Lentz enxerga a beleza na luta e na vitória do mais forte, na dominação do homem sobre a natureza. Pode-se relacionar as suas ideias com a moral nietzschiana: a apologia do mais forte, o desprezo pelos fracos e pela caridade cristã. 

“Milkau era agricultor por instinto, e todas as suas faculdades de atenção, de imaginação, as empregava com desvelo e ardor no trabalho com as próprias mãos, que enobrecia o seu destino humano. Lentz era o caçador. Restringindo a um círculo de limitada atividade, o seu espírito, sempre retrógrado, buscava expandir-se nessa forma inicial e selvagem de civilização. Caçava, lutava com os animais, devastava matas, e aliado a outros colonos de igual inclinação, em poucos meses para ele já não havia segredos na floresta brasileira. No mesmo teto esses dois homens exprimiam duas culturas diferentes. Um oferecia um mundo de façanhas, matanças, sacrifícios de sangue, e o outro, simples lavrador, frutos da terra, flores do seu jardim...”. 

Expressando o debate intelectual da época, em Canaã se percebe que a categoria de raça e cultura eram mais centrais do que o conceito de sociedade, para os sociólogos e antropólogos de fins do XIX e início do XX. 

A despeito da história retratar uma colônia de camponeses alemães, o debate que a obra suscita diz respeito aos dilemas do desenvolvimento brasileiro: os personagens principais oriundos de uma país distante, ao tecer cada um os seus pontos de vista sobre a realidade nacional, possibilitam uma visão mais equidistante acerca das possibilidades da civilização brasileira. Isso sem dizer das passagens do livro que retratam o relacionamento dos colonos estrangeiros com os brasileiros, especialmente as autoridades políticas corruptas. 

Válido ressaltar que Graça Aranha, na condição de diplomata, participara pessoalmente do projeto de incentivo da imigração europeia do Brasil. 

O que não significa dizer que o livro chega a conclusões eugênicas envolvendo o a prevalência da raça branca sobre mestiços e mulatos. 

Ao longo da história, ao se depararam com as corriqueiras tragédias sociais relacionadas à pobreza e à intolerância humana, cada um dos personagens revê as suas próprias ideias iniciais. Ao fim e ao cabo, o livro não apresenta respostas senão aquilo que foi definido pela crítica de “pessimismo esperançoso”: a miscigenação permitiria o desenvolvimento através da criação de um povo com características próprias; e, por outro lado, esta miscigenação transformaria os nativos ao ponto de se tornarem irreconhecíveis em relação ao seu próprio país.

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