3/07/2023

Poesia Lírica (Poemas), de Emílio de Menezes


POESIA LÍRICA

ESPARSOS E INÉDITOS



TUAS TRANÇAS

Tudo o que eu vejo, me rodeia e fala,
Desde o arrulo das pombinhas mansas
Até dos sinos o tanger monótono,
Venham falar-me de tuas longas tranças...

Ai quantas noites em que o luar flutua
E a brisa geme dos pinheirais nas franças...
Eu vou sozinho, soluçando a medo
Beijar a sombra de tuas negras tranças

Ai... a lembrança dessa noite infinda
Em que voavas na rapidez da valsa
Deixou minh'alma retalhada em dores
Presa nos elos que essa trança enlaça;

É que inda hoje eu conservo intactas
As doces frases do valsar em meio
É que inda agora julgo estar sentindo
Arfar teu seio em delirante anseio;

O doce hálito que exalavas rindo
As meigas falas... o teu sorrir de então
Ai... tudo... tudo para mim recorda
Louca esperança que alimentava em vão.

É que eu nutria essa esperança frívola,
Falsa quimera que se esvai e finda,
É que eu te adoro, te venero, santa
E curto em silêncio essa dor infinda

Por isso eu hei de como sempre amar-te
Preso nas chamas que do ar tu lanças
Dizer-te, sabes o que eu desejo, louco?
— Morrer envolto nas tuas negras tranças.

 

CONSOLO

Tudo!... tudo morreu, mas n'alma brota Uma esperança ainda.

Sênio

A alma aberta... e chega-me a saudade
Do meu amor — coitado! — a enchê-la... a enchê-la...
Como me enchia o peito a felicidade
Dos bons sorrisos, dos carinhos dela.

E o martírio e a tristeza agora é tê-la
Ausente — ausente!... e a cruel vontade
Que avulta e eu a tenho e é de vê-la,
Inda mais cresce aqui na soledade.

Mas nesta ausência em que — só de pensar —
Sinto que a vida vai-se me acabando,
Inda vem-me — feliz! — acalentar

As esperanças que ela dava quando,
— Cego de amor que a luz vai mendigando —
Ia pedir-lhe a esmola de um olhar.

 

SÚPLICA
Deixa esses mortos graves, quero a luz desse olhar que me consola.

L. Correia: "Canção"

Se o teu olhar me conta, magoado,
Quando a dor me tem feito dentro d'alma,
Inda que o lábio cale, descorado,
Este martírio que o teu riso acalma,

E se deste sofrer encontro a palma
No teu piedoso riso, imaculado,
Por que não volves à alegria, à calma?
Por que me deixas triste e amargurado?

Descerra o lábio! A dor, o esquecimento;
Lança-me o sol do teu sorriso, basta
Para aquecer-me a alma em desalento.

A nuvem do pesar do rosto afasta:
— Longe de nós a mágoa, o sofrimento;
Limpa-me o céu da tua fronte casta!

 

A UM RETRATO

Até vós! até vós! talismã sagrado
Daquele morto amor, daquele amor eterno,
Ides deixar-me só, e triste, e abandonado!
Ó meu fiel amigo, inseparável, terno!

Oh! meu leal companheiro, oh! testemunho amado
Deste sofrer sem termo, este martírio interno;
Até vós! até vós! a quem só hei confiado
Os meu dias de céu e os meus dias de inferno,

Ides abandonar-me, ides voltar contente,
Sujeitar-vos, feliz, ao doce julgo dela;
Mas quero que volteis tão límpido e nitente,

Que na morta expressão de vossa fronte bela
Não se note o vestígio, — esse vestígio ardente —
Das lágrimas de dor que derramei por ela!

 

ASPIRAÇÃO

De uma vida sem fé ao glacial inverno
Furtei-me sacudindo o gelo da descrença.
Aquece-me outra vez este calor interno,
Anima-me outra vez uma alegria intensa.

Sinto voltar-me a minha antiga crença,
Creio outra vez no céu e no descanso eterno,
Pois creio em teu olhar, e na ventura imensa
Que ele encerra, e me mostra apaixonado e terno.

E quando deste corpo a alma arrebatada
Seja, e procure, flor, essa região sagrada
Que aos bons é concedida, esplêndida, a irradiar,

Aos sons celestiais de apaixonado hino
Abra-se para ela, olímpico, divino,
O infinito céu do teu sereno olhar.

 

O VIOLINO

São, às vezes, as surdinas
Dos peitos apaixonados
Aquelas notas divinas
Que ele desprende aos bocados...

Tem, ora os prantos magoados
Dessas crianças franzinas,
Ora os risos debochados
Das mulheres libertinas...

Quando o ouço vem-me à mente
Um prazer intermitente...
A harmonia, que desata,

Geme, chora... e de repente
Dá uma risada estridente
Nos "allegros" da Traviata.

 

A UM PESSIMISTA

Olhas o céu e o céu, todo em atra gangrena,
Se te mostra corroendo as rútilas esferas.
Baixas à terra o olhar e a terra, em outras eras,
Plena de gozo e amor, ora é de horrores plena.

Sangra a etérea região, sangra a região terrena
E o horizonte, que as une, inda mais dilacera-as.
E as próprias linhas — louco! em que a sânie verberas,
Podres vêm ao papel, podres brotam-te à pena.

Mas, se ao céu e se à terra, e se ao horizonte e ao verso,
Asco e náusea tressuando, a podridão atrelas
E nela vês tombar e fundir-se o universo,

Sobe do chão o olhar, baixa-o das nuvens belas
E volve-o dentro em ti, pois fora o tens imerso
Na própria irradiação das tuas próprias mazelas.
 

DIAFANEIDADES

Brumas, névoas, no espírito doentio
Passem-me, embora veladoramente,
Tu surgirás eterna flor do estio,
Radiante, rubra, tentadora, ardente.

Toldem-me a vista sóis, e fio a fio,
Trama ofuscante me perturbe a mente,
Eu te verei, eterna flor do frio,
Fria, polar, consoladora, albente.

Visão de fogo, aparição de gelo,
O mágico poder, estranho e raro,
Dás-me de tudo a ver, nítido e belo.

Pois tudo em ti, de amor abrigo e amparo,
Faz-se como este amor que tu'alma fê-lo
Diáfano, leve, transparente, claro.

 

LESMA

Passas. Ouço o rugir do vento que te leva!
Quando, da Arte, me ajoelho, no místico delubro
Tu vens, lúdicro arfando, e ao espaço, a crocitar na treva.
E o impotente, o bêbado eu descubro.

Alimenta-te a inveja. O despeito te ceva.
O álcool atou-te a voz rouca e deu-te esse olhar rubro,
Que é o único clarão que do teu ser se eleva.
Mísero, a que do orgulho do régio manto encubro.

Anda! Beija-me nos pés, a clâmide inconsútil.
Eu piedoso Ca estendo ao desespero inerme!
Tu não és venenoso, o teu esforço é inútil!

O teu dente sutil não me passa a epiderme,
Oh! fonte do banal! oh! nascente do fútil!
Larva! tens o perdão! Tens a piedade, oh! verme!

 

INSTANTE NEGRO

Anda, acima de nós, na abóbada infinita
Em sinistro remígio, algum sinistro corvo
Que grasna ao nosso mal e à nossa dor crocita
Pondo, entre nós e o sol o seu feral estorvo!

Anda, abaixo de nós, uma víbora aflita
Que assalta o nosso sangue e o suga sorvo a sorvo!
A terra é para nós uma furna maldita.
O céu é para nós um teto negro torvo!

Terra e céu, contra nós, se conspiraram ambos.
A vida é um volutabro, e o sofrer não se exprime
Com que andamos por ela esfalfados e bambos.

Nem mais ao próprio poeta há um amor que o reanime,
— Em vez dele hoje entoar, himnos e dithyrambos,
Canta a glória suprema e a volúpia do Crime!...

 

ELA

"Amar, amar, eternamente amar."
É bela e sedutora! Seus olhares
Muito meigos, serenos, — um portento, —
Representam-me fúlgidos altares,

Onde vou suavizar os meus pesares,
Na muda invocação do pensamento...
Seus lábios de carmim, sempre sorrindo,
E dos dentes mostrando a fina alvura,

Exornam mais e mais seu rosto lindo,
Esse rosto sem par, de encanto infindo,
O Sacrário sublime da ternura.
Seu corpo donairoso de princesa,

Duma graça indizível modelado,
É a imagem perfeita da beleza,
Ante a qual, com respeito e singeleza,
Eu me curvo e confesso apaixonado...

 

NATAL

Não há talvez no Calendário, um dia
Como este vinte e cinco de Dezembro,
Em que a própria velhice se avigora
Da lembrança à dulcíssima caudal!
Moço, nele, a esperança me fulgia,
Velho, nele, ainda exclamo: bem me lembro!
Sinto que vivo numa eterna aurora
Neste glorioso dia de Natal.

Passam-se as horas todas, dentro, apenas,
De um pequenino e colossal minuto,
De um minuto que encerra, hora por hora,
O Tempo imperecível e imortal.
Nem ouço a voz de minhas próprias penas
Só do supremo Bem os sons escuto!
— Vibra dentro em meu seio a eterna aurora
Na glória deste dia de Natal!

Os séculos são nada, ante este imenso
Porém diminutíssimo segundo,
De que eles brotarão, tempos em fora,
Como as caudais de escasso manancial!
De anelo e gozo, num fervor intenso
Em suavíssima luz meu ser inundo!
Canta dentro de mim da eterna aurora,
A glória imorredoura do Natal.

É que não tem o Calendário, um dia
Como este vinte e cinco de Dezembro
Em que a própria velhice se avigora,
Da saudade à dulcíssima caudal
Velho, nele, inda exclamo: ó se me lembro!
Mas de mim vai fugindo a eterna aurora,
Deste saudoso dia de Natal!...

 

AO TIRO RIO BRANCO

"Ide, galharda flor da Paz armada em Guerra!
Ide, gloriosa flor das gloriosas legiões,
Que a mocidade em si, neste momento encerra,
Como encerra o alto céu áureas constelações.

Que desde a orla marinha às quebradas da Serra,
Que dos Campos Gerais às fecundas Missões,
Que onde comece e finde a vossa amada terra,
Vibre o entusiasmo, a encher os vossos corações!

Da mais ampla campina à mais densa floresta,
A natureza ali, toda rebrilhará
Ao fulgor imortal que o vosso brilho empresta.

Ide, que já pressinto, ide que escuto já
O vosso berço entoar, nos mesmos sons de festa,
Num hino a Rio Branco, um hino ao Paraná!"

 

NO ÁLBUM DE CORDÉLIA MURAT

Aqui não quero ver-te a formosura
Na glória da mulher bela e perfeita.
Ao ler-te o nome, a mim se me afigura
A Cordélia de todos nós eleita.

A Cordélia que a cada travessura,
De menina risonha e satisfeita,
Dava o clarão de um sol a uma alma escura,
Dava a amplidão de um céu a uma alma estreita.

Crescente. És mulher forte e bonita
E o sangue adulto que hoje te avigora,
Mal recorda a Cordélia pequenita.

Eu, porém, só te vejo como outrora.
É que a velhice a recordar me incita:
Sou tarde. És meio-dia. Eu lembro a aurora...

 

ESPUMAS
(Lendo Amadeu Amaral)

Na aparente quietude ou plácido remanso
E ao suavíssimo olor com que os versos perfumas,
Se lanço alegre o olhar, se úmidos olhos lanço,
Vejo que a luz do sol não n'a encobrem as brumas.

Abaixo, assim, do leve e ondulado balanço
Da superfície espilmea, eu sinto, umas por umas,
As grandes emoções de oceanos sem descanso,
Estudando ocultamente à aluvra das espumas.

Mas nem sempre a avistar tênue espiral de fumo
Se prevê que à floresta, ao requeimar das franças,
Mortos, só restarão os troncos nus a prumo.

Não, que é chama fecunda essa a que te abalanças!
Do que foste, és, serás, o teu livro é o resumo:
Nobres recordações, certezas, esperanças.

 

"Entretanto, é intuitiva a impropriedade da escolha do uniforme da Cruz Vermelha para festejos carnavalescos. Esse uniforme foi sempre e é, com especialidade neste momento, uma coisa sacratíssima. Ele simboliza a abnegação de milhares de senhoras nestes dias de amargura".

(Da seção "Salpicos", na Gazeta de Notícias)

À excelsa Sra. Gaby Coelho Neto
Senhora! Aos vossos pés aqui se ajoelha
Não do humorismo a brincalhona musa,
Mas uma alma que à vossa alma se cruza
Ante a bondade ideal que em vós se espelha.

A Santa Instituição dai a centelha
Da vossa caridade ampla e profusa.
Não podeis insistir nessa recusa
De dar o vosso esforço à Cruz Vermelha.

As que, ingênuas, profanam em folia
O símbolo sagrado, eu as contemplo,
Como cegos a quem falece um guia.

Vinde senhora a dar o grande exemplo
De vosso amor, blindado de energia;
Vinde e Correi as más irmãs do templo!

 

A JÚLIO FURTADO

Enquanto a idade fria e indiferente,
Os teus cabelos, pérfida, descora,
O teu trabalho e o teu esforço ingente
Cercam-te a fronte de perpétua aurora.

É que teu viver religiosamente
Nas oficinas em que se elabora
A grande força rejuvenescente
Da natureza, no esplendor de Flora!

Flora te é grata, Flora te reanima,
E te confere a eterna mocidade,
Por que, em seu culto, ergueste uma obra-prima.

Teu nome jeito não conhece idade:
É imorredouro para a nossa estima
E para a gratidão desta Cidade!
Homenagem do "Centro dos Veleiros"

 

Tu que hoje cais no misterioso abismo,
Depois de incerta e tropeçante viagem,
Por teu amargo e mórbido humorismo,
Eras do nosso meio a própria imagem.

Não te valendo o musical lirismo,
Não te valendo o apuro da linguagem,
Foste arrastado pelo pessimismo,
Que ataca os que perderam a coragem.

No entanto, o verso teu era um escudo
De ouro polido e de cristal perfeito,
Que ora chamava ao sonho, ora ao estudo.

Tu, que vítima foste deste estreito
E torpe meio, que avassala tudo,
Descansa em paz no derradeiro leito.

 

EM VIAGEM

Ao fulgor sideral desta noite radiosa,
Foi que te vi partir, indiferente e fria.
Como que entre nós dois, em turbilhão, raivosa,
A avalancha do. Polo um mar de gelo abria.

E eras tu! Eras tu! pois, no meu peito, ansiosa,
Um maelstrom de amor minh'alma percorria;
E tudo em mim vibrava essa canção saudosa
De tristeza e de fel que o meu lábio exprimia.

Mas, que importa a glacial, a rude despedida,
Se dentro d'alma, alegre, o teu perfil risonho
Levava o resplendor que me aureoleia a vida?

Que importa eu seja, agora, o espectro tristonho
De uma antiga paixão imensa e indefinida,
Se ainda tu és a luz do meu único sonho?

 

Vetusta catedral que, ao tempo, te esborcinas,
Choras a torre audaz que, aos céus erguendo a agulha,
Os mistérios e os bens, de que a Igreja se orgulha,
Do alto mostrava aos fiéis, nas sonoras matinas.

Já, de ti, longe vão as práticas divinas
Com que davas ao incréu a sagrada fagulha
E ainda julgas ouvi-la, em fragorosa bulha,
A oscilar no teu flanco e a desfazer-se em ruínas.

Abateste, eu me lembro, à tarde, de repente,
Dourando, no clarão de um último arrebol,
O pó que te envolveu sutil e refulgente!

Torre morta! Afinal, do orgulho, no crisol,
Tombaste amortalhada, ampla e gloriosamente,
No purpúreo esplendor da agonia do sol!

 

AO DOMINÓ VERMELHO

— "Maldito seja todo o anonimato!
Seja maldita a máscara que encobre
O rosto que de uma alma é o fiel retrato!

Que a maldição suprema se descobre
Por essa festa em que a paixão mundana
Afasta todo o sentimento nobre!

Maldito todo aquele que se irmana
Aos que se entregam pela fantasia
A essa apoteose da loucura humana!"

Assim fala no meio da alegria
Que a alma nos enche neste ardor da festa,
Do seu refúgio, a voz da hipocrisia!

Essa voz que os ouvidos nos molesta
Felizmente a consciência não invade
Dos que ao prazer se atiram com alma honesta,

Esses sabem que a tua caridade,
Por anônima ser, é mais sincera,
O fanal da viuvez e da orfandade!

E no antro escuro em que o sofrer te espera
O teu braço que anima e que consola
Vai abrir um clarão de primavera!

Sim; porque nessa anônima sacola
Que a tua mão anônima apresenta
Não faltará quem deposite a esmola!

Esta grande certeza nos alenta:
De muita dor o teu esforço nobre
Há de acalmar a trágica tormenta!

Bendito seja pois o anonimato
Da máscara que assim teu rosto encobre
No sagrado pudor e no recato
Com quem trabalhas pelo amor do pobre.

 

Por não poder dizer-te que te quero
Nem ao mundo mostrar que te desejo,
Da fera dor o sofrimento fero
Recalco se te vejo ou te não vejo.

Entre nós, o dever ríspido e austero
Fez com que, de te ver, fuja ao ensejo.
Se é pejo ou se é temor, não exagero:
Nem tão grande é o temor, nem tanto é o pejo.

Sinto-me até muito mais nobre e forte.
Não me envergonha, nem me inspira medo,
O amor oculto que me coube em sorte.

Levo, ao ver-te, entretanto, ao lábio o dedo
E, mudo, enfim, me entregarei à morte,
Envenenado pelo meu segredo.

 

SONETO
(Carta íntima)

Que este soneto, assim, feito ao correr da pena
Possa, filha, dizer-te o que a voz te não diz,
Porque este afeto excede a linguagem terrena,
E não tenho expressões se te vejo infeliz.

Se a vida te não corre, acaso, alegre e amena,
Ouve, em vez da minha, as mil vozes hostis
Em que buscam, os teus, nos infligir a pena
De curvarmos a alguém, humildes, a cerviz,

Tu, que foste, que ainda és e que serás, por certo,
Aquela que, jamais, do interesse ouve a voz
Mais longe estás de mim quando de ti estou perto!

Deves, porém, saber que, quando fico a sós,
A própria multidão, para mim, é um deserto,
Porque o mundo não és nem eu sou: somos nós!

 

Tu, só tu, podes dar nesta miséria,
Neste declive das paixões humanas,
Ao amor a pureza ideal, aérea,
Na pomba com que os versos engalanas.

Ele te foge aos estos da matéria
E, da arte, ao esplendor de que te ufanas,
Ascende, e corta a vastidão etérea
Da rima sobre as asas soberanas.

Tu, só tu, vencerás porque derivas
Do árduo labor, triste e enfadonho,
A melhor sobra de energias vivas

Para o castro remanso o olhar risonho
Onde não chegam doestos e invectivas
Onde tudo está dentro do teu sonho.

 

A essa, imponderável beleza, inexcedível de bondade e altíssima de espírito, — dona de uns grandes olhos indefiníveis, que me trazem subjugados, arrastando pela vida misérrima os destroços do meu orgulho, ofereço estes quatorze versos, feitos para molestar aqueles que à nossa felicidade se têm querido opor.

Rompe mais clara que até então, Aurora!
Vai cobrir-te de galas, Natureza!
Céu! da ampla face a límpida turquesa
Mostra, coberta de esplendor, agora!

Toda de festas, sejas, Terra, presa!
Astros! brilhai-me, pelo céu em fora!
E tu minh'alma, onde o prazer não mora,
Canta o hino da graça e da beleza!

Tudo que eleva, tudo que arrebata,
Deve vibrar numa explosão divina,
Por noites de ouro em bergantins de prata!

Alma de artista! tudo aqui te ensina,
Que esta é a suprema, esta é a gloriosa data,
Em que faz anos a Rafaelina.

 

CARMEM

Para a tua Primeira Comunhão
O que hoje fazes, doce criatura,
Tomando, com teu lábio imaculado
A hóstia que suaviza a alma divina e pura
Remindo-a do crime e do pecado

Não simboliza apenas ternura
Lida no livro em que hajas estudado;
Carmem! o que aprendeste ria escritura,
Já tinhas de tua mãe rio colo amado.

Quando ela o sangue em leite transformava
O próprio sangue com que te nutria
E em que toda a sua alma derramava

A alma do Cristo sobre ti descia
Era a hóstia fluída que te alimentava
Feita do leito e o sangue de Maria.

 

ÚLTIMOS VERSOS

A arte, amigo, em noss'alma só se interna
Por caminho em que o uso é um empecilho,
É a dor, a eterna dor, a estrada eterna
Que eu, entre versos, pés sangrando, trilho,

Quantas vezes o atro fundo da cisterna
A água que dela sai mostra no brilho
É o fulgor de uma lágrima paterna
A refletir a imagem de um mau filho.

 
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

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