3/03/2023

O Poema do Frade (Poesia), de Álvares de Azevedo

 



O POEMA DO FRADE



DON JUAN
Ce que je crois?

SGANARELLE.
Oui.

DON JUAN.
Crois que deux et deux sont quatre,
Sganarelle, et que quatre et quatre sont huit.

Molière


CANTO PRIMEIRO

Mou being reasonable must get drunk
Te best of life is intoxication...

Don Juan

I
Eia! acorde-se a glória aos meus lamentos
Com as faces de sangue salpicadas!
Tremam nos cantos meus da lide aos ventos
As gotejantes lúcidas espadas!
Revolvam-se raivando macilentos
Os cavaleiros das nações passadas!
Brilhem as multidões ao sol ardente
Com as nuvens douradas do poente!

II
Nessas lívidas mãos rompa-se a lira!
Além canções cheirosas como o nardo
Que nos festins da noite o vinho inspira!
Não vedes que da guerra aos sonhos ardo?
Não vedes que meu cérebro delira
E arqueja em fogo o coração do bardo,
E como um rei trocara o meu laurel,
Meu reino — por um ferro e um corcel?

III
Como das grutas de Fingal na bruma
Do norte a ventania se derrama;
Como roda o tufão no mar que espuma;
Como a cratera do vulcão se inflama,
Como a nuvem de fogo no ar se apruma
Assim no peito meu o estro em chama
Agita-me, afogueia o peito langue
E como as águias, só anela sangue! 
IV
Mas em que mar cavado eu me perdia!
De errante pescador leve canoa,
Que rajada nas águas te impelia
Por entre essa tormenta que reboa?
Minha alma é um balão: na calmaria
Boia plácido no ar, gentil se escoa
Embala-se voando molemente
Mas teme a trovoada que o rebente!

V
Ó lá sofreia-te, corcel selvagem!
Por que banhas-te em sangue entre a peleja
E nos espinhos roças da folhagem?
Não vês o tressuar que te poreja
No abafado calor dessa bafagem?
Não sentes que a peituga te lateja?
E a onda louca da sanguenta raiva
As tuas crinas cândidas enlaiva?

VI
Além! além! e tu, lira mimosa,
Que do lago nas selvas esquecida
Eu votei a uma fada vaporosa
Que nas folhas estende-se dormida, —
Vem, minha lira, canta-me saudosa
Alguma nênia pálida, sentida
Algum sonho que as folhas balouçando
Te gemesse nas cordas expirando!

VII
Ou em quanto meu cálice transborda
Coralino licor, e um puro Havana
Sonhos da vida no vapor me acorda,
Venha o rosto gentil da Sevilhana,
Ou d' harpa aérea tenteando a corda...
Ao luar a lasciva Italiana,
Com as roupas de veludo desatadas
E a madeixa em torrentes perfumadas.

VIII
Quero a orgia que à noite, desvaria
Quando fresco o luar no céu flutua
E a vaga se prateia de ardentia!
Perfumes, flores, a vertigem sua
Vertendo no festim que me inebria!
Lasciva a dança voluptuosa e nua
Nas rosas que desfolha trepidando!
Pajens louros as traças coroando!

IX
E as roupas onde o seio transparece
As formas cristalinas desenhando
Colos onde o suor límpido desce
Nos seios como pérolas rolando,
E as tremulas madeixas ondeando,
E a valsa que se agita e que resvala
E entre perfumes lúbricos se embala.

X
Trovas cheias de amor, que afogam beijos
E o afã a ondular os níveos seios,
O colar que na, alvura se peleja;
E o olhar que enlanguesce nos enleios;
Vestes soltas ao fogo dos desejos
E respirando os lábios devaneios;
Amantes e o Xerez em taças belas
E a embriaguez mais louca em meio delas!

XI
E após ébrio de amor no frouxo leito
Entre os aromas de esfolhadas flores
Quero dormir com a loura peito a peito,
No lábio o lábio dela - as vivas cores
Quero as ver desmaiar num ai desfeito!
Amá-la no luar, viver de amores!
Ó noite! da ilusão que a vida esquece
Que mais; doce tremor nos enlanguesce?

XII
Amo nas tardes de verão correndo
A viração dos laranjais em flor,
Na praia solitária, a sós gemendo
A pensativa lânguida o palor
Entre as mãos melindrosas escondendo!
Amo no baile a incendida cor
Da donzela na dança estremecida
Como uma borboleta à luz da vida!

XIII
Mas eu amo inda mais sentir no selo
A alma cheia de febre e de esperanças,
E a tímida donzela de receio
Pender a fronte nas cheirosas trancas;
Amo inda mais no lábio ardente e cheio
De amor que passa e aroma-lhe as lembranças,
— E quando o olhar afoga-se em desejo —
Implorar ilusões, pedir um beijo!

XIV
Escutai-me, leitor, a minha história,
É fantasia sim, porem amei-a.
Sonhei-a em sua palidez marmórea
Como a ninfa que volve-se na areia
Com os lindos seios nus... Não sonho gloria;
Escrevi por que a alma tinha cheia
— Numa insônia que o spleen entristecia —
De vibrações convulsas de ironia!

XV
Mas não vos pedirei perdão contudo:
Se desta canção negra não gostais'
Não penseis que me enterre em longo estudo
Por vossa alma fartar de outra harmonia!
Se vario no verso e ideias mudo
E que assim me desliza a fantasia...
Mas a crítica, não... eu rio delia...
Prefiro a inspiração de noite bela!

XVI
A crítica é uma bela desgraçada
Que nada cria, nem jamais criara;
Tem entranhas de areia regelada:
É a esposa de Abraão, a pobre Sara
Que nunca foi por Anjo fecundada:
Qual a mãe que por ela assassinara
Por sua inveja e vil desesperança
Dos mais santos amores a criança!

XVII
O meu imaginar é um navio
Que entre as brisas da noite se perfuma,
Que à plácida monção do morno estio
Resvala pelo mar à flor da escuma!
E da noite no fresco e no arrepio
Das vagas a gemer uma per uma
Sobre a quilha que lânguida se escoa
Os marinheiros vão dormir na proa.

XVIII
E dorme o capitão: e dorme e sonha
Aos fumos do charuto recendente,
E do rum nos vapores vem risonha
Nas cismas lhe dançar alegremente,
Esquecer-lhe a viagem enfadonha
A Andaluza gentil de lábio ardente:
E embala-se em monótono descante
Sonhando os seios da morena amante!

XIX
O marujo a dormir no chão imundo
Sonha a riso da nédia taverneira,
Da terra a folga, o vinho rubicundo
E nas mesas da tasca a bebedeira!
Ai! coitados de nós! todo esse mundo
Não vale do sonhar a huri faceira!
Diz-lo o nauta no mar, o rei no trono
Da vida-tudo o mais não vai o sono!

XX
E que durmam! se a lânguida ventura
No regaço cheiroso os adormece!
E que durmam! se é muito fresca e pura
A noite de sonhar que a vida esquece!
E se quando se, dorme nodoa impura
Nem os lírios do amor amarelece
E a estrela não mergulha-se há treva....
Assim meu pensamento — um sonho o leva!
XXI
Quando a lágrima; sinto que tressua
Numa pálpebra roxa e desbotada,
Então minha alma tem na lira sua
Uma corda por ela perfumada!
E quando eu amo ao clarão da lua
Num olhar de morena desmaiada
E o lábio em sede férvida me inflama,
O meu peito canções de amor derrama!

XXII
Quando gelou-se moribundo o peito
Que um amor insensato consumia
No deserto lodaçal, em frio leito,
Houve par ele o ai de uma harmonia:
Num coração às lágrimas afeito,
Um adeus à flor que se perdia,
Um adeus à lembrança do passado!
Uma saudade em chão abandonado!

XXIII
Trouxe o verso talvez, pálida a rima
Por estes meus delírios cambaleia,
Porem odeio o pó que deixa a lima
E o tedioso emendar que gela a veia!
Quanto a mim é o fogo quem anima
De uma estância o calor: quando formei-a
Se a estatua não saiu como pretendo:
Quebro-a — mas nunca seu metal emendo. 
XXIV
Meu herói é um moço preguiçoso
Que viveu e bebia porventura
Como vós, meu leitor... se era formoso
Ao certo não o sei. Em mesa impura
Esgotara com lábio fervoroso
Como vós e como eu a taça escura.
Era pálido sim... mas não de estudo:
No mais... era um devasso e disse tudo!

XXV
Dizer que era poeta — é coisa velha!
No século da luz assim é todo
O que herói de novelas assemelha.
Vemos agora a poesia a rodo!
Nem há nos botequins face vermelha,
Amarelo caixeiro, alma de lado,
Nem Bocage d'esquina, vate imundo,
Que não se creia um Dante vagabundo!

XXVI
O meu não era assim: não se imprimia,
Nem versos no teatro declamava!
Só quando o fogo do licor corria
Da fronte no palor que avermelhava,
Com as convulsas mãos a taça enchia.
Então a inspiração lhe afervorava
E do vinho no! eflúvio e nos ressaibos
Vinha o fogo do gênio à flor dos lábios!

XXVII
Se era nobre ou plebeu, ou rico ou pobre
Não vos direi também: que importa o manto
Se é belo o cavaleiro que ele cobre?
E que importa o passado, um nome santo
De pútridos avós? plebeu ou nobre
Somente a raiva lhe acordava o pranto.
Embuçada no orgulho a fronte erguia
E do povo e dos reis escarnecia!

XXVIII
Não se lançara nas plebeias lutas,
Nem nas falanges do passado herdeiras,
No turbilhão das multidões hirsutas,
Não se enlaivou da pátria nas sangueiras,
Nem da praça no pó das vis disputas!
Sonhava sim em tradições guerreiras,
Nos cânticos de bardo sublimado...
Mas nas épicas sombras do passado.

XXIX
O presente julgava um mar de lama
Onde vis ambições se debatiam,
Ruína imunda que lambera a chama,
Cadáver que aves fétidas roíam!
Tudo sentiu venal! e ingrata a fama!
Como torrentes trépidas corriam
As glórias, tradições, coroas soltas
De um mar de infâmias às marés revoltas!

XXX
Não quisera mirar a face bela
Nesse espelho de lodo ensanguentado!
A embriaguez preferia: em meio dela
Não viriam cuspir-lhe o seu passado!
Como em nevoento mar perdida vela
Nos vapores do vinho assombreado
Preferia das noites na demência
Boiar (como um cadáver!) na existência!

XXXI
Uma vez o escutei: todos dormiam —
Junto à mesa deserta e quase escura:
Lembranças do passado lhe volviam;
Não podia dormir! Na festa impura
Fora afogar escárnios que doíam...
Não o pode: dos lábios na amargura
Ouvi-lhe um murmurar... Eram sentidas
Agonias das noites consumidas!


XXXII
Olvidei a canção: só lembro dela
Que d'alma a languidez a estremecia:
Como um anjo num sonho de donzela
Sobre o peito a guitarra lhe gemia!
E quando à frouxa lua, da janela,
Cheia a face de lágrimas erguia,
Como as brisas do amor lhe palpitavam
Os lábios no palor que bafejavam!

XXXIII
Amar, beber, dormir, eis o que amava:
Perfumava de amor a vida inteira,
Como o cantor de Don Juan pensava
Que é da vida o melhor a bebedeira...
E a sua filosofia executava...
Como Alfred Musset, a tanta asneira
Acrescento porém… juro o que digo!
Não se parece Jônatas comigo.

XXXIV
Prometi um poema, e nesse dia
Em que a tanto obriguei a minha ideia
Não prometi por certo a biografia
Do sublime cantor desta Epopeia.
Consagro a outro fim minha harmonia
Por favor cantarei nesta Odisseia
De Jônatas a glória não sabida
Mas não quero contar a minha vida.

XXXV
Basta! foi longo o prólogo confesso!
Mas é preciso à casa uma fachada,
A fronte da mulher um adereço,
No muro um lampião à torta escada!
E agora desse canto me despeço
Com a face de lágrimas banhada,
Qual o moço Don Juan no enjoo rola
Chorando sobre a carta da Espanhola.

 

SEGUNDO CANTO

And her head droop'd as when te lily lies
O'er charged wit rain

Don Juan

I
Dorme! ao colo do amor, pálido amante,
Repousa, sonhador, nos lábios dela!
Qual em seio de mãe, febril infante!
No olhar, nos lábios da infantil donzela
Inebria teu seio palpitante!
O murmúrio do amor em forma bela 
Tem doçuras que esmaiam no desejo
Dos sonhos ao vapor, na onda de um beijo!

II
Que importa a perdição manchasse um dia
A aloura virginal das roupas santas
E o mundo a esse corpo que tremia:
Rompesse o véu que tímido alevantas?
E à noite lhe pousasse a fronte fria
Nesse leito em que tremulo te encantas
E ao bafejo venal murchasse flores,
Flores que abriam a infantis amores?

III
Que importa? se o amor teu rosto beija,
Se a beijas nua e sobre o peito dela
Teu peito juvenil ama e lateja!
Se tua langue palidez revela
Que tua alma febril sonha e deseja
Desmaiar-lhe de amor, gemer com ela,
Ébrio de vida, a soluçar d'enleio,
Pálido sonhador morrer-lhe ao seio! 

IV
Que importa o mundo além? teu mundo é esse
Onde na vida o coração te alegra!
Teu mundo é o serafim que às noites desce
E que lava no amor a mancha negra.
É a névoa de luz onde não lê-se
Escrita à porta vil a infame regra
Que assinala o bordel à mão poluta
E diz nas letras fundas — prostituta!

V
A essa pobre mulher na fronte bela
Anátema escreveu a turba fria!
Banhe o remorso o travesseiro dela,
Corram-lhe a mil da pálpebra sombria
Prantos do coração, não há erguê-la
A eterna maldição. E quem diria
A solitária dor, da noite ao manto
Que lavra o seio à cortesã em pranto?

VI
Ah! Madalenas míseras! ardentes
Quantos olhos azuis se não inundam 
Nos transes do prazer em prantos quentes
Quando os seios febris em ais abundam,
Que o amante nos ósculos trementes
Crê sonhos que do amor no mar se afundam!
Que suspiros no beijo que delira
Que são lágrimas só! que são mentirá!

VII
E quantas vezes na cheirosa seda
Da longa transa desatada, solta,
Onde o moço de gozos embebeda
A fronte à febre juvenil revolta;
Quando a vida, o frescor, a imagem leda
De esperança que morreu ao leito volta;
As lágrimas na dor ferventes correm...
Como em céu deverão estrelas morrem?

VIII
Ah! não chores! que valem perfumadas
Do Oriente as manhãs e céus e lua
E a natureza a vir entre alvoradas
E a láurea do porvir que sangue sua,
O vai deserto, as noites estreladas
Quando lânguida a vida em ais flutua! 
Quando um suspiro as lágrimas apaga
E o lábio treme, e em beijos se embriaga?

IX
Amar uma perdida! que loucura!
Mas tão bela! que seio de Madona!
Nunca amara tão nívea criatura
Como aquela mulher que ali ressona!
A lâmpada no leito que murmura
Sobre amante que nua se abandona,
Envolta nos seus lúcidos cabelos
Semelha um querubim, pálido ao vê-los!

X
Era alta noite. Jônatas saíra —
Precisava frescor — enfebrecida
A fronte na descrença sucumbira.
Maldizia no tédio a negra vida,
Até as ilusões que ele sentira!
Curvava a testa mórbida, abatida,
Sempre sedento, sempre libertino,
Blasfemando do amor e do destino!
XI
Ele viu— não foi sonho— era sentada
A sombra no balcão de uma janela
Angélica mulher: luz embaçada
De um estrelado céu nas faces dela
Branqueava-lhe a face descorada
E os seios níveos que o cetim revela...
Além imagens vãs! a oitava finda:
Só posso vos dizer, que ela era linda.

XII
Nem tão aérea Jocelyn passando
Vira Laurence pálida, abatida.
Nem tão bela a sentira suspirando
Abafando a saudade emurchecida!
Com a face na mão — muda, cismando
Tão branca era a gentil desconhecida!
Nos cabelos a noite recendia!
Era tão bela assim... e ela dormia!

XIII
Esperavam alguém? A porta aberta
Bem essa ideia despertar podia. 
Entrou. Do lampião a luz incerta
Entre as sombras alentos exauria...
Ele subiu — a sala era deserta.
Passando pela cabeça a mão — sentia
Não sei que atropelar de mil ideias,
Que frio ignoto a comprimir-lhe as veias.

XIV
E que cisma! que insano devaneio
Na mente exausta repassar-lhe vinha!
Do vício e do bordel tinha receio?
Volvia à fé que desbotado tinha?
Doía-lhe ao coração de um torpe enleio
— Como no lodo as azas a andorinha —
Do leito profanado às sombras densas
Uma per uma ter manchado as crenças?

XV
Não! revoava-lhe um outro pensamento,
Mais duro e positivo e verdadeiro:
A ideia do devasso macilento
Lhe doía no cérebro altaneiro...
Pensava que amanhã o seu sustento
Findaria por mingua de dinheiro... 
Poucas moedas viu na bolsa finda.
Porem bastantes para amar ainda!

XVI
Amar! amar e sempre! eternamente!
Como da infância os trêmulos desejos!
Amar, por que a alma se alimente
Na seiva de prazer que manam beijos!
Amar! como aos crepúsculos do Oriente
A sultana das noites aos bafejos!
Amar! porque das convulsões do peito
A hora mais divinal se esvai no leito!

XVII
Amar! por que esta vida se desfolha
Entre aromas no lábio que desmaia!
E seu orvalho o coração nos molha
Como a escuma do mar a fria praia!
E treme-se ao prazer, qual treme a folha
Quando influxo vital o amor espraia!
Quando o êxtase ao espasmo preludia
E o peito arqueja e a boca balbucia! 

XVIII
Amaria esta noite: e quando exausto
Acordasse amanhã — como um mendigo
Levara a vida, peregrino infausto,
Dos relentos da noite ao desabrigo...
— Ai! do ardente prazer quando holocausto
Nas aras tremeleou o fogo amigo,
E só restam as cinzas da fogueira,
Que importa a cinza fria, a vil poeira?

XIX
Misérrimos de nós! nossa existência
O hoje abrange só, vermes de um dia!
Ontem foi de um anelo a impaciência
Um desejo fogoso que incendia!
E que importa amanhã seja a inclemência
À intempérie do ar, à noite fria?
Peregrinos! no barco adormeçamos!
Em mar desconhecido navegamos!

XX
O mancebo passou um reposteiro
De purpúreo veludo arregaçando, 
Passou, bem como passa o caminheiro
Da floresta os folhedos afastando...
Entrou lento na sala o estrangeiro...
Tinha um riso nos lábios desusando...
Na sacada onde o vento se expandia
Cândida e bela mulher aí dormia!

XXI
Ele chegou-lhe ao pé; era tão pura,
Que de leve osculou-lhe a fronte nua!
Era uma estátua de marmórea alvura!
Melancólica e bela como à lua:
E tão bela a madeixa a sombra escura
Derramando-lhe ao colo que flutua!
Leve passou a mão no seu cabelo
E ternamente murmurou — Consuelo! —


XXII
Consuelo despertou (era o seu nome)
E tão doce volveu os olhos santos,
Que ele sentiu que a febre que consome
Humano imaginar em sonhos tantos,
Que delira coroas e renome,
Desmaia da mulher ante os encantos, 
Quando entre abre-se o peito ao ar da vida
— Como ao sol do verão romã partida!

XXIII
Do mais eu nada sei. Senti somente
A noite duas almas suspirando:
Ouvi na brisa um hálito fremente,
Qual de um seio em prazer se dilatando
Ouvi a jura efêmera, demente
Passar como um suspiro desmaiando,
Vi a lua celeste e vagarosa
Num leito derramar a luz saudosa!

XXIV
Depois o véu do leito estremecendo
Vi duas criaturas soerguidas
Como dois anjos, pálidas gemendo!
Invocavam as virgens consumidas
Em desejos de amor, a Deus se erguendo
As folhas que se beijam recendidas, 
Que palpitam à luz, e em fogo lento
Murcham de gozo ao hálito do vento!

XXV
Místico beijo se escoou sentido
Como de pombos cândidos que adejam
O sussurro do voo estremecido!
E sobre os peitos que febris latejam
Sufocava seu túmido gemido
Como as donzelas que de amor se beijão!
Almas cheias de vida! pareciam
Que as vidas numa vida confundiam!

XXVI
D'aurora a doce luz, as brisas calmas
A lhes passamos úmidos cabelos
Era o sopro de Deus! As duas almas
De suave himeneu nos doces elos
Tremiam como no deserto as palmas
Quando à noite nos cachos amarelos,
Entre os florões a vento perfumado
Do pólen lhes derrama o pó dourado!

XXVII
Se quereis, meu leitor, saber agora
O que a isto seguiu-se — eu não o digo,
Porque senão minha leitora cora:
E obro nisto por certo qual amigo:
E também por que a musa me descora
Quando nestas visões a ideia sigo.
Demais findou-se de licor meu copo,
E a seco poetar jamais eu topo!

XXVIII
Importa-vos porem saber que a cena
Que descrevi primeiro neste Canto
Veio desta ao depois. — A Madalena
Por quem ali eu desatei em pranto
Foi a presente criatura amena,
Que, certo, é digna que eu fizesse tanto!
E pois que a meus heróis Morfeu namora
Também cansado vou dormir agora! 



CANTO TERCEIRO

Ó gracioso primor de natureza
Atrativa, donosa variedade!
Que tudo quanto tocas formoseias!

Filinto Elísio

I
De certo o Criador na tal semana
Em que o mundo surgiu da escuridade
E sobre o mundo a luz e a raça humana,
Por lei estabeleceu a variedade
Teve muita razão: com todo o siso
Atesto que mostrou muito juízo. 

II
Bofé! que se uma atroz monotonia
De um elemento a vida compusera,
O homem até morrer bocejaria,
E em morna estupidez se embrutecera.
Quanto a mim, eu adoro a variedade
E amo até no verão a tempestade!

III
Por gostar das galhofas da comedia
Da alegria folgaz de Molière,
Nem por isso me esqueço da tragédia
E desamo o sombrio Miserere!
Quando Hamleto findou sua agonia
Do Falstaff bon-vivant vinha a folia!

IV
Acho belo o Oceano quando voo
Pelo seu verde-mar num barco à vela,
Porem odeio as aflições do enjoo
E o vento do alto mar que me regela...
Amo a lua no mar e o mar sem lua,
Astarte vaporosa e Lola nua.

V
Como varia o vento — o céu — o dia,
Como estrelas e nuvens e mulheres
Pela regra geral de todos seres,
Minha lira também seus tons varia,
E sem fazer esforço ou maravilha
Troca as rimas da oitava pela sextilha.

VI
E agora tem lugar duas palavras
Que o autor mostrem nu deste poema
Quem o arado levou por essas lavras...
O marujo que nesse bote rema...
Falemos sem rodeia e com verdade:
Esse livro escreveu um pobre frade.

VII
Um frade! no convento envelheci-me,
Do mundo ao lodo fui viver bem longe,
Nem minha fronte rebucei no crime!
Mas apesar das orações do monge,
Gosto assaz do prazer, gosto do vinho,
Na ceia faço inveja a um barbadinho. 

VIII
Lancei-me ao desviver: gastei inteira
Na insânia das paixões a minha vida.
Qual da escuma o fervor na cachoeira
Quebrei os sonhos meus n'alma descrida.
E do meio do mundo prostituto
Só amores guardei ao meu charuto!

IX
E que viva o fumar que preludia
As visões da cabeça perfumada!
E que viva o charuto regalia!
Viva a tremula nuvem azulada,
Onde se embala a virgem vaporosa!
Viva a fumaça lânguida e cheirosa!

X
Cante o bardo febril e macilento
Hinos de sangue ao poviléu corrupto,
Embriague-se na dor do passamento,
Cubra a fronte de pó e traje luto:
Que eu minha harpa votei ao esquecimento
Só peço inspirações ao meu charuto! 

XI
Oh! meu Deus! como é belo entre a fumaça
No delicioso, véu que os anuvia
Ver as formas lascivas da donzela
Entre o véu transparente que esvoaça,
Nadando nesse vaporoso dia
Bailando nua, voluptuosa e bela!

XII
E como é belo no perfume aéreo
Sentir morno suor do abatimento
Pelas lânguidas faces orvalhar!
Como é doce nas cismas do mistério
Sentir como um alcíon à flor do mar
As lembranças bosiar no esquecimento!

XIII
É quando os lábios o charuto finda
E a lânguida visão num beijo passa,
E o perfume os cabelos nos repassa,
Como é belo no azul da nuvem linda
Entre vapores madornar, e ainda
À vida renascer noutra fumaça! 
XIV
É belo ao fresco da relvosa espalda
Os serenos beber à flor pendente.
Do Reno o vinho em taças de esmeralda
E sobre o campo adormecer contente!
É bela a noite que a volúpia escalda
E acorda aos seios um suspiro ardente!

XV
É belo o escumar da catadupa,
A margem verde que a torrente ocupa,
Beijar na sombra o colo palpitante
Que ofega e bate à descorada amante...
Ede um corcel à trêmula garupa
Correr a mão ao pelo gotejante!

XVI
Mas nem o Johannisberg, úmidas flores,
A relva fofa da campina verde,
E a noite que vem quente de amores
E a torrente do vai que além se perde,
Nem o seio que nuta e que se inflama
Desmaia o tédio meu que o spleen derrama 

XVII
E o amor muita vez aos lábios mente:
Tem cores de maçã — e dentro infecta,
E cinza aos lábios deixa-nos somente!
Além o seio, o coração corrupto
Que desmentem os sonhos do poeta!
Só tu não mentes não, ó meu charuto!

XVIII
Só tu és sempre belo como a lua
E sempre virginal e perfumado,
És o lírio do céu nunca murchado!
Como a virgem de amor, cândida e nua,
Evaporas no aroma essa alma tua
E tens um lábio nunca profanado!

XIX
Só tu não mentes, não! e tu somente
Na taça da ilusão não deixas lia!
E quando a mesma realidade mente
Quando a virgem, a fé, de noite e dia
Veremos amanhã que ontem mentia,
Inda contigo dormirei contente!

XX
Por que nessa ilusão que a amar convida
Revelas a morena adormecida
A quem banha palor os doces traços,
Tremulo o seio, a pálpebra abatida!
E sinto em teu vapor anjos da vida
Entre as nuvens tremendo os róseos braços!

XXI
Meu charuto caiu, ei-lo se esfria:
Além nas ondas vi-o mergulhar,
Como o sol no crepúsculo do dia,
Como um cadáver arrojado ao mar!
Misérrimo! só resta cinza fria!
No céu da vida estrela a desmaiar!

XXII
Tua vida apagou-se e eu perdi-te!
Vai, conta às ninfas o meu mal tamanho!
Nos lábios de Netuno ou de Anfitrite
Descreve minha dor, minha agonia,
Meu íntimo sofrer quando eu te via —
Como Safo — morrer tomando um banho.

XXIII
E vós bardos nutridos de amargura
Que de prantos banhais a lira santa,
Se ainda o peito não trazeis corrupto,
Vinde chorar a minha desventura
Que no frio pavor de mágoa tanta
Veio até apagar o meu charuto!

XXIV
Eu não rio-me, não! a voz do peito
Nos versos meus inânida se exala!
E quantas vezes quando em ai desfeito,
Como uma fibra que no peito estala,
A mente de tristezas nos repassa...
Não desvanece tudo uma fumaça?

XXV
E quantas vezes no cismar perdido
No seio o cancro doe de uma saudade,
E alento das internas agonias
Nas cordas de alaúde enternecido 
Não anseia, não arfa de ansiedade
Que esvai-se em teu vapor em melodias?

XXVI
E então qual geme a rola de mistura
O arroio molemente, com as areias,
E qual se ercoa pelas mornas veias
Os hálitos vernais da formosura,
— Como nas cordas de harmonia cheias
A medo uma infantil canhão murmura!

XXVII
E nos lábios derrama-se a lembrança,
Do passado o sorrir nos prantos de hoje.!
Cobre-me o coração a vaga mansa
De uma saudade que suspira e foge!
E lembro às vezes o palor da vida
Do gélido cadáver do suicida!

XXVIII
É o canto dós lânguidos amores
Perdido como o céu na escuridade
Do intimo seio peregrinas flores
Abertas ao sereno da saudade. 
Mas triste — como a dor em rosto insano...
Como a noite nos ermos do Oceano!

XXIX
Ah! quando enfim a lâmpada apagou-se
Do leito sepulcral na pedra fria,
Quando a palmeira ao florescer murchou-se
E a ave de ouro que do sol vivia
Caiu morta na relva recendida,
Gotejante das lágrimas da vida!

XXX
E tudo se acabou! e terra escura
Cobriu-te a face roxa desbotada,
E tu foste da cal na sepultura
Sufocar-te nas tenebras do nada,
Agora sim virei — e solitário —
Na solidão chorar o teu fadário!

XXXI
Virei tecer de moribundas flores
A pálida coroa do finado,
Lembrá-los, reviver os teus ardores
E as puras ilusões do teu passado! 
Quero chorar meu desgraçado amigo,
Na lousa tua inda sonhar contigo!

XXXII
Ah! quando as noites num viver perdido
Ião-me longas anelando amores,
Do teu peito no sonho recendido,
Como cisne a boiar entre vapores,
Vinha sorrir-te loura e perfumada
A angélica visão de tua amada!

XXXIII
Poeta! eras feliz — a mão divina
Quando passa na fronte sublimada
Os seus lânguidos olhos ilumina,
E ante uma sombra de mulher amada
Revela os hinos, que murmura o vento,
E sussurra à donzela o sentimento!

XXXIV
E no Oceano do amor entre harmonia
Da tarde a languidez embala os sonhos
E perfuma o palor ao róseo dia
Entre as canções dos serafins risonhos! 
—Ao poeta orvalhos das cecéns mais puras!
A ele — a taça das místicas venturas!

XXXV
Senhor! foi belo o sonho da esperança!
E quem sentiu-as, impressões, tamanhas,
Tantas lágrimas deu a uma lembrança?
Noites e luas, brisas das montanhas,
E vos, flores do vai, pálidas flores,
Não lembrais a canção de seus amores?

XXXVI
Não ouvíeis do lábio as melodias
Que vibrava a paixão? não as ouvíeis?
No murmurar das moles; assomas
Amorosos eflúvios não sorvíeis?
Não arfáveis também, pálidas flores,
À tremula canção dos seus amores?

XXXVII
E que sonhos de amor que amou na vida!
Perguntai-o à estrela que divaga,
Ao- vento na lagoa adormecida,
Ao círio que no túmulo se apaga, 
Perguntai-o da insônia aos arrepios,
De Werther o suicida aos lábios frios!

XXXVIII
Era só ela seu pensar — por ela
Dó porvir esqueceram-lhe vitórias,
E pelo amor da cândida donzela
Rira de escárnio ao laurel das glórias!
Como uma taça onde o fervor transborda
Tinha na harpa do gênio uma só corda.

XXXIX
Era um seio de neve... o brilho langue
De uns olhos onde o azul se umedecia:
Da face no rubor tépido o sangue...
Onde o lábio sonhava e se embebia
Num êxtase de amor — no ébrio desejo
De vida e alma lhe votar num beijo!

XL
E o anjo? não o amou? quando ele em fogo.
Ardente a fronte pálida pendia,
E como um ai de solitário afogo s
O peito sufocado lhe gemia, 
Não bateu-lhe jamais qual numa lira
Esse vento de amor que nos delira?

XLI
Era uma estatua — sim: um deus a erguera
Num rir de escárnio e dó — de lodo cheia,
Nem sol de amor o peito lhe acendera,
O morto coração era de areia!
Como o céu, nos crepúsculos do dia,
No vapor da vaidade ela dormia!

XLII
Por que tanto sonhar? tão belas flores
No esmero lhe sagrar dentro do peito?
Anátema! ela riu-se dos amores:
Que mulher! não sentiu em ai desfeito
Esse alento de boca enfebrecida
De um beijo no calor perdendo a vida!

XLIII
Desgraçado! a insônia do martírio
O cérebro lavoso delirou-te!
E o vórtice das águas do delírio
Das insônias da febre ao sol queimou-te! 
Foste afogar as ilusões da vida
Na taça de mistério do suicida!

XLIV
“Quando a morte nos dentes nos rompera
As taças do viver, quem descrimina
Do sábio ou do insensato qual a sina?
Se quem toda a bebeu qual Deus a enchera,
Ou quem a rejeitou — enfebrecida
Da morte aos sonhos imolando a vida?”

XLV
Tens razão, Jocelyn! e ao Deus perfeito
Porventura dirão esses perdidos
Que vão da morte se esconder no leito:
Por que as aspirações, os ais sentidos,
E alma em fogo ao céu um sonho erguia
E o sonho a enlevou.... se ele mentia?.

XLVI
Não te maldigam pois! Ignora o mundo
O que doe esse verme da desgraça:
E da irrasão maldita o corvo imundo
Que no escárnio do fel nos despedaça!
Não sabem não — de Prometeu no leito
O sangue e dor que volam-nos do peito!

XLVII
Mas eu sei: que senti o amor ardente
Convulsivo bater num peito exausto!
Sei: que senti a lágrima tremente
Como na insana palidez o Fausto!
Quando o sono fugia às noites minhas
Como às nuvens do inverno as andorinhas.

XLVIII
Bebi-a essa tristeza, essa doença
Que nos escalda lágrimas sombrias,
Que nos revolve sós na vaga imensa
Do Oceano das internas agonias!
Que empalidece a face e morte lenta
Nos estampa na fronte macilenta..

XLIX
Ah! virgem das canções, entre vapores
És pura e bela sim, porem teus lábios
Me fazem delirar como licores
Que afervoram-nos tépidos ressaibos!
Quando em teu colo vou deitar-me agora
Teu palpitar as faces me descora!

L
E cedo morrerei: sinto-o, nas veias
O meu sangue se escoa vagaroso
Como um rio que seca nas areias,
Como donzela, que desmaia em gozo!
Teus lábios, fada minha, me queimavam,
E as lânguidas artérias me esgotarão!
LI
Mas que importa nas sombras da existência
Se mentiu-me o sonhar quando eu sentia
Um dos pálidos anjos de inocência
Pousar-me a face ao peito que gemia,
Se num sonho de amor, em noite bela
Nos suspiros do mar amei com ela! 

LII
Era uma lua pálida e sombria
Que seu leito nas ondas, embalava:
Na mão de neve a face lhe pendia,
E nos sonhos a virgem se enlevava!
E, que estrelas no céu! e que ardentia!
Que perfume seu véu estremecia!

LIII
E que sonhos, meu Deus! e que ventura!
E que vento de amores palpitava
Na escuma do batei a vaga pura
E lascivos suspiros lhe arruinava!...
E em torno mar e céu — a noite bela,
Nos meus braços a inânida donzela!

LIV
Ali! virgem das canções, aos brancos lírios
Por que tão cedo me chover na infância
O mágico sereno dos delírios
Que adormece, embalsama na fragrância?
E do amor entre os lânguidos conselhos
Minha fronte embalar nos teus joelhos?

LV
Por que tão cedo o vinho da harmonia
Nos beiços infantis correu-me aos sonhos,
Entornou-me essa nuvem que inebria,
Que gela o riso aos lábios meus risonhos?
Tão quedo o sono meu, por que turvá-lo,
E de ilusões esplêndidas povoá-lo?

LVI
E tão cedo! porque encher meu leito
Destas sombras suaves, delirantes?
E na harpa adormecida de meu peito
Suspirarem-me sons tão ofegantes?
E por que não deixar o meu sentir
Da infância d'oiro nos frouxeis dormir?

LVII
E assim eu morrerei: com a sede ainda
Amargosa no lábio ressicado!
Cansando os olhos na extensão infinda,
Perguntando se a crença do passado
Também verei no lodo revolvida....
E como tu sufocarei a vida!... 

LVIII
E quem sabe? é a dúvida do Hamleto
E o — ser e o não ser — que toma o passo:
O mundo é lodaçal, é leito infecto,
E a turba é sempre a que se rio do Tasso!
Mas o que é o morrer? e a sepultura
Que mistérios contém na noite escura?

LIX
Ah! mistérios! não rias, ceticismo,
Do agoureiro terror que a morte fria
Do banho do cadáver no baptismo
Os regelados nervos arrepia!
Sono de chumbo, tálamo de terra,
Que nódoa negra teu sudário encerra?

LX
E tu dormes, suicida?... E à noite infinda
Que sonhos roçam-te o livor sombrio?
A mágica Visão te passa ainda
Com a Urna desse amor que te mentiu?
Inda sorves nas ávidas lembranças
O perfume de amor das loiras transas? 

LXI
E o pai, não sonhas nele?... e as cãs tão puras
Daquela que embalou teu berço infausto,
E na mágoa das suas desventuras
Nem te pôde beijar o corpo exausto?
Misérrima anciã! que só vivia
Por ti — e por li desce à noite fria!

LXII
E o filho? essa criança que palpita
Nos seios que um insano amor consome,
Que profanado amor gerou maldita,
Que virá amanhã pedir seu nome!
E que não saberá que sepultura
Guarda o pai e o segredo em terra impura!

LXIII
E a pátria que entre as lágrimas de escrava
Com a face bela gélida, pendida,
Salpicada de lodo em ti sonhava
Como o sol da manhã de uma outra vida?
A pátria! que a infâmia prostituta
Tenta vender no lupanar poluta! 

LXIV
E não erguem-te aí os gritos dela?
Não vês que a forçam, que seus lábios tapam?
E, desgrenhada, rompem-lhe à donzela
Os vestidos que às frias mãos se escapam?
Não ouves o tinir de vil dinheiro
E a lúbrica risada do estrangeiro?
LXV
Dorme pois, desgraçado! no futuro
Além — no meu viver — quando a minh'alma
Cândida se despir do manto impuro:
E quando a noite que o sofrer acalma
Nas pálpebras pesar-me o sono amigo
Do — nada — ao leito irei dormir contigo!

LXVI
Onde vou? onde vou? Oh! quão diversos
Do meu trilho meus passos desvariam!
Onde correias, meus desgraçados versos!
A tempo os açaimei! onde corriam!
No fantástico pó que eles pisavam
Entre nuvens ardentes galopavam!

LXVII
Além, minhas canções! além as flores
Que essa nênia saudosa n'alma abria!
Quero cismar o canto dos amores
E do amor a confusa melodia!
Ouvi! quero sonhar! quero senti-las
Visões do céu nas ilusões tranquilas!

LXVIII
Harmonias de amor!... é tarde! é tarde!
Vejo a morte num peito que se engoia...
Da saudade o chorar, que os olhos arde...
E além um corpo que nas águas boia!
Um cadáver! um resto corrompido
Que até fora da mãe desconhecido!

LXIX
O cadáver na praia se estendia
Enjeitado pelo mar: — as roupas úmidas
— O cabelo a correr de areia fria —
As faces roxas, — mãos geladas, túmidas —
Mais alvo ainda que Don Juan dormido,
De fome, sede e frio embranquecido! 

LXX
Porém não vinha Oriental donzela
Envolto o colo em pérolas, correndo
Nos ombros níveos a madeixa bela,
Que o mimoso Espanhol na praia vendo
E ao vê-lo nu e pálido, ao ralento,
Beijou a face ao belo macilento!

LXXI
Com o seio a bater em seda incerta
Não veio Haideia, não, ao naufragado.
Ninguém passou: a praia era deserta,
E o mar adormecia sossegado,
Só a maré que as ondas tremulava
A nênia à podridão lhe rouquejava!

LXXII
“Oh! quando os hinos virginais da lira,
E as delícias do amor, que a noite ouvia,
E as harpas do porvir que nos sorrira
E a esperança e os anjos da harmonia,
E o esplendido sol — se esvaecerem....
E as convulsões do peito arrefecerem.... 

LXXIII
E o cadáver lançado em chão de areia
Não ler o belo abraço derradeiro,
Nem amante a chorar, que a mágoa anseia
Nem o adeus! do poento caminheiro!
E ninguém lhe escutar essa tristeza
Que do túmulo exala a natureza....”

LXXIV
Deve n’alma doer, deve ser duro
Esse abandono ao pobre malfadado!...
E nem sentir no seu lençol impuro
A lágrima a cair de um rosto amado,
E sobre ele da noite à monodia,
A amante confundir sua agonia....

LXXV
E quem sabe? nos lábios amarelos
Do morto não desliram-se lembranças?
E o verme nos seus úmidos cabelos
Não ri — mortas com ele— às esperanças?
E ao peito nessa nevoa do dormir,
Pode inteiro calar-se-lhe o sentir?

LXXVI
E quem sabe? é dormir.... e tão somente?
— É o sono que as pálpebras lhe chumba?
E ele não sente a lágrima demente
Que orvalha de saudade a fria tumba?
E se alma foge à podridão impura,
Nunca lhe vem gemer na sepultura?

LXXVII
Nunca chora no pó que ela acordara,
Onde ela derramou a luz etérea,
O crânio que incendeu, que afervorara
Que lavara do lodo na matéria —
O corpo que a seu hálito tremia
Que a essência de Deus nela bebia?

LXXVIII
Alta noite porém: eu não sonhava....
Achegava-se a luz de uma lanterna,
E cândida mulher se debruçava....
E nos lábios a voz chorava terna 
Em dorida canção, cortada e rouca
Dizia à treva o padecer da louca!
LXXIX
A louca!... ao vê-lo aí enlouquecera
Junto ao amante a miséria Consuelo:
Das flores da restinga entretecera
A coroa da fronte no cabelo.
Ria, ria porém com dor tamanha!
Como a onda do mar que os pés lhe banha.

LXXX
Pôs ao colo o cadáver: repassou-lhe
Por sobre a fronte a mão que estremecia,
E nos cansados braços embalou-lhe
A cabeça que inda ontem lhe fervia...
E cantava beijando os lábios dele
Coitada! adormeceu pensando nele!

LXXXI
Por que era morto aí o libertino
Jonatas o cantor da vida impura,
Não o posso explicar ao peregrino.
Creio a morte porem caverna escura, 
Mais fria que o deserto cemitério 
Onde o corpo resvala no mistério.

LXXXII
Sobre o túmulo pois os braços cruso
E dobro tiritando os meus joelhos!
Não sacudo à mortalha o pó escuro
E nem leio da campa nos espelhos...
Da morte no fatal despenhadeiro
Desfolho apenas uma flor sem cheiro!



CANTO QUARTO

EMÍLIA
Pead! dead!

OTELO
She turned to folly and she was a whorc.

“Otelo”


FALSTAFF.
'S blood! I am as melancoly as a gib cat,
or a lugged bear.

PRINCE HENRY.
Or an old lion, or a lover's lute.

“Firt parl of Henry IV”

***

I come no more to make you laugh...
...................................
...Those that can pity here
May, if they think it well, let fall a tear,
The subject will deserve it.

“Shakespeare: King Henry VIII”

I
Por que és tão bela, ó pálida Consuelo?
Por que és tão bela assim nas noites minhas,
E as ondas do teu lânguido cabelo
Me embriagam de perfume — e as puras linhas
Das faces, do teu colo voluptuoso
O coração afogam-me de gozo?

II
Foram sonhos, mulher! porém na sombra
Eu te via febril e delirante,
Como dormida dos haréns na alfombra
Dos amores do Oriente a bela amante!
Como em sonhos eu senti a vida
Na lousa de minh’alma ressurgida!

III
Que amores insensatos! que delírios,
Me acenderão as fontes consumidas!
Era no sono o perfumar dos lírios,
Era o vinho das orgias desabridas!
Era a febre, o tremor, o beijo ardente...
— Como nas rochas bate o mar fremente!

IV
Mulher! e quem te não sonhara um dia
No mórbido palor das faces tuas,
Dos olhos nesse fogo que inebria, 
As formas alvas, transparentes, nuas,
E esse teu colo em palpitar desfeito,
Os véus macios a tremer do leito?

V
E quem te não sonhou? desses perdidos
Que o gênio a suspirar beijou em fogo;
Poetas que de amor enfebrecidos
Se volvem das paixões no desafogo?
Em cujas noites se perfuma o vento
Das lágrimas do amor no sentimento?

VI
Mulher! e quem és tu? que mão divina
O teu sono quebrou de um céu de amores?
Que fada loura; que suave ondina
Deu-te o olhar de lânguidos fulgores?
Que flor do mar se abriu morna d'enleio
Para assim te alvejar no terno seio?

VII
Fora a vida viver em sonho — incerta —
— Como embebida a mente nos alouras
No eflúvio fresco de magnólia aberta — 
Amar-te de joelho! as formas puras,
Beijar-te as alvas mãos, o colo belo,
Beijar-te a face, ó pálida Consuelo!

VIII
Fora viver, como em um sonho, a vida
Ao sentir-te a nuez do níveo seio,
Ao apertar-te lânguida, abatida,
Com esses lábios a queimar de enleio!
Num beijo teu os sonhos, esquecer,
Em teus lábios inânidos morrer!

IX
És muito bela sim! anjo agoureiro
Como estatua de amor ergueu-te um dia!
Talvez sonhou contigo esse estrangeiro —
O bardo altivo de canção sombria!
E por ti viverei... que me revela
Porvir de gozos tua imagem bela!

X
Vem, rainha da noite! quero amar-te
Com os lábios molhados nos licores,
No teu seio de fogo derramar-te 
A mística ilusão dos meus amores!
Ah! vem, repousa, embala-te em meus braços,
Quero viver, morrer nos teus abraços!


XI
Ela dormia: a rosa desmaiada,
Que a noite serenou, nem é tão pura,
Nos moles véus da nevoa mergulhada!
Dos sonhos no frescor, na santa alvura
Era mais bela que de luz divina
A palidez em nuvem peregrina.

XII
E tão pálida e bela! seminua —
As pálpebras do sono em véu sombrio,
Lânguida como vagarosa lua
Quando voga no mar de um céu de estio,
E o seio palpitante como a vaga
Que a praia da solidão de noite alaga!

XIII
Do cabelo nas ondas a donzela
— Inda mais alva a face — adormecia: 
Que fria morbidez nas faces dela!
Rosa que as folhas cândidas despia
Dos amores do vento nos delírios,
No frio orvalho de prateados lírios!

XIV
Oh! sonhava talvez! vi-as tremendo,
— Qual de colar em seio voluptuoso,
Pérolas soltas — lágrimas correndo!
E nos seus lábios como som mimoso
De arroio d'água límpida ao bafejo
Os ais tremiam ao cismar de um beijo!

XV
Era o vento da noite que passava
Da magnólia a pender no mole seio?
Criatura de amor que ao sono em meio
Vaporosos suspiros emanava?
Era a lua que inânida gemia
Quando entre nuvens pálidas se erguia?

XVI
Que pensamento, que desejo incerto,
Que saudades e amor a palpitavam? 
Flores ou anjos, nuvens do deserto
Entre a nevoa dos sonhos que a roçavam?
Ou da Julieta pálido, risonho
Por  seu belo Romeo ardia em sonho?

XVII
Ela dorme. Silencio! ó noite bela!
Fresco e perfume só derrame o vento
Nos cabelos da lânguida donzela!
E da noite ao frescor o sangue lento
Corra nas suas azuladas veias
Como a onda no mar sobre as areias!

XVIII
Mas ah! minhas visões! num céu escuro,
Nas trevas minha nuvem dissipou-se:
A capela viçosa do futuro
No outono da desgraça amarelou-se.
Solitário fiquei nos sonhos meus...
Às ilusões só resta-me um — adeus! —

XIX
Adeus! — é o prantear do marinheiro
À pátria que desmaia em mar doirado! 
Aos ais do peito gotejar primeiro
Da lágrima nas faces do soldado,
Aos abraços da mãe que geme e chora
E aos gemidos da amante que o demora!

XX
Suspiros de Romeo na despedida,
A sua Julieta desmaiada!
Blasfêmias do Rei Lear, beijo sem vida
Nos lábios de Cordélia inanimada!
É a mágoa da dor que afegã, oprime
E na agonia faz sonhar no crime!

XXI
Sonhar-te, Consuelo, em minha noite,
Em teus prantos, o peito suspiroso,
E sentir que nos seios estalou-te
Essa fibra gentil que acende o gozo,
Que falia aos olhos, no hálito suspira,
E nos transes do amor num beijo expira,

XXII
Esse raio do Éden, de flor divina
Emanação balsâmica e celeste, 
Reflexo de uma alampada argentina
Que esse lodo mortal de luz reveste,
Que em nós vive, em nós ama e sonha e sente,
E que chama-se a alma do vivente!

XXIII
Sentir-te no morrer volver sombria
— Tateando o negro chão — os olhos baços,
Os olhos que a paixão de pranto enchia!
Ver-te depois, convulsa erguendo os braços,
Ansiando no estertor, na praia fria
Arquejar e torcer-te de agonia!

XXIV
.....................................................
.....................................................
.....................................................
.....................................................
.........................e par che dorma!

TASSO

XXV
Nunca a viste na lúbrica nueza
A brisa enlouquecendo de beleza,
Solto o cabelo, o róseo véu desfeito,
Tremula como do himeneu no peito
Noiva cheia de amor, de morbideza
Aos longos beijos no convulso leito?

XXVI
Tarde! quem não te amou, minha sultana?
Quem tão árido eivou a mente insana
Em claustro que os alentos assassina,
Que não te amasse em nuvem purpurina,
Como ardente de amor a Americana
Que pálida, entre flores se reclina?

XXVII
E sempre virginal e vaporosa
Pensativa de amor, voluptuosa!
Sorrindo ás virações que te bafejam,
A claridão das nuvens que lampejam,
A lua, à pomba, à selva suspirosa,
As flores que na morte se entrebeijam!

XXVIII
Que te importa que as raças deste mundo
Blasfemando as canções que a Deus erguerão 
Vaguem no tédio, em lodaçal imundo,
Onde as brisas de Deus se corromperão,
Onde amor crepuscula moribundo,
E os anjos de esperança se perderam?

XXIX
Como és fresca no céu, entre fulgores
Na túnica de rosa transparente,
Mística rosa abrindo ao sol de amores
Que anjo te embala a fronte recendente,
Quando a estrela da noite vem ardente
Doirar o teu palácio de vapores?

XXX
Ai dorme! o sonho na cheirosa vida
Para ti é bromélia umedecida,
Sempre cheia de chuva e de frescores!
Para nós... é a gaivota que escoaça,
Vagabundo batei que ao longe passa...
Irrefletido beijo entre amargores!

XXXI
Tu és a fada que os verões tempera,
Raio de luz da eterna primavera! 
És o sonho da flor, o amar da brisa,
És o néctar que a taça purpuriza
Do triste sonhador que ainda espera
E nos vapores do viver desliza!

XXXII
Acorda-te, ó poeta macilento!
Acorda-te, meu peito, ao sentimento,
Revive as esperanças que nutrias,
Refresca a medo as pálpebras sombrias,
Bebe seiva de vida nesse vento,
E dorme como o sol entre harmonias!

XXXIII
Acorda-te, meu peito moribundo,
Às visões juvenis de um outro mundo!
Sonha! mas não blasfemes do destino
Quando amanhã topar o peregrino
Teu crânio lívido, amarelo, imundo...
Teu cadáver no lodo ressupino!

XXXIV
Se o nada não engole a criatura,
Se inda sente o não ser da sepultura, 
Se além arqueja o desespero errante,
Se há uma eternidade delirante,
E doe sentir morder na carne impura
O verme da saudade devorante!

XXXV
Tarde! quando eu morrer, e desprezado
Ao corvo deem meu corpo desbotado,
Derrama sobre mim teus mornos estos!
Talvez reviva o fogo do passado
Nas fibras rotas, nos infaustos restos
Do cadáver no campo abandonado! 

 

CANTO QUINTO

I
Era uma tarde— mas a chuva fria
Dos úmidos ciprestes gotejava,
Além no céu escuro o sol morria
Como rola na terra a rubra lava,
E o vento além rio farfalhar funéreo
Gemia no ervaçal do cemitério! 

II
Era o campo onde brota a erva inculta
Sobre o corpo do ancião e da donzela,
Aonde o verme a forma nívea insulta
E o mármore dos seios amarela!
E aonde ao apagar de uma esperança
Dos amigos enterra-se a lembrança!

III
É o campo da morte — aí gemidos
Não busques, solitário: foge o mundo,
Os miasmas da campa, os ais sentidos
Vai antes sufocar num peito imundo!
Filho da dor! para esquecer a vida
Bastão os seios da mulher perdida!

IV
Ninguém que vá chorar! ninguém! a campa
É solitária e muda. — O apodrecido
Sé volve no mistério.. Só se estampa
A lua no seu túmulo esquecido!
E nem filhos — nem mãe!... Da dor no cumulo
O homem no Lupanar esquece o túmulo! 

V
Por entre as sombras uma luz espanca
A treva que no chão o véu repassa...
Roça nas folhas uma forma branca...
No sombrio ervaçal um vulto passa.
Como de ave agoureira o longo pio
Escutou-se um gemer no campo frio.

VI
Quem geme? errante cão que a lousa escarva
Para cevar em podridão a fome?
Ou sob a cova se debruça a larva,
A sombra que uma eterna dor consome?
Era um morto no túmulo acordando,
Ou corvo negro no dormir grasnando?

VII
Era um canto sombrio — era coveiro
Que nas urzes, cantando, um fosso abria:
E no lábio o sarcasmo zombeteiro
Na cantiga fatal estremecia!
Cantava e ria — e contração nervosa
Agitava-lhe a boca tremulosa. 

VIII
Os monótonos sons da cantilena
Corriam doces como essência pura:
Era o canto de amor — a voz serena.
Mas aí, junto ao lar da sepultura,
Dessa boca nervosa na ironia,
D'alma nos seios a canção doía!

IX
E cantava — também o marinheiro
Canta e sonha Albion se a vaga uiva:
Se lhe escuma no rosto sobranceiro
E molha em flocos a melena ruiva!
Também dos brancos seios que desbotam,
Da virgem que morreu, violetas brotam!

X
Era moço: mas já envelhecido
No avezado calcar na terra solta
Do cadáver o ventre entumecido,
Sem pela fronte lívida e revolta
Sentir a fria mão do passamento
Fria, tocar-lhe o rosto macilento! 

XI
Era um fosso que abria — eterno leito
A um cadáver de mais. Quando o sentiu
Profundo e longo — do caixão estreito
No sudário tomou um corpo frio...
Ia lançai-o... As nuvens se entre abrirão,
Frouxos os raios do luar sorrirão...

XII
Deu no corpo o luar. Era alva imagem
Reflexo branco de mulher divina!
As transas negras à noturna aragem
Tremiam como um lírio que se inclina!
Tão bela! parecia adormecida!...
Era o sono... porém não o da vida!

XIII
Assim a noiva de Romeu dormia —
A pálida Julieta regelada —
Quando nos lábios, nessa face fria
Ele sonhava os beijos d'alvorada,
Das noites breves o celeste encanto,
O ai da ventura, o amoroso pranto! 

XIV
Era tão bela! a palidez sorria!
E a forma feminil tão alvacenta
No diáfano véu transparecia!
Pendeu o homem da morte macilenta
A cabeça no peito — em vil desejo
Longo, mui longo profanou-lhe um beijo

XV
“Tão formosa e morrer!” e murmurando
O coveiro deitou-a na jazida:
Encobriu-a de cal... e sussurrando
Da noite à sombra uma canção descrida,
Erguendo na mão pálida a lanterna
Foi da morte olvidar-se na taverna!

XVI
É sombrio, confesso-vos, meu canto:
E obscuro demais, o que é defeito!
Mas é um sonho apenas que reconto, 
Que em noite longa me gelou no leito —
Sonho de febre, insano pesadelo
Que à fronte me deixou pálido selo!
XVII
Não teve o Dante mágoa mais profunda
Quando na sombra ergueu o condenado'
De um crânio carcomido a boca imunda
E enxugou-a em cabelo ensanguentado:
E contou sua lívida vingança
Na mansão da eternal desesperança!

XVIII
Nem mais estremeceu quando o passado
Do túmulo na sânie revivia...
Quando o velho rugindo sufocado
De fome e raiva ainda se torcia...
Como quando as crianças se mordiam,
E ardentes, moribundas, pão! pediam!

XIX
Quando contou as noites regeladas
E o ar da podridão... e a fome impura
Saciando nas carnes desnervadas
De seus filhos... de sua criatura!
Como a pantera emagrecida come
Os filhos morte pra cevar a fome!

XX
Acordei ao tremer de calafrios
Com o peito de mágoas transbordando;
Enxuguei com a mão suores frios
Que sentia na face porejando!
E um dia o pesadelo que eu sentira
Mesclou-se aos moles sons de minha lira.

XXI
Mesclou-se como ao vinho um ditirambo,
Ao farfalhar de Pança um velho adágio,
Às alvas flores se mistura o jambo
E um ósculo de amor em um naufrágio.
— Creio que vou dizer alguma asneira... —
Como o nome de Deus à bebedeira!
Sancho Pança. 

XXII
Escrevi o meu sonho. Nas estâncias
Ha lágrimas e beijos e ironias,
Como de noite muda nas fragrâncias
Perde-se um ai de ignotas agonias!
Tudo é assim — no sonho o pesadelo,
— Em almas de Madona quanto gelo!

XXIII
É assim o viver. Por noite bela
Não durmas ao relento na janela
Contemplando o luar e o mar dormente.
Poderá apanhar-te de repente
Fria constipação, febre amarela,
Ou alguma prosaica dor num dente!

XXIV
Vai, com a mão sobre o peito macilento
Curvado como um velho peregrino,
Vai, tu que sofres, implorar — sedento
Um remédio de amor a teu destino!...
Um doutor sanará o teu tormento
Com três xícaras d'óleo de rícino! 

XXV
Eu vi, eu vi um tipo de Madona
Que os ares perfumava de beleza:
Que suave mulher! ah! não ressona
Uma virgem de Deus com tal pureza!
Era um lago a dormir... na flor sereno!
Porém sua água azul tinha veneno!


XXVI
E agora — boa noite! eu me despeço
Desta vez para sempre do poema:
Como soberbo sou, perdões não peço.
Mas como sou chorão, deixai que gema,
Que dê largas a est'alma intumescida
Na dor de tão solene despedida!

XXVII
Que prantos! que suspiros sufocados!
Se eu gostasse dos versos eloquentes,
Como eu descreveria bem rimados
Do meu peito os anelitos frementes!
Porém nos seios eu sufoco tudo,
Porque da mágoa o serafim é mudo. 

XXVIII
Silencio, coração que a dor inflama!
Além do escárnio, sons! quero o meu leito
Das lágrimas banhar que a dor derrama!
Quero chorar! quero chorar! meu peito!
Dizer adeus ao sonho que eu sentira,
Sem profanar as ilusões na lira!

XXIX
Eu não as profanei! guardo-as sentidas
Nas longas noites do cismar aéreo,
Guardo-as na esperança, nas doridas
Horas que amor perfuma de mistério!
Sem remorso, nem dor, aos sonhos meus
Eu posso ainda murmurar — adeus!

XXX
Ah! que na lira se arrebente a corda
Quando profana mão os sons lhe acorda!
E o pobre sonhador a fantasia
O sonho que ama e beija noite e dia
Não saiba traduzir, quando transborda
Seu peito desalentos da harmonia!

XXXI
Que não possa gemer a voz saudosa
Como o sopro dos ventos avendiços,
Como a noite que exala-se amorosa!
Como o gemer dos ramos dobradiços!
Para exprimir os pensamentos meus
Nos cantos melancólicos do adeus!

XXXII
Adeus!... é renunciar numa agonia
A esperança que ainda nos palpita;
Sentir que os olhos cegam-se, que esfria
O coração na lágrima maldita!
Que inteiriçam as mãos, e a alma aflita
Como Agar no deserto ora sombria!

XXXIII
Sentir que tudo em nós se gela e chora,
E o coração de lágrimas se vela!
E a natureza além revive agora,
E a existência por viver, mais bela
Novas delícias, novo amor revela
Do luzente porvir na roxa aurora! 

XXXIV
Sentir que se era poeta... à brisa errante
Bebendo eflúvios que ninguém respira,
Pressentindo à donzela palpitante
Os enlevos, os ais, e. o sonho amante
Que nos brisa no berço sussurrante,
E o perfume que a musica transpira!

XXXV
Adeus! é uma gota de mistério
Que Deus nos orvalhou como sereno!
É a dor voluptuosa — o bafo aéreo
Que derrama perfumes e veneno!
É a cisma que rola, que resvala
Que os pensamentos no desejo embala!

XXXVI
Saibo do céu que aviva na lembrança
Que é um filho de Deus o moribundo
A quem se fana a tímida esperança!
Que é dos anjos irmão e que é no fundo
Do Oceano do viver, que o vagabundo
A pérola do amor talvez alcança. 

XXXVII
É as crenças sentir uma per uma
Que se adormecem... e o batei da vida
No Oceano escuro cobre-se de escuma
E se afunda no mar... e dolorida
A alma do marinheiro empalecida
Ao arrebol da morte se perfuma!

XXXVIII
Adeus! tudo que amei! o vento frio
Sobre as ondas revoltas me arrebata,
Além a terra perde-se... o navio
Trilha nos mares sobre um chão de prata!
Adeus! tudo que amei, que me retrata
Inda a saudade ao terno desvario!

XXXIX
Meu céu! minhas montanhas verdejantes!
Cetim azul da lânguida baía!
Manhãs cheias de brisas sussurrantes,
Noites cheias de estrelas e ardentia!
Oh! noites de luar! oh! melodias
Que nas folhas gemeis, ventos errantes! 
XL
Vales cheirosos onde a infância minha
Virgem peregrinou entre mil sonhos!
Noites, luas, estrelas da noitinha
Que os lábios entreabristes-me risonhos,
E orvalháveis de morno sentimento
A aberta flor do coração sedento!

XLI
Silencio que eu amei, que eu procurava
Na varanda romântica e sombria,
Sorvendo dentro em mim ar que sentia
Na fresca viração que se acordava!
Suspirando a cismar nessa atonia
Que de amor minhas pálpebras banhava!

XLII
Sobre as colunas o luar batendo
E nas palmeiras úmidas tremendo
Filtrava-me sossego, e o mole engano
Em que se abisma o pensamento insano,
Que empalece da noite os sons bebendo
E harmonias escuta no Oceano! 

XLIII
E vós, águas do mar, que me embalava
Ao som dos remos da gentil falua!
Onde a fronte de escumas se banhava,
E à morta luz da vagabunda lua
Cismava como a nuvem que flutua
Do escravo à nênia estranha que soava!

XLIV
Oh! minha terra! oh! tarde recendente
Que embalsamando vens com teus cabelos
Derramados à luz! O sol ardente
Como os lábios do amor! luares belos
Como das flores de laranja o cheiro
Que perfumam da noiva o travesseiro!

XLV
E adeus, vós que eu amei, que inda sentidas
As ilusões me acórdão na tristeza!
Que inda choro nas minhas despedidas!
Belas dos sonhos! anjos de beleza!
Morenas a quem banha a morbideza!
Como as rosas da noiva empalecidas! 

XLVI
Ai todos vos sonhei! cândidos seios
Onde amor planteara delirante!
Onde gemera em derretido enleio
Como em seios de mãe sedento infante!
Águas místicas aonde estrelas santas
Deixarão trilhos das argênteas plantas!

XLVII
Como o triste Alcíon vagueia errante
Nas frias primaveras do Oceano
E ama as alvas, a noite sussurrante,
Tardes, ondas e sol e leviano
Na leviana afeição embriaga insano
A existência nos seios o inconstante:

XLVIII
Eu todos vos amei! cri no mistério
Que o libertino Don Juan levava,
Nas noites profanadas do adultério,
Quando a alma sedenta evaporava!
E a vida como um alaúde aéreo
A todos os alentos entregava! 

XLIX
Terra do amor! ó minha mãe! na vida
Se o fado me levar em mágoa lenta —
Sempre nesta saudade esmorecida
Que de tristes lembranças se alimenta! —
Na morte a minha fronte macilenta,
Inda a ti volverei qual flor à vida!

L
Viverei do que foi — dos sonhos meus! —
Da seiva do passado hei de essa flor
Regar das quentes lágrimas do amor!
E quando a luz apague-se nos céus
E o frio coração à dor sucumba
Inda murmurarei — adeus! — da tumba! 


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

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