3/07/2023

Seleção de Poemas (Poesia), de Antônio Feliciano de Castilho



SELEÇÃO DE POEMAS



CONVITE PARA A FELICIDADE

Ditoso, Júlia, ditoso,
quem livre de inquietação
come os frutos que semeia,
e dorme no seu torrão;

que desconhece das cortes
intriga, esperança e receios,
que julga acabar-se o mundo,
onde acabam seus passeios.

Penúria e riqueza ignora,
dois escolhos da virtude,
e tira do seu trabalho
bens, prazer, vigor, saúde.

De iguais rodeado vive,
e só tem por superior
seu Criador no outro mundo,
na paróquia o seu pastor.

As aras jamais incensa
de Astreia, Minerva ou Marte,
mas Baco e Pomona e Ceres
lhe riem de toda a parte.

Mais apertado não vive
na avita cabana herdada,
que o rico em salões de estuque,
de alta, soberba fachada.

Em vez de jardins estéreis,
faz consistir seu prazer
em lhe à porta verdejarem
as couves que fez nascer.

Dorme em colmo um sono inteiro,
enquanto, em dourado leito,
o nobre se volve, e geme,
de aflição ralado o peito.

Ao lado lhe dorme a esposa,
fiel, inocente e bela;
o filhinho, imagem sua,
dorme em paz ao seio dela.

Se ela lhe diz: – eu te adoro,
eu te amarei toda a vida! –
de ser verdade o que escuta
nem um momento duvida.

Sabe que a fé, que a virtude,
virtude pura, ilibada,
dons mais belos que a beleza,
são numes da sua amada.

Ela não vive no meio
da corrupta mocidade,
que adorna, envenena, empesta,
das cortes a sociedade.

Não quer brilhar nos passeios,
nem de mil adoradores
vai disputar nos teatros
os suspiros e os louvores.

Passa a noite ao pé do esposo,
entre os filhos passa o dia,
o trabalho a ocupa sempre:
ser infiel poderia?

Da sua família é toda,
nela concentra a afeição,
que as damas à intriga, às festas,
ao jogo, aos enfeites dão.

Quer-se ornar nos santos dias?
Não se assenta ao toucador
em vez de joias brilhantes
procura singela flor.

Para arranjar seus cabelos,
nem corre ao cristal da fonte;
não carece de outro espelho,
tem seu consorte defronte.

Ele lhe ensina a maneira
por que lhe ficam melhor;
ele lhe diz em que sítio,
e como lhe ajusta a flor.

Se lhe agrada, está contente;
e vai de inocência cheia
entrar com ele nas festas,
nas festas simples da aldeia.

Ah, Júlia! Que sorte a de ambos!
Sem longas filosofias,
sabem melhor do que os sábios
desfrutar serenos dias.

Os princípios, os sistemas,
sonhos de estéril vaidade,
jamais tornaram ditosa
a mesquinha humanidade.

Se existe o bem sobre a terra,
se queres, Júlia, este bem,
uma aldeia... uma cabana...
ternura... inocência... Ah, vem!

 

DEFENSA DE UM INCONSTANTE
(Cançoneta)

Desterra teus vãos ciúmes,
festejo a quantas são belas
mas sempre a rainha delas
és tu, Armânia cruel.

De teu semblante as lindezas
adoro noutros semblantes:
são meus passos inconstantes,
é meu coração fiel.

Não to nego, com Armia
falo às vezes em segredo;
não to nego, este arvoredo
viu-me com Lília brincar:

Porém com Lília só brinco,
por ter nos brincos teus modos;
de Armia os segredos todos
os teus me fazem lembrar.
..........................................

Se a Ismene pedi cabelo,
foi só por também ser louro;
fui rico do teu tesouro,
sem o obter da tua mão.

Amo em Gertrúria o teu riso,
amo os teus olhos em Jônia,
preso nas cartas de Aônia
tua escrita e discrição.

Um só coração me coube,
e tu és a flor das belas!
Nem mesmo entre os braços delas
te fora infiel jamais.

Por distração tenho às outras
vezes mil teu nome dado;
e até hoje inda a teu lado
não tive enganos iguais!

Meu pensamento amoroso
é qual Fovônio entre as flores,
que, a mil sussurrando amores,
elege a rosa entre mil;

Por todo um jardim vagueia,
mas guarda a afeição saudosa;
passa, e lembra-nos da rosa,
da rosa ingênua e gentil.

Quanto mais julgas, ingrata,
perder a tua conquista,
tanto mais se aumenta a lista
dos teus triunfos sem par.

De meu coração te queixas
serem sem conto as rainhas!
São escravas, que não tinhas,
que vão teu carro puxar.

Dez Análias te abandono,
Jônias duas, seis Temires,
e após estas quantas vires
de semblante encantador.

Armânia, sobre áureas rodas,
por tuas rivais tirada,
sobe, de mirto coroada,
ao Capitólio de amor!

Lá, sobre as aras do nume,
jura um prêmio aos meus ardores.
Quanto amará teus favores
quem tanto os desdéns te amou!

Depois, sofre que ame sempre
em teu sexo a todos grato
os pedaços de um retrato
que a natureza quebrou.

 

OS TREZE ANOS
(Cantilena)

Já tenho treze anos,
que os fiz por Janeiro:
Madrinha, casai-me com
Pedro Gaiteiro.

Já sou mulherzinha,
já trago sombreiro,
já bailo ao domingo
com as mais no terreiro.

Já não sou Anita,
como era primeiro;
sou a Senhora Ana,
que mora no outeiro.

Nos serões já canto,
nas feiras já feiro,
já não me dá beijos
qualquer passageiro.

Quando levo as patas,
e as deito ao ribeiro,
olho tudo à roda,
de cima do outeiro.

E só se não vejo
ninguém pelo arneiro,
me banho com as patas
ao pé do salgueiro.

Miro-me nas águas,
rostinho trigueiro,
que mata de amores
a muito vaqueiro.

Miro-me, olhos pretos
e um riso fagueiro,
que diz a cantiga
que são cativeiro.

Em tudo, madrinha,
já por derradeiro
me vejo mui outra
da que era primeiro.

O meu gibão largo,
de arminho e cordeiro,
já o dei à neta
do Brás cabaneiro,

Dizendo-lhe: “Toma
gibão, domingueiro,
de ilhoses de prata,
de arminho e cordeiro.

A mim já me aperta,
e a ti te é laceiro;
tu brincas com as outras,
e eu danço em terreiro”.

Já sou mulherzinha,
já trago sombreiro,
já tenho treze anos,
que os fiz por Janeiro.

Já não sou Anita,
sou a Ana do outeiro;
Madrinha, casai-me
com Pedro Gaiteiro.

Não quero o sargento,
que é muito guerreiro,
de barbas mui feras
e olhar sobranceiro.

O mineiro é velho;
não quero o mineiro:
Mais valem treze anos
que todo o dinheiro.

Tampouco me agrado
do pobre moleiro,
que vive na azenha
como um prisioneiro.

Marido pretendo
de humor galhofeiro,
que vive por festas,
que brilhe em terreiro.

Que em ele assomando
com o tamborileiro,
logo se alvorote
o lugar inteiro.

Que todos acorram
por vê-lo primeiro,
e todas perguntem
se ainda é solteiro.

E eu sempre com ele,
romeira e romeiro,
vivendo de bodas,
bailando ao pandeiro.

Ai, vida de gostos!
Ai, céu verdadeiro!
Ai, páscoa florida,
que dura ano inteiro!

Da parte, Madrinha,
de Deus vos requeiro:
Casai-me hoje mesmo com
Pedro Gaiteiro.

 

EPIGRAMAS

I
Amigo, estou tão poeta
que em versos consumo o dia.
Tomara achar um remédio
que me curasse a mania.

Se queres gelar o estro,
isso está na tua mão:
Lê as odes de Filinto
e os sonetos do Garção.

II
Brevemente sai à luz
obra de um gênio distinto:
Uma versão portuguesa
da Opera Omnia  de Filinto.

III
Amigo, tive esta noite
negro, horrível pesadelo;
ainda ao lembrar-me dele
se me arrepia o cabelo.

Deus te livre, e livre a todos,
de sentir o que inda sinto:
Pois não sonhei que me liam
três páginas do Filinto?

IV
Exclamou certo avarento
a um que se ia enforcar:
“– Feliz homem, que três dias
Pôde comer sem gastar!”.

V
André Pinto andar não pode,
manda médico chamar.
Chega o médico... Receita...
E André Pinto põe-se a andar! 



A FONTE FRIA DO BUÇACO
(Ode)

Do cavernoso albergue, ao sol vedado,
sai, de relance ao menos,
ó alva ninfa, solitária e meiga,
da fria e clara fonte!

Quão bela deves ser, se a natureza,
ó náiade escondida,
a urna argêntea em tuas mãos confia
de tão formosas águas!

Ou pela aberta rocha ao menos lança,
a furto, os negros olhos;
e por entre o molhado e verde musgo
transluza o níveo rosto.

Vê com que esmero e pompa a natureza
adorna o teu retiro.
Olha estas grandes árvores, que apenas
sentem do vento os sopros.

Olha a mansa bacia, onde se espraia
tua água transparente.
Farto musgo a atavia, e musgo em torno
gratos assentos forma.

Olha, vê que nem Euros te perturbam
o teu cristal sereno,
nem gado, nem pastor, nem ave ou fera,
nem folha desprendida.

Com que rumor as águas, em saindo
do seu não fundo tanque,
descem, saltando em fugitivo arroio,
pelo teu monte abaixo.

Castas sombras, pacífico retiro
tão velho como os montes,
¿Sabeis que existe um deus com asas de ouro
que os corações inflama?

Não. Jamais entre vós ternos suspiros
que amor arranca aos peitos,
nunca maviosas queixas se escutaram
de corações escravos.

Aqui só reina a paz; vivem com ela
as austeras virtudes:
É destes cumes solitários, tristes,
que o mundo se despreza.

Jamais humana destra em vossos troncos
gravou terna legenda:
Oh! Quem goza do pranto matutino
da aurora, em tais lugares?

¿Quem é que ao pôr-do-sol daqui contemplo
o corado horizonte?
¿Para quem solta o rouxinol em Maio
seus noturnos gorjeios?

¿Quem se aproveita do luar, que deve
as horrorosas sombras
romper aqui e ali nas tardas horas
Da noite sossegada?...

Ninguém. – ¿Por que juntaste estes encantos,
pródiga natureza?
Aqui não vem Glícera, ou Cloe, ou Dafne
toucar-se junto à fonte.

Nunca as graças gentis aqui vagaram;
nunca talvez um vate
se aproveitou dos mágicos
delírios que geram tais lugares.

Tu vives, pois, quieta em teu retiro,
rara vez procurada,
ó alva ninfa, solitária e meiga,
da fria e clara fonte.

Tenhas sempre, nas úmidas cavernas,
de águas alma abundância:
O ardente Junho, o túrbido Janeiro
igual te vejam sempre.

E quando, gasta a rígida cadeia
donde o universo pende,
já sem ordem, sem leis, o velho mundo
cair solto em pedaços,

Então, antes que o caos as dispersas
relíquias engolfado
no horror medonho da segunda noite
houver, salva-te, ó ninfa,

Com teus vassalos, invisíveis gênios;
transporta num momento,
inteiro, este lugar sobre algum monte
do aventurado Elísio.

Por ora, dorme em paz, meia encostada
sobre a urna argentina.
Aqui ninguém teu sono descansado
virá interromper-te.

Só na alta noite alguma vez, já quando
alto silêncio impera,
acordarás ao baque de algum tronco
dos anos carcomido,

Que farto de ver séculos, e curvo
já por mil tempestades,
desarraigado enfim cair no meio
da mata que te cerca.

 

EU, ANTÃO VERÍSSIMO E A MOSCA
(Parábola)

Eu tive um condiscípulo amantíssimo,
que era um santo rapaz e nada cábula,
transmontano, por nome Antão Veríssimo,
e, como eu, estudava para rábula.
Tinha por vil a herdada vida agrícola,
e rindo-se assinava na matrícula.

Sapato engraxadinho e meia fina
substituiu à tamanca costumada;
à véstia de burel capa e batina,
gorro ao grosso chapéu, Pascoais à enxada,
a senhoria ao tu, à broa o trigo…
e um viver novo ao seu viver antigo.

Se o hábito per si fizesse o monge,
sem precisar disposições internas,
se para um coxo em pouco tempo ir longe
lhe bastasse o cuidar que tinha pernas,
sem dúvida seria Antão Veríssimo
estudante, e estudante chapadíssimo.

Como lavrando desbancava a mil,
supôs que estudar leis e segar erva
seria o mesmo, não sabendo o nil
invita dices, faciesve Minerva,
e um cânon do Genuense (que diz muito!):
– Não tentes o que excede o teu bestunto.

Os termos de Pascoal e Cavalário
gastava a procurar o dia inteiro,
no mártir, descosido dicionário;
e à noite decorava ao candeeiro.
Ir à aula, almoçar, jantar, cear
só tinha vago; o mais era estudar.

Dizem que quem porfia mata caça;
julgo provérbio de cabeça tosca.
Vamos à história: um dia, na vidraça,
viu o nosso doutor assuada mosca
esvoaçar, zunir, andar marrando,
passagem pelo vidro procurando.

Pôs de parte um momento a lei mental,
e, com os olhos no inseto, exclama assim:
“¿Oh que teimoso e estúpido animal!
Embora teimes, teimarás sem fim:
Por entre ti e o sol não vês que está
um vidro, que passagem te não dá?

Segue o exemplo das mais, que andam com gosto
a dançar sobre aquele açucareiro;
do amigo que ali dorme chucha o rosto,
depois esmói a andar no travesseiro.
Eu, que dormir fingia, e não dormia,
da tal oferta em troco assim dizia:

Deste à mosca um conselho prudentíssimo;
tão bons os dês tu sempre em sendo rábula!
Mas és qual frei Tomás, Antão Veríssimo,
ou como o homem da tranca na parábola.
Dez vidros furaria esse animal,
antes que entendas uma lei mental.

Entre ti e a ciência há vidros baços;
nem tu, nem cem de ti os romperiam:
Vende o candeeiro, a loba e os calhamaços,
torna-te às terras que batatas criam.
É melhor ser um farto lavrador
do que um mirrado e estúpido doutor.

Manda ao inferno os livros sibilinos,
vem para a cama conversar comigo:
Do Horácio eu falarei, tu de pepinos,
depois eu de Vergílio, e tu de trigo.
Tire das leis com que dar o uso aos queixos
quem pode; e cada qual gire em seus eixos.”

Nesta fábula histórica se íntima
o que ninguém ignora, e não se observa:
A tal sentença velha, obra mui prima
Do “nada faças, se o não quer Minerva”.
Isto é, que um gênio que nasceu de encolhas
não vá meter-se a redator de folhas;

Que um mestre sapateiro, afreguesado,
não vá ser na tragédia ator primeiro,
que em transportes de príncipe ultrajado
ralhará como mestre sapateiro;
quem nasceu para chufas e chalaça
nem epopeias, nem tragédias faça;

Que aquele que nasceu para ladrão
seja ladrão de estrada e não juiz,
procurador, letrado ou escrivão;
que um bode se não meta a ser derviz,
Nem um burro a acadêmico; nem… nem…
Exemplos disto número não têm.

 

O ACALENTAR DA NETA
(Xácara)

Dorme, dorme, minha neta,
senão não sou tua amiga;
dorme que eu te embalo o berço,
e te canto uma cantiga.

Vai a bela Dona Ausenda
caminho de Palestina,
leva traje de romeiro,
com o seu bordão e esclavina.

Dona Ausenda, Dona Ausenda,
em sabendo que és fugida,
tua mãe cairá morta,
e tuas irmãs sem vida.

Pouco importa a Dona Ausenda
quem na Espanha morra ou viva;
vai em busca de sua alma,
que em Palestina é cativa.

De lá lhe vieram cartas,
e uma carta lhe dizia:
“Teu amigo, Dona Ausenda
chora de noite e de dia.

As cadeias não lhe pesam,
pesas-lhe tu, porque cisma
que há de morrer sem mais ver-te,
nem ver-te quer na Mourisma”.

Dorme, dorme, minha neta,
e tu, fuso, fia, fia:
Eu canto à minha candeia,
ao pé da Virgem Maria.

Vendeu joias e arrecadas,
comprou bordão e esclavina,
e trajada de romeiro
já demanda a Palestina.

Vai pedindo pelas portas,
por sóis e chuvas caminha;
trabalhos não a quebrantam,
com eles vai mais asinha.

Uma tarde, era sol posto,
quando avistou uma ermida,
era de Nossa Senhora,
mãe dos homens se apelida.

Dorme, dorme, minha neta,
e tu, fuso, fia, fia:
Eu canto à minha candeia,
mercê da Virgem Maria.

Os socos descalça à porta,
e ajoelha com fé viva,
pedindo-lhe restitua
sua alma que jaz cativa.

Os olhos da Virgem Santa
deram mostras de afligida:
Ergueu-se um vento na serra
que toda tremeu a ermida.

Coitada de Dona Ausenda,
mais triste sai do que vinha:
Cerrou-se-lhe logo a noite;
¡E ela nos bosques sozinha!

Queria andar, e não pôde,
que o grande escuro a tolhia;
necessitava encostar-se,
tinha medo, e não dormia.

Numa raiz pousa a face,
o corpo em folhas reclina,
com suas penas conversa,
coitada da peregrina!

Perdi a terra e o palácio,
perdi a mãe que lá tinha,
perco-me agora a mim mesma
e o que procurando vinha.

D. Giraldo, D. Giraldo,
só a fé não é perdida,
pois tu sabes que eu te adoro,
e eu sei como sou querida.

Peço ao meu anjo da guarda,
se hei de aqui ficar perdida,
que vá levar-te por sonhos
esta minha despedida.

Assim dizia a formosa
Dona Ausenda de Molina,
e ao dizer anjo da guarda
lembrou-lhe a irmã pequenina.

Dorme, dorme, minha neta,
e tu, fuso, fia, fia:
Eu canto à minha candeia,
e sou da Virgem Maria.

Então dos olhos cansados
lhe borbotou a dor viva,
e ouviu folhas abanadas,
e viu uma luz esquiva.

Logo para aquela parte,
porque o pavor a conquista,
em joelhos, com mãos postas,
de relance estende a vista.

E viu uma sombra grande,
que mui devagar caminha;
quis rezar, benzeu-se errado,
não deu com a salve-rainha.

Dorme, dorme, minha neta,
e tu, fuso, fia, fia:
Eu canto à minha candeia,
guarda-me a Virgem Maria.

O andar do fantasma branco
nenhum ruído fazia;
parou, e pôs nela os olhos,
mas eram terra, não via.

Estendeu-lhe os braços longos,
e com uma voz, como brisa,
lhe diz: “Eu sou D. Giraldo,
que em mim já se não divisa.

Tu buscavas o cativo,
eu procuro a peregrina,
tua alma quer Deus que esteja
com o meu corpo em Palestina.

Os nossos anjos da guarda
deram palavra sem língua,
que à meia-noite aqui mesmo
findaria a nossa míngua.

Deus, à alma envia um corpo,
e ao corpo uma alma envia...”
Já estas finais palavras
Dona Ausenda não ouvia.

Dorme, dorme, minha neta,
e tu, fuso, fia, fia;
que eu canto ao pé da candeia,
que acendo à Virgem Maria.

Tinha dado a meia-noite,
e Dona Ausenda caíra:
Ai! Jaz morta a Dona Ausenda,
que tantas penas sentira!

¿Quem há de enterrar seu corpo
nessa noite desabrida,
ou quem aos pés da Senhora
a irá sepultar na ermida?

E a alma de D. Giraldo,
que tão solitária fica,
não terá padre que reze
o que por almas se aplica!

Mas nunca mais na floresta
nenhuma coisa foi vista:
Os que o sítio têm buscado
nunca lhe acharam a pista.

Dorme, dorme, minha neta,
e tu, fuso, fia, fia:
Eu canto à minha candeia,
e rezo à Virgem Maria.
……………………………

 

A NOITE DO CASTELO
(Poema romântico em quatro cantos)

CANTO I
Todo por dentro e fora iluminado
o Castelo feudal pernoita em festa,
na margem negra do espaçoso lago.
Inda corcéis, de nítidos jaezes,
contra o vasto clarão trotam rinchando
dos longes do arredor; já muitos pascem
aos grossos troncos presos. Voam velas
de toda a parte demandando a praia;
e dos toldos as lâmpadas pendentes
mostram senhores, cavaleiros, damas,
em que o ouro reluz por entre as cores.

Pelas francas janelas se difundem
na alvoroçada noite os sons que alegram
os góticos salões.

A filha do Conde Orlando, a formosíssima Inês, festejava os seus vinte anos. Estava noiva de Adolfo, trovador e cavaleiro, que canta louvores à sua amada. Entra, nos vastos salões, misterioso cavaleiro, envergando negra armadura.

Como Adolfo cantava, o reposteiro
de um canto se ergue; avista-se na porta
o cavaleiro incógnito, suspenso.
Uns o observam sorrindo, outros curiosos.
A viseira, inda baixa, estranham todos;
seu nome, ou de onde vem, ninguém conhece.
A estatura soberba, o saio negro,
o morrião, a negra cor das plumas,
nenhum se acorda de os jamais ter visto.
Não saúda a ninguém; entra, e se encosta
à primeira coluna, de onde fita
na dama e trovador o aspecto imóvel.

Por cima da cabeça, esguia tocha
luz lhe verte agoireira. Ou fosse acaso,
ou mistério de Cima, apenas o ombro
tocou de leve o mármore, soltou-se
com a flórea coroa, ao capitel cingida,
o festão da coluna, e debruçado
mais de meio com as trêmulas folhagens.
desce a lamber, ondeando, o pavimento.

Um murmurinho, um movimento inquieto,
reinam pela assembleia. – “Talvez seja
um morador das praias estrangeiras,
que ignora os usos; ou será promessa
que fez, de ir-se encoberto até vingar-se
ou vingar sua dama; ou, porventura,
é esse algum senhor da vizinhança,
a quem por brinco máscarar-se aprouve”.
Tais em praça apinhada as conjecturas
fervem várias, à hora em que rutila
cometa de ígneo sangue em céu profundo.

Prossegue animada a festa, depois do altivo e enamorado canto do feliz barão. Brindam os convivas pela felicidade do gracioso par.

Para a geral saúde já circula
encanecido vinho, em fundos vasos.
Ninguém se escusa ao brinde. Ao cavaleiro
chegou a sua vez: – “Só bebo sangue” –
disse, enjeitando a taça; e mais não disse.
Esta voz, que só próximos lhe ouviram,
pareceu vir dos íntimos do peito,
sepulcral no soído e em tom profeta,
mas penosa, mas débil, semelhante
ao da brisa autunal murmúrio escasso
na folha morta que tapiza as campas.
Se ao fantasma de um bárbaro assassino
desse Deus que falasse, assim falara.

Rompem o baile, anunciado pelo alaúde de um menestrel, Inês e Adolfo. Tumultuam os nobres pelas vastas salas. Subitamente, ouvem-se os dobres dos sinos do castelo, tocando a finados. Um frio glacial perpassa pela multidão estarrecida. Procuram, com a vista, o Cavaleiro Negro. Desaparecera. Correm à torre e à capela.

– “Se alguém duvida,
pode ir vê-lo, como eu vi claramente
(a lâmpada do altar está bem viva):
Um guerreiro está curvo sobre a cova,
com o capacete (e, por sinal, dourado,
que luz como uma estrela) a cavar fundo;
para quem, não sei eu. No meu relance
não vi lá mais ninguém, nem sei mais nada”.

Tal o relato feito por um apavorado pajem. Abandonam os convivas o Castelo. O Conde Orlando, só no deserto castelo, procura saber do fâmulo se a figura do cavaleiro, por ele entrevista, se assemelhara à de seu sobrinho Henrique, morto em combate heroico, na Terra Santa.


CANTO II
Acalma-se o pavor dos nobres e das damas que  vagueavam pelos imensos jardins do castelo.

Adolfo audaz, o temerário Adolfo,
encomendada aos mais de Inês a guarda,
tinha-se ido, sem luz, sem companheiro,
contra a capela gótica, rondá-la,
e profundar o arcano. Ao perto, ao longe,
tudo correu, sondou; sossego é tudo;
não se escuta alma viva; o templo, a torre,
tácitos dormem; jaz fechada a porta,
negro o recinto, a alâmpada sem lume.
Volta portanto; e à turba que o rodeia
a boa nova dá, tão fero em vozes,
tão seguro de si, que estas certezas
embebidas os ânimos afagam;
mormente a Inês, que, mais afoita agora,
pelo braço fiel do esposo invicto,
já sofre no arvoredo extraviar-se.

Segue o enamorado par pelas áleas do bosque. Adolfo, desvairado pela paixão, suplica um beijo à sua amada. Surge, subitamente, o Cavaleiro Negro. Enquanto Inês cai desmaiada, trava-se cruento combate entre os dois. Atraídos pelo tilintar das armas, acorrem de toda a parte, batendo o bosque. Encontram, por fim, Adolfo moribundo. Inês desaparecera. Descobrem-na mais além. Recolhem-na ao Castelo. Mentem-lhe, dizendo ter partido Adolfo para junto de seu pai que se encontraria às portas da morte. Incrédula e apavorada, atribui Inês as desgraças recentes a ter quebrado a jura de amor feita a seu primeiro noivo, a Henrique.

– O que há cá dentro...
Não to sei eu pintar. Amei Henrique,
com a abundância, o êxtase, o delírio
de um virgem coração, imenso e ardente,
que há muito sonha um anjo, acorda, e o acha.
Nele encontrei, confesso, iguais extremos.
Filhos de irmãos, e quase irmãos na idade,
na educação, em hábitos, em gostos,
juramos mutuamente amor eterno,
sem restrições, sem cláusulas; juramos
até viver leais um do outro às cinzas.
............................................................

Ao partir para a guerra, no amargoso
do último abraço, em lágrimas regando e
u seu peito de ferro ele o meu seio,
renovamos solene o antigo voto.
Vês este relicário, o companheiro
do coração materno em toda a vida,
e por ela ao morrer a mim legado, e doce escudo
meu vedado aos olhos?
Pois sobre ele, um e outro os lábios pondo,
tornamos a firmar inteira, inteira,
por vezes três a sacrossanto jura.
O Céu, a terra, o inferno, em testemunhas
e em vingadores deprecamos; fez-se voto
(ai de mim!) que de entre nós o morto,
traído em seu amor, perseguiria
no mundo e eternidade o vivo ingrato.
Partiu. Ficou vazio este castelo,
e eu sem tino, sem luz, só corpo errante,
cuja mente vagava estranhos climas.

Exprime Inês o singular sentimento de amar simultaneamente Henrique e Adolfo. Entretanto, levanta-se medonho temporal. Soam três horas. Eis que se ouvem gritos aflitivos. Uma barca temerária dera sobre os rochedos, e afundava-se.

CANTO III
Aparece Henrique à sua antiga noiva. Exproba-lhe a traição de se ter apaixonado por Adolfo, e de o ter esquecido.

Inês!... Foi na minha alma a tua ideia
a maior do Universo; obter-te esposa
julgava-o de entre os bens o bem supremo.
Vi meus anos em flor, meu braço em ócio;
é nulo herdado lustre onde outros faltam;
honra de meus avós não supre à minha.
Corei, e disse em mim: “Fugir-lhe ousemos;
e, para a merecer, corra-se às armas”.
Sede de glória tua arremessou-me,
com teu nome na boca, e a lança em punho,
no primeiro combate ao mais aceso
do revolto brigar; voei ceifando
entre searas de inimigos ferros.
Quebrada a lança, o meu cavalo em terra,
partida a espada, um número sem conto
me cercou, me prendeu, lavado em sangue;
ia por minhas mãos troncar meus dias...
Lembrou-me Inês, vivi. Meus pés rojaram
desprezados grilhões; dormi na terra;
comi o pão da dor; sofri o insulto.
De um bárbaro senhor tornado escravo,
perdi o último bem do cativeiro:
o prazer de falar, em terra estranha,
a própria língua a sócios no infortúnio.
Resisti. Uma esperança, não a esperança
da Pátria, mas de Inês, me segurava
no mar da horrenda vida âncora extrema.
Via-te a cada passo e em cada objeto:
Era uma rosa? As rosas lhe são gratas.
Mar ao longe? Era o lago do castelo.
Na viração do ocaso, a voz te ouvia;
na lua, os nossos olhos se encontravam.
Se em longo, denso véu, sumido o rosto,
iam airosas Turcas, a saudade
lhes prestava o teu nome e teus encantos.
Tu, só, me povoavas o Universo”.

Leonor, a serva fiel de Inês, defende-a das acusações de Henrique. Relata-lhe as buscas infrutíferas. O luto de sua ama quando lhe trouxeram a nova de ele ter perecido na Terra Santa.

CANTO IV
Vagueia Henrique, lastimando o seu destino. Hesita entre os votos de vingança e o seu amor por Inês. Volta ao quarto da castelã. Esta, porque ignora ainda a morte de Adolfo, propõe-lhe abandonar o Mundo, recolhendo à clausura de um convento. Concorda Henrique com a deliberação, e ambos se encaminham para os aposentos do Conde Orlando, a fim de lhe comunicarem a sua resolução. Este não se encontra já no castelo, mas sim no templo. Clama Inês vingança contra o assassino de Adolfo, que jaz num féretro, iluminado por tocheiras. Tresloucado, Henrique atravessa o peito da sua amada com aguçado punhal. O Conde Orlando abandona para sempre o castelo com toda a famulagem.

... Silêncio,
solidão e terror vão de ora avante
ser da ponte, em vão baixa, e abertas portas
únicas invisíveis sentinelas.
Do cão noturno o atroador latido
não irá mais nas salas espaçosas
acordar um só eco. Esse relógio,
que inda numera as horas da viagem,
vai deixar livre o tempo, que adormeça
sobre o alto cume das marmóreas pompas,
que o peso estragador lhe irão sentindo.
Da antiga, ilustre, extinta dinastia
a residência inteira se abandona
aos pássaros da noite, às plantas bravas.
.............................................................................

O que foi certo,
foi que todo esse outono, e todo o inverno,
se via divagar, nas horas mortas,
uma luz no castelo. O conde e os servos
tremendo a olhavam da fronteira riba;
das aldeias do monte os moradores
deram a mesma fé. Correu boato
que era a sombra de Inês ou que era Henrique,
vivo ou morto, que uivava no castelo.
Contava-se também que uns ais soavam
na galeria e templo.
..........................................................................

 

OS CIÚMES DO BARDO
(Poema romântico)

– “Soltemos esta barca. Ao lago, amigos,
ao lago, e breve”. Assim dizia o bardo,
do manto escuro sacudindo a chuva.
Os pescadores, no rochedo imóveis,
o escutavam, sorrindo. O pego escuro
começava a bramir, troando os ventos.
Negro era o céu, e próxima a borrasca.

– “Ao que ousar dar à vela!”. E nisto à areia
manto, bolsa, arrojou; e após instantes,
com mais afoita mão, retrato de ouro
de formosura estranha. – “Ao lago, amigo,
ao lago!” – Afasta-me da terra.
Abre a vela aos tufões. O resto... à sorte”.

– “Vê! Quão sinistro o sol transluz no acaso!
Do sul a escuridão! O horror das vagas!
Cantor, não se resiste a iguais tormentas”.
– “Velho, dás nímio apreço ao ar da vida.
Morrer aqui, além, agora ou logo...
Que importa? É sempre um sonho esta existência,
um sonho horrível que se esvai na morte.
Tu, que dos anos teus colheste à farta
flor e fruto, hoje o resto de teus anos,
espinhos só, com tanto amor afagas?

No mundo envelhecer, e amar o mundo!...
Delírios vãos, delírios vãos dos homens!”
“Mas, Bardo, e a terna esposa e os filhos tenros?
Virem por mim, adoram-me, sou deles”.
Nos lábios do mancebo, a tais palavras,
luziu fugaz, irônico sorriso.
Após silêncio curto alevantou-se,
e abrindo todo o pano aos ventos bravos:

– “Podes nadar, quando o baixel se afunde,
volver à praia, à esposa, aos filhos. Toma
o timão, volve o leme, evita as rochas:
Morte, que odeias tanto, ali referve,
em vagas doidas, hórrida, espumando
do relâmpago etéreo à luz medonha.

E, enquanto o frágil barquinho vai seguindo ao violento sabor da tempestade, o Bardo lamenta-se, jura tirar vingança daquela que o atraiçoara.

“Mulher, quanto eu te amei, quanto hás perdido,
não sabias tu, nem o eu sabia!
Veio a voz do teu crime revelar-mo:
era amor, qual meu ódio, amor sem termo.

Sim, nesta hora solene inda o confesso,
qual mil vezes mo ouviste inda mo ouviras,
e houvera, em repetir-to, acerbo gosto:
meus primeiros, meus únicos amores,
tu, tu foste, só tu; mudada a essência,
pensamento, querer, memória, vida,
tudo em mim foi paixão, ternura, incêndio.
Menor quinhão que o teu nesta alma tinha
eu mesmo, o mundo inteiro, o Deus que o rege.
Vê se eu te amei ou não! Guarda-os na mente;
merecem plena fé tais votos de hoje;
guarda-os na mente, e morrerei vingado.
Deus, Deus, aceito o cálix do infortúnio,
bem que amargoso e transbordando o encheste.
Castiga meus sacrílegos afetos:
dei à perversa amor que te bastara,
ultrajei-te. Mas ela! Ela oprimir-me!
Que lhe fiz eu, senão amá-la, e muito?”.

Continua, como num delírio, acusando a ingratidão da que o houvera desprezado: lança impropérios, insultos, blasfêmias...

“Ancião, coroam-te as cãs; essa a grinalda
de que orna o tempo as vítimas da morte.
Vão meus anos crescentes, imaturos,
e eu morro ao meio-dia da existência.
E tu cá ficas, nos serões de inverno,
do pobre bardo o fim narrando aos filhos.

Cedo bata essa hora, aos mais tão negra.
Enchi em curta idade e instantes poucos
longa vida de amor, mais longa em penas.

Quem soubera dos túmulos o arcano!
Se além desta, outra vida nos aguarda
(e aguarda; igual paixão morrer não pode!),
se, livres deste invólucro terrestre,
de puros ares habitantes puros,
pode a justa vingança inda abrasar-nos,
e o que o vivo sofreu puni-lo o morto,
juro vir cada noite, às mesmas horas,
fantasma nebuloso, envolto em nuvens,
pairar da infame pelo céu turvado.
Se uma janela abrir, ver-me-á fronteiro,
encostado sobre a harpa vaporosa,
mudo, choroso. Se vagar na selva,
sobre a relva serei. Se a vir sozinha,
ajoelharei, e as mãos alevantando
perdão para a infiel aos céus suplico.
Mas, se outrem a acompanha, a afaga, a amima,
se lhe diz: “Vãs imagens não te assustem,
nuvens são, vêm com o vento, o vento as leva!”,
se lhe fala de amor, se ousa um suspiro, ai deles! ai!
............................................................................
Aqui, tremendo, o velho
ia do bardo interromper os sonhos.
O bardo o pressentiu. – “Cala-te, e dorme”
– lhe disse. “É tarde; tudo jaz em calma;
todo o céu vai já limpo; eu velo a barca;
tu ferra a vela, e dorme com descanso.
Adeus”. Reina o silêncio. Ouve-se apenas
da proa na caverna o ancião dormindo.
.........................................................................
No outro dia, ao sol fora, os pescadores
viram volver o lenho aventureiro.
Um só vem dentro. Em que rochedo ou praia
ficou o jovem bardo? O velho o ignora
Ninguém o sabe; o lago o sabe, e é mudo.

Alguns dias depois, entre uns penedos,
se encontrou a boiar, já pasto aos corvos,
um corpo morto. Se o cantor esse era,
ninguém pôde afirmá-lo. Alguns o creram,
mas nem feições nem vestes lhe restavam.
Se há prova, jaz no pélago do fundo.



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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

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