3/07/2023

Poema Mariano (Poesia), de Domingos Caldas Barbosa


POEMA MARIANO



ARGUMENTO

A milagrosa Penha se descreve,
E os elementos todos conjurados;
A mais brilhante luz, mais branca neve,
Vai visitar os seus advogados.
O holandês à vila não se atreve,
Foge, rouba os tesouros consagrados:
No dia, em que esta Aurora se festeja,
Grandes prodígios faz na sua igreja.

 

I
Eu sou aquele que cantando amores
Muitas vezes ao som das doces canas
Lisonjeei a vida dos pastores,
Exaltei a beleza das serranas;
Porém hoje depondo os seus louvores,
Já não quero cantar glórias mundanas,
Que são sombras da luz, do ar assento,
Formosuras de flor, torres de vento.

II
Cante Homero de Aquiles as vitórias,
E Virgílio de Augusto o grande império,
Ovídio fabulize vãs histórias,
E repreenda Horácio o vitupério,
Que eu cantarei mais ínclitas memórias,
Maravilha maior, maior mistério,
Se pode engrandecer em metro puro
Outro mais claro sol meu estro escuro.

III
Vós, soberana estrela matutina,
Que sois musa melhor, mais bela fonte,
Que os angélicos coros predomina,
Que as plantas rega do sagrado monte,
Dai-me na humana voz graça divina,
P'ra que o vosso poder de modo conte
Que se acredite em tão distinta norma,
Igual vossa matéria à minha forma.

IV
Não repareis no vil deste instrumento,
Atendei só às veras de um desejo;
Pois que também do ouro o luzimento
Nas entranhas da terra oculto vejo;
Não vos consagro, não, do entendimento
Os dotes, que tenho, antes com pejo
Só vos dedico em tal simplicidade
Afeto, devoção, glória, e vontade.

V
E se nisto não sou tão veemente,
Quanto merecem vossas excelências,
Da vossa pura graça a grossa enchente
Cubra o campo das minhas indigências,
P'ra que cheio de amor, e zelo ardente,
Tanto publique as vossas preeminências,
Que possa conceber pelo meu canto
Glória ao céu, gosto à terra, ao inferno espanto.

VI
À costa ocidental americana,
Que do antártico polo é mais vizinha,
E o nome Brasil sustenta ufana,
Não o de Santa Cruz, que dantes tinha
Entre o Tupi infiel, gente inumana,
Estão sessenta graus ao sul da linha
Duas vilas chamadas com vanglória,
Uma Espírito Santo, outra Vitória.

VII
Estende o mar um braço pela terra,
Que porto faz à tal capitania,
E como grossas veias nele encerra
Grandes ilhas de tosca pedraria;
Desde o rio — Jucu da rica serra,
E outro com o santo nome de Maria, 
Que expiado dos mais insanos ritos,
Vem correndo a pagar os seus delitos.

VIII
Uma comprida légua está distante
A vila da Vitória, celebrada,
Da outra, que se vê menos possante
Ficar junto da barra edificada;
Duas penhas de altura exorbitante,
Uma coberta, e outra descalvada
A entrada defendendo atemorizam
Quantas quilhas no mar soberbas pisam.

IX

Se os bárbaros Tifeus inda viveram,
E ao seu fingido Jove guerrearam,
Nem tão vastas ideias empreenderam,
Nem tão compridos montes abalaram;
Se em um destes penhascos se puseram,
Por certo de improviso ao céu chegaram
Sem precisar de guerra em tanta lida
Do Pólion, Etna, Ossa, Olimpo e Ida. 

X
Quantos hoje Tifeus mais fementidos,
Contra o vivo Tonante sublevados,
Só por subir a penha endurecidos
Conseguem ser por deuses numerados! 
E não do Etna em forjas consumidos,
Porém do Olimpo em glória colocados,
Transformam-se em Mercúrios de eloquência,
Para eterno louvor da Onipotência.

XI
Nesta, que digo, penha descoberta
Majestoso edifício se oferece,
Que pela imensa altura à vista incerta
Guarnecido castelo se parece;
Mas neste mesmo engano a vista acerta,
Porque, como direi, e é bem confesse,
Do inimigo defende em qualquer guerra
A fé, a devoção, o rei da terra.

XII
Essa torre de Faro esclarecida,
Esse de Éfeso templo, assombro humano,
O colosso da Ilha a Grécia unida,
O famoso Obelisco de Trajano,
A máquina do Egito engrandecida,
O palácio de Ciro soberano,
E o mausoléu de tanta arquitetura,
São confusos borrões desta pintura.

XIII

A escarpada penha não consente,
Que por ela se dê nenhum só passo;
Porque o temor da queda proeminente
Ao toque mais sutil põe embaraço.
Só por uma ladeira sobe a gente,
Que igual à devoção faz o cansaço;
Talvez porque se entenda, que a virtude
Dano do corpo é, d'alma saúde.

XIV
No meio desta pois em largo assento
Há casas de romeiros bem compostas,
Tendo em duas capelas aposento
São Francisco, e Jesus com a Cruz às costas;
Subindo mais da mesma ao firmamento,
Várias cruzes por ela estão dispostas,
P'ra que os passos fiéis, que ali não cessam,
Nelas pelos de Cristo se ofereçam.

XV
Por compridas escadas vai-se ao cume:
Um templo tem findado na eminência
Daquele imaculado e sacro lume,
Esposa, Filha, e Mãe da Onipotência;
Sem que jamais a vista por costume
Se farte em ver, que tal magnificência
Sem alicerce algum esteja altiva
No empinado penhasco, e rocha viva.

XVI
No alpendre por colunas sustentado
Uma rica portada se conserva,
E logo dentro em coro levantado,
Que para orar a Deus só se reserva;
Aqui mesmo o Senhor crucificado
De qualquer pecador a vista observa;
Pois sendo imagem só para lembrança
É puro original, não semelhança.

XVII
Um púlpito com dois colaterais
Altares de belíssima escultura,
Na forma, e na matéria ambos iguais,
São próprio cedro em si, mármore em figura,
Parece que chegar não pode a mais
O primor d'arte, a força da pintura;
Pois tanto à pura vista a ideia engana,
Que nem o mesmo tato desengana.

XVIII
Da porta da verdade pura e santa
A seu autor a vista humana goza
No paço de — Ecce Homo —, e junto espanta
De Benedito a efígie primorosa;
Da outra em uma imagem sacrossanta
Duas mães, uma filha, avó, e esposa,
Na qual, contendo igual delicadeza,
Quis a arte poder mais que a natureza.

XIX
O espaçoso teto representa
O campo de Amalteia, o ser de Flora, 
A primavera está do templo exempta,
Eterna vida e cor nas flores mora;
Levantado relevo a vista aumenta,
Primoroso lavor a luz namora,
Esquecendo-se aqui dos operantes
Fídias, Apeles, Zêuxis, e Timantes.

XX
Do arco para dentro igual respeito
A abóbada requer da mor-capela,
Onde mais por milagre existe o efeito
Do zimbório, que os ventos atropela;
O altar-mor de pedra é todo feito
Branca, vermelha, azul e amarela,
Tendo da mesma espécie iguais alunas
Figuras, festões, tarjas e colunas.

XXI
Em nítidos degraus d'ouro lavrados
Se vê de um vasto trono o luzimento,
Em que nos dias mais qualificados
Em custódia se expõe o Sacramento.
Em pirâmide igual de ambos os lados
Estão Francisco, Antônio igual portento,
Que protótipos são da santidade,
Pobreza, obediência e castidade.

XXII
Bem no centro do altar em nicho nobre,
Guarnecido de flores e cortinas,
A soberana Virgem se descobre
Mais bela, que as estrelas diamantinas,
Um transparente véu não bem a cobre;
Pois nunca ocultas são luzes divinas,
Tendo nas pias mãos o filho puro,
Sol que o dia rompeu do céu escuro.

XXIII
Mas ah! Onde vou eu indigno humano?
Oh cega musa, oh louca fantasia!
Como se atreve um rústico profano
A descrever a imagem de Maria!?
Se ainda para um Augusto um Mantuano
Uma língua de ferro apetecia,
Que musa, ideia e voz pede a Senhora
Se quanto esconde o céu na terra mora?

XXIV
Eu bem conheço enfim, que em vão prossigo,
Que o mesmo mundo em línguas transformado
Pouco havia dizer mais, do que eu digo;
Faria o canto sim mais concertado;
Mas pode a devoção tanto comigo,
Que me faz empreender mui confiado
O maior impossível do universo,
Para em metro dizer, cantar em verso.

XXV
Vós, rainha de excelsa majestade,
Da terra auxiliatriz, do céu regente,
Que sois lince melhor duma vontade,
Do humano coração mestra ciente,
Bem conheceis, que em mim não há vaidade;
Um desejo eficaz tenho somente
De que sem recompensa e sem vanglória
Aumente a minha pena a vossa glória.

XXVI
Em três palmos e meio de estatura
Representa a Senhora um vulto inteiro,
Seu mistério dos ditos se procura,
Três pessoas, e um só Deus verdadeiro.
A sua soberana formosura
Do pecador liberta o cativeiro,
E faz que o coração do duro peito
Pelos olhos com dor saia desfeito.

XXVII
Ricos vestidos de brocado e tela
São ornamento seu sempre diário,
Tendo no peito, e colo a aurora bela,
De ouro uma cadeia e um rosário.
Cento e vinte fuzis se contam nela,
Rematados de um rico relicário;
Nele se vê que o peso a tanto monta,
Que inda é mais um mistério a não ter conta.

XXVIII
Coberto o lindo peito de diamantes,
De filigrana d'ouro guarnecidos,
Matizado de pedras mui brilhantes,
Salpicado de aljôfares subidos,
Chegam à sacra fronte rutilantes;
E ainda encobre alguns dos mais luzidos
A coroa, que d'ouro às libras pesa,
Sendo maior a obra, que a riqueza.

XXIX
Tem mais de peças mil sobresselentes
De não menor grandeza e qualidade,
Que de vários países, várias gentes
Lhe dão com devoção, gosto e vontade.
Por muitas dão-se até dobras correntes;
Porém nunca parece a quantidade,
Parecendo se oculta a algum patolo,
Que de tudo faz ser metal de Apolo.

XXX
Porém a sacra Virgem lhe compensa
Com benefícios tão avantajados,
Que quanto mais se empenha a recomensa,
Mais ficam seus devotos obrigados:
Da peste, fome, guerra e toda a ofensa
Ela continuamente os põe livrados,
Tirando o arbítrio ao tempo, à parca o ofício
O raio a Délio, a Marte o exercício.

XXXI
O contíguo convento franciscano
Tem três sobrados de elevada altura,
Em que para o exercício soberano
Dos sagrados varões mora a candura.
A máquina não sente o menor dano,
E com razão parece eterna dura;
Pois do calvo Saturno o grande império
Não tem poder algum no assento etéreo.

XXXII
Vendo que tanto peso já tal penha
Não pode ter nos ombros sustentada,
E ofendido de ver que a mesma tenha
A inviolável luz mais bem guardada,
No maior terremoto mais se empenha
Para a pôr destruída, e derribada:
Mais tirano a reinar em vão procura
O cenóbio vital da Virgem pura.

XXXIII
Inda em sessenta e nove o sol girava
Visitando o Leão, que atroz rugia,
Tendo no Augusto mês, que começava,
Uma só vez mostrado a luz do dia:
Morfeu os doces laços apertava;
O mar, o vento, o céu adormecia,
Quando a terra com grito assaz ingente
Desperta os animais, acorda a gente.

XXXIV
Principia o tremor no monte e vale;
Aumenta a confusão da morte o susto;
Pedra e tronco não há, que não se abale,
Sendo o dano maior no mais robusto:
Agora só o assombro é bem que fale,
E se emudeça a voz no espanto justo,
Vendo ficar cessando o infausto indício,
Constante a pedra, imóvel o edifício.

XXXV
Também soberbo Eolo ou de invejoso,
Ou irado, por ver contrário culto,
Combatendo este monte portentoso,
Não faz no longo mar tão grande insulto.
Treme o sagrado templo temeroso,
E a não o defender mistério oculto,
Com fúria tão cruel, tão fero arrojo,
Fora a pedra maior menor despojo.

XXXVI
Netuno indignado as nuvens farta
Para lograr seus bárbaros intentos;
As quais, passando logo à esfera quarta,
Formam no ar escuro pavimento.
Das mesmas para o mar água se aparta
Por baixo dos mais firmes fundamentos,
Sem que as constantes bases prevariquem,
Antes na inundação mais fortes fiquem.

XXXVII
Tonante com rigor fero e tirano,
No sacro cume da elevada penha
Arroja os artifícios de Vulcano,
Dos quais o estrondo a fúria desempenha;
Isto é certa pensão de qualquer ano,
Sem que perigo algum a igreja tenha,
E somente se vê na gente insana
O natural temor da vida humana.

XXXVIII
Muitos com raro assombro têm passado
Por entre a Virgem mãe, e o seu Menino;
Outros têm não sem dano procurado
Ao Senhor — Ecce Homo —, autor divino:
Olha, triste mortal, quão descuidado
Continuas teu louco desatino,
Sem ver, que, quando a si Deus se condena,
Mostra de tua culpa a sua pena.

XXXIX
Vê que nem sua mãe já se reserva,
A qual do nosso dano ressentida,
No raio que a conhece, e que a preserva,
Golpe não encontrou, e está ferida:
Por seus rogos repara, atento observa,
Que a Onipotência quis ser ofendida,
Mostrando no infalível do castigo
Custar nosso perdão o seu perigo.

XL
Confunde-te pois, cego entendimento,
Faze desse prazer pesar amargo;
Porque essa horrenda voz do firmamento
Procura despertar o teu letargo:
Agradece o milagre a tal portento;
Que à sentença final põe tanto embargo,
Por não sentires um e outro inferno
Do raio, temporal, o fogo eterno.

XLI
Também a mesma Circe encantadora
Por Ulisses contrária aos portugueses,
Do seu sossego aqui perturbadora,
Infecciona o ar algumas vezes:
Peita a Pomona, Ceres e mais Flora,
Para a gente ofender, matar as reses,
Sem que possa no mal da ideia ignoto
Esculápio vencer a horrenda Cloto.

XLII
O fogo material de Febo ardente,
Que da tórrida zona incende a esfera,
Mais que da Líbia adusta, e Arábia quente,
Neste país seus raios reverbera.
O excessivo calor abrasa a gente;
Acende o campo, o gado desespera,
E parece que quer este elemento
Fazer no alheio espaço o próprio assento.

XLIII
Desce do monte ao mar o feroz bruto,
Que antes morrer nas praias determina,
A Berecíntia mãe esconde o fruto;
Falta o pão, morre a flor, seca a campina;
Tudo é dor, confusão, pobreza, e luto,
Vendo tão perto a última ruína,
Todos são Prometeus no sentimento;
Pois de Tântalo têm o vil tormento.

XLIV
Vê-se o faminto monstro furibundo,
Que tem mais de cem bocas sempre abertas,
Tendo na cútis fraca, e o corpo imundo,
Ossos, nervos e veias descobertas;
Os olhos das caveiras no profundo
Parecem do sertão covas desertas,
Nas secas faces as medonhas caras
Mais que de pomos, são de gosto avaras.

XLV
Observa-se porém ao pé do monte
Atlântico do céu mais refulgente
Estar viçosa a flor, corrente a fonte,
Firme a saúde, a dita permanente;
Sem que faça calor, qual o dia afronte;
Sem que a peste infeliz oprima a gente;
Porque dela lhe dá contra o seguro
Deste sacro Sião cipreste puro.

XLVI
Motivo por que a vila da Vitória,
À do Espírito Santo roga e pede,
Que por um dia só quer ter a glória
Do imaculado bem, que ao mal impede.
Depois que a petição se faz notória,
Por um despacho a dita se concede,
Escrituras, fiança, e todo o excesso
Por um tesouro tal, qual não tem preço.

XLVII
Entram as grandes quilhas na contenda
De qual merece ser a conducente,
E precisa o juiz, sem que as ofenda,
Ser menos justiceiro que prudente.
Qual por levá-la dá toda a fazenda;
Qual se empenha rogando a toda gente;
Pois a que chega a ter tão feliz sorte,
Despreza a vida, o vento, o mar, e a morte.

XLVIII
Ricamente se apresta a vencedora,
Coberta de damascos importantes,
Fingindo mil festões da bela Flora,
De luzentes cristais, joias brilhantes,
Figuras, invenções, se veem por fora,
E por cima bandeiras tremulantes,
Trazendo de Anfião doce harmonia,
E de Marte a esforçada artilheria.

XLIX
Não é menor nas mais a diligência,
Sendo igualmente a pompa procurada,
E havendo devota competência
De qual se encontrará mais bem ornada.
A ideia desempenha a veemência;
Fica a mente com a vista arrebatada,
Sem fartar-se apesar de que Argos seja;
Porque quanto mais vê, mais ver deseja.

L
Qual bordada de seda se apresenta;
Qual linda primavera se afigura;
Uma sombrio bosque representa;
Outra se forma em grave arquitetura;
Esta só com um castelo se contenta;
Aquela esgota as tintas da pintura;
Admirando o leão da novidade,
Menos a multidão, que a claridade.

LI
Vistes o longo rasto das formigas
Pelo espaçoso chão multiplicado,
Que por serem das chamas inimigas,
Desertam do lugar delas tomado;
E buscam, porque são do doce amigas,
Do grande engenho o mel açucarado,
Tornando carregadas e contentes
A buscar da pousada as cinzas quentes?

LII
Assim as proas vêm aves nadantes
Fazendo pelo mar rua vistosa,
Que fugindo dos raios rutilantes,
Buscam da penha a fábrica engenhosa.
Dali com devoção levam amantes
A ambrosia mais deliciosa,
E com ela contente já navegam
Aos sítios naturais, que ainda fumegam.

LIII
Porém logo toda esta comitiva,
Em movente cidade se transforma,
Disputando na vista, e glória altiva
A pompa de Paris, de Roma a forma;
Palácios de soberba perspectiva,
Obeliscos também da mesma norma;
Torres, pontes, jardins com fausto tanto,
Pasmo da ideia são, da vista espanto.

LIV
Eis que de entre os fiéis habitadores
A pálida tristeza se desterra,
E nos seus aposentos nadadores
A formosa alegria só se encerra.
Já com vozes, com vivas, e clamores
Retumbam de prazer o mar, e a terra,
Causando horror, e susto aos elementos
De bronze o eco ao som dos instrumentos.

LV
As filhas de Nereu, formosas damas,
Meios corpos mostrando umedecidos,
E as caudas, que têm duras escamas,
No líquido cristal tendo escondidas,
Sentem da ardente raiva as vivas chamas;
Porque outras vozes são no mar ouvidas,
E entram a cantar ao desafio,
Para depois vingar na presa o brio.

LVI
As úmidas gargantas apuradas
Também os doces ecos vão formando,
Que as águas de prazer ficam paradas,
Os peixes de alegria andam saltando:
E como já das musas desprezadas,
Vencidas dos Orfeus,  que estão cantando,
Arrojam-se às profundas do Oceano,
Levando na vergonha o desengano.

LVII
Ao rouco som de grossa artilheria
O argentado nume aparece,
E com toda a espumante companhia
A vista sobre as ondas se oferece
A fronte carregada, e luzidia,
Medonha trovoada só parece;
Cada olho um funil, a boca um forno,
Um madeiro o nariz, o queixo um corno.

LVIII
De um triunfante carro de espadanas
Puxado por dois monstros animados,
Em trono vem de lisas barbatanas,
Guarnecido de brutos escumados,
Por timbre das empresas desumanas,
Traz soberbos navios destroçados,
Em que os tristes naufrágios representa,
Dos quais seu grande reino se sustenta.

LIX
Ao seu lado Anfitrite majestosa,
De nítidos cristais toda adornada,
Vestida da melhor seda limosa,
De claros pingos d'água bem toucada;
Afogador de fino aljôfar goza,
Joia também de pérolas formada,
Trono de tartaruga, e d'água plumas,
Assento de coral, coxim de espumas.

LX
Vênus de uma ostra marchetada
Seu trono faz no opaco pavimento,
Tendo na concha a ostra inda pegada,
Reluzente espaldar, brilhante assento.
As faces, boca, e cor mais engraçada
Desafiam da aurora o luzimento;
As tranças d'ouro, os olhos cintilantes
São correntes de amor, prisões amantes.

LXI
Tétis, Dóris, Nereu, as ninfas todas,
E os deuses do reino cristalino
Em conchas desiguais de várias modas,
Acompanham também o rei marino.
Dos ossos de baleia as grandes rodas
As águas rompem com rumor ferino,
Deixando atrás os fossos circulares,
Em que à roda se vão reunindo os mares.

LXII
Assim chega-se à frente da sumaca
Do espumante congresso o deus horrendo,
E ferrando o tridente à proa atraca,
Seu contínuo mover parar fazendo.
Salta logo da fauce a voz opaca
Com tão soberbo eco, e som tremendo,
Que o ar enche de horror, e até parece,
Que a mesma firme penha se estremece.

LXIII
E tu, lhe diz, quem és, que assim se atreve
O sossego alterar do meu império?
Como tão longo ardor em corpo breve
De meu poder assusta o magistério?
Ignoras o respeito, que se deve
Das minhas águas ao maior mistério?
Queres que já converta os desvarios
Desses quentes metais em monstros frios?

LXIV
Vê de Ítaca o mesmo autor potente, 
E mais seus companheiros esforçados,
Que por não respeitarem meu tridente
Foram de minhas ondas soçobrados,
Dos quais no mesmo arquivo transparente
Inda tenho os despojos encerrados;
E eles foram parar sem vela e remo
Ao tirano poder de Polifemo.

LXV
Já tenho compaixão do grande estrago,
Que faço nos ousados portugueses;
Da minha habitação no sítio vago
Já não cabem seus ínclitos arneses.
E tu, sem ponderar tanto pressago,
Vendo sem conta o mal, sem conta as vezes,
Queres no rouco som, que o bronze atira,
Incitar-me o furor, mover a ira?

LXVI
Disse; e logo com golpe assaz severo
Os parelhados monstros sacudindo,
Qual valente Sansão, qual ímpio Nero,
Tudo quer de uma vez ir consumindo;
Mas da proa o leão soberbo e fero,
Com rugido feroz a boca abrindo,
Já depois da ruína estar disposta,
O naufrágio detém nesta resposta.

LXVII
Não hás de, não, vencer, cruel Netuno,
Por ser este baixel forte, e guerreiro,
Em que com grandes forças me reúno
Da Esposa de outro Jove verdadeiro.
Se tu és de Plutão soberbo aluno,
Eu de Vênus melhor sou companheiro.
Quem impede, e demora esta desgraça
É outra fonte santa, e mar de graça.

LXVIII
Esta mesma sumaca representa
(Se é justa tão distinta semelhança)
Aquela nau do mar de culpa exempta,
Onde sempre há maré, sempre há bonança,
Na qual o pecador sem mais tormenta,
Atravessando o Cabo da Esperança,
Ao porto salva as praias do Oriente,
Donde se adora o sol mais refulgente.

LXIX
O Leão de Judá eu represento
Da raiz de Davi planta diversa,
Que alcançou glorioso vencimento
Do Cérbero infiel, cobra perversa.
Lê neste escudo, que nas mãos sustento
Ao teu cego furor empresa adversa,
E verás no rigor desta porfia
Quantas penas te dá — Ave Maria!

LXX
Inda o nome não é bem proferido,
Quando toda cruel turba nadante,
Pelas águas fazendo atroz ruído,
Mergulhada se vê no mesmo instante.
Qual de noite no céu lume incendido
Se figura uma estrela assaz brilhante,
E quando mais constante nos parece,
Correndo pelo ar desaparece.

LXXI
Enfim os falsos deuses do mar fundo
Levam a confusão por desengano,
E ainda temerosos no profundo
Se escondem junto ao reino de Sumano. 
Enterrados na areia, e lodo imundo,
Fogem de ouvir o nome soberano,
Inda não satisfeitos de escondidos
Metem rolhas de limo nos ouvidos.

LXXII
A gente admirada em terra salta
Entoando com glória não pequena
Os louvores da Virgem em voz alta;
Pois tantas tempestades lhe serena:
E quando de Maria a glória exalta
Também confessa humilde a sua pena;
Porque sem contrição tão manifesta
Não vale a devoção, a fé não presta.

LXXIII
A escabrosa penha vai subindo
Descalça, de joelhos, e de bruços,
E por toda a ladeira estão se ouvindo
Menos a voz, que o eco dos soluços.
As águas, que dos olhos vêm saindo,
Causam nas ventas úmidos defluxos,
E parece que têm já convertidos
Os corações em forma de gemidos.

LXXIV
Chegando finalmente ao santo erário,
Em que o maior tesouro se venera,
Com incendido amor, afeto vário,
Impaciente já a dita espera.
Aqui deter a musa é necessário,
Enquanto em breve espaço se pondera
O como se transforma com Maria
A pena em glória, o pranto em alegria.

LXXV
Nos braços de um varão religioso
Da mesma santa ordem dos menores
Vai o sagrado nume portentoso
Mostrando claramente resplendores.
Em alas o congresso numeroso
Repete vários hinos e louvores,
A cuja voz responde o bronze forte,
Causando à vida horror, espanto à morte.

LXXVI
Assim torna-se a cidade nadadora
Incendida Cartago e Troia ardente;
E já vendo embarcada a bela aurora
A Vitória procura ter patente.
De Vila Velha a gente aflita chora
Desta santa partida descontente,
Não podendo julgar-se na verdade,
Se é mais ativa a glória, se a saudade.

LXXVII
A capitânia toma a dianteira,
E se observa nas ondas prateadas,
Que os peixes vão seguindo a sua esteira,
Que as aves pelas vergas vão sentadas.
As mais da mesma sorte que a primeira
Dos contínuos prodígios admiradas,
Em companhia vão deste portento,
Tão cheias de prazer, como de vento.

LXXVIII
Antes que à vila as proas apareçam,
A vinda certificam os clamores;
E atroando os ouvidos já começam
Sinos, trombetas, tiros, e tambores.
Para o comprido cais logo se apressam
Juízes, escrivães, vereadores,
Bandeiras e pendões, cruzes e guias,
Ordens, religiões, e confrarias.

LXXIX
O batalhão em forma está disposto,
A tropa auxiliar também formada,
A turba universal com geral gosto,
Em tão vasto terreno está coalhada.
Curvado o velho vem no duro encosto,
O tenro filho em braços da criada,
Ou por si, ou por outro carregado,
O cego, o surdo, o manco, o aleijado.

LXXX
O lavrador as canas desampara,
O pastor já no campo não reclina,
Pela vila o rebanho já despreza
Esquecido da selva, e da campina.
A anta, o bugio, o tigre, a cobra avara
Vêm do bosque adorar a luz divina;
E inda o mesmo gentio sem fé certa
Com a vista parada, a boca aberta.

LXXXI
Das columbrinas peças carregadas
Em fogo se desfaz a fortaleza: 
As casas sobre o cais bem preparadas
Mostram na mesma pompa a sutileza.
Nas ruas para o passo destinadas
Se admira com arte igual riqueza,
Observando-se aqui com maior soma
Grandezas de Paris, faustos de Roma.

LXXXII
Chega a Senhora à terra, e recebida
Em rico pálio de ouro traspassado,
Da turba acompanhada é conduzida
À Santa casa de Francisco amado;
Inda não bem no templo é recolhida,
Já todo o céu de nuvens carregado,
Encobrindo do sol a formosura,
Transforma o claro dia em noite escura.

LXXXIII
Apenas entra a Virgem, quando os ares
As nuvens vomitando sobre a terra,
Parece com dilúvio, que nos mares
Quer a água vingar do fogo a guerra.
Os verdes papagaios nos pomares,
Os barbados bugios, pela serra,
E nos charcos as rãs cheias de glória,
Estão cantando os vivas da vitória.

LXXXIV
A sequiosa terra a chuva bebe;
Em uma raridade a gente espanta;
Porque de cada pingo, que recebe,
Um pequeno sapinho se alevanta.
Também ao longe um fumo se percebe,
Que sutilmente aos ares se adianta,
Qual tição apagado de água fria,
Que agora fuma só, se antes ardia.

LXXXV
Os secos algodões reverdecendo,
Os queimados legumes se inundando,
No campo a murcha relva renascendo,
No bosque as mortas árvores brotando,
Na fonte os animais juntos bebendo,
No rio os brutos todos se lavando,
São mudos oradores desta Penha,
Padroeira, que a Deus por nós se empenha.

LXXXVI
O mesmo efeito faz na horrenda peste,
Defendendo qualquer do ar impuro;
Porque, sendo também porta celeste,
Por ela todo o mal vive seguro.
Se de lua se calça e sol se veste,
E das estrelas tem resplendor puro,
Que muito é seja um astro tão perfeito,
Sendo causa da luz, da graça efeito.

LXXXVII
Depois de seu devoto novenário,
Em que as graças se dão do benefício,
Sempre sendo atual no povo vário
Do canto a voz, do culto o exercício,
Tornando-se a aprestar o necessário
Inda com maior pompa, e desperdício
Da Penha se conduz a maravilha,
Essa mais pura luz, que eterna brilha.

LXXXVIII
Nesta ausência cruel da soberana
Chega a pena da glória precursora,
Sendo aquela pensão da vida humana,
Que por um olho ri, por outro chora,
Ao mar arroja a gente a dor tirana,
Que intenta em vão seguir a bela aurora;
Pois todo aquele amor, que não é pouco,
Além de cego ser também é louco.

LXXXIX
Chega até onde o passo a onda impede,
E já precisa astúcia contrafeita;
Triste para as moradas retrocede
Com a fartura em parte satisfeita,
Quando mastiga o pão, e farta a sede,
De sua autora a graça inda respeita,
Celebrando com júbilo dobrado
Neste presente bem o mal passado.

XC
Porém o deus das ondas que vencido
Foi de fero leão da proa ardente,
Inda do seu agravo ressentido,
Lhe prepara outro mal mais veemente;
E vendo o seu poder enfraquecido,
Maior esforço busca onipotente,
Com que deste lugar americano
Destrua a devoção, fomente o dano.

XCI
Vai do negro Plutão ao reino escuro,
E já do rei soberbo na presença
Com espantosa voz, com eco duro,
Desta sorte lhe fala sem detença:
Sabe, querido irmão, que em ti procuro
O desagravo de uma grande ofensa;
Pois vejo o meu tridente enfraquecido,
Que ontem foi vencedor, e hoje vencido.

XCII
Profanados meus úmidos altares
Na parte ocidental do novo mundo;
Com acesos metais queimam-se os mares
Em louvor de outro deus forte e jucundo,
Se tu com teu poder me não vingares
Me envergonho, me abismo, e me confundo,
De que uns cegos mortais, tristes humanos,
Causem terror aos deuses soberanos.

XCIII
Isto disse chorando de raivoso,
E os limosos cabelos arrancando,
Foi aos pés do rei ímpio, e rigoroso
A coroa e tridente arremessando,
Cuja vista o concurso numeroso
Dos infernais ministros admirando,
Esquecidos do próprio ministério,
Dão às almas alívio, e refrigério.

XCIV
Plutão depois de um pouco estar parado
Desta sorte responde ao nume aflito:
Eu sei que desse Deus tão venerado
É tão grande o poder, como infinito;
Sei também, nesse clima, que adorado
É com glória infiel, com santo rito
Dos Lusos, que até ali — com sacro indulto
Dos naturais me tem tirado o culto.

XCV
Porém, consola o céu os desumanos,
Torna contente aos reinos cristalinos,
Que para réus vingar de tantos danos
Bastam só nossos bárbaros calvinos,
Os assírios, ingleses,  mauritanos,
Numídios, Luteranos, e Rabinos:
Temos para tão poucos inimigos
Imensos parciais, muitos amigos.

XCVI
Com ingente valor, com golpe fero
Eu deles sou vencido muitas vezes,
E cada vez com mais furor espero
Tirar a fé dos cultos portugueses.
Em teu e meu favor agora quero
Contra eles mover os holandeses,
E que os hão de vencer eu te seguro
Com Megera, Caronte, e Palinuro.

XCVII
Prostrar-se agradecido o nume intenta;
Porém o irmão nos braços o levanta;
Este no ardente seio se aposenta,
Aquele ao mar salgado se adianta.
O congresso, que as almas atormenta,
De breu e enxofre faz fumaça tanta,
Que ali se veem os tristes condenados
Primeiro que incendidos afogados.

XCVIII
Já o reino leteu na escura barca
Sulcar o rei ousado determina:
Do preciso se apresta, e nela embarca
Qualquer que para a empresa se destina.
Também não quer ficar horrenda parca,
Que já faz na ambição certa ruína,
E nela vem causando horror eterno
O vil barqueiro do medonho averno.

XCIX
Apenas de Netuno as águas pisam,
Quando muito contente lhe aparece,
E enquanto céu, e ondas só divisam,
Nunca do longo mar desaparece;
Do melhor mantimento não precisam,
Porque Glauco o bom peixe lhe oferece;
E em pouco tempo Eolo furibundo
No país holandês lhe faz dar fundo.

C
Busca Megera a praia, e certifica,
Que do negro Plutão traz embaixada.
O sucesso do deus nadante explica.
E para o socorrer implora a armada.
A nação infiel nada replica,
E embarcando a tropa exercitada,
Com cego horror, com louco desvario
Quer que na prontidão se veja o brio.

CI
Nos braços já Netuno as mãos aperta,
E por sinal das suas alegrias
Amante e liberal lhe faz oferta
Dos brilhantes cristais das ondas frias.
Já fazendo da empresa a glória certa
As sereias lhe cantam sinfonias,
E fazendo no mar várias mudanças,
As filhas de Nereu lhe formam danças.

CII
Caronte do velame tem cuidado;
Palinuro do leme se apodera;
Cloto quer destruir o luso estado;
Incita cruel ódio só Megera.
Chegam da altura ao porto desejado,
E não achando a terra, que se espera,
Dizem que o bem já não lhes corresponde;
Que, se o mar o não tem, o céu o esconde.

CIII
Misteriosa névoa se oferece
À vista tão cerrada, e tão escura,
Que inda nas mesmas naus não aparece
De popa a proa a gente insana e dura.
Começa a confusão, o susto cresce;
Porque quando o piloto entrar procura,
Temem os deuses maus pelo seu vício
Dobrado mal, segundo precipício.

CIV
O vencido Netuno exasperado,
De furor escumando, inchado em ira,
A cabeça batendo em um costado,
Contra os mesmos amigos se conspira;
Porém depois já menos perturbado,
Com um medonho ai triste respira,
E suspirando aflito a voz exala,
Com que o fero pesar por ele fala.

CV
Oh tu meu nobre irmão, pai da desgraça,
É possível que em tão penoso assédio
Esta tirana dor, que por mim passa,
Não possa cura achar, nem ter remédio,
Que sempre se confunda, e se desfaça
Meu soberbo furor, meu feroz tédio?
E há de o meu valor, minha presença
Sofrer a minha injúria, e vossa ofensa?

CVI
Mais quisera dizer, se de um ruído
O estrondoso horror, que o ar feria,
Lhe não pusera embargos ao sentido
Das queixas, que formava, e que dizia.
Um carro vê de chamas incendido,
Que o mesmo ardente inferno parecia,
E não se engana, pois do dito horrendo
Ouve a funesta voz ao som tremendo.

CVII
Aqui me tens, Netuno, é coisa fera,
Que só força, e não mente em ti se veja,
Pois não sabes prever, que nesta era
Mais uma astúcia, que o valor peleja?
Queres ver como o bem se recupera
Do perdido país, que se deseja?
Acende as velas com meu fogo impuro,
E verás como vês em tanto escuro.

CVIII
Disse; e logo de chamas veementes
Toda a armada acendeu em breve instante,
Fazendo a vista crer, que as naus ardentes
Pretende abrasar o pego undante.
O ar com fogos tão resplandecentes
Jamais do que por Febo está brilhante;
O mar aceso, a terra iluminada
Dá caminho ao furor, concede a entrada.

CIX
À vista do edifício suntuoso
A nação infiel medrosa fica;
Mas de soberba o monstro rigoroso
Que castelo não é lhe certifica.
Rompendo as quilhas vem o mar undoso;
Já cada um no seu lugar se aplica;
Afiando se vê Cloto a tesoura;
Nos ímpios corações Megera estoura.

CX
O espanto natural bem represente
Do mais fero valor sombra ofuscada;
De um a outro lugar conduz a gente
De susto não pequeno traspassada.
E já onde o pavor tréguas consente
Com tanta pressa mal fortificada.
Mais confia vencer o herege insano
Por divino favor, que esforço humano.

CXI
Aqui chega a nefanda companhia;
E o vermelho estandarte levantando,
Campos, bosques, e montes desafia,
Bombas, peças, e balas disparando.
Anda o negro Plutão nesta porfia
Os reforçados bronzes atirando;
E girando se vê por toda a parte
A Belona cruel, o feroz Marte.

CXII
Porém, essa pequena cidadela,
Que milagrosa praça se afigura,
Com pouca força as naus muito atropela
Mediante o favor da Virgem pura.
Teme o fero holandês chegando a ela
No mesmo arrojo achar a sepultura,
E das fúrias cruéis deixando a ira,
Infiel, e medroso se retira.

CXIII
Netuno contra ele se enfurece,
Querendo assim vingar a sua injúria;
Já com gesto cruel nele aparece
De Tisífone o rigor, de Aleto a fúria. 
Como desenganado do interesse,
Sua pompa mudar quer em penúria,
Condição, que com muitos se coaduna,
Que amigos são do tempo da fortuna.

CXIV
Já dos numes cruéis desamparado
Não há quem dos insultos o defenda,
E da terra inimiga precisado,
A busca por auxílio da contenda.
Só da cega ambição acompanhado
Se vale da sagrada, e rica tenda
Da mais forte Judite, bela senhora,
Do rei dos reis fiel mantenedora.

CXV
Confuso o povo, atento, e admirado
De ver tantos prodígios singulares;
Crendo milagre feito, e bem obrado,
Multiplica os incensos nos altares.
Não podendo o prazer estar encerrado
Passa do peito à voz, da voz aos ares,
E por nobre brasão, e santa glória
A vila toma o nome de Vitória.

CXVI
Mas o holandês sacrílego, e desumano,
Com duro peito, e ânimo ferino,
Rouba as prendas do templo soberano,
E da Senhora o erário diamantino;
E a tanto chega o seu rigor insano,
Que lhe rouba também o deus Menino.
Só não pôde por mais que a força empenha
Movê-la do altar da sacra Penha.

CXVII
Já carregado assim do melhor velo
Se embarca sem o mínimo intervalo.
Netuno cessa logo de ofendê-lo;
E nem jamais se atreve a procurá-lo.
Com favorável vento, e tempo belo,
Nunca encontrou no mar melhor regalo,
Mostrando Deus, que deve um ofendido
Fazer bem ‘té ao mal agradecido.

CXVIII
Oferece o menino onipotente
A cidade de Olinda majestosa,
Nome não sem mistério competente
Ao encarnado botão da pura rosa.
Ali é festejado anualmente
Com fiel devoção, pompa lustrosa,
No mesmo dia, em que da sua planta,
A Penha nos louvores se quebranta.

CXIX
É este um dedicado à clara lua
Depois do outro sol, que Abe se chama,
No qual quase compete à glória sua,
A pura devoção, que amor inflama.
A gente principal, plebe comua
Pela espaçosa penha se derrama,
E onde ela permite algum assento,
Faz soberbo casal, nobre aposento.

CXX
De noite não faz falta o claro Apolo,
Porque mais que de estrelas guarnecida
Toda a esfera se vê, e todo o polo,
Multiplicada a luz, chama incendida.
As fogueiras não pode o rijo Eolo
Apagar quando a chama mais crescida
Faz crer que todo o monte é certamente
Vesúvio material, ou Etna ardente.

CXXI
De dia já das aves a alvorada
Acompanham sonoros instrumentos,
E ouvindo as flores voz tão concertada
Formam, dançando, alegres movimentos.
Há discreto sermão, missa cantada;
Admiram-se os ricos ornamentos.
Por milagre na igreja se acomoda
A grande multidão da gente toda.

CXXII
Universal banquete se oferece
Sem se escolher sujeito nem estado:
Quanto mais se consome, então mais cresce
Sempre com cópia igual multiplicado.
No vário, e no primor a fama cesse
Do Assírio, com pompa celebrada;
Pois quanto em meses seis aquele teve,
Tudo neste se vê em tempo breve.

CXXIII
Os de saúde assaz destituídos,
Os surdos, indigentes, tristes cegos,
Os que por vários casos vêm perdidos
Pedir-lhe os bens, as honras, os empregos,
Neste dia inda são mais atendidos,
E recuperam logo os seus sossegos,
Que é timbre natural dos soberanos
Aumentar as mercês, quando faz anos.

CXXIV
Se tudo quanto faz esta Senhora
A todo este Brasil, que tanto ampara,
Com delicada pena, e voz canora
Eu agora escrevera, ou publicara,
Inda que outro Tifeu gigante fora;
E nelas só meus dias ocupara,
Com bocas cinquenta eu não dizia,
Nem com um cento de mãos tudo escrevia.

CXXV
Se enfim desta melhor ave sem pena,
Que é de Deus criadora, e criatura,
Não pode humana voz, rouca camena,
Os mistérios cantar com mais doçura.
Basta o que tem narrado a rude avena
Para se distinguir sua luz pura,
Porque, quando não há quadro bastante,
Pinta-se um dedo só, vê-se um gigante.

CXXVI
E vós, qualquer que sois dela devoto,
Todos que a venerais com mais cuidado,
Nunca vos esqueçais do sacro voto,
Lembrai-vos de pedir com santo agrado.
Vereis, como é vencida a horrenda Cloto,
Vereis, como libertos do pecado,
Com júbilo, e com glória vos convida
Da vida temporal a eterna vida.


---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...