3/07/2023

Plumário (Poesia), de B. Lopes

 


PLUMÁRIO
SONETOS E POESIAS


INTROITO

De novo a tenda aqui armo,
Mas, desta vez, fatigado,
Não no estelífero prado,
Mas sobre o Monte do Carmo.

Já não há sons de guitarra,
Nem é beirada de renda;
Somente encima da tenda
Canta, de tarde, a cigarra.

Volto aqui de manto roto,
De bordão, não mais de lança;
De alma já sem esperança,
E a vida num alvoroto.

Não fosse eu ter na peleja
Esta eterna companheira,
Que, ao ver-me desta maneira,
Inda me segue e me beija!

Caminhar de olhos alertos
A Musa de pés macios,
Curtindo dores e frios,
Por semelhantes desertos

Subir monte e descer vale,
Em marche-marche diuturno,
Sem o auxílio de um coturno,
Sem a proteção de um xale!

Daí, talvez a alguns olhos
A tua nudez encante...
Curva de deusa ondulante,
Sangrando em puas de abrolhos.

Andar às tontas e aos trancos,
Com religião de profeta,
Acompanhando um poeta
Cheio de cabelos brancos!...

Zelas por mim, doce Musa;
Rogas, pedes, fazes preces...
Neste ponto me pareces
A velha de Siracusa...

Antes com este, suplicas,
Ao menos... ora, que tola!
Me chama de sua rola,
Não me deixou pelas ricas!

Monte Carmelo do sonho,
Aqui me tenho e me deixo!
Contemplo, de mão no queixo,
E a rude lira deponho...

Tudo daqui descortino,
Que os horizontes são largos!
Poentes formosos e amargos,
Clarões de sol vespertino...

Largos ideais de quem ama!
Mas, hão de ver, em esboço,
A tênue imagem de um moço
Ao fundo do panorama!

Pois, minha Musa, acampemos,
Sob a longa Ave-Maria.
Amanhã, rompendo o dia...
Ai! pobre flor, morreremos!

 
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SONETOS
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PLUMÁRIO

Plumas! brancas e azuis, extraordinárias,
Dos mantos reais e das arquiduquesas;
Dos diademas de baile das princesas
E dos leques sensuais das milionárias.

Negras, mesmo. As que exalam, solitárias,
Na penumbra do luto e das tristezas...
Plumas das mais bizarras naturezas,
Plumas longas de harém, mornas e várias.

Plumas ardendo em fogo de escarlate,
De ouro esbraseado, plumas de combate
Encrespadas, febris, lisas algumas;

Plumas da fauna universal, querida!
Para rolarmos toda a nossa vida
Sobre um tapete orgíaco de plumas!

 

BRONZE

Olha este régio bronze florentino,
Olha o conquistador de sul e norte:
Da espada nua vomitando a morte,
Dos olhos e da boca o estro de um hino.

Monta sobre as nações — César divino -
Como sobre o corcel de altivo porte,
A espora de ouro retinindo forte...
Ei-lo numa batalha em Solferino.

Sobre o estranho bicorne o mundo todo
Convulso gira... É a águia do denodo
Que agita as asas neste bronze de arte.

Certo que esta soberba miniatura
E, na grandeza da imortal figura,
Uma ressurreição de Bonaparte.

 

RITMO DA LINHA

Pede-me, ao espelho, e a rir, que eu a retrate
Nua, mas toda nua e sem refolhos;
Como pintar o bruno de seus olhos
E a sua original palidez mate?

Onde encontrar esse úmido escarlate
De uns lábios quentes? infernais escolhos
Para um artista; e, em dois castanhos molhos,
A cabeleira, que aos artelhos bate?

Traçar Eva a sorrir no paraíso!
As laranjas de umbigo dos seus peitos,
Côncavo dorsal e o ventre liso?

Da curva a excelsa lágrima descendo
Pelos braços roliços e perfeitos
A perna egrégia e nos seus pés morrendo?

 

MARCHA DOS BEIJOS

Olhai: — é o beijo azul dos namorados,
Na boca em flor da carne pubescente;
Beijo cinza — na face, o indiferente;
Beijos da sedução, beijos dourados.

Beijo verde, de um par de mal casados,
E o da ternura, em nácar esplendente;
Beijo rubro, minaz, mostrando o dente;
Beijo do ciúme, dos desesperados!

Beijo da mágoa, beijo da desgraça,
Em roxo, em lírio, e em desolado assomo!
O beijo róseo dos amantes passa...

Beijo amarelo, e um outro negro vejo:
Os de inveja e traição; mas nenhum como
O branco, o eterno, derradeiro beijo!

 

GÔNDOLA AZUL

Aportei longe, e com mil transes arco
Na aspereza da volta. Esbelto e leve,
Num doce mar sem brumas e sem neve
Foi desusando o meu ditoso barco.

Volto, do céu talvez, plaga sem marco,
Cujo esplendor e graça aos anjos deve.
Paraíso do Amor! Mas cheguei breve,
Para atolar de novo os pés no charco.

Sonho, gôndola azul que me levaste!
Tanto eu errei na Babilônia de ouro,
Que nem soube da amarra em que ficaste!

Por tremendas rajadas sacudido,
Hoje é o mar que feriste — um sorvedouro...
Talvez não voltes, meu baixel perdido!

 

ESMERALDA

Esmeraldas no heráldico diadema,
No lóbulo da orelha cor de rosa;
O colo — arde na luz maravilhosa
De um tríplice colar da mesma gema.

No peito, aberto céu de alvura extrema,
Entre nuvens de tule vaporosa,
Verde constelação, na forma airosa
De principesca e recortada estema.

Agrilhoa-lhe o pulso um bracelete,
Glaucas faíscas desprendendo; ao cinto
Um florão de esmeraldas por colchete;

Nos dedos finos igual pedra escalda...
Mas deixam todo esse fulgor extinto
Os seus dois grandes olhos de esmeralda!

 

CASTELOS

Manhã, de rosas. Chego. O adeus e um vago
Giro no parque, à sombra das áleas,
Beirando a curva do formoso lago
Cerúleo e aberto em lótus e ninfas.

Onze, no coruchéu. “Vamos!” E afago,
Ao seu convite, mágicas ideias...
Braço no meu, o lírio branco mago
Sobe o torreão de antigas epopeias.

Entro... avoengas relíquias da nobreza;
Brasonada baixela sobre a mesa,
Flores e o mais que a um ágape concerne.

Risonho, espia o sol, pela vidraça,
Ela a deitar-me, com infinita graça,
Limão — nas ostras, no cristal — Sautèrne.

 

VELHO MURO

Velho muro da chácara! Parcela
Do que já foste: resto do passado,
Bolorento, musgoso, úmido, orlado
De uma coroa víride e singela.

Forte e novo eu te vi, na idade bela
Em que, falando para o namorado,
Tinhas no ombro de pedra debruçado
O corpo senhoril de uma donzela...

Linda epomeia te bordava a crista;
Eras, ao luar de leite, um limbo albente.
Folha de prata, ao sol, ferindo a vista.

Em ti pousava a doce borboleta...
E quantas noites viste, ermo e silente,
Romeu beijando as mãos de Julieta!
 

ESCADA DE JACÓ

Espiralada para os céus, eu via,
Torcendo rosas e ouro de alvorada,
Essa infinita e luminosa escada
De uma estranha e volátil fantasia.

Transfigurado e imáculo, subi-a:
Era, partindo do meu triste nada,
Uma ascensão gloriosa e imponderada,
Era o sopro de Deus que me impelia!

Subo mais! É a ternura, este o carinho,
Este o beijo, este o afago, este o sorriso,
Degraus tão doces da espiral de arminho!

Em que altura me sinto! Oh! maravilha!
— É o céu! Acho-me, enfim, no paraíso,
Sonhando exausto nos teus braços, filha!

 

GALANTERIA

Solitário, o castelo. Uma rainha,
Um pajem louro, uma tristeza, um drama;
O rei, distante da formosa dama,
Saca, rugindo, a espada da bainha.

É a guerra! O sangue jorra, e burburinha
De boca em boca a temerosa fama.
O calor da vitória o brio inflama...
E ela entre ulmeiros, pálida e sozinha!

O rei não volta da infernal viagem.
Fala, exortando-a, o apaixonado pajem,
Sob os ulmeiros, numa tarde de ouro,

Ameigando-lhe as mãos finas e doces...
— Como eu queria que a rainha fosses,
Como eu queria ser o pajem louro!

 


Medito, e acho-me só. A olhar me ponho
Toda a paisagem, silenciosa e linda.
O verde é belo, o azul mais belo ainda...
Belo, talvez! mas, pálido e tristonho.

Como ver flóreo o plaino e o céu risonho,
Se eu não ouço o tropel da sua vinda,
— O séquito imperial de uma berlinda —
Ao castelo fantástico do Sonho?

Agora o dia, como um lis aberto;
Logo mais o crepúsculo, fechando
No cálix murcho o páramo deserto.

Depois a noite!... E eu sem a ver, sem tê-la;
O palácio do Sonho iluminando
Como profunda e solitária estrela!

 

LUXÚRIA

Um estranho alvoroço me domina
Se me apareces, triunfal senhora;
Rasgam-se os véus de treva e de neblina,
E eis que me surge deslumbrante aurora.

Na tua boca e nos teus olhos mora
O demônio da graça feminina,
— Inferno augusto onde minh'alma implora
A tua carne lúbrica e divina.

Oh! colmeia de sonhos e desejos!
Abre o dulçor de gozos infinitos
As abelhas famintas dos meus beijos!

Que os meus lábios febris, largando o gelo,
Saltem, gritando, como dois cabritos,
Na floresta aromal do teu cabelo!

 

TAUREADOR

Só pelo olhar, um mágico tesouro,
De alta flor de Castela —o Leão na ameia —,
Rompe, guapo, na liça: a fronte cheia
De ilusões cor de rosa e sonhos de ouro.

Temperando-lhe o sangue o ardor do mouro.
Levanta a espada, que, a sorrir, floreia:
Aço elegante, ao sol mordendo a areia,
No esplendor de Madrid, lidando um touro.

Do garboso ginete os golpes lança
Com tal destreza, com tal gesto nobre,
Que em pouco a fera denodado alcança.

Sangue na espada, — púrpura lanceta!
Um manto largo de ovações o cobre,
Entre largos clangores de trombeta.

 

VITÓRIA

Toque a rebate o áureo clarim do atleta!
Da ovação popular a onda espumante
Varreu-te os pés, vitoriosa e uivante,
E engrinaldou-te a Deusa cega e ereta.

A Liberdade veio, em linha reta,
Quebrar-te a algema no sagrado instante
E do teu seio sobre o golpe estuante
Foi derramado o bálsamo de um poeta.

Armas em folga. É tempo de repouso.
Sê pai, sê filho, irmão, amigo, esposo,
Deita a cabeça no imortal regaço...

Após tanta saudade, o tempo di-lo,
Goza em teu lar, dulcíssimo e tranquilo,
A suprema delícia de um abraço!...

 

LUTA SELVAGEM

Tresmalhada e balindo na montanha
Para lutar as armas aparelha...
A águia desce, na tarde, sobre a ovelha,
Que golpes de asas e ferrões apanha.

Em defesa do filho expõe a entranha,
E a couraça felpuda se avermelha...
Marra, escouceia, empina, arfa, ajoelha,
Rasgando o corpo na híspida campanha.

Foge — a presa no bico formidando...
Com o triste olhar o voo acompanhando
Fica a pobre da ovelha exausta e langue.

O herói no espaço é um pavilhão guerreiro.
Geme a derrota. E o cândido cordeiro
Vai pelos ares, escorrendo sangue.

 

FEUDALISMO

Imaginemos uma dama e um pajem:
Não és tu, nem sou eu. Amam-se um dia.
Ele, pelo respeito à fidalguia,
Sopita os estos e haustos da coragem.

No palácio, porém, os olhos agem.
— Comparemos os dois nessa agonia:
Ele comigo bem se parecia,
Ela tinha o esplendor de tua imagem

Encontraram-se um dia, não vi como,
— Coisas, já sabes, dos feudais senhores -
No discreto aposento do mordomo...

Que não te saia nunca da memória,
Oh! soberba mulher dos meus amores,
Tão pequenina e mal contada história!

 

ESPANHOLADA

A minha espera?... Ris. Ora! tão alto!
Como, pálido lírio, à minha espera
Lá nesse arco armorial de rosas e hera,
Impossível a mim galgar de um salto?

Gela-me os pés este glacial asfalto,
E a neve cai do luar banhando a esfera...
Quem teus beijos colhera, e quem me dera
Surpreendentes degraus para um assalto.

E é quase dia! Ris? Oh! não alcança
Meu braço aflito o teu balcão, senhora.
Fulge-me um raio de última esperança:

Sentidos e olhos no teu ser imersos,
A áurea espiral do poema subo agora,
Florida escada de quatorze versos!

 

PÚRPURA DE ORLEANS

Abriu-se agora a exposição de flores,
Flores na mais primavera orgia!...
O olfato goza, a vista se extasia
No conjunto de fôrmas e de cores.

Três ou quatro finíssimos senhores,
Reunidos, julgarão no último dia
Dentre elas todas a de mais valia,
A mais rica de aroma e de esplendores.

Ouve-me, flor: exibe-te no meio
Das rosas, com uma púrpura no seio,
E, alçando o colo, desafia o grêmio.

Frineia de outro caso e de outra Idade,
A fama correrá pela cidade
Do teu encanto e do teu justo prêmio!

 

FLOR DE LARANJEIRA

Ritual das noivas cândidas. Desseque
Sua textura a pena... Oh! não! piedade
Para esse lírio roxo da saudade,
De olhos pisados a esconder no leque.

“Sim”, violinara. E o cura, após: não peque...
Conjungo vobis! O anel duplo... Invade
Branca parelha os bairros da cidade,
No arranco forte e festival de um break.

Há um chuveiro de pétalas de rosas.
Bênção dos pais. Bodas. Noival. Fogosas
Impaciências do sangue. Estos de amor

“Enfim!” Despe a grinalda e o véu desata...
E agora o frio, a solidão que mata,
É o que ela vê, chorando, nesta flor!

 

PAVILHÕES

Eu não a quero, enfim, de outra maneira,
A não ser branca — a paz e os armistícios.
— Garridice de barcos e edifícios,
Que diz sobre este mastro esta bandeira?

Nada! Ou por outra — a contumaz cegueira
Das guerras e dos bárbaros flagícios;
Corvo flamante, no alto dos Suplícios,
Ou atolado em charcos de sangueira.

Quantos caídos e caindo sob
A mortalha flutuante que lhes coube
Na partilha de Terras e pendões!

Trapo que nada vale e nada exprime;
No em tanto acorda o ciúme e agita o crime...
— É um pedaço de fralda das Nações!

 
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POESIAS
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NA PAZ DO SENHOR

Vim lá de baixo cá para a altura.
Abril, florido, me aromatiza
Com dolçurosos sopros de brisa
No seio farto de Agricultura.

Longe das negras sobrecasacas,
Com estas velhas roupas sem forro,
Numa aprazível aba de morro
Dou milho às pombas e ordenho as vacas.

Purrruôô, Purrruôô... E ei-la, travessa,
A columbina revoada de asas,
Deixando os ninhos, deixando as casas,
E aureolando minha cabeça.

Eh, Mariquinhas! eh, Rosa! eh, Branca!
São três pedaços de raparigas,
Que mais se tornam minhas amigas
Depois da leve pancada na anca.

Mas, de uma os olhos consoladores
São meus espelhos... Por isto valha,
Em vez de um simples ramo de palha.
O mais perfeito ramo de flores.

E dá-se o caso mais pitoresco
Comigo, junto do meu rebanho:
Em vez do cálix depois do banho,
Um tarro cheio de leite fresco!

Com as mães sadias, de filho ao colo,
E os camponeses, de enxada ao ombro.
Converso e rio com desassombro
Sob dourados dias de Apolo.

São todos meigos, e tão felizes,
Sob este colmo que sai fumaça,
Que está de férias meu cão de caça...
Nem mesmo, à tarde, mato perdizes.

Nem leio mesmo qualquer gazeta;
Que é preferível um claro rio,
Nestas brumosas manhãs de frio,
Ao mar danado de tinta preta!

Nada de esforços, andas e fausto,
Bastam-me os ares, um fruto, um ovo,
Para que volte de sangue novo
O meu ferido pulmão exausto.

E aqui me tenho, calmo e risonho,
Na paz divina de Jesus Cristo;
Até pensando que a vida é isto,
Que estou vivendo dentro de um sonho!

Por entre pombas, rezes, novilhos,
Eu ficaria neste lar doce,
Pudessem eles, e se não fosse
Deixar em casa mulher e filhos!

 


RECUERDOS

Foi ao sol. Resplandecia
Ouro e mais ouro cá fora...
Foi ao sol de um meio dia
Quando me olhaste, senhora.

Foi numa tarde. Lutuosa,
Trajavas como as viúvas...
Foi numa tarde de rosa
Quando beijei tuas luvas.

Foi numa noite. Lembrada
Deves estar dos recatos...
Foi numa noite estrelada
Quando tirei teus sapatos.

Foi numa aurora. Os desejos
Fartos de um corpo florido...
Foi numa aurora de beijos
Quando abotoei teu vestido.

Foi... mas rompiam-se os laços,
Ia fechar-se-me o céu...
Foi um delírio de abraços
Quando puseste o chapéu!

 

SAARA

A ironia da luz gargalha e açoita.
O sol é o grã-senhor de ígneos ukases,
Secando as fontes, condenando oásis,
E o verde tufo de uma simples moita.

É o inimigo da sombra no deserto;
Vai arrastando o manto flamejante
— Implacável e atroz Judeu Errante —
Na infinita amplidão do céu aberto.

Dantes o céu era o amoroso sólio
Da sacrossanta e excelsa Divindade;
Era, da mais sublime majestade,
O constelado e doce capitólio.

O céu chorava, rindo, por nós todos,
Piedoso e bom, das imortais alturas;
Não havia o pavor das criaturas,
Nem a calamidade dos êxodos.

O céu chorava para nós bebermos!
Floria o verde tenro das pastagens;
E eram serenas, cândidas paisagens
Os tormentosos quadros destes ermos.

Da pupila do céu, da azul pupila,
Em vez da extrema lágrima fecunda,
Que de fertilidade o campo inunda,
Cai uma luz satânica e tranquila.

Não há vergôntea para um teto, um caibro...
Uma simples palmeira não existe...
Rola, faminta, lamentosa e triste,
A cabocla gentil no pó do saibro.

Como escaldante macula de azeite
Alastra-se o calor, queimando a pele;
A mãe, nos braços a criança imbele,
Amaldiçoa a vida, o amor e o leite.

Como, Senhor, como atestar o brilho
Da vossa eterna e celestial clemência.
Se debaixo do sol morre a inocência,
Se não há sangue para dar a um filho?

Nada mais neste páramo areiento!
Nem a pluma dos pássaros, coitados!
Somente, olhos em chaga, esbugalhados,
Bocas abertas para o firmamento!

Sinistra, ainda a beijar os amuletos,
Rota, trêmula, fraca, famulenta,
Risca uma linha movediça e lenta
A caravana horrível de esqueletos.

Fauces famintas estalando à sede,
Implorando de Deus o pão ou a morte...
Como era lindo descansar o Norte
Ao doce embalo, tépido, da rede!...

Corre, na poeira, um hálito do inferno,
Sapecando a pungente natureza...
Gritos, lamentações, preces, tristeza...
A Dor caminha para o sono eterno.

Oh! Israel sobre o areal disperso,
Fantasma que não bebe e que não come,
Possa um pouco aliviar-te a sede e a fome
A fraternal migalha do meu verso!

Que eu não te veja aberta para o nada,
Boca sedenta de farinha triga;
Que eu não te veja, minha pobre amiga,
Escancarada e só! Escancarada!...

 

PUNHAL

O punhal é de prata,
Tem meu nome no cabo e na bainha,
Com sinistros lavores de obra minha.
Triste daquele, triste do mortal
Que ela apontando me dissesse — mata!
— Eu lhe traria, como flor exangue,
Eu lhe traria, bêbedo de sangue,
O coração na ponta do punhal!

 

A LUVA

Bela como um junquilho
A feminina e doce luva branca,
Quando a febre do beijo
Na boca do homem sorridente estanca,
Com um meneio casquilho,
Num cerúleo momento de desejo;
Porém mais bela em rubros intervalos,
Quando de um trono frágil e verdugo.
— Calcando o férreo jugo,

Rasga as fontes de vida dos vassalos!

 

BEIJOS

Deu-me, não sei, na mania
Contar-te histórias. Escuta
Esta que, doce judia,
Tem o sabor de uma fruta.

Pois que do beijo se trata:
(Guarda-me bem os segredos)
Sobre as tuas mãos de prata
Um beijo — dez! — em teus dedos.

Coisas, enfim, de poeta.
Mas, outra ideia me nasce:
Como doida borboleta
Um beijo na tua face...

Tu morrerias de susto,
Ficarias, talvez, louca,
Se o meu beijo, a muito custo,
Caísse na tua boca.

Beijo de amor e ciúme.
Vamos fazer-lhe o modelo:
— Seja um frasco de perfume
Derramado em teu cabelo.

Quem sabe lá do destino!
Outra lembrança me veio:
Ver meu beijo columbino
Agasalhado em teu seio.

Isto será não sei quando;
Mas quantos, quantos escolhos
Teria um beijo nadando
No triste mar dos teus olhos!

Como seria um encanto,
Numa explosão de desejos,
Tu, a despires o manto,
Toda estrelada de beijos!

Na boca, seios, pupilas,
Faces, mãos, cabelos, fada,
Mesmo que o beijo repilas,
Deixo-te em versos beijada.

Longe o meu sonho atrevido.
Perdoa a mim, por quem és!
Doce, humilde, arrependido,
Fira o meu beijo a teus pés!

 

SALOMÉ

O meu castelo roqueiro,
Feito na beira do mar,
Onde me fiz cavaleiro,
Onde aprendi a te amar,

O meu castelo, senhora,
O meu castelo perdi.
Dentro da noite ou da aurora
Dava os meus carmes a ti.

Hoje, vencido guerreiro,
Nem mesmo sei o que sou;
Ficam troféus no terreiro,
E a minha luta acabou.

Do meu viver nem suponhas,
Deixa-me a dor num crisol.
— Mais triste do que as cegonhas
Meditando ao pôr do sol.

Eras da minha guitarra
A mais formosa canção,
A maior flor de Navarra
Dentro do meu coração.

Sobre um camelo, chorando,
Vi-te no Cairo uma vez,
Quando andava eu destroçando
As caravanas do inglês.

Iam cantando as escravas
— Por seres filha de um rei! —
Sabia por que me olhavas,
Porque choravas não sei.

Num laranjal de Sorrento
Foi que te amei, grande flor:
Eras meu contentamento,
Eras um vaso de amor.

Tinhas por sobre a cabeça
As flores do laranjal;
Eras, senhora condessa,
Uma princesa real.

Era um jardim de Verona,
Era um luar, era eu,
Era a mais doce madona,
Eram Julieta e Romeu...

Certo não tens na memória
Esse mavioso jardim;
Já te esqueceste da história,
Como esqueceste de mim.

Depois, da felicidade
Fomos sobre asas, também,
Não sei se à imortalidade,
Não sei se à Jerusalém...

E hoje, no cinto uma espada,
Nas rotas armas um lis,
Para te ver, minha amada,
Num boulevard de Paris!

A que andou no sol do Oriente,
A que nasceu em Jefet,
Cantando macabramente
Coisa, não sei de quem é!

Volte-me a espada à bainha,
Chore a guitarra os meus ais,
Esta que já foi rainha,
Já foi mulher, não é mais!

 

SUPREMA ANGÚSTIA

Eu, em nome do céu, vou fazer isto:
Vou colocar-te, vítima da ideia,
Na proteção do mártir da Judeia,
Sob a inconsútil clâmide de Cristo.

Clamarei pela cólera divina
Contra quem, surdo, não te deixe em paz;
E, quando do ódio rebentar a mina.
Morrerá Judas, morrerá Caifás.

A justiça de Deus tarda, não falha:
Derriba tronos, como arrasa claustros
Pode ainda gozar de honras e plaustros
Quem geme agora na algidez da palha.

Soltando este floral brado espontâneo,
Tremo de ouvir, tremo de assim falar...
Mas eu trago relâmpagos no crânio,
Como dentro de mim um meigo altar.

A ampla sonoridade deste grito,
Este rosário de capricho e pranto,
Com acentos radiosos de meu canto,
Vem do meu coração de pai aflito.

Vem de minh'alma triste e lacrimosa,
Como esta pálida e infeliz mulher,
— Inconsolável Mater Dolorosa —
Desfolhando o seu roxo malmequer.

Vede, em luto, esta cândida criança
Chorando aos pés de Deus pelo seu pai,
Numa tão vaga e trêmula esperança
Subindo lenta, na espiral de um aí!

Haveis de uivar, famélicas raposas,
Monstro de perversão, manhoso e astuto;
E há de o beijo de amor, o doce fruto,
Apodrecer na boca das esposas.

Andarão os filhinhos pela rua,
Aviltados os pais, mortas as mães,
Por noites duras, hibernais, sem lua.
Rotos e perseguidos pelos cães.

Em vossas mãos a fulminante bomba
Explodirá, levando-vos o braço...
Sobre o vosso telhado e no terraço
Só tereis o milhafre, e não a pomba.

Talvez que não possais ouvir-me a estrofe,
O tinir de ouro do imortal ceitil,
E nos vossos ciprestes ria e mofe
Um peregrino pássaro de abril.

Hão de murchar nas órbitas os olhos
Das formosas e angélicas donzelas;
E os pés, dessas que os têm como as gazelas,
Hão de sangrar no espinho dos escolhos.

Ireis na vida num macabro tango.
Os seios brancos morrerão, em flor;
E, no lugar do rúbido morango,
Um cancro negro, de infundir horror!

Esses de agora esplêndidos cabelos,
Que vos dão da beleza o império e a posse,
Não serão mais, no encanecer precoce,
Que nojentos e rústicos novelos...

Mas não, Senhor. A fé aqui me trouxe!
Não volvereis castigo para nós...
O vosso olhar é compassivo e doce
Como a cabeça branca das avós.

Vede-me aqui rodeado destes anjos,
Brotos do meu amor e do meu sangue!
Que florida região tireis de um mangue,
Estrelai os meus líricos esbanjos!

Perdoai o fogo, o intemerato alarde
Do quanto expiro, por amor do bem;
Que caia a benção, como cai a tarde
Sobre um singelo campanário, além!...

Cairá, talvez, na irradiação suprema
De um grande azul, nadando em luz de glória;
E ficará, para eternal memória,
Sobre nós todos, como um diadema.


---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

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