3/03/2023

Música do Parnaso (Poesia), de Manuel Botelho de Oliveira


MÚSICA DO PARNASO


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SONETOS 
(Primeiro coro de rimas portuguesas em versos amorosos de Anarda)
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I
ANARDA INVOCADA

Invoco agora Anarda lastimado
Do venturoso, esquivo sentimento:
Que quem motiva as ânsias do tormento,
É bem que explique as queixas do cuidado.

Melhor Musa será no verso amado,
Dando para favor do sábio intento
Por Hipocrene o lagrimoso alento,
E por louro o cabelo venerado.

Se a gentil formosura em seus primores
Toda ornada de flores se avalia,
Se tem como harmonia seus candores;

Bem pode dar agora Anarda impia
A meu rude discurso cultas flores,
A meu plectro feliz doce harmonia.

 

II
PERSUADE A ANARDA QUE AME

Anarda vê na estrela, que em piedoso
Vital influxo move amor querido,
Adverte no jasmim, que embranquecido
Cândida fé pública de amoroso.

Considera no Sol, que luminoso
Ama o jardim de flores guarnecido;
Na rosa adverte, que em coral florido
De Vênus veste o nácar lastimoso.

Anarda pois, não queiras arrogante
Com desdém singular de rigorosa
As armas desprezar do Deus triunfante:

Como de amor te livras poderosa,
Se em teu gesto florido e rutilante
És estrela, és jasmim, és Sol, és rosa?

 

III
PONDERAÇÃO DAS LÁGRIMAS DE ANARDA

Suspende, Anarda, as ânsias do alvedrio,
Quando a fortuna cegamente ordena
Essa dor, que dilatas pena a pena,
Esse aljôfar, que vertes fio a fio.

Se és dura rocha no rigor ímpio,
Se és br brilhadora luz na fronte amena;
A triste chuva de cristais serena,
Da sucessiva prata embarga o rio.

Mais ai, que não depões o sentimento,
Para que em ti padeça rigor tanto,
Se tens meu coração no peito isento.

De sorte, pois, que no amoroso encanto
Avivas em teu peito o meu tormento,
Derramas por teus olhos o meu pranto.
 

IV
SOL, E ANARDA

O Sol ostenta a graça luminosa,
Anarda por luzida se pondera;
O Sol é brilhador na quarta esfera,
Brilha Anarda na esfera de formosa.

Fomenta o sol a chama calorosa,
Anarda ao peito viva chama altera,
O jasmim, cravo e rosa ao Sol se esmera,
Cria Anarda o jasmim, o cravo e rosa.

O Sol à sombra dá belos desmaios,
Com os olhos de Anarda a sombra é clara,
Pinta Maios o Sol, Anarda Maios.

Mas (desiguais só nisto) se repara
O Sol liberal sempre de seus raios,
Anarda de seus raios sempre avara.

 

V
MOSTRA-SE QUE A FORMOSURA ESQUIVA 
NÃO PODE SER AMADA

A pedra ímã, que em qualidade oculta
Naturalmente atrai o ferro impuro,
Se não vê do diamante o lustre puro,
Prende do ferro a simpatia inculta.

Porém logo a virtude dificulta,
Quando se ajunta c'o diamante duro:
Que um ódio até nas pedras é seguro,
Que até nas pedras uma inveja avulta.

Prendendo pois com atração formosa
A formosura, qual Ímã se aviva,
É diamante a dureza rigorosa;

Aquela junta com a dureza esquiva,
Não logra a simpatia de amorosa,
Perde a virtude logo de atrativa.

 

VI
IRAS DE ANARDA CASTIGADAS

Do cego Deus, Anarda, compelido
Vejo teu rosto e digo meu tormento;
Digo para favor do sentimento,
Vejo para recreio do sentido;

As rosas de teu rosto desabrido,
De teus olhos o esquivo luzimento;
Este fulmina logo o raio isento
Estas espinham logo ao Deus Cupido.

Porém para experiências amorosas,
Quando de amor as ânsias atropelas,
As perfeições se mudam deslustrosas:

Porque tomando amor vingança delas,
Nos rigores te afeia as lindas rosas,
Nas iras te escurece as luzes belas.

 

VII
VENDO A ANARDA DEPÕE O SENTIMENTO

A Serpe, que adornando várias cores,
Com passos mais oblíquos, que serenos,
Entre belos jardins, prados amenos,
É maio errante de torcidas flores;

Se quer matar da sede os desfavores,
Os cristais bebe co'a peçonha menos,
Porque não morra c'os mortais venenos,
Se acaso gosta dos vitais licores.

Assim também meu coração queixoso,
Na sede ardente do feliz cuidado
Bebe c'os olhos teu cristal formoso;

Pois para não morrer no gosto amado,
Depõe logo o tormento venenoso,
Se acaso gosta o cristalino agrado.

 

VIII
CEGA DUAS VEZES, VENDO A ANARDA

Querendo ter amor ardente ensaio,
Quando em teus olhos seu poder inflama,
Teus sóis me acendem logo chama a chama.
Teus sóis me cegam logo raio a raio.

Mas quando de teu rosto o belo Maio
Desdenha amores no rigor que aclama,
De meus olhos o pranto se derrama
Com viva queixa, com mortal desmaio,

De sorte, que padeço os resplendores,
Que em teus olhos luzentes sempre avivas,
E sinto de meu pranto os desfavores

Cego me fazem já com ânsias vivas
De teus olhos os sóis abrasadores,
De meus olhos as águas sucessivas.

 

IX
RIGORES DE ANARDA NA OCASIÃO DE UM TEMPORAL

Agora o céu com ventos duplicados,
E com setas de prata despedidas,
Se enfurece com nuvens denegridas,
E se irrita com golpes fulminados.

Quando Anarda em tormentos desprezados
Fulmina nas finezas padecidas
Os raios dos rigores contra as vidas,
As nuvens dos desdéns contra os cuidados.

Mas uma e outra tempestade encerra
Diverso mal nas amorosas calmas,
Ou quando forma da borrasca a guerra:

Porque perdendo amor ilustres palmas,
Aquela é tempestade contra a terra,
Mas esta é tempestade contra as almas.

 

X
PONDERAÇÃO DO ROSTO E OLHOS DE ANARDA

Quando vejo de Anarda o rosto amado,
Vejo ao céu e ao jardim ser parecido;
Porque no assombro do primor luzido
Tem o Sol em seus olhos duplicado.

Nas faces considero equivocado
De açucenas e rosas o vestido;
Porque se vê nas faces reduzido
Todo o Império de Flora venerado.

Nos olhos e nas faces mais galharda
Ao céu prefere quando inflama os raios,
E prefere ao jardim, se as flores guarda:

Enfim dando ao jardim e ao céu desmaios,
O Céu ostenta um Sol; dois sóis Anarda,
Um Maio o jardim logra; ela dois Maios.

 

XI
NÃO PODENDO VER A ANARDA 
PELO ESTORVO DE UMA PLANTA

Essa árvore, que em duro sentimento,
Quando não posso ver teu rosto amado,
Opõe grilhões amenos ao cuidado,
Verdes embargos forma ao pensamento;

Parece que em soberbo valimento,
Como a vara do próprio, que há logrado,
Dando essa glória a seu frondoso estado,
Nega essa glória a meu gentil tormento.

Porém para favor dos meus sentidos
Essas folhas castiguem rigorosas,
Os teus olhos, Anarda, os meus gemidos.

Pois caiam, sequem pois folhas ditosas,
Já de meus ais aos ventos repetidos,
Já de teus sóis às chamas luminosas.
 

XII
PONDERAÇÃO DO TEJO COM ANARDA 

Tejo formoso, teu rigor condeno,
Quando despojas altamente impio
Das lindas plantas o frondoso brio,
Dos férteis campos o tributo ameno.

Nas amorosas lágrimas, que ordeno,
Porque cresças em claro senhorio,
Corres ingrato ao lagrimoso rio,
Vás fugitivo com desdém sereno.

Oh como representa o desdenhoso
Da bela Anarda teu cristal ativo,
Neste e naquele efeito lastimoso!

Em ti já vejo a Anarda, ó Tejo esquivo,
Se teu cristal se ostenta rigoroso,
Se teu cristal se mostra fugitivo.

 

XIII
AO SONO

Quando em mágoas me vejo atribulado,
Vem, sono, a meu desvelo padecido,
Refrigera os incêndios do sentido,
Os rigores suspende do cuidado.

Se no monte Cimério retirado
Triste lugar ocupas, te convido
Que venhas a meu peito entristecido,
Porque triste lugar se tem formado.

Se querem noite escura teus intentos,
E se querem silêncio; nas tristezas
Noite e silêncio têm meus sentimentos:

Porque triste e secreto nas ternezas,
É meu peito uma noite de tormentos,
É meu peito um silêncio de finezas.

 

XIV
ANEL DE ANARDA PONDERADO

Esse vínculo, Anarda, luminoso,
Do mínimo jasmim prisão dourada,
Logra na mão beleza duplicada,
Quando logra na mão candor formoso.

Se te aprisiona seu favor lustroso,
Te retrata os efeitos de adorada;
Porque quando te adorna a luz amada,
Me aprisionas o peito venturoso.

Agora podem teus desdéns esquivos,
Na breve roda de ouro ver seguros,
Se cuidados, se incêndios logro ativos;

Pois nela considero em males duros,
Que tenho a roda dos cuidados vivos,
Que tenho o ouro dos incêndios puros.

 

XV
ANARDA ESCULPIDA NO CORAÇÃO LAGRIMOSO
Quer esculpir artífice engenhoso
Uma estátua de bronze fabricada,
Da natureza forma equivocada,
Da natureza imitador famoso.

No rigor do elemento luminoso,
(Contra as idades sendo eternizada)
Para esculpir a estátua imaginada,
Logo derrete o bronze lagrimoso.

Assim também no doce ardor que avivo,
Sendo artífice o amor, que me desvela,
Quando de Anarda faz retrato vivo;

Derrete o coração na imagem dela,
Derramando do peito o pranto esquivo,
Esculpindo de Anarda a estátua bela.

 

XVI
ANARDA TEMEROSA DE UM RAIO

Bramando o céu, o céu resplendecendo,
Belo a um tempo se via, e rigoroso,
Em fugitivo ardor o céu lustroso,
Em condensada voz o céu tremendo.

Gira de um raio o golpe, não sofrendo
O capricho de uma árvore frondoso:
Que contra o brio de um subir glorioso
Nunca falta de um raio o golpe horrendo.

Anarda vendo o raio desabrido,
Por altiva temeu seu golpe errante,
Mas logo o desengano foi sabido.

Não temas (disse eu logo) o fulminante:
Que nunca ofende o raio ao céu luzido,
Que nunca teme ao raio o Sol brilhante.

 

XVII
EFEITOS CONTRÁRIOS DO RIGOR DE ANARDA

Anarda bela no rigor sofrido
Deseja a morte ao lastimoso peito,
Sem ver que em seu perigo a morte aceito,
Pois sempre vive Anarda em meu sentido:

Mas como o mortal golpe desabrido
Nunca experimenta um infeliz sujeito,
Morro somente de amoroso efeito,
Nunca morro do golpe pretendido.

Teme em meu coração a Parca forte
O divino retrato, que convida
A meu peito amoroso imortal sorte.

De sorte pois, que em glória padecida
Anarda própria me deseja a morte,
Anarda própria me defende a vida.

 

XVIII
ESPERANÇAS SEM LOGRO

Se contra minha sorte enfim pelejo,
Que quereis, esperança magoada?
Se não vejo de Anarda o bem que agrada,
Não procureis o bem do que não vejo.

Quando frustrar-se o logro vos prevejo,
Sempre a ventura espero dilatada;
Não vejo o bem, não vejo a glória amada,
Mas que muito, se é cego o meu desejo?

Enfermais do temor e não se alcança
O que sem cura quer vossa loucura;
E morrereis de vossa confiança.

Esperança não sois, porém se apura,
Que só nisto sereis certa esperança:
Em ser falsa esperança da ventura.

 

XIX
ENCARECE A FINEZA DO SEU TORMENTO

Meu pensamento está favorecido,
Quando cuida de Anarda o logro amado;
Ele se vê nas glórias do cuidado,
Eu me vejo nas penas do sentido.

Ele alcança o formoso, eu o sofrido,
Ele presente vive, eu retirado;
Eu no potro de um mal atormentado,
Ele no bem, que logra, presumido.

Do pensamento está muito ofendida
Minha alma, do tormento desejosa,
Porque em glória se vê, bem que fingida:

Tão fina pois, que está por amorosa,
De um leve pensamento arrependida,
De um vão contentamento escrupulosa.

 

XX
ROSA E ANARDA

Rosa da formosura, Anarda bela
Igualmente se ostenta como a rosa;
Anarda mais que as flores é formosa,
Mais formosa que as flores brilha aquela.

A rosa com espinhos se desvela,
Arma-se Anarda espinhos de impiedosa;
Na fronte Anarda tem púrpura airosa,
A rosa é dos jardins purpúrea estrela.

Brota o carmim da rosa doce alento,
Respira olor de Anarda o carmim breve,
Ambas dos olhos são contentamento:

Mas esta diferença Anarda teve:
Que a rosa deve ao Sol seu luzimento,
O Sol seu luzimento a Anarda deve.



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MADRIGAIS
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I
NAVEGAÇÃO AMOROSA

É meu peito navio,
São teus olhos o Norte,
A quem segue o alvedrio,
Amor Piloto forte;
Sendo as lágrimas mar, vento os suspiros,
A venda velas são, remos seus tiros.

 

II
PESCA AMOROSA

Foi no mar de um cuidado
Meu coração pescado;
Anzóis os olhos belos;
São linhas teus cabelos
Com solta gentileza,
Cupido pescador, isca a beleza.

 

III
NAUFRÁGIO AMOROSO

Querendo meu cuidado
Navegar venturoso,
Foi logo soçobrado
Em naufrágio amoroso;
E foram teus desdéns contrário vento,
Sendo baixo o meu vil merecimento.

 

IV
EFEITOS CONTRÁRIOS DE ANARDA

Se sai Anarda ao prado,
Campa todo de flores matizado;
Se sai à praia ondosa,
Brilha toda de raios luminosa;
Enfim, se está presente,
Tudo se vê contente;
Mas eu só nos desdéns, com que me assiste,
Quando presente está, me vejo triste.

 

V
PONDERAÇÃO DO ROSTO, E SOBRANCELHAS DE ANARDA

Se as sobrancelhas vejo,
Setas despedes contra o meu desejo;
Se do rosto os primores,
Em teu rosto se pintam várias cores;
Vejo, pois, para pena e para gosto
As sobrancelhas arco, Íris o rosto.

 

VI
ENCARECIMENTO DOS RIGORES DE ANARDA

Se meu peito padece,
O rochedo mais duro se enternece;
Se afino o sentimento,
O tronco se lastima do tormento;
Se acaso choro e canto,
A fera se entristece do meu pranto;

Porém nunca estas dores
Abrandam, doce Anarda, teus rigores.
Oh condição de um peito!
Oh desigual efeito!
Que não possa abrandar uma alma austera
O que abranda ao rochedo, ao tronco, à fera!

 

VII
VER, E AMAR

Anarda vejo e logo
A meu peito atormenta o brando fogo;
Enfim quando me inflama,
Procedendo da luz a bela chama,
Vejo por glórias, sinto por desmaios,
Relâmpagos de luz, de incêndios raios.

 

VIII
CABELO PRESO DE ANARDA

Se esse vínculo belo
Prende, divina ingrata, teu cabelo;
Justa prisão lhe ofende.
Quando em castigos prende a quem me prende;
Querendo a lei de amor, quando o condena,
Que seja a própria culpa própria pena.

 

IX
AO VÉU DE ANARDA

Negando um véu ditoso
Da bela Anarda o resplendor queixoso,
Beberam meus suspiros
De amor as chamas, e do amor os tiros;
De sorte que em motivos de meu gosto
Era venda do amor o véu do rosto.

 

X
AO MESMO

Se me encobres, tirana,
De teu rosto gentil a luz ufana,
Julga meu pensamento
Que hás de dar bem ao mal, gosto ao tormento;
Sendo esse linho, se padeço tanto,
Às chagas atadura, lenço ao pranto.

 

XI
DESDÉM E FORMOSURA

Querendo ver meu gosto
O Cândido e purpúreo de teu rosto,
Sinto o desdém tirano,
Que fulmina teu rosto soberano;
Mata-me o esquivo, o belo me convida,
Encontro a morte, quando busco a vida.

 

XII
ANARDA ESCREVENDO

Quando escreves, ordena
Meu amor que te dite minha pena;
Para que decorada,
De ti seja lembrada:
Mas ai, que na lição da pena impia
Me botas os borrões da tirania.

 

XIII
NÃO PODE O AMOR PRENDER A ANARDA

Amor, que a todos prendes
Naquele doce ardor que n'alma acendes,
Prende a Anarda, que dura
Isenta de teu fogo a formosura;
Mas ai, que já não podes, pois primeiro
Em seus olhos ficaste prisioneiro.

 

XIV
SEPULCRO AMOROSO

Já morro, doce ingrata,
Já teu rigor me mata:
Seja enterro o tormento,
Que inda morto alimento;
Por responsos as queixas,
Se tiras-me a vida e o amor me deixas;
E por sepulcro aceito,
Pois teu peito é de mármore, teu peito.

 

XV
AMANTE PRESO

Anarda, fui primeiro
De teus valentes raios prisioneiro;
Prendeu-me agora o fado,
Às mãos de uma desgraça castigado;
Tenho pois de prisões dobrado peso;
No corpo preso estou, n'alma estou preso.

 

XVI
SUSPIROS

Quando o fogo se inflama,
Sobe ao céu natural a nobre chama;
Verás o mesmo efeito,
Divina Anarda, no amoroso peito,
Que em brando desafogo
Sobe o suspiro ardente de meu fogo
A teu luzido rosto; e não me admiro,
Pois é teu rosto céu, chama o suspiro.

 

XVII
ROSAS DE LISTÕES NO CABELO DE ANARDA

Quando, Anarda, hás formado
As rosas de listões nesse toucado,
Julga meu pensamento
Que produz os listões teu luzimento;
Que para florescer jardim tão belo,
São rosas os listões, Sol o cabelo.

 

XVIII
DOUTORAMENTO AMOROSO

Anarda, o Deus Cupido
Entre as leis de constante
Dá por prêmio luzido
O venturoso grau de sábio amante;
São propinas forçosas
As finezas custosas;
As orações prudentes,
Os rogos eloquentes;
Sendo Padrinho o agrado;
Doutor o coração, Borla o cuidado.

 

XIX
CONVENIÊNCIAS DO ROSTO, E PEITO DE ANARDA

Teu rosto por florido
Com belo rosicler se vê luzido;
Teu peito a meus amores
Brota agudos rigores;
Uniste enfim por bens e penas minhas
No rosto rosas, e no peito espinhas.

 

XX
AO MESMO

Ostentando esplendores,
Teu rosto vivifica mil candores;
Desprezando finezas,
Teu coração congela mil tibezas;
Por frio e branco enfim chamar se deve
Neve teu coração, teu rosto neve.

 

XXI
ANARDA VENDO-SE A UM ESPELHO

Anarda, que se apura
Como espelho gentil da formosura,
Num espelho se via,
Dando dobrada luz ao claro dia;
De sorte que com próvido conselho
Retrata-se um espelho noutro espelho.

 

XXII
ANARDA JOGANDO A ESPADILHA

Joga, Anarda formosa,
Espadilha amorosa:
Os Parceiros atentos
Sejam meus pensamentos;
Serão os matadores
Teus, esquivos rigores;
E por maior triunfo
A formosura o preço,
Amor o trunfo.

 

XXIII
TEME QUE SEU AMOR NÃO POSSA ENCOBRIR-SE

Não pode, bela ingrata,
Encobrir-se este fogo, que me mata;
Que quando calo as dores,
Teme meu coração que entre os ardores
Das chamas, que deseja,
Meu peito se abra e minha fé se veja.

 

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DÉCIMAS
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ANARDA VENDO-SE A UM ESPELHO

I
De Anarda o rosto luzia
No vidro, que o retratava,
E tão belo se ostentava,
Que animado parecia:
Mas se em asseios do dia
No rosto o quarto farol
Vê seu lustroso arrebol;
Ali pondera meu gosto
O vidro espelho do rosto,
O rosto espelho do Sol.

II
É da piedade grandeza
Nesse espelho ver-se Anarda,
Pois ufano o espelho guarda
Duplicada a gentileza:
Considera-se fineza
Dobrando as belezas suas,
Pois contra as tristezas cruas
Dos amorosos enleios
Me repete dois recreios,
Me oferece Anardas duas.

III
De sorte que, sendo amante
Da beleza singular,
Posso outra beleza amar,
Sem tropeços de inconstante;
E sendo outra vez triunfante
Amor do peito, que adora
Uma Anarda brilhadora,
Em dois rostos satisfeito,
Se em um fogo ardia o peito,
Em dois fogos arde agora.

IV
Porém depois rigorosa,
Deixando o espelho lustroso,
Oh como fica queixoso,
Perdendo a cópia formosa!
Creio pois que na amorosa
Lei o cego frechador,
Que decreta único ardor,
Não quis a imagem que inflama,
Por extinguir outra chama,
Por estorvar outro amor.

 

A UM CUPIDO DE OURO, 
QUE TRAZIA PRESO ANARDA NOS CABELOS

I
Ao Cíprio rapaz, isento,
De Anarda prende o rigor;
E se prende ao mesmo amor,
Que muito que a um pensamento?
Já no solto luzimento
Já nos olhos sempre amados,
Ali se veem ponderados,
Vencedores, não vencidos,
Os seus olhos por Cupidos,
Os cabelos por dourados.

II
Se já não foi que o Deus cego
Quer à bela Anarda amar;
Que bem se pode invejar
De um Deus tão divino emprego.
Em feliz desassossego,
Sentindo amorosa brasa,
Parece numa e noutra asa,
Quando de amante se enleia,
Ouro não, com que se asseia,
Chama sim, com que se abrasa.

III
Creio já que disfarçado
Quer lograr Anarda bela,
E naquele ouro desvela
Luzimentos de um cuidado:
Pois qual Jove namorado
Daquele belo tesouro,
Um e outro amante louro,
Ambos são no ardor querido,
Jove em ouro convertido,
Convertido amor em ouro.

 

LACRE ATREVIDO A UMA MÃO DE ANARDA

I
Quando a tanta neve pura
Liquida-se ardor luzente
Solicita o centro ardente
Nessa ardente formosura;
Oh como nele se apura,
Para que explique meu rogo
De meu pranto o desafogo!
Pois quando o lacre se adverte,
Lágrimas de fogo verte,
Verto lágrimas de fogo.

II
Porém com vário rigor
Essa chama lagrimosa,
Ardendo na mão formosa,
Queima da neve o candor:
Mas em teu peito, que amor
Nunca o transforma, sujeito,
Logra meu pranto outro efeito;
Pois quando padeço tanto,
Estilo o fogo do pranto,
Não queimo a neve do peito.

 

EXEMPLOS COM QUE SE 
CONSIDERA AMANTE DE ANARDA

I
Qual Girassol por amante
Solicita o ingrato Sol
Tal meu peito Girassol
O Sol de Anarda brilhante;
E qual no Estio flamante,
Quer Zéfiro, e quer verdor
O prado: quer meu amor,
Abrasado na esquivança,
O verdor de uma esperança,
O Zéfiro de um favor.

II
Qual o centro natural
Deseja o fogo nocivo,
Qual pretende o mar esquivo
Do rio ameno o cristal,
Tal busca em desejo igual
De Anarda no senhorio,
Que é centro de ardor impio,
Que é mar de cristais brilhante,
De meu peito o fogo amante,
De meu pranto o largo rio.

III
Qual o monte sublimado,
Qual a planta envelhecida;
Esta de folhas despida,
Aquele de cãs nevado;
Querem num e noutro estado
De abril o belo horizonte;
Tais querem de Anarda a fronte,
Como abril de graça tanta,
De meu pensamento a planta,
De minha firmeza o monte.

 

SONO POUCO PERMANENTE

Quando, Anarda, o sono brando
Quer suspender meus tormentos,
Condenando os sentimentos,
Os desvelos embargando;
Dura pouco, porque quando
Cuido que em belo arrebol
Estou vendo teu farol,
Foge o sono à cova fria;
Porque lhe amanhece o dia,
Porque lhe aparece o Sol.

 


COMPARAÇÕES NO RIGOR DE ANARDA

Quando Anarda me desdenha
Afetos de um coração,
É diamante Anarda? não,
Não diamante, porque é penha;
Penha não, porque se empenha,
Qual Áspide seu rigor forte;
Áspide não, que tem por sorte
Ser qual tigre na crueza;
Tigre não, que na fereza
Tem todo o império da morte.

 

ROSTO DE ANARDA

O Sol em belos ensaios,
Por representar-se belo
Com luminoso desvelo
De teu rosto aprende os raios;
De teu rosto os lindos
Maios Únicas luzes apura
Com qualquer beleza pura,
De sorte que no arrebol
É formosura do Sol,
Brilha Sol da formosura.

 

CRAVO NA BOCA DE ANARDA

Quando a púrpura formosa
Desse cravo, Anarda bela,
Em teu céu se jacta estrela,
Senão luzente, olorosa;
Equivoca-se lustrosa,
(Por não receber o agravo
De ser nessa boca escravo)
Pois é, quando o cravo a toca,
O cravo, cravo da boca,
A boca, boca de cravo.

 

ROSA NA MÃO DE ANARDA ENVERGONHADA

Na bela Anarda uma rosa,
Brilhando desvanecida,
Padeceu por atrevida
Menoscabos de formosa:
Porém não, que vergonhosa
Com mais bela galhardia
Do que era dantes, se via;
Pois quando se envergonhava,
Mais vermelha se jactava,
Mais formosa se corria.

 

COMPARAÇÃO DO ROSTO DE MEDUSA 
COM O DE ANARDA

Contra amorosas venturas
É de Medusa teu rosto,
E por castigo do gosto
São cobras as iras duras;
As transformações seguras
Acharás em meus amores;
Pois ficando nos ardores
Todo mudado em finezas,
Sou firme pedra às tristezas,
Sou dura pedra aos rigores.

 

COMPARAÇÃO DOS GIGANTES 
COM OS PENSAMENTOS AMOROSOS

Ao céu de Anarda lustroso
Com montes de vãos intentos
Subiram meus pensamentos
Gigantes, no ardor queixoso;
Fulminou logo o penoso
Castigo de desfavores
Apesar de altos primores;
Que em merecidos desmaios
Seus rigores foram raios
Etnas foram meus ardores.

 

ECO DE ANARDA

Entre males desvelados,
Entre desvelos constantes,
Entre constâncias amantes,
Entre amores castigados,
Entre castigos chorados,
E choros, que o peito guarda,
Chamo sempre a bela Anarda;
E logo a meu mal, fiel,
Eco de Anarda cruel
Só responde ao peito que Arda.



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REDONDILHAS
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ANARDA AMEAÇANDO-LHE A MORTE

Ameaças o morrer:
Como morte podes dar,
Se estou morto de um penar,
Se estou morto de um querer?

Mas é tal essa fereza,
Que quer dar a um fino amor
Uma morte com rigor,
Outra morte co'a beleza.

E com razão prevenida
Quis duplicar esta sorte,
Que a pena daquele é morte,
Que a glória daquela é vida.

Da morte já me contento,
Se por nojo de mal tanto
Derrames um belo pranto,
Formes um doce lamento.

Tornarás meu peito ativo
Com tão divino conforto,
Se ao rigor da Parca morto,
Por glória do pranto vivo.

De teu rigor aplaudidas
Serão piedosas grandezas;
Por que te armes mais ferezas,
Por que te entregue mais vidas.

Quando teu desdém se alista,
Impedes o golpe atroz;
Pois quando matas co'a voz,
Alentas então co'a vista.

Confunde pois a nociva
Impiedade, que te exorta,
A um tempo uma vida morta,
A um tempo uma morte viva.

De teu rigor os abrolhos
Se rompem da vida os laços,
Hei de morrer em teus braços,
Hei de enterrar-me em teus olhos.

 

QUE HÁ DE SER O AMOR UM SÓ

Uma alma do abrasador
Frecheiro é gloriosa palma;
Quem pois sacrifica uma alma,
Deve adorar um amor.

Rende amor por majestade
Do entender a excelência,
Da memória a persistência,
A inclinação da vontade.

Prendem belas sujeições
O coração nos ardores;
Quem pois cria dois amores,
Há mister dois corações.

Inconstante há de lograr
Dois fogos, por mais que anele:
Pois quando cuida naquele,
Neste já deixa de amar.

Inteiro amante não é,
Que no florido primor,
Partida a flor, não é flor,
Partida a fé, não é fé.

Amor é Sol no sujeito
Que belos incêndios cria;
E se brilha um Sol no dia,
Um amor brilhe no peito.

Veneno amor é julgado;
Mate pois, quando o condeno,
Se um veneno, outro veneno,
Um cuidado, outro cuidado.

Há de ser no coração
Um, ou outro emprego belo,
Agrado sim, não desvelo,
Faísca sim, chama não.

Venero enfim, se avalio
Entre muitos um desejo,
Muitas damas no cortejo,
Uma Anarda no alvedrio.

 

QUE O AMOR HÁ DE SER DESCOBERTO

Se brilha um fogo luzido,
(O mesmo no amor é certo)
Arder não pode encoberto,
Luzir não pode escondido.

Se é raio amor, rompa o medo,
Quando os sentidos inflama,
Patenteie a luz da chama,
Rasgue a nuvem do segredo.

Se quando a beleza adora,
Qual harmonia se estuda;
Nunca a harmonia foi muda,
Sempre a harmonia é sonora.

Atreva-se o amor constante
A publicar o que sente;
Não desmaie, se é valente,
Não se encolha, se é gigante.

Se brilha qual perla, ou rosa,
Nunca estimações ordena,
No botão a rosa amena,
Na concha a perla formosa.

Cupido n'afeição louca
Este intento há persuadido;
Os olhos cerra Cupido,
Não cerra Cupido a boca.

Se amor de ave tem a empresa,
Quando o encerra algum desprezo
Por violência vive preso,
Porém não por natureza.

Quando amor se mostra, é certo
Que, como se vê despido,
Não se encobre amor vestido,
Mostra-se amor descoberto.

Anarda pois, no amor ledo,
Por mais que silêncios gozes,
Se o cala o medo das vozes,
Dizem-no as vozes do medo.



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ROMANCES
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I
ANARDA PASSANDO O TEJO EM UMA BARCA

O Cristal do Tejo Anarda
Em ditosa barca sulca;
Qual perla, Anarda se alinda,
Qual concha, a barca se encurva.

Se falta o vento, Cupido
Batendo as asas com fúria,
Zéfiro alenta amoroso,
Aura respira segura.

Aumenta o Tejo seus logros,
Que com tanta formosura
Cristal em seu colo bebe,
Ouro em seu cabelo usurpa.

Se bem nas águas copiado,
Ali se viam confusas
Ondas de ouro no cabelo,
E do cristal ondas puras.

Já deixa o nome de rio,
Oceano se assegura,
Pois a branca Tétis logra,
Pois o claro Sol oculta.

Corta o aljofre escumoso,
Que como Vênus se julga,
Ufano se incha o aljofre,
Cândida se ri a escuma.

De seus olhos foge o rio,
Que pois nele a vista ocupa,
Evitar seus olhos trata,
Fugir às chamas procura.

Logrando o cabelo a barca,
(Se bem feliz, o não furta)
Um por véu de ouro se jacta,
Outra por Argo se inculca.

Ardem chamas n'água, e como
Vivem das chamas, que apura,
São ditosas Salamandras
As que são nadantes turbas.

Meu peito também, que chora
De Anarda ausências perjuras,
O pranto em rio transforma,
O suspiro em vento muda.

 

II
ANARDA DOENTE

Anarda enferma flutua,
E quando flutua enferma,
Jaz doente a formosura,
Está formosa a doença.

Se nela a doença triste
Bela está, que será nela
De tanta graça o donaire!
De tanta luz a beleza!

Se o mal é sombra, ou eclipse,
É pensão das luzes certa,
Que ao céu uma sombra aspire,
Que ao Sol um eclipse ofenda.

Cruéis prognósticos vejo,
Pois são ameaças feras,
O Sol entre eclipses pardos,
O Céu entre nuvens densas.

Quando as belas flores sentem
De Anarda a grave tristeza,
Digam-no as rosas na face,
Digam-no os jasmins na testa.

Faltam flores, faltam luzes,
Pois ensina Anarda bela
Lições de flores ao Maio,
E leis de luzes à Esfera.

As almas se admiram todas
Em repugnâncias austeras,
Vendo enferma a mesma vida,
Vendo triste a glória mesma.

Desdenhado amor se vinga,
Se n'ânsia a febre a condena;
Pois qual ânsia amor se forja,
Pois qual febre amor se gera.

Basta já, frecheiro alado,
Bate as asas, solta a venda;
Do rosto o suor lhe alimpa,
Do peito o ardor refresca.

Vem depressa, amor piedoso
Que te importa, pois sem ela
Em vão excitas as chamas,
Em vão despedes as setas.

Mas não teme a morte Anarda,
Que se uma morte a cometa,
Com mil almas se defende,
Com mil corações se alenta.

De mais sim que nunca a Parca
Contra Anarda se atrevera,
Que contra as frechas da morte
Fulmina de amor as frechas.

 

III
ANARDA SANGRADA

É bem que desate Anarda
De tanto sangue os embargos;
Sendo o sangue rio alegre,
Sendo Anarda abril galhardo.

Ensina no braço, e sangue
Com branco, e purpúreo ensaio,
A ser neve à mesma neve,
A ser cravo ao mesmo cravo.

Se bem num e noutro efeito,
Faz amor milagre raro;
Pois a neves une rosas,
Pois Dezembros une a Maios.

Se Anarda é vida de todos,
E o sangue à vida comparo:
Tantas vidas vai perdendo,
Quantos corais vai brotando.

Pára um pouco, e como teme
De haver dado morte a tantos,
Ficava presa à corrente,
Ficava sem sangue o braço.

E não mata a sangue frio,
Se com sangue está matando;
Pois aviva mil ardores,
Pois abrasa mil cuidados.

A sangue e fogo publica
Guerra a meu peito abrasado;
A sangue em corais vertidos,
A fogo em olhos tiranos.

Corre o sangue, porque dizem
Que está corrido, admirando
Do rosto o carmim confuso,
Da boca o nácar rasgado.

 

IV
ANARDA CHORANDO

Se o mar da beleza temes,
Alerta, amoroso peito,
Alije-se uma esperança,
Amaine-se um pensamento.

Tempestades lagrimosas
Te provocam os receios;
Pois vejo o dia nublado,
Pois não vejo o céu sereno.

Porém não temas, covarde,
Que na cor do rosto belo
Navego em maré de rosas,
Em um mar leite navego.

Mas inda naqueles olhos
Fatal prodígio me temo;
Quem viu água em brasas duas?
Quem viu chuva em dois luzeiros?

Não são piedade os suspiros,
Nem seu pranto, pois é certo
Brotar chamas uma pedra,
Abrir fontes um rochedo.

Se são astros, que me influem,
Amor, com razão receio
Impiedades nos cuidados,
Infortúnios nos desejos.

Vai a meu peito e seus olhos
Pelo amor, pelo tormento
Da vida os fios cortando,
Do pranto os fios vertendo.

Naquelas águas Cupido,
Por avaro e por severo,
Das chamas excita a sede,
Das setas amola o ferro.

E quando as lágrimas param
Nas gentis faces, pondero
Que se faz rubi, parando,
O que era aljofre correndo.

 

V
ANARDA COLHENDO NEVE

Colhe a neve a bela Anarda,
E nos peitos incendidos
Contra delitos de fogo
Arma de neve castigos.

Na brancura, na tibieza
Tem dois triunfos unidos;
Vence a neve à mesma neve,
Vence o frio ao mesmo frio.

Congela-se e se derrete
De sorte, que em branco estilo
A um desdém se há congelado
A dois sóis se há derretido.

Se não é que os candores
Daquela neve vencidos,
Líquidam-se pranto a pranto,
Lastimam-se fio a fio.

As mãos escurecem tanto
A neve, que em pasmos lindos
O que era prata chuvosa,
Ficava azeviche tíbio.

A seu Sol suspiros voam,
E tornam por atrevidos,
Como exalações do peito,
Em nevados desperdícios.

Da neve tiros me vibra,
E felizmente imagino
Que não são tiros de neve,
Que são mãos de Anarda os tiros.

Frustra a neve seus efeitos,
Que me tinham defendido,
De Anarda o Sol luminoso,
De amor o fogo nocivo.

 

VI
ANARDA CINGINDO UMA ESPADA

Varonilmente arrogante
Anarda se considera,
Já na fereza da espada,
Já na espada da fereza.

Em dois assombros unidas,
Duas deusas se veem nela;
Formosa Vênus se aclama,
Armada Palas se ostenta.

Não é muito que valente
Se preze, pois sempre altera,
Valentias no donaire,
Valentias na beleza.

Quis aumentar os rigores;
Por que matasse soberba,
Já da beleza nas luzes,
Já do ferro nas violências.

Porém parece frustrado,
Se o mortal ferro se empenha;
Porque quando esgrime o ferro,
Já deu morte à gentileza.

Porém quando mata os peitos,
Que ressuscitam de vê-la,
Noutra morte os ameaça,
Noutra vida os atropela.

Se já não é, que cingindo
Dura espada, representa
Da beleza a guerra dura,
Que a beleza é dura guerra.

Armada do agrado, e ferro,
Um e outro brio aumenta,
Sendo mais que armada amada,
Mais que belicosa bela.

Desigual c'o Deus menino
Se arma, ela a luz, ele a venda,
Ela ornada, ele despido,
Ela a espada, amor a frecha.

(Volta)

Deixa as armas, lhe disse,
Cruel, atenta
Que nas luzes fulminas
Armas mais feras.

Se é para render vidas,
As armas deixa;
Todo o peito a teus olhos
A vida entrega.

De ponto em branco armada
Sempre te asseias,
De ponto a boca em branco
A fronte amena.

 

VII
ANARDA VISTA DE NOITE

Contra os impérios da noite
Anarda bela se vê,
Que da noite mal podia
A tantos sóis ofender.

Oh como a noite se queixa
Contra a brilhadora lei!
Pois rompem seu privilégio,
Pois revogam seu poder.

Só nisto noite parece,
Que em seu rosto, olhos cruéis,
Cândida lua descobre,
Luzidas estrelas tem.

Se no inferno condenada
Habita a noite infiel;
Como pode a noite infausta
A glória de Anarda ver?

Se conduz a noite o sono,
Não pode permanecer,
Que Anarda embarga o repouso,
Que Anarda desvela a fé.

Se a noite afeta silêncios,
Não pode silêncios ter;
Porque em queixa lastimosa
Clama o suspiro fiel.

Se borrifa águas de Letes,
Não pode o Letes verter;
Pois dela se acordam todos,
Dela se esquece ninguém.

Deixa Anarda tantas luzes,
Que inda a noite em seu temer
Oculta Anarda, se encolhe,
Ausente o Sol, se detém.

 

VIII
ANARDA SAINDO FORA

Alerta peitos, alerta,
Que sai a gentil Anarda,
Aquele acinte das rosas,
Aquele arrufo das graças.

Desafia a todo o peito,
Ilustremente alentada,
Tendo a graça valentona,
Tendo a beleza fidalga.

Ostenta com dois motivos,
Mui soberba, mui bizarra,
O seu brio à Portuguesa,
O seu pico à Castelhana.

Com seus olhos de azeviche,
Com sua flórida cara
Aos astros dá belas figas,
Aos jasmins faz muitas raivas.

Mostrando-se mui senhora,
Aos escravos peitos dava
De um menosprezo as injúrias,
De um rigor as bofetadas.

Ao mesmo tempo se juntam
Na formosura adorada
Os rigores de Quaresma
Entre alegrias de Páscoa.

Estocadas dá de penas,
De amores fulmina balas,
Se as graças desembainha,
Se os resplendores dispara.

Nas mangas de holanda bela
Contra amor rebelde se arma;
Por Holanda a holanda vejo,
Por mangas receio as mangas.

Castigando-a por traidora
O Rei menino, formava
O cadafalso do colo,
O degolado da gala.

É Céu a beleza sua,
Quando o manto se adornava,
Servindo o manto de glória,
Servindo a garça de graça.



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SONETOS VÁRIOS
Versos vários que pertencem a o primeiro coro das rimas portuguesas escritos a vários assuntos
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I
À MORTE FELICÍSSIMA DE UM JAVALI PELO TIRO, QUE NELE FEZ UMA INFANTA DE PORTUGAL

Não sei se diga (oh bruto) que viveste,
Ou se alcançaste morte venturosa;
Pois morrendo da destra valorosa,
Melhor vida na morte mereceste.

Esse tiro fatal, de que morreste,
Em ti fez uma ação generosa,
Que entre o fogo da pólvora ditosa
Da nobre glória o fogo recebeste.

Deves agradecer essa ferida,
Quando esse tiro o coração te inflama,
Pois a maior grandeza te convida:

De sorte, que te abriu do golpe a chama
Uma porta perpétua para a vida,
Uma boca sonora para a fama.

 

II
A UM GRANDE SUJEITO INVEJADO, E APLAUDIDO

Temerária, soberba, confiada,
Por altiva, por densa, por lustrosa,
A exalação, a Névoa, a Mariposa,
Sobe ao Sol, cobre o dia, a luz lhe enfada.

Castigada, desfeita, malograda,
Por ousada, por débil, por briosa,
Ao raio, ao resplendor, à luz formosa,
Cai triste, fica vã, morre abrasada.

Contra vós solicita, empenha, altera,
Vil afeto, ira cega, ação perjura,
Forte ódio, rumor falso, inveja fera.

Esta cai, morre aquele, este não dura,
Que em vós logra, em vós acha, em vós venera,
Claro Sol, dia cândido, luz pura.

 

III
A FREI JOSÉ, RELIGIOSO DESCALÇO, 
PREGANDO NA FESTA DE SÃO JOSÉ

Hoje, José, vosso discurso aclama
Do Divino José sacros primores;
E vós ganhando aplauso em seus louvores,
Por um José outro José se afama:

Um e outro José maior se chama,
Ele dos Santos, vós dos Pregadores;
E o nome de José obra melhores
Nele aumentos de graça, em vós de fama.

Com tanta discrição, assombro tanto
Vosso discurso seu louvor provoca,
Que vossa boca infunde doce encanto:

E para ser perfeita no que toca,
Se fala vossa boca em José Santo,
Fala o Santo José por vossa boca.

 

IV
A AFONSO FURTADO RIOS E MENDONÇA SAINDO DO PORTO DE LISBOA A GOVERNAR O ESTADO DO BRASIL, EM OCASIÃO TEMPESTUOSA, HAVENDO DEPOIS BONANÇA NOS MARES 

Entre horrores cruéis do crespo vento
Cortais, Afonso, o pélago arrogante,
Vós constante no brio, ele inconstante,
Ele em frio cristal, vós no ardimento.

Se nos conflitos do Mavórcio intento
Marte vos respeitou sempre triunfante,
Venceis no mar de um Deus o Reino errante,
E na terra de um Deus o forte alento.

Perde Netuno as iras obediente,
Ou entrega seus cerúleos senhorios,
Afonso invicto, a vosso braço ardente,

E por glória maior de vossos brios
Prostra ao vosso Bastão o seu Tridente,
Obedece seu mar a vossos Rios.

 

V
AO MESMO SENHOR, ENTRANDO NO PORTO DA BAHIA NA MESMA OCASIÃO TEMPESTUOSA, HAVENDO ANTES BONANÇA NOS MARES

Nos marítimos reinos imperioso
Éreis do Rei Netuno obedecido,
Com vosso ilustre jugo enobrecido,
Inchado o mar se viu por venturoso.

Tétis já vos queria para esposo,
Anfitrite vos tem favorecido;
Prendia amor ao Bóreas atrevido,
E desatava ao Zéfiro amoroso.

Mas sabendo Netuno o vosso cargo,
Vossa ausência previu, e no Hemisfério
Borrascas move com tormento amargo:

Pois sente que com fácil vitupério
Deixeis de seu cristal o império largo,
E da terra busqueis o novo Império.

 

VI
À MORTE DO DESEMBARGADOR 
JERÔNIMO DE SÁ E CUNHA

Ministro douto, afável, comedido,
Discreto, pio, reto e respeitado,
Foste de todos igualmente amado,
Como foste de todos bem sentido.

Morreste; porém cuido persuadido
Que não morreste não, porque lembrado
Vives nos corações tão retratado,
Como se nunca foras fenecido.

Inda que contra nós a Parca corte
Os teus fios vitais por despedidas,
Não temas de que acabes dessa sorte;

Antes entre memórias repetidas,
Se uma vida perdeste em uma morte,
Nos corações cobraste muitas vidas.

 

VII
AO ASTROLÁBIO INVENTADO, E FABRICADO PELO ENGENHO DO REVERENDO PADRE MESTRE JACOBO ESTANCEL, RELIGIOSO DA COMPANHIA

Artífice engenhoso da escultura,
Famoso Mestre da cerúlea via,
Que quanto discorreis na astrologia,
Tudo fácil fazeis na Arquitetura;

Neste astrolábio a fama vos segura,
Que pouco se há mister ver meio o dia,
Que no Zênite está da mor valia,
Quando a ciência luz na mor Altura.

Tomais o Sol com pensamento leve;
Dédalo sábio o Mundo vos aclama,
Quando invento tão raro se vos deve.

E quando vosso nome mais se afama,
Sendo a terra a seus voos orbe breve,
Tomais o Sol por orbe à vossa fama.

 

VIII
AO GENERAL JOÃO CORREIA DE SÁ VINDO DA ÍNDIA

Quem vos vê sem tropeços de inconstante,
Quem vos trata sem notas de invejoso,
Vos rende o coração por amoroso,
Vos tributa a vontade por amante.

Na Plaga Oriental será constante
A fama em vosso nome generoso;
Que são vossas empresas, Sá famoso,
Melhores asas a seu voo errante.

Entre o laço de afável senhorio
Correia sois enfim, que a quem vos ama,
A vontade lhe atais, sem ter desvio.

Sá sois: e quando o Mundo vos aclama,
Preservais com o sal de vosso brio
Da corrupção dos tempos vossa fama.

 

IX
À VIDA SOLITÁRIA

Que doce vida, que gentil ventura,
Que bem suave, que descanso eterno,
Da paz armado, livre do governo,
Se logra alegre, firme se assegura!

Mal não molesta, foge a desventura,
Na Primavera alegre, ou duro Inverno,
Muito perto do céu, longe do Inferno,
O tempo passa, o passatempo atura.

A riqueza não quer, de honra não trata,
Quieta a vida, firme o pensamento,
Sem temer da fortuna a fúria ingrata:

Porém atento ao rio, ao bosque atento,
Tem por riqueza igual do rio a prata,
Por aura honrosa tem do bosque o vento.

 

X
AO CRAVO

Quando rei dos floridos esplendores,
Te reconhece abril, te aclama o prado,
Em sólio de esmeralda entronizado,
Da púrpura tivestes os primores.

Luzes qual Sol entre astros brilhadores,
Se bem Rei mais propício e mais amado;
Que ele estrelas desterra em régio estado,
Em régio estado não desterras flores.

Porém deixa a soberba, que te anela
Essa fragrância, essa beleza culta,
Pois somente em queimar-te se desvela:

Que se teu luzimento mais se avulta,
Esse alento, que exala, é morte bela,
Essa grã, que se veste, é chama oculta.

 

XI
À AÇUCENA

Quando alentas por glória do sentido
O formoso candor, que abril enflora;
Não te aplaude, Açucena, a linda Flora,
Nevada estrela sim no céu florido.

Entre aplausos do adorno embranquecido,
Quando ao prado amanhece a bela Aurora,
No luminoso Oriente uma Alva chora,
Outra Alva nasce no jardim luzido.

Teme o fim, flor ufana, que a temê-lo
A própria formosura te convida,
Que há de abrasar-se no solar desvelo:

Porque aos raios do sol pouco advertida,
Neve te julgo já no candor belo,
Neve te julgo já na frágil vida.

 

XII
CONTRA OS JULGADORES

Que julgas, ó Ministro de Justiça?
Por que fazes das leis arbítrio errado?
Cuidas que dás sentença sem pecado?
Sendo que algum respeito mais te atiça.

Para obrar os enganos da injustiça,
Bem que teu peito vive confiado,
O entendimento tens todo arrastado
Por amor, ou por ódio, ou por cobiça.

Se tens amor, julgaste o que te manda;
Se tens ódio, no inferno tens o pleito,
Se tens cobiça, é bárbara, execranda.

Oh miséria fatal de todo o peito!
Que não basta o direito da demanda,
Se o Julgador te nega esse direito.
 


XIII
A UM CLARIM TOCADO NO SILÊNCIO DA NOITE

Quando em acentos plácidos respiras,
Por modo estranho docemente entoas,
Que estando imóvel, pelos ares voas,
E inanimado, com vigor suspiras.

Da saudade cruel a dor me inspiras,
Despertas meu desejo, quando soas,
E se ao silêncio mudo não perdoas,
De minha pena o mesmo exemplo tiras.

Sentindo o mal de um padecido rogo,
Com que Nise se opõe a meu lamento,
Pretendes respirar-me o desafogo:

Mas contigo é diverso o meu tormento;
Que eu sinto de meu peito o ardente fogo,
Tu gozas de teu canto o doce vento.

 

XIV
À MORTE DO REVERENDO PADRE ANTÔNIO VIEIRA

Fostes, Vieira, engenho tão subido,
Tão singular e tão avantajado,
Que nunca sereis mais de outro imitado,
Bem que sejais de todos aplaudido.

Nas sacras Escrituras embebido,
Qual Agostinho, fostes celebrado;
Ele de África assombro venerado,
Vós de Europa portento esclarecido.

Morrestes; porém não; que ao
Mundo atroa Vossa pena, que aplausos multiplica,
Com que de eterna vida vos coroa;

E quando imortalmente se publica,
Em cada rasgo seu a fama voa,
Em cada escrito seu uma alma fica.

 

XV
À MORTE DE BERNARDO VIEIRA RAVASCO, 
SECRETÁRIO DO ESTADO DO BRASIL

Ideia ilustre do melhor desenho
Fostes entre o trabalho sucessivo,
E nas ordens do Estado sempre ativo
Era o zelo da Pátria o vosso empenho.

Ostentastes no ofício o desempenho
Com pronta execução, discurso vivo,
E formando da pena o voo altivo,
Águia se viu de Apolo o vosso engenho.

Despede a morte, cegamente irada,
Contra vós ia seta rigorosa,
Mas não vos tira a vida dilatada:

Que na fama imortal e gloriosa,
Se morrestes como Águia sublimada,
Renasceis como Fênix generosa.

 

XVI
PONDERAÇÃO DA MORTE DO PADRE ANTÔNIO VIEIRA, 
E SEU IRMÃO BERNARDO VIEIRA 
AO MESMO TEMPO SUCEDIDAS

Criou Deus na celeste Arquitetura
Dois luzeiros com giro cuidadoso,
Um que presida ao dia luminoso,
Outro que presidisse à noite escura.

Dois luzeiros também de igual ventura
Criou na terra o Artífice piedoso;
Um, que foi da Escritura Sol famoso,
Outro, Planeta da ignorância impura.

Brilhando juntos um e outro luzeiro,
Com sábia discrição, siso profundo,
Não podia um viver sem companheiro.

Sucedeu justamente neste Mundo,
Que fenecendo aquele por primeiro,
Este também feneça por segundo.

 

XVII
A UM ILUSTRE EDIFÍCIO DE COLUNAS E ARCOS

Essa de ilustre máquina beleza,
Que o tempo goza, e contra o tempo atura;
É soberbo primor da arquitetura,
É pródigo milagre da grandeza.

Fadiga da arte foi, que a Natureza
Inveja de seus brios mal segura;
E cada pedra, que nos Arcos dura,
É língua muda da fatal empresa.

Não teme da fortuna os vários cortes,
Nem do tempo os discursos por errantes,
Arma-se firme contra as leis das sortes.

Que nas colunas e arcos elegantes,
Contra a fortuna tem colunas fortes,
Contra o tempo fabrica arcos triunfantes.

 

XVIII
A DOM JOÃO DE LANCASTRO, NA OCASIÃO DO INCÊNDIO DO MOSTEIRO, E IGREJA DE SÃO BENTO EM LISBOA, FAZENDO-SE MENÇÃO DE SE LIVRAR DO 
NAUFRÁGIO DA BARRA DA BAHIA

Arde o templo com fogo furibundo,
É tudo confusão, e teme a gente;
E todo o inferno se conjura ardente,
Para abrasar o templo no profundo.

Contra Lusbel e seu poder imundo
Vos arrojais Católico e valente.
E abraçado co'a Virgem felizmente,
Livrastes de um eclipse ao Sol do Mundo.

Pagando a Virgem vossa fé ditosa,
Vendo-vos perigar no mar irado,
Vos livra agradecida e generosa.

Em ambos fica o empenho executado;
Ela vos livra da água procelosa,
Vós a livrais do fogo conjurado.

 

XIX
AO MESMO SENHOR, TRAZENDO A IMAGEM DE NOSSA SENHORA DA GRAÇA, DESDE O SEU TEMPLO 
ATÉ O MOSTEIRO DE SÃO BENTO, 
SEM A LARGAR DE SEUS OMBROS

Com generoso brio o forte Atlante
(Sem recear do céu o peso urgente)
Toma sobre seus ombros firmemente
Do céu superno o peso rutilante.

Vós também com primor da Fé constante
Tomais em vossos ombros reverente
O Céu claro da Virgem preeminente:
Que tem muito valor um peito amante.

Porém sois mais que Atlante esclarecido,
Que ele de Alcides pede a fortaleza
Para largar-lhe o céu, como oprimido:

Diga a Fama que em uma e outra empresa
Ele largou o céu, enfraquecido,
Vós sustentais o céu, sem ter fraqueza.

 

XX
AO MESMO SENHOR, MANDANDO A SEU FILHO DOM RODRIGO DE LANCASTRO PARA A ÍNDIA

Mandastes vosso filho desejado
Aos perigos do pélago espantoso,
Porém Tétis, amando o gesto airoso,
Fará que nunca o mar seja alterado.

Nesta ausência cruel, avantajado
No serviço Real, por generoso,
Abalo vos não faz o amor queixoso,
Nem vos perturba o sangue magoado.

Vosso peito fiel ao Rei descobre
Que sois varão de ilustre fortaleza,
Para que com valor virtudes obre.

Pois em vós com plausível inteireza
É mais forte que o filho a Pátria nobre,
Mais o afeto leal, que a natureza.

 

XXI
AO NASCIMENTO DO PRÍNCIPE NOSSO SENHOR

De um Régio tronco, de uma Régia rama,
Qual ramo nasces, e qual flor respiras;
E porque a todos singular prefiras,
Áustria te alenta, Portugal te inflama.

O Monstro alado no seu templo aclama
Futuras obras, a que tanto aspiras;
Que inda, quando entre lágrimas suspiras,
Geme o mar, treme a terra, voa a fama.

De Lísia tomarás o cetro honroso
E te verás na sacrossanta guerra
Absoluto Monarca glorioso.

A teu valor, que a tenra idade encerra,
Prometem para Império poderoso,
Marte o esforço, o mar Tétis, Jove a terra.

 

XXII
À MORTE DA SENHORA RAINHA DONA MARIA SOFIA ISABEL, ALIVIADA COM A VIDA DOS SENHORES PRÍNCIPES E INFANTES

Sai o Sol dos crepúsculos do Oriente,
E começando em lúcidos ensaios,
Representa depois ardentes raios
No teatro do Pólo refulgente.

Chega depois ao Ocaso, e quando sente
(Bem que a seu resplendor floresçam Maios)
Na vida, que ostentou, mortais desmaios,
Os astros ficam pelo Sol ausente.

Assim também alívios semelhantes
Deixa este Sol aos olhos nunca enxutos
Dos corações dos Lusos sempre amantes:

Porque nos deixa, sendo noite os lutos,
Nas Régias prendas astros rutilantes,
Que sejam de seus raios substitutos.



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OITAVAS
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I
PANEGÍRICO AO EXCELENTÍSSIMO SENHOR MARQUÊS DE MARIALVA, CONDE DE CANTANHEDE, NO TEMPO QUE GOVERNAVA AS ARMAS DE PORTUGAL

Agora, Aquiles Lusitano, agora,
Se tanto concedeis, se aspiro a tanto,
Deponde um pouco a lança vencedora,
Inclinai vossa fronte ao rude canto:
Se minha veia vossa fama adora,
Corra em Mavórcio, corra em sábio espanto,
Cheia de glória, de Hipocrene cheia,
No Mundo a fama, no discurso a veia.

 

II
SUA GENEALOGIA, DONDE DESCENDEM OS MENESES

Vós, Ramo ilustre de uma excelsa planta,
Que em fecunda virtude enobrecida,
Entre os Troncos mais altos se levanta,
grande na estirpe, no valor crescida:
Tão nobre sempre, que em nobreza tanta,
Com água não, com sangue foi nascida,
Da Infanta heróica; dando em tempos muitos
De espadas folhas, de vitórias frutos.

 

III
COMEÇOU A ENSAIAR-SE NA 
GUERRA COM O EXERCÍCIO DA CAÇA

Escassamente quinze Maios eram,
Que abrem do tenro buço os resplendores,
Quando logo no peito vos alteram
Guerreira propensão vossos Maiores:
Venatório exercício pretenderam
Vossos brios, se verdes superiores,
Vendo em desejos de tratar escudos
De Cíntia agrados não, de Marte estudos.

 

IV
CORRENDO A CAVALO

Quantas vezes o bruto generoso,
Que em virtude do impulso soberano
Alterna as plantas gravemente airoso,
Move a carreira loucamente ufano;
Seguia ao cervo, que de vós medroso,
Asas lhe dava aos pés o próprio dano,
De sorte que seguiu no mesmo alento,
Não bruto ao bruto, porém vento ao vento.

 

V
Entre os ócios da paz já valoroso
Ostentáveis, Senhor, ao mesmo instante
No peito denodado e gesto airoso,
Alentado valor, belo semblante;
De sorte pois, que em gênio belicoso,
De sorte pois, que em gentileza amante,
Unindo as prensas de uma e outra sorte,
Éreis galhardo Heitor, Narciso forte.

 

VI
SUA MOCIDADE E PRUDÊNCIA

Na manhã tenra da florida idade,
Onde se ofusca a luz do entendimento,
Com névoas de apetites a vontade,
Com nuvens de loucura o pensamento:
Na manhã tenra enfim a claridade
Da prudência mostráveis sempre atento,
Qual dia belo, que em manhã celeste
Não se orna nuvens, não; raios se veste.

 

VII
SUA CIÊNCIA NA MESMA IDADE

Quando vosso primor alimentava
Os doutos partos do sutil juízo,
Lusitânia feliz vos aclamava,
Entre verde saber maduro siso:
Lusitânia feliz vos admirava,
Quando entre ostentações de sábio aviso
Frutificava em prevenido abono
Na verde Primavera o rico Outono.

 

VIII
RESTAURAÇÃO DE PORTUGAL, EM QUE TEVE GRANDES PARTE O SENHOR MARQUÊS 

Quando a Pátria sujeita se rendia
Do Castelhano Império à força crua,
Oh como infelizmente se afligia,
Fúnebre, triste, desmaiada, nua!
Depois isenta da violência impia,
Despindo as dores da tristeza sua
amou-se no ardor de vossa espada
Festiva, alegre, valorosa, ornada.

 

IX
AO MESMO

Descingindo da fronte belicosa
As verdes folhas da Árvore funesta,
Dourando a nuvem d'ânsia lastimosa,
O pranto serenou da mágoa infesta:
Adornada escarlata generosa,
Entre a voz popular da heróica festa
Juntou, prevendo o forte e fausto agouro,
Na mão a espada, na cabeça o louro.

 

X
AO MESMO

Roma já não se jacte por ufana
De Cúrcio o arrojo, na lealdade pio,
Não solenize já por soberana
De Fábio a testa, de Marcelo o brio:
Pois logra em vós a gente Lusitana,
Pois em vós com mais crédito avalio,
(Unindo trêsheróis neste desvelo)
Outro Cúrcio, outro Fábio, outro marcelo.

 

XI
SEU CASAMENTO

Vendo o frecheiro Deus que valoroso
Vosso peito se opunha ao fogo ativo,
Himeneu vos prendeu por amoroso,
Cupido vos frechou por vingativo:
Sendo vós igualmente amante airoso,
Vós logrando igualmente esforço altivo,
Se ornou no forte ardor, na doce chama
Mavorte o Mirto, Citereia a grama.

 

XII
À SENHORA MARQUESA DE MARIALVA COM QUE 
CASOU O SENHOR MARQUÊS

Diga este amor aquela Aurora, aquela
Descendente do Herói, que em brio tanto
Brilhando em seu valor invicta estrela,
De Lísia glória foi, d'África espanto:
Oh como agora se publica nela,
Se a honestidade, se a beleza canto,
Marialva por ilustre simpatia
É de virtudes mar e alva do dia!

 

XIII
GENERAL DAS ARMAS CONTRA O SÍTIO DE ELVAS

Quando vos elegeu supremo Aluno
(Elvas opressa) a Pátria vacilante,
Entre Soldado Capitão, vos uno,
O bastão nobre, a espada fulminante:
Quando rios de sangue vê Netuno,
Pareceu um purpúreo, outro arrogante,
De Lísia o Reino, do Oceano o espelho
Por Arábia Feliz, por Mar Vermelho.

 

XIV
AO MESMO

Campou de Lísia a Flor por renascida,
Murchou a Flor de Ibéria por cortada;
Aquela está no campo esclarecida,
Esta fica no campo desmaiada,
A campanha parece florescida,
Sendo no duro Inverno maltratada:
Porque tinta em correntes sanguinosas
De cravos se vestiu, se ornou de rosas.

 

XV
Ostentando no sítio heroicamente,
Excessos de valor Cipião famoso,
Ulisseia ficou Roma potente,
O Tejo pareceu Tibre glorioso;
E com tantos aplausos excelente
Mostrastes por assombro generoso
Na sorte alegre, no valor impio
Modesto o coração, prudente o brio.

 

XVI
EL-REI D. AFONSO VI LHE DÁ O TÍTILO DE MARQUÊS

Marquês vos honra o generoso Atlante,
Se do céu não, da Lusitana terra,
Sexto Afonso, que em armas fulminante
Fez invicto o valor na justa guerra:
Não foi por desempenho, porque amante
Pagara o esforço, que esse braço encerra,
Se Afonso fora no valor profundo
Não Rei de um Reino, não; Senhor de um Mundo.

 

XVII
PASSANDO AO ALANTEJO COM SEGUNDO EXÉRCITO, NO TEMPO EM QUE ERA GOVERNADOR DAS ARMAS 
D. SANCHO MANUEL

Depois seguramente conduzindo
Contra o Príncipe Austríaco insolente
Exército segundo, persuadindo
Com muda discrição, voz eloquente:
Com a Deidade Estrimônia competindo,
Do Tejo abristes o cristal corrente;
Jacta-se já, pois logra em seu festejo
Se Netuno o Oceano, Marte o Tejo.

 

XVIII
VITÓRIA DO CANO, QUE HOJE SE CHAMA DE AMEIXAL

Na campanha do Ibero mal segura
Vosso nome altamente públicado,
Ambos vencestes a batalha dura,
Sancho guerreiro então, vós respeitado:
Com vosso nome a palma se assegura
Somente pelas vozes de afamado,
Quando Lísia aclamou glórias ufanas,
Sendo Sancho Aníbal, o Cano Canas.

 

XIX
GOVERNADOR DAS ARMAS DO ALANTEJO
VITÓRIA DA PRAÇA DE VALENÇA

Outra vez com esforço verdadeiro
No Transtagano império obedecido,
Mostrastes na Província ânimo inteiro,
Quando dela tivestes o Partido:
Valente o peito foi, no ardor guerreiro,
Alcançando a vitória esclarecido,
(Valença o sabe) que em igual conceito
Valença a Praça foi, valente o peito.

 

XX
VITÓRIA ÚLTIMA DE MONTES CLAROS

Diga Lísia também a Palma nobre,
Última empresa, da Mavórcia História
Da fama devedora aplausos cobre
Quando a fama por vós alcança a glória;
O nome venturoso o sítio dobre
De Montes Claros na feliz vitória,
Que são da Parca e Marte os golpes raros
Nos corpos Montes, nas façanhas Claros.

 

XXI
PRINCÍPIO DA BATALHA, EM QUE OS CASTELHANOS 
SE IMAGINARAM VENCEDORES

Cedendo o peito à força sucessiva,
Sendo opresso do Ibero o Lusitano,
Retrocede, que a sorte compassiva
Quis dar um troféu breve ao Castelhano:
Nos bronzes logo o fero ardor se aviva,
E nos ferros se esgrime o brio ufano,
Armam-se os Lusos mais que duros cerros
Com bronzes bronzes e com ferros ferros.

 

XXII
ALENTA-SE A BATALHA POR PARTE DOS PORTUGUESES

Qual Deidade da Esfera luminosa
Entre vapores pérfidos, consente
Que um pouco ofusque a névoa tenebrosa
As lisonjas gentis da luz ardente:
Porém depois, os golpes da lustrosa
Vingança a névoa desmaiada sente,
Vibrando o Sol em férvido desmaio
Luz a luz, chama a chama, raio a raio.

 

XXIII
ALCANÇA-SE A VITÓRIA

Tal o luso valor, que Sol se apura,
Consente entre escondidos ardimentos
Que do Ibero conflito a névoa impura
Ofusque de seu brio os luzimentos:
Porém depois na bélica ventura
Castigando nublados pensamentos
Com luzidas façanhas, vibram logo
Bala a bala, aço a aço, fogo a fogo.

 

XXIV
POSTO NO MONTE O SENHOR MARQUÊS

Vós posto na eminência agigantada,
Que rouba os raios do medroso Etonte,
Não já de louro vossa fronte ornada,
Ornada sim de estrelas vossa fronte:
Subis ao céu na glória celebrada,
Sois assombro guerreiro do Horizonte,
Com que o monte por uma e outra parte
Fica Atlante do céu, templo de Marte.

 

XXV
SUA ESTÂNCIA NO CAMPO EM TEMPO DE INVERNO

Quando na Aula celeste visitava
O louro amante do Peneu Louro
Ao Troiano gentil, que a Jove dava
Do Néctar o licor em mesas d'ouro:
Entre o nevado horror, que o céu vibrava
Pronto no campo, intrépido ao pelouro,
Repousáveis porém com braço feito,
Sendo a neve colchões, as armas leito.

 

XXVI
SUA ESTÂNCIA NO CAMPO EM TEMPO DO ESTIO

Quando entre obstinações do ardor nocivo
Latindo nesse Pólo o Cão luzente,
Vomita em grave horror o fogo esquivo,
Abre na boca adusta o círio ardente:
Vosso peito também no esforço vivo
Fomentava os ardores de valente,
Ambos ardendo, um de outro satisfeito,
Na calma o círio, no valor o peito.

 

XXVII
COMPARAÇÃO COM A ÁGUIA MAIS AVANTAJADO 

Qual Águia ilustre, que do Sol os raios,
Sendo de altivas plumas adornada,
Sem maltratar-se à luz, sem ter desmaios,
Bebe constante, opõe-se remontada:
Vós remontado em bélicos ensaios
Vendo raios de Marte na estacada,
Águia sois e subis com mais instinto,
Ela ao Planeta quarto, vós ao quinto.

 

XXVIII
COMPARAÇÃO DE JÚPITER CONTRA OS CASTELHANOS

Se fulminais ousado, forte e ledo
Contra Iberos Gigantes a pujança,
Oh que estrago! Oh que lástima! Oh que medo!
Quando a espada tratais, brandis a lança:
Mui cedo pelejais venceis mais cedo
O Transtagano ardor Flegra se alcança,
Vendo Iberos Gigantes, senão erro,
Por Júpiter a vós, por raio o ferro.

XXIX
SUA CONSTÂNCIA NO BOM, OU MAL SUCESSO

Qual firme escolho, que no mar resiste
Ao cristalino impulso, que discorre,
Ou quando o mar com crespa fúria insiste,
Ou quando o mar com terso aljôfar corre:
Assim também quando a borrasca assiste,
Assim também quando a bonança ocorre,
Já do bem, já do mal; ao mesmo instante
Constante sois no bem, no mal constante.

 

XXX
ALUSÃO DE SEU VALOR NO TREMOR DA 
TERRA E DAS BANDEIRAS

Se espedaçando escudo, arnês e malha
Chovem globos em pólvora incendidos,
E se arvoram bandeiras na Batalha,
Os Castelhanos fortes já vencidos;
Não fazem globos, que Vulcano espalha, terra e das
Não fazem ventos nos troféus movidos,
Faz somente o valor, que em vós se encerra,
As bandeiras tremer, tremer a terra.

 

XXXI
COMPARAÇÃO DE SUA ESPADA

Qual Órion de estrelas matizado,
Para que com cristais ao Mundo ofenda,
Da procelosa espada nasce armado,
Luminosa no céu, no mar tremenda:
Tal vós com vossa espada denodado
Fazeis de estragos tempestade horrenda,
Se bem com mais terror, que em glória nossa
Água esperdiça aquela, e sangue a vossa.

 

XXXII
BREVE ELOGIO DE SUAS VIRTUDES

Em vosso peito habitam finalmente
Todas as prendas do primor glorioso,
Se não sois mil heróis, Conde excelente,
Sereis por vezes mil Herói famoso:
Lograis bélico ardil, voz eloquente,
Prudente discrição, valor ditoso,
Severo agrado, sangue esclarecido,
Amado no temor, no amor temido.

 

XXXIII
SUAS AÇÕES ETERNIZADAS, E SEU 
RETRATO TEMIDO POR ELAS

Sendo vós exemplar da humana glória,
Sendo do Luso Império forte amparo,
Para eterno papel de vessa história
Bronzes Corinto dê, mármores Paro:
Vós esculpido na fatal vitória,
Vós retratado no conflito raro;
Metam medo aos remotos, aos vizinhos,
Lenhos na imagem, no retrato linhos.

 

XXXIV
SUA FAMA DO ORIENTE ATÉ O POENTE

Cesse a Musa, senhor, retumbe a fama,
Destempere-se a Lira, entoe a Trompa,
Que quando o Plectro humilde vos aclama,
É bem que a tuba o Plectro me interrompa:
Se vosso esforço como Sol se afama,
Dos Gigantes a filha os ares rompa,
Donde se veste esse Planeta louro
Mantilhas de rubi, mortalhas de ouro.

 

À ROSA

I
Inundações floridas de Amalteia
Prodigamente Clóri derramava
E líquida em rocio a sombra feia
No fraudulento Bruto, o Sol brilhava:
Quando entre tanta flor, que abril semeia,
Fidalgamente a rosa se adornava,
Ostentando por garbo repetido
De ouro o toucado, de âmbar o vestido.

II
Esta gala, que veste generosa,
Deve aos cândidos pés da deusa amante,
E ficando no orvalho mais lustrosa,
Deve estimar da Aurora o mal constante:
De sorte que no prado fica a Rosa
Com desditas alheias arrogante,
Pois quando se entroniza brilhadora,
Sangue de Vênus tem, pranto de Aurora.

III
Quando esse Deus de raios aparece,
Agrado dando à vista, luz ao prado,
A Deidade das flores amanhece,
Ao prado dando luz, à vista agrado:
E quando a Primavera resplendece
Com gala verde e brilhador toucado,
Fica sendo no adorno de verdores
Joia esta flor e gargantilha as flores.

IV
Em galharda altivez tanto se afina,
Que vestida de púrpura formosa
Adulação se arroga de divina,
Desprezando o primor de majestosa:
Por Deidade do campo peregrina
Não lhe faltam perfumes de olorosa,
E quando deusa dos jardins e aclamo,
Faz templo do rosal, altar do ramo.

V
Ave purpúrea no jardim lustroso
Soberbamente a considera o dia,
As verdes ervas são ninho frondoso,
Donde a fragrante adulação se cria:
Se respira do alento o deleitoso,
Se desprega da pompa a bizarria,
Forma em tanta beleza, em olor tanto
As folhas asas, a fragrância canto.

VI
Com plácidos requebros assistida
Do Zéfiro fecundo a Rosa amada,
Lhe dá lascivos beijos por querida,
E vermelha se faz de envergonhada:
Já se encalma com chama padecida,
Já respira com ânsia suspirada,
Oh como no jardim, quando se adora
Sente Zéfiro amor, ciúmes Flora!

VII
Como lua no céu entre as estrelas,
Campa formosamente em resplendores
Entre as flores a Rosa, é lua entre elas,
Brilhando o prado, céu; astros, as flores:
Por vantagens se jacta horas mais belas,
Nem se escondem c'o sol os seus primores,
Se brilha a Lua; a Rosa vencer trata
Com raios de rubi raios de prata.

VIII
Mas ai, quão brevemente se assegura
A flor purpúrea no primor luzido!
Que não logre isenções a formosura!
Que a morte de uma flor rompa o vestido!
Oh da Rosa gentil mortal ventura!
Que logo morta está, quando há nascido,
Sendo o toucado do infeliz tesouro
Em berço de coral sepulcro de ouro.

IX
Se vivifica a grã, se olor expira,
Dando lisonja ao prado, ornato à fonte,
No doce alento, e bela grã se admira
De Sido inveja, emulação de Oronte:
Mas se vento aromático respira,
Mas se lhe pinta o luminoso Etonte
Da cor a sombra, passa num momento
Qual sombra a sombra, como vento, o vento.

X
Se abre a Rosa pomposo nascimento,
Se bebe a Rosa nacarada morte,
Se foi Sol no purpúreo luzimento,
Também se iguala Sol na breve sorte:
Se o Sol nasce, e padece o fim violento;
Nasce a Rosa, e padece o golpe forte,
De sorte que por morta e por luzente
No Ocaso ocaso tem, no Oriente oriente.

XI
Se, Anarda, vibras na beleza ingrata
Raios de esquiva, de formosa raios,
Adverte, adverte, que um rigor maltrata
Adulação de Abris, primor de Maios:
Ouve na flor, que desenganos trata,
As mudas vozes dos gentis desmaios;
Atente enfim teu néscio desvario,
Que a formosura é flor, o tempo Estio.

XII
Não queiras, não, perder com cego engano
Dessas flores, que logras, a riqueza,
Vê pois que cada idade por teu dano
É sucessivo Inverno da beleza:
Aprende cedo, Anarda, o desengano
Desta ufana, já morta, gentileza,
Não queiras, não, perder em teu desgosto
Do dezembro da idade o abril do rosto.



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CANÇÕES VÁRIAS
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À MORTE DA SENHORA RAINHA DE PORTUGAL 
DONA MARIA SOFIA ISABEL

I
Que pavor, que crueza?
Que pena, que desdita a Lísia enluta!
Já do pranto a tristeza,
Como mar lagrimoso, ao mar tributa;
Vendo Netuno, para novo espanto,
Que tem dois mares, quando corre o pranto.

II
Espanha lastimada
Pelas razões do sangue generoso,
Toda se mostra irada,
E brama contra o golpe rigoroso,
E para ser no Mundo mais temido,
Por boca do Leão faz o bramido.

III
Mostra Alemanha o fino
Excesso quando sente o seu tormento,
Porque do Palatino
A pátria faz ser próprio o sentimento;
E o Danúbio, que é rio arrebatado,
Parece que na dor se vê parado.

IV
França, que nobremente
A Lusitânia ostenta amor seleto,
De luto reverente
A seus Francos vestiu com franco afeto;
E tendo nesta mágoa altas raízes,
Em roxos lírios troca as brancas Lises.

V
Itália a dor pública
Em Florença, que rica se nomeia,
Mas de mágoas é rica;
Nápoles bela em dor se torna feia:
Porém Roma, que santa se conhece,
Com Princesa tão santa se engrandece.

VI
América sentida
Faz tanta estimação da dor, que ordena,
Que desejara a vida
Eterna, para ser eterna a pena;
E quando no tormento mais se alarga,
O doce açúcar troca em pena amarga.

VII
A belíssima Aurora,
Que chora de Mémnon a morte escura,
Também padece, e chora
Desta perda cruel a desventura;
E com dobrada dor da infausta sorte
Se uma morte chorou, chora outra morte.

VIII
O Sol, que luminoso
Tem o império das luzes no Hemisfério,
Já não quer ser lustroso,
E quisera largar o claro império,
Pois de uma Águia Real na morte triste
O majestoso voo não lhe assiste.

IX
Também padece a Lua
Desta mágoa infeliz o desalento,
E quando mais flutua,
No inconstante noturno luzimento
Minguante e cheia está, se a dor se estreia
Minguante em glórias, de desditas cheia.

X
As estrelas luzentes,
Que ao Sol no claro Pólo substituem,
Parecendo inclementes,
Se presságios cruéis ao Mundo influem,
Com tal rigor desta influência usaram,
Que em cometas infaustos se trocaram.

XI
Os Planetas errantes,
Triste a Saturno tem no céu rotundo;
Vênus para os amantes
Tem da sorte feliz o bem jucundo;
Porém para Isabel, que é Vênus pura,
Não quis Vênus ser astro da ventura.

XII
O Cipreste funesto,
Que se levanta ao céu triste e frondoso,
Neste tormento infesto
Prepara os ramos seus por lastimoso,
E tendo o ser, que é só vegetativo,
Em corpo se transforma sensitivo.

XIII
A pacífica Oliva,
Que no Dilúvio foi da paz consorte,
Quando sente a nociva
Tirania infeliz da Parca forte,
Já não serve de paz, antes ostenta
O dilúvio das lágrimas, que alenta.

XIV
A palma celebrada,
Que contra o peso fica mais gloriosa,
Agora desmaiada
Se vê menos robusta e vigorosa:
Porque ao peso da pena padecida
Toda humilde se vê, toda oprimida.

XV
O jardim, que florido
Era com Flora e Zéfiro formoso,
Hoje se vê despido,
Feio, fúnebre, inculto, deslustroso,
Porque por esta morte inopinada
Zéfiro triste está, Flora anojada.

XVI
A Rosa, que ostentava
A beleza da púrpura olorosa,
E sempre se jactava
Ser Rainha das flores imperiosa,
Como vê desenganos de Rainhas,
Não quer mais que nas dores as espinhas.

XVII
O Cravo que exalante
Do belo olor se veste de escarlata,
Já não brilha flamante,
Quando sente da morte a fúria ingrata,
Antes mostra na cor, sangue vestido,
Que do golpe da dor ficou ferido.

XVIII
O jasmim, que a beleza
Tem na neve animada, que a sustenta,
Perdeu a gentileza;
Já no frágil candor se desalenta;
E tendo a Parca a seta despedido,
Alvo ficou da seta amortecido.

XIX
Sente pois Pedro Augusto
Perder o Sol, a flor, o dia claro,
Pois tendo sempre adusto
Entre chamas de amor o peito caro;
Agora vê nas faltas da alegria
Posto o Sol, seca a flor, escuro o dia.

XX
Sente o culto sagrado
De uma Rainha Santa o afeto pio,
Pois com devoto agrado
Fazia da humildade o senhorio,
Como quem altamente conhecia
Que a Púrpura também carcomas cria.

XXI
Sente o Palácio ilustre
A saudade da altíssima Princesa,
A quem deve seu lustre,
E da melhor Política a grandeza,
Que sendo Palatina, no amor fino
Fez do régio Palácio Palatino.

XXII
Sentem todas as Damas
A falta desta Aurora, que assistiam,
E como ilustres ramas
Do seu favor o orvalho mereciam,
E perderam, faltando seus fulgores,
De tantas esperanças os verdores.

XXIII
Sente a casta Donzela
A falta de Isabel, que tanto amava
Quando na idade bela
O tálamo ditoso lhe buscava,
E se Cupido armava seus enganos,
Himeneu casto lhe impedia os danos.
 
XXIV
Sente a caterva pobre
Da liberal senhora a perda rara,
Quando por mão tão nobre
Tantas vidas da morte restaurara,
Vencendo contra as Parcas desabridas
O poder, que intentavam sobre as vidas.

XXV
Sente o Preso os clamores,
Que lhe faz padecer a morte brava,
Que Isabel com favores
Da Justiça os rigores temperava
Conhecendo na espada da justiça,
Que era o sumo rigor suma injustiça.

XXVI
Sente enfim todo o povo
Esta tristeza atroz e desumana:
Que não é caso novo
Sentirem todos o que a todos dana;
Pois perdeu, quando fica ao desamparo,
Todo o bem, toda a glória, todo amparo.
Canção, suspende o metro,
Que de tanta desdita o triste pranto
Me desafina a voz, faz rouco o canto.

 

A LUÍS DE SOUSA FREIRE ENTRANDO DE CAPITÃO DE INFANTARIA NESTA PRAÇA NO TEMPO EM QUE ERA GOVERNADOR DO ESTADO DO BRASIL 
ALEXANDRE DE SOUSA FREIRE

I
Alegre o dia em pompas festejadas
Nos estrondos das armas repetidos,
Entre aplausos de afetos bem nascidos,
Entre mágoas de invejas malcriadas:
Das militares turbas ordenadas
Feito esquadrão na Praça belicoso,
Brilha Apolo invejoso,
E quer formar por competências belas
Praça de luzes, esquadrão de estrelas.

II
Nas várias galas, que a Milícia airosa
Com bom gosto traçou, vestiu com graça,
Entre as cores do adorno a mesma Praça
Parece Primavera belicosa:
De sorte que por glória misteriosa
Flora e Belona alegremente unidas,
Em armas aplaudidas,
Entre os caprichos da Milícia ornada,
Florida está Belona, Flora armada.

III
Sendo triste o valor por iracundo,
E sendo a guerra feia por esquiva,
Quando mortais ações aquele aviva,
Quando esta ostenta a Marte furibundo;
Hoje se veste com primor jucundo
Do que teceu Itália, Holanda e França
A Militar pujança;
Hoje na pompa, que esta e aquele encerra,
Fica alegre o valor, formosa a guerra.

IV
No militar concurso o Deus vendado
Deseja acompanhar-vos, Freire belo,
E para retratar Márcio desvelo
De aljava e frechas se oferece armado:
Hoje ser vosso Alferes alentado
Quisera amor; e em fácil simpatia
Da bélica alegria
Ensaiando-se em uma e outra prenda,
Venábulo a seta faz, bandeira a venda.

V
Vomitado o sulfúreo mantimento
Do fogoso arcabuz entre os sentidos,
Perdem-se nos estrondos os ouvidos,
E nos ares feridos geme o vento:
Parece tempestade, e no ardimento
Da pólvora se forja o raio errante,
Nuvens o militante
Esquadrão condensado, quando em giros
É relâmpago o ardor, trovões os tiros.

VI
Quantas bandeiras vedes despregadas
Por lisonja de bélicos empenhos,
Vos hão de ser felices desempenhos,
Inda hão de ser por vossa destra honradas:
Que sendo as inimigas castigadas,
Cingida a fronte de Apolíneo louro,
Com venturoso agouro
Tereis, logrando sempre igual vitória,
Não glória de troféus, troféus de glória.

VII
Quando a lança brandis heroicamente
No flórido verdor da gentileza,
Vos prognosticam todos na destreza
De general o cargo preeminente:
Para apoio fatal da Lísia gente
Sereis na guerra Aquiles Lusitano
Contra o Império Otomano,
E mudareis por que ele se submeta,
Em bastão grave a desigual gineta.

VIII
Do veneno gostoso, bem que ardente.
Gloriosamente Vênus abrasada
Com dois motivos, tanto amor lhe agrada,
Se vos vê belo, se vos vê valente:
Renovando as memórias igualmente
De Adônis e de Marte já queridos,
Ressuscita os sentidos,
E a vós só rende, quanto aos dois reparte,
Pois novo Adônis sois, e novo marte.

IX
Cioso o Trácio Deus se convertera
Em nova Fera, que seu mal vingara,
Se em vosso peito o ardor não respeitara,
Se em vosso rosto o gesto não temera:
Com causas duas maior queixa altera
De dois agravos, pois de amor cioso,
Do valor receoso,
Vosso primor a Marte desabona,
Pois vos quer Vênus, pois vos quer Belona.

X
Na forja Lilibeia fatigado
Vulcano está, que Citereia amante
Lhe pede um forte escudo rutilante
Para cobrir-vos, Freire, o peito amado:
Nas férreas oficinas ocupado,
Lhe falta o braço já, já nos suores
Correm rios de ardores,
E quando gota a gota estila a fronte,
Queima o ar, coze o ferro, abala o monte.

XI
Com sutil traça, com engenho agudo,
Competindo a fadiga e sutileza,
Grava Vulcano por maior empresa
O brasão nobre no brilhante escudo:
Dos vossos ascendentes bem que mudo
As grandezas pública generosas,
Quando em ações famosas
Os vossos Sousas têm por Armas suas
As Régias Quinas, as partidas Luas.

XII
O semblante da guerra temeroso
Nos poucos lustros não vos mete horrores,
Bem que logreis nos anos os verdores,
Primeiro que varão sois valoroso:
Antecipais à idade o brio honroso,
Qual Águia, qual Leão sois parecido
No voo, e no bramido,
Porque as feras despreza, e ao Sol se aprova,
Bem que novo Leão, bem que Águia nova.

XIII
Não obra em vosso peito o esforço tarde,
Já da guerra o rigor tendes bebido,
Que do exemplo de Avós já persuadido,
Vos ferve o sangue, o coração vos arde:
Em tão floridos anos vos aguarde
Feliz a sorte; e chegareis ditoso
A ser Herói famoso:
Que quando brilha o Sol no roxo Oriente,
Chega a luz clara ao pálido Ocidente.

XIV
Sabendo as artes do Mavórcio ofício,
A roda não temais da deusa cega,
Que quando vosso ardor nele se entrega,
Já Mercúrio vos dita esse exercício:
Com sábio esforço, sem grosseiro vício
Vosso gênio será sempre afamado,
Das artes ajudado,
Dando Mercúrio contra a sorte avara
A firme base, a poderosa vara.

XV
De vosso tio Sousa esclarecido
Que as ações imiteis agora espero,
Que inda sente Marrocos horror fero,
Com que dos Africanos foi temido:
E em paga do valor sempre aplaudido
América governa venturosa
Na presença gloriosa,
Que a parte de dois mares satisfeita
África o teme, América o respeita.

XVI
Vede de vosso tio a clara história.
Com que valente e sábio já se aclama,
Dando-lhe ilustremente a mesma fama
O templo altivo da imortal memória:
Sendo dele a virtude tão notória,
Emudece a calúnia de admirada,
E para avantajada
Glória sua, que o mérito lhe veja,
Vença o Mundo, honre a Fama, prostre a inveja.

XVII
Lenços lhe pinte Apeles excelente,
Estátuas lhe consagre Fídias raro,
Retrate Apeles seu esforço claro,
Esculpa Fídias seu saber prudente:
Porém não, que no céu gloriosamente
Altas ações se escrevam de seu brio:
Que na fama confio,
Se hão de formar para memória delas
Tábua o céu, pena o Sol, tinta as estrelas.
Canção, suspende o canto,
Que prometo afinar, se Febo inspira,
O Plectro humilde, a temerária Lira.

 

DESCRIÇÃO DO INVERNO

I
Ira-se horrendo, e se orna tenebroso
Renovado na sombra o Inverno esquivo,
Aos afagos do Zéfiro nocivo,
Às carícias de Flora rigoroso:
Com vestido de nuvens impiedoso
Melancólica a fronte carregada,
Por velho desagrada,
E tendo a chuva sempre em seus rigores,
Enfermo está de lânguidos humores.

II
Aumenta seu rigor o triste Inverno,
Encarcerando no queixoso Pólo
A luz propícia do gentil Apolo,
E mais que Inverno, fica escuro inferno:
Apolo pois com sentimento externo
Entra na casa atroz do Deus lunado,
Que de luas armado
Dois chuveiros vibrando, arma inclementes
Em minguantes de Lua, de água enchentes.

III
Vomita o Bóreas no furor ingrato
O nevado rigor, bem que luzido,
Adornando aos jardins branco vestido,
Despindo dos jardins o verde ornado:
Sendo ao prado nocivo, aos olhos grato,
Da neve esperdiçada o candor frio,
Nos disfarces de impio
Parece a neve em presunção formosa
Emplumado candor, ou lã chuvosa.

IV
Prisioneiros se veem arroios claros,
Quiçá, porque murmuram lisonjeiros,
Dando às almas avisos verdadeiros,
Dando a perfeitos Reis exemplos raros;
Da prata fugitiva sendo avaros,
O frio caramelo os prende duro:
Que pois o cristal puro
Corre louco, castigam com desvelo
Loucuras de cristal, pedras de gelo.

V
A planta mais galharda, que serena
Era verde primor, lisonja ornada,
Padece nus agravos de prostrada,
Perde subornos plácidos de amena;
E quando tanta lástima lhe ordena
Do vento, bem que leve, a grave injúria,
Ao brio iguala a fúria,
Pois no exame dos golpes inimigo
Folha a soberba foi, vento o castigo.
VI
Pede o céu contra o vale, contra o monte
O socorro cruel da horrenda prata,
Quando bombardas de granizos trata,
Escurecendo a luz na irada fronte;
Vertendo bravo sucessiva fonte,
Formando condensado guerra escura,
Contra a terra conjura
Quando não por assombros, por vinganças
De sombras esquadrões, de aljôfar lanças.

VII
Mas logo o mar soberbo ao mesmo instante
Por vingar generoso a terra impura,
Levanta de cristais soberba pura,
Sacrilégios argenta de arrogante:
Pois opõe contra Jove, qual gigante
Em montes de cristal de cristal montes,
E em densos horizontes
Jove quiçá, por fulminar desmaios,
De nuvens se murou, se armou de raios.

VIII
O lenho pelas ondas navegante
Sendo de vários ventos combatido.
Teme o profundo mal de submergido,
Padece o triste horror de flutuante:
A marítima turba naufragante
Alarido levanta lastimoso
Contra o céu rigoroso,
Vendo que a escura e súbita procela
Quebra o leme, abre a tábua, rompe a vela.
Canção, na bela Fílis
Outro Inverno repetem mais escuro
A tristeza que sinto, a dor, que aturo.

 

DESCRIÇÃO DA PRIMAVERA

I
Campa no campo agora
A mãe das flores belas,
Brilham de Febo os raios nas estrelas,
Que em lindos resplendores
Alternam, como irmãos, ledos candores.
Ledo o candor se adora:
Que se a luz não se ignora,
Porque o candor, e o ledo se conceda,
Do Cisne filhos são, filhos de Leda.

II
Pintor Maio luzido
Em diversos primores
Tantas tintas mistura, quantas cores;
Sendo do lindo Maio
Pincel valente o matutino raio;
E em quadros repartida
A pintura florida,
Maio pintor alegre, em cópias tantas
De flores quadros faz, sombra das plantas.

III
O campo reverdece,
Os cravos purpureiam,
As açucenas de candor se asseiam,
As violetas formosas
Vestem diversas cores por lustrosas:
A Vênus reconhece,
Quando a rosa amanhece
Com tanta ostentação, que é nos verdores
Mais que de Vênus flor, Vênus das flores.

IV
O tronco florescente
Forma com duros laços
Vegetativos de seus ramos braços,
E seus verdes cabelos
Lascivamente se penteiam belos:
Que o vento reverente
O serve cortesmente,
E para ser galã na mocidade
Buço nas flores tem, verdor na idade.

V
Celebra alegremente
O volátil concento
Da Primavera o verde nascimento,
(Sendo os rios sonoros
Instrumentos gentis a vários coros)
Cantando brandamente,
Saltando airosamente,
Nas doces vozes, desiguais mudanças,
Cantos se entoam e se alternam danças.

VI
O Sol Rei luminoso
Entre o estrelado Império
Entroniza esplendores no Hemisfério,
Vendo com luz amada
A província do giro dilatada;
Despendendo piedoso
Favores de lustroso,
Ficando por rebelde, e por querida
A sombra desterrada, a luz valida.

VII
Oh como alegre Flora
De flores adornada
Jaz no leito das ervas recostada!
Oh que beijo amoroso
Favônio lhe repete deleitoso.
Se o prado ri, se chora
Vitais perlas Aurora,
(Dando de vário estado mudo aviso)
Da Aurora o pranto vê, do prado o riso.
Canção, na bela Nise
Quando em seus Maios seu verdor se esmera,
Podes ver retratada a Primavera.

 

AO OURO

I
Este que em todo o mundo obedecido,
Este que respeitado
Nos subornos mortais de pretendido,
Agravo esquivo, mais que lindo agrado,
Morte se aclama, pois da mesma sorte
É pálido o metal, pálida a morte.

II
Os Monarcas sustentam poderosos
Neste metal prezado
Impérios, se violentos, generosos;
Porém tendo nos Reis império amado,
(Executando fáceis vitupérios)
Tem império nos Reis, é Rei de Impérios.

III
A justiça corrompe verdadeira;
No Ministro imprudente
Quebra as regras de justa, as leis de inteira;
Pois este forma no interesse ardente
(Não com fiel, mas infiel desprezo)
Da cobiça a balança, do ouro o peso.

IV
Inferno se padece lastimoso,
Não se logra Ouro claro
Nas graves pretensões de cobiçoso,
Nos obséquios solícitos de avaro;
Um o procura, outro não goza dele,
Este Tântalo está, Sísifo aquele.

V
Quando faltava d'ouro a gentileza,
A gente pobre e rica
Lograva idade de ouro na pobreza.
Mas quando nesta idade se publica
Em contrários motivos de impiedade,
De ferro idade fez, não de ouro idade.

VI
Qual Áspide, que entre flores escondido
Na florida beleza
Brota ao peito o veneno mal sentido,
Assim pois na luzida gentileza
Mata o metal, matando brilhadores
Nos luzimentos um, outro nas flores.

VII
Profanando de Dânae a vã pureza
Em chuvosos amores,
Apesar de engenhosa fortaleza,
Apesar dos cuidados guardadores,
Murchou na chuva de ouro rigorosa
O modesto jasmim, a virgem Rosa.

VIII
Entre o logro da paz solicitada
A guerra determina
Bem que ouro brilha, enjeita a paz dourada;
E quando Márcias confusões afina
A paz compra de sorte, que na terra
Guerra se vê da paz, é paz da guerra.

IX
A Natureza em veias escondidas
Cria o metal oculto,
Quiçá piedosa das mortais feridas:
Mas quando o desentranha humano insulto,
Da mesma veia, donde nasce belo,
Corre logo a ambição, mana o desvelo.

X
O rigor se arma, a guerra se refina,
A cobiça se apura,
A morte contra o peito se fulmina,
O engano contra o peito se conjura
De sorte, que acumula ao peito humano
Rigor, guerra, cobiça, morte, engano.
Canção, suspende já de Euterpe o metro,
Que em Fílis tens para cantar no Pindo
De seu cabelo de ouro, ouro mais lindo.

 

SAUDADES DE UM ESPOSO AMANTE PELA 
PERDA DE SUA AMADA ESPOSA

I
Agora que altamente
Me lastima o rigor, me assalta a pena,
Agora que eloquente
Fala o silêncio quando a voz condena,
Agora pois quando meu Bem me deixa,
Corra o pranto, obre a mágoa, suba a queixa.

II
Qual flor em flor cortada
Te murchaste meu Bem (ah morte feia!)
Oh como desmaiada
A florida república se afeia,
Pois perdeu toda a flor na morte dura,
O âmbar leve, a grã bela, a neve pura!

III
O sol já retirado
Menos formoso, menos claro o vejo,
Pois eras seu cuidado;
Eras do lindo Sol seu vão desejo,
Sendo sim seus ardentes resplendores
Não ardores de luz, de amor ardores.

IV
Oh como pede à sombra
Que o resplendor lhe embargue, a luz lhe furte!
E se na dor se assombra,
Pede à noite também que o dia encurte,
Pois perdeu tristemente na alegria
Melhor luz, melhor Alva, e melhor Dia.

V
Belíssima senhora,
Que choro ausente, que venero amante,
Na Pátria vencedora
De uma morte cruel te vês triunfante;
E por que venças tudo, em igual sorte
Venceste os corações, venceste a morte.

VI
Entre mil saudades
Morta te estimo e te desejo viva:
Mas ah que em mil idades
Se frustra o rogo, a lástima se aviva,
Tendo em dobrado mal, que ao peito corta.
Vivo o desejo, a esperança morta!

VII
Quando te considero
Algum tempo em meus braços (ai que mágoa!)
Logo este golpe fero
O que logro em ardor, me solta em água,
Competindo entre si por desafogo
Nos olhos a água, e no peito o fogo.

VIII
Se vives retratada
Neste meu coração, que te ama ausente,
Fica a dor mitigada
Neste enganoso bem, por aparente;
Mas ai que fica, quando a dor me aperta,
Falsa a consolação, a mágoa certa!

IX
Lá no Empíreo gloriosa
Lembra-te deste amor, que tanto apuro:
Que esta pena amorosa
Solícito constante, fino aturo;
E impressa na alma minha pena interna,
Fica imortal o amor, a mágoa eterna.

X
Deixaste-me uma prenda
Para alívio feliz da mágoa crua,
Que, quando te eu pretenda,
Lograsse meu desejo cópia tua:
Mas ai que é maior mal, pois nas memórias
Saudades sinto, quando finjo glórias!
Canção, depõe o plectro,
Que já me impede o pranto
Que altere a voz, e que prossiga o canto.

 

À ILHA DE MARÉ TERMO DESTA CIDADE DA BAHIA

Jaz em oblíqua forma e prolongada
A terra de Maré toda cercada
De Netuno, que tendo o amor constante,
Lhe dá muitos abraços por amante,
E botando-lhe os braços dentro dela
A pretende gozar, por ser mui bela.

Nesta assistência tanto a senhoreia,
E tanto a galanteia,
Que do mar de Maré tem o apelido,
Como quem preza o amor de seu querido:

E por gosto das prendas amorosas
Fica maré de rosas,
E vivendo nas ânsias sucessivas,
São do amor marés vivas;
E se nas mortas menos a conhece,
Maré de saudades lhe parece.

Vista por fora é pouco apetecida,
Porque aos olhos por feia é parecida;
Porém dentro habitada
É muito bela, muito desejada,
É como a concha tosca e deslustrosa,
Que dentro cria a pérola formosa.

Erguem-se nela outeiros
Com soberbas de montes altaneiros,
Que os vales por humildes desprezando,
As presunções do Mundo estão mostrando,
E querendo ser príncipes subidos,
Ficam os vales a seus pés rendidos.

Por um e outro lado
Vários lenhos se veem no mar salgado;
Uns vão buscando da Cidade a via,
Outros dela se vão com alegria;
E na desigual ordem
Consiste a formosura na desordem.

Os pobres pescadores em saveiros,
Em canoas ligeiros,
Fazem com tanto abalo
Do trabalho marítimo regalo;
Uns as redes estendem,
E vários peixes por pequenos prendem;
Que até nos peixes com verdade pura
Ser pequeno no Mundo é desventura:
Outros no anzol fiados
Têm aos míseros peixes enganados,
Que sempre da vil isca cobiçosos
Perdem a própria vida por gulosos.

Aqui se cria o peixe regalado
Com tal sustância e gosto preparado,
Que sem tempero algum para apetite
Faz gostoso convite,
E se pode dizer em graça rara
Que a mesma natureza os temperara.

Não falta aqui marisco saboroso,
Para tirar fastio ao melindroso;
Os Polvos radiantes,
Os lagostins flamantes,
Camarões excelentes,
Que são dos lagostins pobres parentes;
Retrógrados caranguejos,
Que formam pés das bocas com festejos,
Ostras, que alimentadas
Estão nas pedras, onde são geradas;
Enfim tanto marisco, em que não falo,
Que é vário perrexil para o regalo.

As plantas sempre nela reverdecem,
E nas folhas parecem,
Desterrando do Inverno os desfavores,
Esmeraldas de abril em seus verdores,
E delas por adorno apetecido
Faz a divina Flora seu vestido.

As fruitas se produzem copiosas,
E são tão deleitosas,
Que como junto ao mar o sítio é posto,
Lhes dá salgado o mar o sal do gosto.
As canas fertilmente se produzem,
E a tão breve discurso se reduzem,
Que, porque crescem muito,
Em doze meses lhe sazona o fruto.
E não quer, quando o fruto se deseja,
Que sendo velha a cana, fértil seja.

As laranjas da terra
Poucas azedas são, antes se encerra
Tal doce nestes pomos,
Que o tem clarificado nos seus gomos;
Mas as de Portugal entre alamedas
São primas dos limões, todas azedas.

Nas que chamam da China
Grande sabor se afina,
Mais que as da Europa doces e melhores,
E têm sempre a vantagem de maiores,
E nesta maioria,
Como maiores são, têm mais valia.

Os limões não se prezam,
Antes por serem muitos se desprezam.
Ah se Holanda os gozara!
Por nenhuma província se trocara.

As cidras amarelas
Caindo estão de belas,
E como são inchadas, presumidas,
É bem que estejam pelo chão caídas.

As uvas moscatéis são tão gostosas,
Tão raras, tão mimosas,
Que se Lisboa as vira, imaginara
Que alguém dos seus pomares as furtara;
Delas a produção por copiosa
Parece milagrosa,
Porque dando em um ano duas vezes,
Geram dois partos, sempre, em doze meses.

Os Melões celebrados
Aqui tão docemente são gerados,
Que cada qual tanto sabor alenta,
Que são feitos de açúcar e pimenta,
E como sabem bem com mil agrados,
Bem se pode dizer que são letrados;
Não falo em Valariça, nem Chamusca:
Porque todos ofusca
O gosto destes, que esta terra abona
Como próprias delícias de Pomona.

As melancias com igual bondade
São de tal qualidade,
Que quando docemente nos recreia,
É cada melancia uma colmeia,
E às que tem Portugal lhe dão de rosto
Por insulsas abóboras no gosto.

Aqui não faltam figos,
E os solicitam pássaros amigos,
Apetitosos de sua doce usura,
Porque cria apetites a doçura;
E quando acaso os matam
Porque os figos maltratam,
Parecem mariposas, que embebidas
Na chama alegre, vão perdendo as vidas.

As Romãs rubicundas quando abertas
A vista agrados são, à língua ofertas,
São tesouro das fruitas entre afagos,
Pois são rubis suaves os seus bagos.
As fruitas quase todas nomeadas
São ao Brasil de Europa trasladadas,
Porque tenha o Brasil por mais façanhas
Além das próprias fruitas, as estranhas.

E tratando das próprias, os coqueiros,
Galhardos e frondosos
Criam cocos gostosos;
E andou tão liberal a natureza
Que lhes deu por grandeza,
Não só para bebida, mas sustento,
O néctar doce, o cândido alimento.

De várias cores são os cajus belos,
Uns são vermelhos, outros amarelos,
E como vários são nas várias cores,
Também se mostram vários nos sabores;
E criam a castanha,
Que é melhor que a de França, Itália, Espanha.

As pitangas fecundas
São na cor rubicundas
E no gosto picante comparadas
São de América ginjas disfarçadas.

As pitombas douradas, se as desejas,
São no gosto melhor do que as cerejas.
E para terem o primor inteiro,
A vantagem lhes levam pelo cheiro.

Os Araçases grandes, ou pequenos,
Que na terra se criam mais, ou menos
Como as peras de Europa engrandecidas,
Com elas variamente parecidas,
Também se fazem delas
De várias castas marmeladas belas.

As bananas no Mundo conhecidas
Por fruto, e mantimento apetecidas,
Que o céu para regalo e passatempo
Liberal as concede em todo o tempo,
Competem com maçãs, ou baonesas,
Com peros verdeais ou camoesas.
Também servem de pão aos moradores,
Se da farinha faltam os favores;
É conduto também que dá sustento,
Como se fosse próprio mantimento;
De sorte que por graça, ou por tributo,
É fruto, é como pão, serve em conduto.

A pimenta elegante
É tanta, tão diversa e tão picante,
Para todo o tempero acomodada,
Que é muito avantajada
Por fresca, e por sadia
À que na Ásia se gera, Europa cria.

O mamão por frequente
Se cria vulgarmente,
E não o preza o Mundo,
Porque é muito vulgar em ser fecundo.

O maracujá também gostoso, e frio
Entre as fruitas merece nome, e brio;
Tem nas pevides mais gostoso agrado,
Do que açúcar rosado;
É belo, cordial, e como é mole,
Qual suave manjar todo se engole.

Vereis os Ananases,
Que para Rei das fruitas são capazes;
Vestem-se de escarlata
Com majestade grata,
Que para ter do Império a gravidade
Logram da coroa verde a majestade;
Mas quando têm a coroa levantada
De picantes espinhos adornada,
Nos mostram que entre Reis, entre Rainhas
Não há coroa no Mundo sem espinhas.
Este pomo celebra toda a gente,
É muito mais que o pêssego excelente,
Pois lhe leva vantagem gracioso
Por maior, por mais doce e mais cheiroso.

Além das fruitas, que esta terra cria,
Também não faltam outras na Bahia;
A mangava mimosa
Salpicada de tintas por formosa,
Tem o cheiro famoso,
Como se fora almíscar oloroso;
Produze-se no mato
Sem querer da cultura o duro trato,
Que como em si toda a bondade apura,
Não quer dever aos homens a cultura.
Oh que galharda fruta, e soberana
Sem ter indústria humana,
E se Jove as tirara dos pomares,
Por ambrosia as pusera entre os manjares!

Com a mangava bela a semelhança
Do Macujé se alcança;
Que também se produz no mato inculto
Por soberano indulto:
E sem fazer ao mel injusto agravo,
Na boca se desfaz qual doce favo.

Outras fruitas dissera, porém basta
Das que tenho descrito a vária casta;
E vamos aos legumes, que plantados
São do Brasil sustentos duplicados:

Os Mangarás que brancos, ou vermelhos,
São da abundância espelhos;
Os cândidos inhames, se não minto,
Podem tirar a fome ao mais faminto.

As batatas, que assadas, ou cozidas
São muito apetecidas;
Delas se faz a rica batatada
Das Bélgicas nações solicitada.

Os carás, que de roxo estão vestidos,
São Lóios dos legumes parecidos,
Dentro são alvos, cuja cor honesta
Se quis cobrir de roxo por modesta.

A Mandioca, que Tomé sagrado
Deu ao gentio amado,
Tem nas raízes a farinha oculta:
Que sempre o que é feliz, se dificulta.

E parece que a terra de amorosa
Se abraça com seu fruto deleitosa;
Dela se faz com tanta atividade
A farinha, que em fácil brevidade
No mesmo dia sem trabalho muito
Se arranca, se desfaz, se coze o fruto;

Dela se faz também com mais cuidado
O beiju regalado,
Que feito tenro por curioso amigo
Grande vantagem leva ao pão de trigo.

Os Aipins se aparentam
Co'a mandioca, e tal favor alentam,
Que têm qualquer, cozido, ou seja assado,
Das castanhas da Europa o mesmo agrado.

O milho, que se planta sem fadigas,
Todo o ano nos dá fáceis espigas,
E é tão fecundo em um e em outro filho,
Que são mãos liberais as mãos de milho.

O arroz semeado
Fertilmente se vê multiplicado;
Cale-se de Valença, por estranha
O que tributa a Espanha,
Cale-se do Oriente
O que come o gentio, e a Lísia gente;
Que o do Brasil quando se vê cozido
Como tem mais substância, é mais crescido.

Tenho explicado as fruitas e legumes,
Que dão a Portugal muitos ciúmes;
Tenho recopilado
O que o Brasil contém para invejado,
E para preferir a toda a terra,
Em si perfeitos quatro A encerra.
Tem o primeiro A, nos arvoredos
Sempre verdes aos olhos, sempre ledos;
Tem o segundo A, nos ares puros
Na tempérie agradáveis e seguros;
Tem o terceiro A, nas águas frias,
Que refrescam o peito, e são sadias;
O quarto A, no açúcar deleitoso,
Que é do Mundo o regalo mais mimoso.

São pois os quatro A por singulares
Arvoredos, açúcar, águas, ares.
Nesta Ilha está mui ledo, e mui vistoso
Um Engenho famoso,
Que quando quis o fado antigamente
Era Rei dos engenhos preeminente,
E quando Holanda pérfida, e nociva
O queimou, renasceu qual Fênix viva.

Aqui se fabricaram três capelas
Ditosamente belas,
Uma se esmera em fortaleza tanta,
Que de abóbada forte se levanta;
Da Senhora das Neves se apelida,
Renovando a piedade esclarecida,
Quando em devoto sonho se viu posto
O nevado candor no mês de agosto.

Outra capela vemos fabricada.
A Xavier ilustre dedicada,
Que o Maldonado Pároco entendido
Esse edifício fez agradecido
A Xavier, que foi em sacro alento
Glória da Igreja, do Japão portento.

Outra capela aqui se reconhece,
Cujo nome a engrandece,
Pois se dedica à Conceição sagrada
Da Virgem pura sempre imaculada,
Que foi por singular e mais formosa
Sem manchas Lua, sem espinhos Rosa.

Esta Ilha de Maré, ou de alegria
Que é termo da Bahia,
Tem quase tudo quanto o Brasil todo,
Que de todo o Brasil é breve apodo;
E se algum tempo Citereia a achara,
Por esta sua Chipre desprezara,
Porém tem com Maria verdadeira
Outra Vênus melhor por padroeira.

 
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ROMANCES VÁRIOS
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I
(Em esdrúxulos)
AO GOVERNADOR ANTÔNIO LUÍS GONÇALVES DA CÂMARA COUTINHO EM AGRADECIMENTO DA CARTA QUE ESCREVEU A SUA MAJESTADE PELA FALTA DA MOEDA DO BRASIL 

Escreveis ao Rei Monárquico
O mal do Estado Brasílico,
Que perdendo o vigor flórido,
Se vê quase paralítico,

Porém vós, como Católico,
Imitando a Deus boníssimo,
Lhe dais a Piscina plácida
Para seu remédio líquido.

De todo o corpo Repúblico
O dinheiro é nervo vívido,
E sem ele fica lânguido,
Fica todo debilíssimo.

Em vossos arbítrios ótimos
Sois três vezes científico,
Ditando o governo de
Ético, econômico e político.

Aos Engenhos dais anélitos,
Que estando de empenhos tísicos,
Tornam em amargo vômito
O mesmo açúcar dulcíssimo.

Também da pobreza mísera
Atendeis ao estado humílimo,
Assim como o raio délfico
Não despreza o lugar ínfimo.

Aos Mercadores da América
Infundis de ouro os espíritos.
Quando propondes o próvido
Com pena de ouro finíssimo.

Pasma em Portugal atônito
Todo o estadista satírico,
E as mesmas censuras hórridas
Vos dão fáceis panegíricos.

Se falais verdade ao Príncipe,
Não temais o Zoilo rígido,
Que ao Sol da verdade lúcida
Não faz mal o vapor crítico.

O Brasil a vossos méritos,
Como se fora Fatídico,
Vos anuncia o cetro máximo
Sobre o Ganges e mar Índico.

Sois em vossas obras único
Para maiores, ou mínimos,
Sois na justiça integérrimo,
Sois na limpeza claríssimo.

Sois descendente do Câmara,
Aquele Gonçalves ínclito,
Que com discurso astronômico
Sujeitou golfos marítimos.

Sois também Coutinho impávido,
Mas vosso couto justíssimo
Não vale a homicidas réprobos,
Nem a delinquentes ríspidos.

Vosso filho primogênito
Aprende de vós solícito
As virtudes para Bélico,
As ações para Magnífico.

Em seus anos inda lúbricos
Tem verdores prudentíssimos,
É com gravidade lépido,
É sem soberba ilustríssimo.

Vivei Senhor muitos séculos
Entre aplausos felicíssimos
Onde nasce Apolo férvido,
Onde morre Apolo frígido.

 

II
A UMA DAMA, QUE TROPEÇANDO DE NOITE EM UMA LADEIRA, PERDEU UMA MEMÓRIA DO DEDO

Bela turca de meus olhos,
Corsária de minha vida,
Galé de meus pensamentos,
Argel de esperanças minhas;

Quem te fez tão rigorosa,
Dize, cruel rapariga?
Deixa os triunfos de ingrata,
Busca os troféus de bonita.

Não te queiras pôr da parte
De minha desdita esquiva:
Que a beleza é muito alegre,
Que é muito triste a desdita.

Se ostentas tanto donaire
Com formosura tão linda,
Segunda beleza formas
Quando a primeira fulminas.

E se cair na ladeira
Manhosamente fingias,
Tudo era queda do garbo,
Tudo em graça te caía.

Não tinha culpa o sapato,
Que o pezinho não podia,
Como era coisa tão pouca,
Com beleza tão altiva.

Botando o cabelo atrás,
(Oh que gala, oh que delícia!)
A bizarria acrescentas,
Desprezando a bizarria.

Toda de vermelho ornada,
Toda de guerra vestida
Fazes do rigor adorno,
Fazes da guerra alegria.

A tantas chamas dos olhos
Teu manto glorioso ardia;
Por sinal que tinha a glória,
Por sinal que o fumo tinha.

Liberalmente o soltaste:
Que era o teu manto, menina,
Pouca sombra a tanto Sol,
Pouca noite a tanto dia.

Se de teu dedo a memória
Perdeste, é bem que o sintas;
Que de meu largo tormento
Tens a memória perdida.

Dar-te-ei por melhores prendas,
Que minha fé te dedica,
Dois anéis de água em meus olhos,
Que de chuveiros te sirvam.

Agradece meus cuidados,
E recebe as prendas minhas;
Se tens da beleza a joia,
Os brincos de amor estima.

Se cordão de ouro pretendes
Por jactância mais subida,
Aceita a prisão de uma alma,
Que é cordão de mais valia.

A todos estes requebros
Não quis atender Belisa,
Que se é diamante em dureza,
Só de diamantes se alinda.

 

II
PINTURA DE UMA DAMA CONSERVEIRA

No doce ofício Amarilis
Doce amor causando em mim,
Seja a pintura de doces;
Doce aveia corra aqui.

Capela de ovos se adverte
A cabeça em seu matiz,
Fios de ovos os seus fios,
Capela a cabeça vi.

A testa, que docemente
Ostenta brancuras mil,
Sendo manjar de Cupido,
Manjar branco a presumi.

Os olhos, que são de luzes
Primogênitos gentis,
São dois morgados de amor,
Donde alimentos pedi.

Formosamente aguilenho
(Ai que nele me perdi!)
Bem feita lasca de alcorça
Parece o branco nariz.

Maçapão rosado vejo
Em seu rosto de carmim,
Nas maçãs o maçapão,
No rosto o rosado diz.

Entre os séculos da boca,
(Purpúrea inveja de abril)
Em conserva de mil gostos
Partidas ginjas comi.

Os brancos dentes, que exalam
Melhor cheiro que âmbar-gris,
Parecem brancas pastilhas
Em bolsinhas carmesins.

Com torneados candores
(Deixemos velhos marfins)
Toda feita diagargante
Vejo a garganta gentil.

Os sempre cândidos peitos,
Que escondem leite nutriz,
Se não são bolas de neve,
São bolos de leite, sim.

As mãos em palmas e dedos,
Se em bolos falo, adverti.
Entre dois bolos de açúcar
Dez pedaços de alfenim.

Perdoai, Fábio, dizia,
Que no retrato, que fiz,
Fui Poeta de água doce
Quando no Pindo bebi.

 

IV
PINTURA DOS OLHOS DE UMA DAMA

Os olhos dois de Belisa,
Em seu rosto amor compara,
Seu rosto flores-de-lis,
Seus olhos Pares de França.

Com mui soberbos rigores,
Com mui feras ameaças
São dois valentões de luzes,
Dois espadachins de graças.

Línguas de fogo parecem,
Em que meu peito se abrasa.
Línguas são, pois falam mudas,
De fogo, pois vibram chamas.

Dizem que o céu competindo
Lhe deu, chegando-lhe à cara,
De luzes dois beliscões,
De estrelas duas punhadas.

E desta briga formosa
Bem que as luzes da Muchacha
Não ficaram desairosas,
Ficaram dali rasgadas.

Outros dizem que a menina
Foi contra amor tanto irada,
Que arrancara a amor os olhos,
Que os olhos de amor roubara.

Mas se por força os não dera,
Sempre sentira a desgraça;
Pois quando a Muchacha vira,
Logo de amante cegara.

De sorte que desta perda
Como envergonhado estava,
Quis adornar-se uma venda
Por disfarçar uma mágoa.

E daqui vem que seus olhos,
Que ao cego arqueiro tomara,
Frechas despedem de amores,
Prisões solicitam de almas.

Não se queixe o deus Cupido,
Pois o império lhe dilata,
Esgrimindo aqueles furtos,
Fulminando aquelas armas.

 

V
PINTURA DE UMA DAMA NAMORADA DE UM LETRADO

Quando agora mais amante
Vos vejo estar estudando
Cuidados da deusa Astreia
Nos ócios do Deus vendado;

Pois amais um Serafim,
Donde achais como letrado,
Que se aclama Peregrino
Quanto sois Feliciano.

O cabelo, que por negro,
E por lustroso comparo,
É muito Nigro nas cores,
É muito Febo nos raios.

Traz nos olhos e na testa
Alvoroto, pois alcanço
Que Alva se ostenta por branca,
Que o Roto tem por rasgados.

Com Júlio Claro parecem,
Se estão peitos abrasando;
Cada qual no ardor é Júlio,
Cada qual na luz é Claro.

Se o gracioso rosto advirto,
Se o belo nariz retrato,
É seu nariz formosino,
É seu rosto Graciano.

Na boquinha faladora,
Que mui rosada a declaro,
É nas vozes Parladoro,
É nas cores Rosentálio.

A Mascardo e Lambertino
Na língua e nos dentes acho;
É na língua Lambertino,
É nos seus dentes Mascardo.

Tomásio e Nata pondero,
Se os peitos e mãos comparo;
Nos peitos de leite a Nata,
Nas mãos de avara a Tomásio.

Leotardo o coração julgo
Com rigores igualados;
É nos rigores mui Leo,
É nos favores mui Tardo.

Espino e Salgado, amigo,
Quero nela ponderar-vos;
É seu desdém todo Espino,
Todo seu dito é Salgado.

Enfim se quereis de Clóri
Os favores soberanos,
Dai-lhe lições de Moneta,
Tereis estudos de Amato.

 

VI
À FONTE DAS LÁGRIMAS, 
QUE ESTÁ NA CIDADE DE COIMBRA

Verte pródiga uma penha
Das durezas apesar
Serenidades de aljôfar,
Esperdiços de cristal.

Esta penha carregada
Em triste sombra se faz,
Por perder de Inês a luz,
Por sentir de Inês o mal.

Dos dois amantes é pranto,
Que em ser duro o amor fatal
Entre durezas o guarda,
Entre durezas o dá.

Doce e liberal a prata
Fonte de amor se diz já.
Que amor se alimenta doce,
Que amor se induz liberal.

Sua a penha; mas que muito,
Se no adusto cabedal
Quis pranto de ardor verter,
Quis fogo de amor suar.

O Deus Frecheiro se admira
De ver que com pranto tal
Verde lisonjeia o prado,
Ameno respira o ar.

De sua fé retratava
A bela Inês singular
A constância no penhasco,
A pureza no cristal.

Quando voa a turba alada,
O vendado Deus rapaz,
Faz Cupidilhos das aves,
Forma Chipre do lugar.

Os limos no largo tanque
Ali se vêm pentear,
Que a seus úmidos cabelos
Pentes de prata lhes dá.

Ali Vênus celebrada
Das cristalinas Irmãs,
Estima as Ninfas do tanque,
Despreza as Ninfas do mar.

Ali muitos choupos crescem
Verdes, que verdes os faz
Aquela firme esperança
Daquele amor imortal.

A um tempo do vento e d'água
Sobe, e campa cada qual
Tifeu do vento frondoso,
Narciso d'água galã.

Esta das lágrimas fonte
Na douta Coimbra está,
Que se é do saber escola,
Diz que Pedro soube amar.



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EPIGRAMAS
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I
ADÔNIS MORTO EM OS BRAÇOS DE VÊNUS

Enquanto infeliz Citereia lamenta a morte de Adônis,
Choram mestos olhos e ledos prados verdejam.
Une-se a face à face, enlanguesce no corpo o corpo:
Enquanto a chaga vê, no peito a chaga nutre.
A Parca, vendo da morte os tristes espetáculos, ignora
A quem coube a vida, a quem ela deu morte.

 

II
DAFNE CONVERTIDA EM ÁRVORE

Febo persegue Dafne pungido de amor,
Seus votos o movem, ela de temor voa.
Logo velozes a virgem imita as corridas paternas,
Mas, a Febo, êmulo amor confere plumas.
Ela invoca os deuses, árvore frondosa logo se torna
Vista a árvore, Febo assim diz:
Não decerto me admiro; como árvore, bela verdejavas;
E por amor foi um tronco tua dureza.

 

III
ARGOS EM GUARDA DE IO

Como Jove ardesse de amor insano pela vaca
Sidério guardião da virgem era Argos.
Acreditava Juno que o Pastor de cem olhos
Impediria os torpes desejos do ardente Jove.
Não viu ele os dolos de Jove, pois só de amor
Mais vê os dolos quem mais cego está.

 

IV
ACTÉON VENDO A DIANA

Como Actéon olhasse os membros nus de Diana,
Ela esconde-se nas águas, ele o facho bebe.
O suplício deu ela mesma aos olhos, a Actéon puniu
Por que, perdida a forma, o lar ele perdesse.
Feneceu Actéon, não o mataram os cães; antes,
Arrebatou-lhe a vida o rigor da virgem.

 

V
LEANDRO MORTO NAS ÁGUAS

Leandro sulca a planície do mar, fixo na luz,
Os braços são remos, amor é Palinuro.
Tempestade horrenda esbraveja, esbraveja Éolo nas ondas,
Ele invoca Vênus, ele afunda no mar.
De dupla morte pereceu Leandro, cativo de amor,
Morreu na água, foi morto pelo fogo.

 

À MORTE DA SENHORA RAINHA 
DONA MARIA SOFIA ISABEL

O que fazes de atro luto, Lusitânia? Lamento;
O que lamentas? Os últimos fados de meu gemido.
Tamanha tristeza em prantos te mantém? Tamanha;
Perderam-se todas as alegrias em lusa terra;
O que perdes? O reino. Por quê? Já creio em declínio
A estabilidade lusíada, declinado seu Sol.
Tu não poderias do coração mitigar a grave dor!
Oh, quiçá eu pudesse, sofrida a dor, morrer
Dissipa do coração o medo; a morte com razão reclamo;
Pois foi-me vida próvida a Rainha.
Religião, Piedade, onde estão? Tendem aos astros.
Cada um fora de Deus, ele para si os elevou.



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COLÓQUIO ELEGÍACO
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TEJO E MONDA PELO ÓBITO DE 
D. ANTÔNIO TELES DA SILVA

TEJO
Ai de mim! Já morro, unido por tão grande amor:
Viver sozinho não me permite alto amor.

MONDA
Pobre de mim, o horror ocupa cruelmente os lamentos!
Sou Monda, e ao Mundo darei notícias tristes.

TEJO
De aurífero, antigamente, gabava-me: mas o luto,
Férreo, nas penas áureos presentes me proíbe.

MONDA
Esta cidade foi chamada por muitos Coimbra sorridente;
Mas já não sorri e permanece lacrimosa.

TEJO
Chora Lisboa, abalada por desumana dor;
Oceano de lágrimas, Tejo eu não me chamo.

MONDA
Alegre com a água, passeava por plácidas areias;
Mas a pena gela de temor o célere curso.

TEJO
Ô luz lusíada, ó mais fiel esperança do Reino!
Quão fácil, tão tenro pálida Parca o levou!

MONDA
Sempre o Ateneu sobressaía-se com tão grande Aluno,
Mas, ao perecer o varão, perece toda Minerva.

TEJO
Tu, vivo, alegrava-me com teu nome, Teles,
Nome sagrado, pois para mim era um nume.

MUNDA
Tua mente ultrapassa, mais veloz, os poucos anos,
No lugar, os fados que vêm, nesse lugar levam.

TEJO
Com dourado escudo, tua Régia vida protegia-me;
Mas tua morte, Teles, ímpias lanças vibra.

MONDA
Creio murcharem as flores da eloquência; pois
Da morte hórrido inverno acomete as flores.

TEJO
Silva, para mim foras de real estirpe;
Mas com mortal golpe foste Selva de corte.

MONDA
Magnífico engenho, provavas os argumentos da Lógica;
Mas funesta morte arguiu concluindo os dias.

TEJO
Retornas aos súperos, pois que no Orbe és peregrino;
Manter-se em solo baixo glória tamanha não sabe.

MONDA
Em ti vigia todo o decoro da justiça cesárea,
E invocam-te as Leis, mas sem lei ficam vacantes.

TEJO
Nobreza, bondade, gravidade, sapiência, virtude
Ao morreres, lúgubre ausência, acabam.

MONDA
A Pontifical Justiça a todos ensinavas com seriedade;
Roma, perdendo-te, de quanta dor geme!

TEJO
As tágides, entregues â dor por exímio coração,
Não querem, chorando os penhores caros, os coros.

MONDA
As mondaides não conseguem agitar as águas corais,
Paralisa os ânimos a grande ruína.

TEJO
O Louro cingiu tua fronte de Apolíneo canto,
Mas agora, em vez de louro, ali está negro cipreste.

MONDA
Tua Musa costumava compor, em facundo metro,
Cantos; agora, prefere prantos minha Musa.

TEJO
Perde-te o pai ilustre, mas no peito te conserva,
Cruel, não pode a morte destruir o que é da alma.

MONDA
Como estrela fulgente de celeste engenho brilhavas,
Agora os claros astros dão-te um lugar apropriado.

TEJO
Morreste? De modo algum, creio antes que vives, pois,
Dileto da Luz, numerosos corações ocupas.

MONDA
A luz do sol nutre Fênix, por que viva para sempre,
A fama luminosa nutre tua vida eterna.


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APÊNDICE
Tradução do quarto coro das rimas latinas
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HEROICOS: DESCREVE-SE O LEÃO

Percebes como nos campos hirtas garras arqueia
O impávido, sem lei fremente, sem lei vagantes
A agitar pelo dorso as jubas, pelo vazio a abrir
A boca (o Leão) com rugido; com rugido cai em torno a selva,
Em tomo a terra treme, firma-se amplo nos montes o terror.
Desenreda, com torcida cauda, os dolos, ventos
Desdenha, nem aos ventos perdoa do Leão a torva
Ira, mas, inofensivos, com a cauda açoita os ares;
Vendo-se Rei, deseja que a turba de feras
Obsequiosa honre, insígnia real, a coroa.
Ao Anfitriônio (que com morte o imenso Leão
Arruinou, ostentando, vestida a pele, o triunfo)
Provoca, e a morte com que morte vingue, ele mesmo
Antecipa, e exulta em preparar-se para a luta.
Não vem Alcides, irados bebe os fogos,
Picado de raiva, pelo frondoso plaino irrompe
E o Roble acometendo, sob Roble robusteza aguça.
Horrendos a horrendos prélios chamando os tigres.
Já lutas trama, já surpreende em votos o inimigo,
Freme, salta, alegra-se, devora, acossa.
No cerúleo cimo brilha o Leão, arde este pelos campos
Incansável; àquele, astro do céu, Sol das Feras a este
Chamam; em faustos estos o sidéreo Leão vomita
Ignífero, igníferas iras estua o Térreo Leão.
Fulge intrépido, infla-se do esplendor das comas,
Ao crer que jubar são jubas. Febo não incende as areias
da Líbia, a Líbia o Leão, férvido, acende.
Quando a fera abatida prostra-se a seus pés, o Leão,
De bom grado o mando reavendo, refreia, grave,
Acerbas garras com real piedade: não sabe macular as mãos
com subjugado inimigo. Crê bastar a vitória
quem se contém: o raio, ao triunfar, baixos não abala.



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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

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