3/07/2023

Poesia reunida (Poemas), de Camilo Castelo Branco


POESIA REUNIDA



POEMAS

I
Soledade, triste amiga,
vim buscar nos teus afagos
suavidade à minha cruz;
dá-me aqueles sonhos vagos,
aquelas crenças ditosas
em que a alma folga, e espera,
paz e amor, esperança e luz.

Paz! se o mundo bem soubera
a que bens ela conduz!...
Amor!... aspiração, glória,
que dilata o coração!
Esperança!... luz transitória,
que nos mostra, a furto, o céu!...

Luz ideal de tantas cores,
refletida em tantas flores,
grinaldas de anjos, e amores,
mil poemas, num instante,
abrangendo o infindo espaço
daquelas mágoas de Tasso,
das fantasias de Dante!

Solidão! grato remanso,
onde eu vim do mar irado,
como náufrago, cansado,
recostar-me em teu abrigo,
ai! não digas teu segredo
aos que sofrem. Neste mundo,
neste inóspito degredo,
quem não sofre? Tenho medo,
que te amem quanto eu amo,
que me roubem teu carinho!
Sê tu minha; que eu, sozinho,
como a ave, que além canta,
dou-te um altar no coração;
cantarei na harpa santa,
ao Senhor votada, o hino,
que me influis, ó solidão!

Sinto ainda enlevos de alma
que pensei já não sentia.
Vivo ainda; arfam-me o seio
enlevos de alta poesia.
Vai-se-me a vista alheada
por cerúleos horizontes;
diviso imagens celestes,
quando o murmúrio das fontes,
que, Senhor, às várzeas destes,
não sei que falas murmura...
Tristes... sim; mas que doçura
nesta sombria tristeza!...
Perde-se alma, de encantada,
nesses silêncios, quebrados
pelos cantos afinados
na lira de anjos aéreos;
vai a alma onde os mistérios
do sentimento se escondem.

Esses, do mundo que sondem
os mil segredos daqui...
Não sabem, não, que delícias
Deus reserva aos desgraçados,
se lhes dá ermos e prados
a vicejar e florir,
a noite e o luar, e a fonte,
selva escura e horizonte
que ensina a amar e sentir.

Não peço gozos ao mundo,
não perturbo o seu festim;
dei-lhe da alma um tesouro
de ilusões, que mundos de ouro
já não podem dar-me a mim.
Em recompensa, se posso
pedir pobre galardão,
deem-me gozo inocente,
que não valha a inveja ardente
dalguma estranha ambição.
Deixem-me o ermo, e as galas,
que não têm valor nas salas,
onde a, ventura delira;
deixem-me o céu e as estrelas,
e do Estio as noites belas,
quando a saudade suspira.
Deixem-me as tardes saudosas,
em que as auras sonorosas
são como a dor que respira.
Deixem-me esta fé que sinto
renascer dum ponto extinto...
Deixem-me a crença e a lira.

Aqui, desdobram-se as cenas
da longa vida do homem,
que folgar-se pode, um instante,
do combate excruciante
de paixões contrariadas.
Veem-se os quadros diversos
no pó das crenças dispersos,
crenças perdidas... choradas!
Lembram-me instantes ditosos,
precursores do tormento,
que instilara o desalento,
em peçonha ao coração.
Mas que saudosas quimeras
me reluz a fantasia!
E que instantânea alegria
me não abre esta ilusão!

Lá vêm as sombras malditas
que o meu passado escurecem...
Embora venham, que ao menos,
as fibras de alma estremecem...
É que as paixões, os venenos
que eu traguei quando as senti,
laceraram-me entre angústias
de infernado frenesi.

Flores, vós éreis o encanto
dos meus anelos de infância
como o símbolo adorado
de alto amor predestinado.
Horas e horas de enlevo,
horas de amor esquecidas,
a namorar-vos passei.
Eu tinha uma, que amei,
rosa de folhas tingidas
pelo nácar do pudor.
Era minha, e não viessem
disputar-me a pobre flor...
Choraria, se quisessem,
mas perdê-la...

Ai!... que eu perdi-a!...
do nordeste o sopro, um dia,
perpassou por ela, e a triste,
pálida já dos ardores,
nem já linda era nas cores,
nem, por meu pranto, regada,
erguera a fronte queimada,
nem, por meus lábios aquecida,
sentira o éter da vida...
Morreu!... de rojo, levou-ma
vento do inferno, e não sei,
se outra mais bela, tão bela,
como foi gentil aquela,
neste mundo encontrarei!...

Rosa de amor, e do pranto,
por quem senti viva ânsia,
flor, tu eras o encanto
dos meus anelos de infância!

Os anjos amam as flores.
Na terra um anjo vivia:
era mulher pelas dores,
que, fundas n’alma, sentia,
no mais, não era, não tinha
neste mundo coisa sua.
Mistérios de alma sabia
decifrá-los nas estrelas,
e na solitária Lua.
Sempre extática, sorria,
quando um querubim de sonhos
dentre nuvens luminosas
com grinaldas lhe acenava.
Eram momentos risonhos;
mas as noites tormentosas
da vida dela!... que vida!...
Eu vi-a quase transida
naquela peleja cruel.
O cálice intransitivo
não tinha gota de fel.
Na fronte úmida do transe
resplendia luz do empíreo,
luz divina do laurel,
prêmio e pompa do martírio.
E nas mãos lívidas,
alvas uma camélia sustinha.
Poucas lágrimas chorava,
que poucas lágrimas tinha...
E as extremas derramou-as,
horas antes da agonia,
nas caras flores... Deixou-as,
quando o espírito expedia.
A mão, que os olhos cerrara
à mártir desconhecida,
nas mãos dela entrelaçara
as confidentes da vida,
as suas queridas flores,
os seus primeiros amores,
e derradeiros também.

Nem as lágrimas de mãe
quebram os selos da lousa?...

Oh, tão ditosa, repousa!
Começas hoje a viver...
Onde estás? a qual estrela
te subiu a tua cruz?
Na terra chamei-te bela,
No céu és anjo de luz.
E aqueles sons divinos
dos teus angélicos hinos,
que santificavam a dor?
Esses são da terra ainda.
Voejaste, ó pomba linda;
mas deixaste aqui algumas
daquelas argênteas plumas
das asas do teu amor.

Flor, tu eras o encanto
dos meus anelos de infância!
O teu prestígio era santo
para mim, que via o imenso
no mar, no bosque, nos céus.
E eu eras, flor, o incenso,
perfumando, em mãos sem mancha,
a majestade de Deus.
Alvas roupagens vestia
o meu lírio, cor do arcanjo
das singelas poesias.
Hoje, sim, vejo quão doce
e arroubada fantasia
Deus concede à inocência!
Ai! venturosa demência
a dos meus sonhos pueris!
Coisas, que eu via nas flores,
fadas, arcanjos, e amores,
o homem feito não diz!
Nesta idade, o lírio é pálido,
veste da cor da tristeza;
não podem olhos que choram
ver as galas que decoram
a formosa natureza.

A arte mata a poesia;
a razão mata a inocência;
a luz que o prisma alumia,
no viço de alma infantil,
é clarão de instantes breves,
como a flor dum dia só:
de manhã, galas de Abril,
e a noite, murcha no pó!

Este amor da minha infância
profetava o mau destino
das almas apaixonadas.
Primeiras notas do hino
de tristes notas choradas,
aquele amor eram dores
pressagas disto que sou;
era a previsão do abismo
onde maniatado vou.
Era, em lábios de criança,
balbuciante expressão;
era o sorrir de esperança,
desmentido pelo pranto
da esvaecida ilusão.
Era tudo... ou era nada...
Era a flor, o mago encanto
dos meus anelos de infância.
Era aquela infantil ânsia
de esposar, numa afeição,
tudo que é belo, que é santo,
tudo que é luz radiosa,
e exalta a alma ansiosa
no arroubo da aspiração.

Saudade meiga, transporta
a pobre alma abatida
aos jardins, que a minha vida
perfumaram de ilusões.
Dá-me instantes de inocência,
tão rica alfaia perdida!
Que eu dispa as honras falazes
desta mentida ciência,
filha dos gelos eternos
da álgida e torva razão.
Dá-me os dislates da infância,
dou-te por eles as pompas
desta vaidosa ambição,
que rasga o véu dos mistérios,
sonda os abismos aéreos,
abre as entranhas da terra,
como quem abre um sepulcro,
onde sepulta a ilusão.

II
Bem hajas, melancolia!...
Envolve a harpa das dores
com teu crepe funeral.
Fora perdida a alegria,
Mentira inútil no rosto,
quando o peito vara o gume
de infame e ervado punhal.
Nem o lívido desgosto
dum sorriso se irradia,
sem que o aspecto da desgraça
se transverta em ironia.

Vem, amiga! tens doçuras
no teu fel; é de ouro a taça
em que dás o teu veneno.
Voluntário, me condeno
a ser teu. Em ti, tristeza,
como num crisol de dores,
perde a alma a impureza
dos regalos sedutores.
É que a dor nos aproxima
da justiça onipotente,
como quem envia acima,
ao trono da divindade,
os clamores da orfandade,
desamparada indigente.

Mãe, eu era inda criança,
já te não vi: morta eras!
buscou-te amor, e esperança,
e o coração que me deras.
Com que fé eu te pedia
um carinho maternal,
pois, na terra, eu não sabia
quanto um doce afago vale!
E eram mudas as estrelas,
mudo o altar e a solidão;
mas eu tinha imagens belas,
tão formosas... mais que elas,
no meu céu do coração.
Essas, sim, diziam muito,
em teu nome... Adivinhei
os prantos que tu choraste,
pelos prantos que chorei.
Delas soube o longo drama
da tua breve existência.
Vi que intensa fora a flama
que queimou tua inocência.
Vi o ecúleo de tormentos,
que teus lábios macilentos
oscularam, na agonia.
Vi desses lábios o fogo,
senti-lo pude, também,
sobre meus lábios, na hora,
em que a morte se demora,
respeitando a dor de mãe.

Descei dos olhos meus, lágrimas tristes;
se o árido infortúnio o pranto enxuga,
foi grande a angústia, e a filial saudade,
que o pranto me esmolou.
Deixai-me ver, Senhor, a imagem dela,
que o sangue, derramado em seu caminho,
eu pude ainda ver, como um vestígio
da mártir que passou.

Descei dos olhos meus, lágrimas tristes!
perdi o amparo, o amor, e o pão da alma;
deixei meu coração, livre, sem guia,
os abismos sondar.

Nas horas lancinantes do remorso,
à beira de fatais desfiladeiros,
pedi ao céu que a mão da mãe finada
descesse a me salvar.

Descei dos olhos meus, lágrimas tristes!
Ferventes orações meus lábios mandem
ao trono do meu Deus, onde o martírio
recebe galardão.
Meu anjo valedor, mãe, se me escutas,
se, espírito invisível, vens, no ermo,
o pranto abençoar do pobre filho,
ai! dá-me um coração!

Descei dos olhos meus, lágrimas tristes!
Sem ti, pomba de amor, não sei librar-me
nos espaços da fé, onde a virtude
exalça os voos seus.
Ai! dá-me um coração! lava-lhe as nódoas,
desata-lhe as algemas, que o prendem
às baixezas da terra, que não pode
servir o mundo e Deus!

Eu vi os lúcidos raios
da minha aurora de amor,
quando apenas concebia
neste mundo uma só dor.
A orfandade julguei-a
a desventura suprema,
quando vi solver a morte
o insondável problema
desta existência dum dia.
Férvidas crenças sentia,
quando ao silêncio das campas
meu destino interrogava.
O cipreste murmurava
lúgubres sons dum gemido,
que me deixava transido
de pavor sagrado e estranho.
Já me disseram que a morte
interpõe imenso espaço
entre filho e mãe, partindo
deste amor imenso o laço.
A Ciência o diz! Ciência!
manto de ouropéis bordado,
dourada joia do orgulho,
não dás nada ao desgraçado!
Pões em gélida indigência
o coração, despojado
dos crentes dons da inocência!

Vi dilucidar-se a alva
da minha aurora de amor,
quando uns dobres a finados
me coavam frio horror.
Incendida em viva frágua,
ansiava afetos minh’alma
como a gazela sedenta arde,
e anseia gota de água.

Só no mundo! A consciência,
vigilante, noite e dia,
acordada desmentia
áureos sonhos de inocência.
E foi ela, que tão cedo,
ensinando-me o segredo
dos tesouros da paixão,
me acendeu no pensamento,
o precoce sentimento
que insinua ao coração
venenos que lhe consomem
o melhor sangue. Depois,
a criança, feita homem,
pela desgraça, aspirava
sensações intempestivas.
E, sozinha, ela anelava
abrasar-se em chamas vivas,
embora fossem do gládio
do arcanjo do Senhor,
que defende o paraíso...
Mais que o anjo pode o amor.

Vi dilucidar-se a alva
da minha aurora de amor.
O meu ar fez-se um pó de ouro
em que cintilavam lumes,
como espíritos e numes,
que velavam o tesouro
daquela imagem, tão minha!
E ela passava, rainha
daquele mundo infinito,
que na fantasia eu tinha.
E eu, desde a terra, proscrito,
lhe mendigava uma estrela,
onde, humilde escravo dela,
espirasse o ar e a vida,
dum mundo todo ideal.

À noite, à beira do Tejo,
no esplêndido cristal
daquelas ondas dormentes,
pascia a vista encantada
pela visão, que não via.
Suspensa a alma, alheada,
no alvoroço da alegria,
não sei que místicas vozes
de eólias harpas ouvia.

Amélia, a filha dos sonhos,
a rival dos anjos, vinha
povoando aqueles mundos
para mim, que mundos tinha,
no coração, para dar-lhos,
e não ousava ofertar-lhos,
nem como escravo humilhado,
nem como rei de mil tronos
no coração escondidos,
conquistados pelo gênio,
só ao gênio concedidos.

Como aquele amor nascera,
tenho uma vaga lembrança...
Da Lua um raio descera,
e, de improviso, ilumina
as feições emaciadas
dum anjo que, por magia,
suas asas convertia
nas cabaias alvejantes
com que, virgem, se vestia.
Que mulher, Deus, que mulher!
Moça, tão moça, e menina,
os seus segredos, se os tinha,
nem a arte os adivinha
quando sondá-los quiser.
Mas a tristeza!... o que era
aquela nuvem sombria,
triste presságio de dores,
que esmaiava o Sol, e as flores
da tão linda Primavera?!
Órfã não é... que eu sei bem
aquela dor... se ela a tem,
adivinhar e sentir.
Amimada e estremecida
da mais carinhosa mãe;
das mais crianças inveja;
Farta dos gozos da vida,
que o ouro a frouxo lhe dá...
se aquela alma deseja,
que desejos sentirá?!

Amor! impulso vibrado
pela mão, que rege o espaço,
e marcou ao sol um traço,
como às leis do coração!
Amor! inteira existência,
sol da alma, que termina,
breve, a noite da inocência!
Amor! sorriso dos anjos,
que vem no berço sorrir,
e sobre a campa chorar!
Amor! ditosa tristeza
númen santo, cuja palma
é a própria dor da alma,
consagrada ao seu martírio!
Amor! enlevo, delírio
que dás alma e harmonia
aos transportes da poesia,
que perfuma terra e céus!
Amor! cintila de Deus,
que prende o homem, restrito
na estreiteza dos gozos,
às regiões do infinito!
Amor!...

Amélia, esqueceste
aquelas noites do Tejo,
quando vinha dar-te um beijo
a brisa, que te dizia
o que não dizia o pejo?
Em redor de nós viviam
vida diversa da nossa
teus irmãos e mãe, que viam
em nosso amor um gracejo.
É que não viam no espaço,
onde a poesia flutua,
duas almas num desejo,
presas por íntimo laço,
aos raios de ouro da Lua.
Para eles a tristeza
desses momentos ditosos,
e de teus olhos formosos
a pupila, úmida sempre,
era a índole mimosa
de mimosa compleição;
era a infância acarinhada,
contristada, sem razão;
era um enfado sem causa,
sensação indefinível,
excesso de alma sensível,
mas, amor... ai! tanto não!
E quem diria, querida,
na manhã de minha vida,
quem diria os mil poemas
nas alvoradas da infância
daquela extática ânsia?
Se nos vissem sós... recordas?...
Naqueles dias tão breves,
em que te eu disse... que disse?...
Palavras, não, que não pude,
por mais que à alma pedisse,
dizer que era então amar-te!
Ai! que mistério profundo,
naquele erguer-me tão alto
das coisas baixas do mundo!

Onde existes, vago mito
daquele culto sagrado?
Busca-te a alma ansiosa,
e não te encontra, ó formosa
sombra do amor infinito!
Amélia, sonho, acordado
pela desgraça estrondosa,
não sei se vives... Perdi-te
quando a mão impetuosa
da desventura imperiosa
longe de ti me levou.

Das cismadoras montanhas,
nos crepúsculos de Agosto
que saudades tamanhas
te mandei, chorando, Amélia,
pela andorinha, ao sol posto,
quando a via volitando
e altos cerros transmontando
para os céus que eram os teus!...
De cá, saudei-te nas auras,
que teu nome murmuravam;
mas estas auras não eram
as que, no Tejo, beijavam
teus lábios virgens dum beijo.
Além, num trono de nuvens,
inda, qual eras, te vejo
pelo prisma da saudade.
Tens na fronte um diadema,
anjos te entrançam capelas,
a teus pés fulgem estrelas,
és divindade...

Que importa
a fantasia risonha,
que o pincel da ardente alma
traçou nos céus para ti?
Quem me diz que não és morta?
foi a desgraça, a vergonha?

III
Vivi por agras montanhas
onde a torva natureza
não tem galas nem poesia;
onde é triste a Primavera,
sem aromas nem verdores;
onde o sol calcina a rocha
e não deixa ao prado flores;
onde o Inverno se contorce
em vulcões de ventania,
e, ruindo sobre a espalda
daquelas serras cinzentas
onde a custo alveja o dia,
com bramido pavoroso,
gênio infernal das tormentas.

Dei uns longes da agonia
da terra ao nada volvida.
E vim das margens do Tejo
na aurora da minha vida
desterrado para ali.
Pela desgraça proscrito,
deram-me um solo maldito,
onde o amor santo e infinito
da minha infância chorei.
Em temos anos, ao peso
da vida ingrata verguei.
Olhei, com ira e desprezo,
esta providência oculta
que a blasfema piedade
piedosamente insulta,
quando diz ao inocente,
sem mancha na sua vida,
que a desgraça é providente,
da Providência nascida!...
.........................................

Quando, eu, tão triste, buscava,
O linimento das penas,
que nos muda escuras cenas
pelas que a fé ilumina,
e nos converte em doçura,
de resignação na dor;
via-te, anjo de amargura,
colorir um falso amor
ao teu forçado destino.
Altivez, gênio, hombridade,
Coração e mocidade,
Tudo vitimado a um lance!...
.........................................

Ó Moloque! à falsa honra,
quantas mártires se matam
em tuas aras assim?
Quantas dos olhos desatam
aqueles prantos de sangue
para chorá-los sem fim?
Quantas morrem de abafá-las
as lágrimas que injuriamos?
E pudeste sufocá-las!...
E com sereno semblante,
de agonia acerba estalas
sem que um gemido ofegante
desprendas do coração?
Que vida a tua, que vida!
Que perpétua solidão!
Se te resgatas, suicida,
quem te negará perdão?!
Por que vais ao cemitério
n’altas horas do mistério
fitar os olhos na cruz...
Por que perguntas às sombras
que estremecem, se vasqueja
aquela pálida luz
do lampadário suspenso
na capela de Jesus...
Por que perguntas, ó triste,
se o repouso é irrisão?

Ouvide um hino, e só esse
diz o profundo segredo
daquela imensa aflição.
As correntes do degredo
parte-as, um instante, a agonia
quando a alma, fraca um dia,
segue, forçada, a expansão.
Aquele canto sem nome,
canto sem eco, e perdido,
de amargas notas, quebradas
no soluçar dum gemido,
é doce, e amargo lembrar:

Passo aqui tardes, sozinha
nestas rochas calcinadas.
A cismar.
N’alma sinto as fundas mágoas,
ao murmúrio destas águas,
suspirar.

Quando assim me vejo triste
dum penar de íntima pena,
choro então...
Que eu não amo a natureza,
quando traja só tristeza
na solidão.

Amo-a, sim, embalsamada
dos perfumes, que lhe aspira
a alma em paz.
Mas, se a dor punge, de aguda,
esta natureza muda
não me apraz.

Sei que a dor tem desafogo
no alaúde, terno amigo,
tão fiel.
Faço trovas, mas as trovas
são amargas, duras provas
de agro fel.

Em tardes de saudade amargurada
ao pé do anoitecer,
eu venho aqui, viúva abandonada
viúva duma crença requeimada
num triste amanhecer...

Aqui na solidão, arfa-me o peito,
aspira imenso ar!
Careço para a dor um vasto leito,
não posso respirar no asilo estreito,
onde é força calar.

Amargas, nestes ermos, eu chorava
as lágrimas um dia.
Busquei repouso aqui... ai! se buscava...
Em vão no peito, a dor acalentava,
em vão... que não dormia.

Hoje choro também... Foi-se a ventura
nos anos que perdi.
Já morto o que é sentir, vive a amargura...
É tempo de morrer... ó sepultura,
em ti, espero em ti!

Debalde, íntima voz me diz na alma:
“silêncio! ignóbil dor!”
É mártir a mulher, mártir sem palma!...
De que serve a mudez, se não lhe acalma
o destino opressor?

Há no seu coração tanta harmonia
em tudo que é amar!
Em tudo vê florir tanta poesia...
Em tudo... mas, aqui, a fantasia
suicida-se a, cismar!

Que é pena vê-la escrava da mentira
em nome da razão!
É pena ver-lhe inútil quanto aspira
na infância, quando a alma arde e delira
por tudo que é paixão!...
.........................................

De que serviu este pranto?
Ouviu-me algum nesta dor?
Quem se dói da oculta lágrima
chorada sobre unia flor?

No desamparo da vida
os tormentos são assim...
Dobra-se a eles quem sofre,
como ao vento este jasmim!...

Eu, solitária, não tive
consolação em chorar...
Sou bonita dentre campas...
Quem vem às campas chorar?

Como a flor, eu pendo a fronte
à luz ardente do céu,
e, depois, cinza, me junto
às cinzas do mausoléu.

Flor da morte! não ressurges,
quando te orvalha a manhã!
Para ti... morte perpétua...
Para mim... esperança vã!...

O meu destino... cumpriu-se...
Tive-o no berço... este foi...
Não é de hoje a farpa ervada,
que no peito acerba dói!

Ao regaço da inocência,
vós me enviastes, Senhor,
uns sonhos que me pintaram
estes infernos de dor...
.........................................

IV
Quando a saudade sombria
me dava asas, e eu ia
à minha terra natal,
e de lá, triste, volvia
àquelas ermas montanhas,
uns lábios desconhecidos
estas vozes me disseram:
“Chora e espera, que estas dores
nem tão fundas, nem tamanhas
são como outras que te esperam
onde vês em tudo flores.
Não vás lá. Diz-te um mendigo
que não vás!... A toda a parte
a desgraça irá contigo.

Esperanças pedem dar-te
uma ilusão de momento;
mas o algoz, o inimigo
vai contigo... o pensamento.
Que não vás, diz-te um mendigo
pela esmola, que lhe dás.
Não te desonre este amigo...
A desgraça irá contigo
a toda a parte, que vás.”
Quem era este homem? Mistério
para a condoída mão,
que respeitosa, lhe dava
pedida esmola de pão.

Quem era este homem? Falava
como fala a inspiração.
Tinha momentos sublimes
de impressiva exaltação.
Revelava infames crimes,
mas não diz se dele são.
Quem era este homem?
Se ria, eram sinistras risadas;
o rosto pálido, exangue,
de rubor de vivo sangue,
de improviso, se tingia.
E, nos olhos coruscantes
de sangue, e ódio e furor...
não sei que medo, que horror
aquele olhar incutia!
Quem era este homem?

Um dia,
o relâmpago acendia
roxas lavas pelo espaço;
ao longe, o eco bramia
do trovão repercutido
de horizonte a horizonte,
que prendia um ígneo traço.
Pela garganta profunda
ruge a torrente, que inunda
cavernosos barrocais.
Estala o sobro da encosta,
que, soberbo, a fúria arrosta
dos infrenes vendavais.
E eu senti-me penetrado
dum terror santo. E chorava,
e de mãos postas, orava.
Vi, no céu, cruzarem fitas
de abrasada vibração.
Um triângulo de fogo
vi crispar na cerração,
resvalar no dorso à fraga,
reduzir a fraga a pó.
E soltei um grito!

Um riso
respondeu ao meu pavor!...
Olho... e um vulto, ali, diviso
sobre a rocha, estátua em pé!
Soberbo, encara a tormenta,
que vem rugir-lhe ao sopé!
Quem assim zombando tenta
céu e inferno? Este valor,
quem lho dá? a grande fé?
Quem vos insulta ou adora?
Quem rir pode assim, Senhor?
É um justo, ou um precito?!
Justo ou demônio, quem é?

Obscuras existências
arrastadas aí vão,
gota a gota derramando
o sangue da punição.
Deus lhes deu em longo espaço,
vasto alento para a dor;
mas à dor marcou um traço,
um limite, aquém da morte.
Manda ser lenta a agonia;
faz que o homem seja forte,
quando um longo crime expia.
E à fatídica bravura,
com que o homem vê o abismo
da tardia sepultura,
o mundo chama loucura,
impiedade, ateísmo,
perversidade, cinismo!
Deus o quer!... e o mundo exprime
a Providência?... talvez!...

Mas, se o gozo anima o crime...
Providência!... tu que és?
.........................................
Majestoso na miséria,
tal tu eras, réu sublime
duma agonia suprema!
Ainda assim, não resolvias
da desonra e da virtude
o lacerante problema.

V
Em berço de ouro embalado,
este prodígio na dor
vira o céu da leda infância
esplendoroso de amor.
Tudo em redor lhe sorria
crença, fé, amor, poesia;
tudo quanto anseia a alma,
de ideal, que o gênio sonha,
na primavera risonha
da fantástica magia,
em que o amor, em flor, expande
perfumada simpatia.

Rico dos dons da fortuna,
belo e gentil como poucos,
em seus devaneios loucos,
sobejavam-lhe carícias.
Muitos anjos conspiravam
contra a sua isenção;
asas cândidas voejavam,
e, na face, lhe tocavam,
por tocar-lhe o coração,
Era-lhe benquisto o incenso;
mas no êxtase, suspenso,
em que vivia, não via
que nem sempre a poesia
é do amor a condição.

Lucinda, a filha ditosa
da beleza caprichosa,
com mais astúcia que amor,
enlevou-lhe a fantasia.
Com a falsa pedraria
de um mentido pundonor,
vestiu-se aos olhos da crença,
deu-se um garbo sedutor
de estudada indiferença,
de uma engenhosa reserva,
que, a não ser cansada a alma,
alma não há, que resista,
que não queira, escrava e serva,
dar-lhe a vida como palma
da tão suave conquista.

Conquistara. A mão dum jovem,
que, na vida, amanheceu,
foi daquele amor, sem alma,
o suspirado troféu.
Foi!... Que vale o trono de hoje
amanhã trono de dores?
Esconde espinhos pungentes
esse diadema de flores,
que cinge a fátua rainha
daquela alma, que tinha,
mais vasto espaço infinito
para infinitos amores.

Quando a voz da consciência,
mestra amarga da inocência,
diz ao mancebo cativo
que a bela quadra mudara...
Quando na sala, a lisonja
não lhe afaga o gênio altivo,
como há pouco porfiara
em disputar-lhe um carinho...
Quando o espírito cansado
de enlevar-se na beleza
da mulher, que quis ser presa
àquele poste dourado,
novas imagens sonhou...
surge a pálida tristeza,
irmã da triste suspeita.

Lucinda, bela e orgulhosa,
ao amor fogoso afeita,
sente, em breve, extinto o lume
dessa paixão momentânea.
Queima-lhe a alma o ciúme;
não pode crer, que o enojo,
o regelado fastio,
tanta soberba de rojo
aos pés doutra vá lançar.

Altiva, irada, não sabe
o insano orgulho humilhar.
Diz que o crime incita o crime,
e, na vingança, há nobreza,
porque é nobreza vingar
uma afronta ao amor-próprio
com uma afronta à pureza,
que condena a mulher débil
à desigualdade imposta
pelo mundo, e não prescrita
pelas leis da natureza.

Disse e viu tremer, no punho
do consorte alucinado,
um punhal, que o braço ousado
dum irmão, no ar, sustém.
E ela, destemida, encara,
com desprezo, a ponta aguda
daquele ferro cobarde.
A sorrir, olhava muda,
como a pungente ironia,
o ódio fundo, que ardia
no furor, em que ela arde.

De improviso, o rancor vence...
Nos brancos lábios lhe freme
um cavernoso gemido.
Era de alma um grito ardido,
o orgulho retraído,
que respira pelos lábios
do impudor, da vingança...
O que ela disse... era a morte...
Era o sepulcro, que avança,
onde a vida principia
a recolher no seu nada,
as ilusões dum só dia.
.........................................
.........................................

Desde esse instante caíra
ulcerado um coração
no desamparo, no abismo
de incurável perdição.
“Sou escravo!” ele exclama;
e respondia o cinismo:
“És devasso!... escravo, não!”
Pois sim, devasso!

E a desonra
vestiu as galas manchadas
da torpeza, mas douradas
pela opulência faustosa.
A aspiração generosa
desce do céu, onde fora,
numa luz fascinadora,
do gênio a asa crestar.
Cai!... na queda, a flor esmaga
da derradeira afeição.
Não pode, ao menos,
salvar por si próprio uma afeição.
Dá-se em pábulo ao desprezo,
quer o insulto, e a honra afronta,
e, se entre ele e a mulher fraca,
um braço de homem encontra,
de sangue tinge o punhal.

Longe da terra natal,
donde o crime o expulsara,
em cada passo deixara
um vestígio desonroso.
Francas as portas do gozo,
em toda a parte, encontrou,
enquanto o ouro abundoso,
na concorrência do vício,
lhe dava a glória no crime,
que avarento disputou.

Mas a nuvem da miséria
toldou-lhe o astro sinistro,
que lhe fadava as vitórias.
O ouro, a arma das glórias,
que tão caras conquistou,
entre as mãos sentiu partida.
Profundo golpe na vida
de vermes já combalida
o desgraçado sentiu!
Travou-se luta cruenta:
dum lado, a infâmia sedenta,
doutro, a miséria infalível.
Mas a infâmia reagiu;
fê-la a desgraça invencível;
a consciência algemou:
novo abismo, em fundo abismo,
aos pés do ímpio cavou.

Nos algares penhascosos
do Ladário, onde o terror
gela o peito ao caminheiro,
veem-se cruzes, que pedem
orações ao passageiro.
Nas gargantas da montanha,
há vestígios duma gruta,
e, em redor, a mata hirsuta
esconde a boca do abismo.
Dizem que, há anos, vivera,
naquele fosso profundo,
um açoite das vinganças,
que Deus sugere no mundo.
Dizem que, à hora do dia,
daquelas furnas surgia
sanguinário salteador
e, talando as cruzilhadas,
com as joldas amestradas,
saciava em ouro e sangue
seu frenético furor.

Dizem que o chefe nascera
de pais ilustres, honrados,
depositários dum nome,
nome grande entre os maiores,
no brasão de seus passados;
que tivera, em verdes anos,
um amor louco, perdido,
sentimento repelido
pelos preceitos humanos,
que dão morte ao coração,
no casamento vendido.
Dizem que, longe da pátria,
consumira imenso ouro,
e volvera à pátria, pobre,
rico de infâmia e desdouro.
Que perguntara se ainda
na terra um anjo vivia,
essa mulher que o perdera,
e, morta, mais o perdia...
Morta, sim!... que a pobre amara,
nos transes do desconforto
um escravo... escravo!... um morto
para o amor que ela sonhara
abençoado por Deus.

E, depois, balbuciara
uma pergunta, que as faces
de vergonha lhe incendia.
Fora a resposta cruenta!
Pranto dos olhos rebenta,
pranto de raiva se o há...
Desonrado! último golpe,
que a desventura lhe dá...
E essa mulher... vive e goza...
Sonha venturas... não sonha...
Não vê o gume dum ferro,
que vem na nódoa afrontosa,
tingir de sangue a vergonha!...

VI
Alta noite, a Lua esplêndida
no esmaltado azul flutua.
Por entre os choupos, a réstia
da melancólica Lua
prateia as águas do Tâmega,
rio, que fala em saudades,
no seu soturno gemer.
Por entre a copa dos cedros
além, se vê nas vidraças
de majestoso edifício
da Lua o brilho tremer.
Tremem as frondes da acácia
em ligeira vibração.
A brisa brinca no mirto,
no rosmaninho oloroso,
rola, de leve, no chão
a murcha folha do lírio,
sorve um beijo sonoroso
na rosa esquiva em botão.

Meia noite. Alva roupagem
entre os lilases perpassa;
ao pé dela, a Lua é baça
como a luz do lampadário,
junto ao mármore alvacento
do pomposo cinerário.
Soltas nos ombros as tranças
entrelaçam-se nas franças
das acácias recendentes.
Murmura a fonte, na taça,
a palavra, que lhe passa
por entre os lábios frementes.
Arfam-lhe os seios, ditosa,
ao colher a mais formosa
entre as flores, branca rosa,
flor de amores inocentes.

Inocentes!...

Olha, e perto
vê um vulto avizinhar-se.
Sente o sangue alvoroçar-se,
no delírio da alegria.
Um ai, que ao peito lhe foge,
era amor, era ventura;
mas, ao pé da sepultura,
são assim ais de agonia.
Corre ao muro, e cair deixa
alvo lenço, onde envolvida
vai a chave da avenida
que o seu amante conduz.
Corre, voa a encontrá-lo,
quer escondida nas tílias,
onde não penetra a luz,
surpreendê-lo, assustá-lo,
e, depois, acarinhá-lo,
com um beijo desses beijos
abrasados de desejos,
que a rosa branca, se é símbolo
da inocência... não diz.

Abriu-se a porta. Profundo
o silêncio então reinou.
Lucinda espreita o amante,
toda sorriso, arquejante,
por entre as tílias oculta.
Mas, se o amado a porta entrou,
um passo ainda não deu.
Que será?!... Estremeceu...
é já instinto de vida,
que pressente a morte ali!...

Lucinda à porta correu, 
e murmura:

Tu não sabes
que eu não gosto vir aqui?
“Não sabia” — respondeu... —
“E por quê?” — continuou.

Um grito de alma estalou...
E foi único...

“Piedade!”

“Sim... piedade... mas silêncio!”
Murmurou em cavo tom
o traído, que não quer
que se escute ao longe um som.

“Triste vaidade, mulher,
— lhe diz ele em voz sumida —
me será tirar-te a vida,
morta demais para mim!...
Quero mais... nem por tão pouco
perturbar teus gozos vim...
Não sou núncio da desgraça:
venho fazer-te uma graça,
que deve ser-te um conforto.
Tens um amante?... que importa?...
não é belo cair morta
nos braços do amante morto?”

E, de joelhos, prostrada,
Lucinda a face rojou
pelas lajes, donde o esposo
em ar de acerba ternura,
ironia amarga e dura,
carinhoso a levantou.

“Frio amor sentes por ele!
Pois não é tão belo lance
dar-se as mãos no mesmo trance
quem as deu já na alegria?!
Devem ser deliciosas
as contorções de agonia,
quando se abraçam, na morte,
e vão, no mesmo transporte,
duas almas carinhosas
habitar, no céu, a estrela;
e, na estrela, continuam
uma existência mais bela,
que a deste mundo traidor,
onde as delícias flutuam
na incerteza, na dor!...”

Lucinda, trêmula, fria,
roxa, da cor do cadáver,
sufocada, reprimia,
em soluços, o terror.

Ele, em pé, braços cruzados,
com as pupilas de fogo,
nos olhos negros, orlados
do negro sangue da ira,
um momento as não retira
da face dela, que a asa
da torva morte gelou.

“Tarde chega a sua casa
o teu amante!... É desdém?
— a sorrir, ele lhe diz —
não é grato aos teus carinhos
quem se espera, e tarde vem!...
Tão depressa cansaria
de teus extremos, Lucinda?
Já te não vê, como via,
entre as lindas a mais linda?
Não respondes!... não respondas...
natural é que me escondas
o amor-próprio ofendido...
Mas... um amante perdido
dará praça a outro amante...
Não vale a pena a tristeza...
Deves muito à natureza...
Tens, no vasto coração,
lugar de sobra, onde nasçam
muitas crenças todas nobres,
como foram, e têm sido
as tuas crenças... não são?
Vamos... que importa o segredo?!
O teu amante não vem...
São quatro horas... é tarde...
Não nos deve ver alguém.
É um desejo inocente...
Tinha vontade de vê-lo,
podes seu nome dizê-lo?...
Balbucias!... tu juraste
guardar segredo.... é de fé;
mas, se é crime... eu te absolvo...
O teu amante quem é?”

“O meu amante!?”

“Decerto.”
“Amigo... amante... isso não!”
Pois sim... amigo, que oculta,
nas trevas castas da noite,
os seus carinhos de irmão...

“Seja amigo...”

“Amigo, sim...
Viu-me, só, neste abandono,
em que, por ti, fui deixada...
compadeceu-se de mim...”

“Generoso coração!
Vê o ingrato que eu era,
que trazia a gratidão
na ponta do meu punhal!”

“Matá-lo!?”

“Sim... E a quem?”

“A teu irmão!”
..........................................

VII
A aurora tinge o horizonte;
arraia os visos do monte
indecisa, frouxa luz.
Some a Lua a fronte lívida
no branco véu da manhã;
em redor tinge-se o disco
da rubra cor da romã.
Ligeira névoa se estende,
ao correr das mansas águas,
como um véu de tristes mágoas
em rosto, há pouco risonho.
Começa, ao longe, o murmúrio
do lavrador, que saúda
a luz da aurora que o chama,
nas fendas do seu tugúrio.
A natureza acordada
eleva um canto ao Senhor,
nas melancólicas notas
do solitário cantor
entre os salgueiros da margem.

Como é santo este silêncio
dum formoso amanhecer!
Tudo aqui nos diz que a infância
é como a aurora a nascer:
primeiro, a luz, sem ardores,
a luz do amor, sem paixões;
depois o sol, e os amores,
como o sol, abrasadores...
de sedentas comoções.

Ouvide, além na outra margem
o cantar da pastorinha,
que desce à várzea, sozinha,
sem receios... tão feliz!...
Vede-a... afaga os tenros filhos
da assustada codorniz,
que dá lições de ternura
naqueles sustos de mãe.
Invejai-lhe o seu destino
à pastorinha d’além,
que não sabe as agonias,
que vão na casa soberba,
que vê na margem de cá...

Sentada, sobre o restolho,
velando o inquieto novilho,
cinge na folha do milho
flores agrestes, que afaga.
Em que amor ela divaga
di-lo a inocência da flor,
do malmequer, que lhe ensina
segredos do seu amor.

E, de repente, ouve um grito...
Corre à margem... na torrente
vê um vulto a debater-se
em terrível paroxismo.
Segundo brado aflito...
um ai de extrema agonia...
inda ouviu... Depois, o abismo
um cadáver e um segredo
escondeu à luz do dia.

E diziam que, ao sol nado,
o senhor daquelas terras,
que, de mui longe, viera,
à sua porta batera,
e que aos servos perguntara
se sua esposa dormia;
e acordá-la não deixara
quando a aia ao quarto ia
tão fausta nova levar.
Mas a serva não podia,
em seu júbilo, calar,
a sua ama o segredo,
pois quando é grande a ventura
nunca a ventura vem cedo,
nem há esposa, se adora
o esposo ausente, como ela,
que não queira, a toda a hora,
quebrar um sono de sonhos,
pressentimentos tristonhos
do muito amor conjugal.

Foi... Por fora a chave encontra
da silenciosa alcova!
este acaso é coisa nova,
se não foi esquecimento...
Ergue o fecho... era fechada
aquela porta por fora...
Abre, e corre, alvoroçada,
os cortinados do leito...
Encontra o leito deserto!...

Do fidalgo ouvem-se ao perto,
os mansos passos, que dá.
Vai-lhe ao encontro a serva aflita
da surpresa, chora e grita:
“ai, senhor!... ali não está!...”
“Quem?!”

“A minha ama, senhor!”

E na face ao assassino
não se vê lívida mancha
do remorso acusador.
Nem uma gota de sangue,
nem um ligeiro sinal
daquele infame punhal,
que tem na ponta o segredo.
Nem já dos ecos se ouvia
aquele grito, estalado
nas convulsões da asfixia!


Trinta dias, encerrado
em seu quarto, em sua dor,
vivera o nobre senhor.
E no fim de trinta dias,
voltam as tristes vigias,
que procuravam Lucinda,
a nobre esposa, chorada
pelo esposo inconsolável.
Dizem que, além, nas montanhas,
da outra margem do rio,
uma pastora dissera
coisas horríveis, estranhas!
Que, há trinta dias, ouvira
um grito agudo, e que vira,
sem podê-la socorrer,
ao romper da madrugada
uma mulher afogada
estrebuchar, e morrer!

Há trinta dias... Foi ela!

Traja de luto o viúvo;
cobrem-se as armas de crepe;
vem a nobreza em redor
consolar o primo ilustre,
que verga ao peso da dor.
O sino dobra a finados,
dizem-se missas gerais.
Soam, no templo, responsos
em pomposos funerais.
E, entre os muitos, que elevam
as suas preces ao céu,
o consternado consorte,
que, dizem, fora um ateu,
em maus tempos, que lá vão,
ergue as mãos, vai num transporte
de fervente devoção,
seguindo o rolo do incenso,
que perfuma os pés do Imenso,
a quem pede a glória eterna
para a esposa estremecida!...
.........................................

Ao pé dele, inseparável
todos viram... seu irmão,
por quem mostrava o dorido
extremos de alta afeição.
Raro, em seus lábios, o riso
da amizade carinhosa
era do irmão... dele só!
E, só com ele, falava
daquela pomba formosa,
anjo de amor, que ansiava
encontrar... para pedir-lhe,
de erros passados, perdão.
Vinha dos lábios ouvir-lhe
aquela santa expressão.
Vinha, ali, restituir-lhe
os extremos de ternura,
vitimados à loucura
duma infância criminosa!

A viração deleitosa
brandamente balouçava
a ramagem do jardim.
No céu a Lua amorosa
naquela noite, era assim,
naquela noite horrorosa
em que, sereno, medita
o matador sem remorso.
Além, das águas no dorso,
como sobre argêntea fita,
fulgem cintilas de prata,
onde a imagem se retrata
de Lucinda a vasquejar.
Soa, no tanque, um sonido
que traz à mente o gemido
que a moribunda gemera.
Mais ao longe, o mocho pia,
como grita, em agonia,
quem, de surpresa, é varado
pelo punhal dum traidor.
E o assassino, enleado
em cogitações de dor,
parece estar-se lembrando
delícias de extinto amor,
naqueles ermos gozado.

“Como é bela a natureza,
que saudade a noite faz!...
Quem pudera, neste instante,
sentir os gozos da paz!
Quem pudera àquele anjo,
que Deus da terra levou,
neste momento dizer-lhe
as saudades, que deixou!
É tão triste a viuvez,
quando chora o coração!...
Sinais de mártir não vês
em meu rosto, caro irmão?”

“Vejo, sim... Ai!... era um anjo,
que Deus mandara, e voou
rápido voo na terra,
e, tão depressa, voltou
para os anjos seus irmãos!
Na terra as ânsias celestes
são desejos sempre vãos...
Os martírios, que lhe destes,
na mocidade, infiltraram
gotas de morte no peito,
que a morte lenta lavraram...
Foi-lhe este mundo um deserto...”

“E eu fui perverso... decerto!...
Troquei afagos de esposa
por paixões... que esconde a lousa
para sempre... ainda bem!
Fui perjuro à fé jurada,
e neguei, com vil desdém,
essa dívida sagrada,
nos altares contraída.
E ela, a pobre, espavorida,
num momento de terror,
não sei que disse... um desaire
ao seu casto pundonor...
Não te lembras, meu irmão?”

“Lembro, sim... Ela dizia
que...”

“O crime incita o crime,
e na vingança há nobreza,
porque é nobreza vingar
uma afronta ao amor-próprio,
com uma afronta à pureza
que condena a mulher débil
à desigualdade, imposta
pelo mundo, e não prescrita
pelas leis da natureza —
Não te lembras, meu irmão?”

“Foi assim; e tu...”

“Convulso
duma cega indignação.
contra ela ergui um ferro.”

“E eu sustive a tua mão...”

“Assim foi... mas diz-me, amigo...
Infame injúria eu fazia
àquela nobre mulher
em sonhar no pensamento
uma suspeita sequer!...”

“Infame injúria fazias!...
chorava as noites e os dias!...
Nunca mais seus lábios riram,
nem seus tristes olhos viram
deste mundo as alegrias.”

“Infeliz!...”

“A cada instante
o teu nome repetia...
Sempre só, vagava, errante,
nessa tristeza incessante,
que conduz à sepultura.”

“Pobre amiga!”

“E sempre pura,
como pode a honra ser,
não sonhou, sequer, um crime,
nem o mundo ousou manchá-la
desse ferrete, que imprime...
desonra eterna...”

“Ai! cala,
meu irmão... basta, que é muito
para mim que sofro tanto!...
Se tu visses como estala
aqui dentro a minha dor!...
Eu tenho um crime... e não posso
ocultar-to... não!... O horror
deste mistério é mortal!...
Queres ouvi-lo?...”

“Sim...”

“Ouve...
Compadece-te de mim...
Sofro um castigo infernal...
Olha, irmão... vês este sangue?...
A ponta deste punhal...
no coração lha cravei!...”

“Tu!...”

“Sim!... maldito dos homens...
Fui eu... fui eu que a matei!”

“Horror!”

“Aterras-te, irmão?!...
Tens alma nobre... não podes
tal infâmia conceber..”

“Maldito!”

“Maldito, sim...
Eu não te disse que o inferno
ardia dentro de mim?!
Mas esta infâmia é segredo...
há de o ser... segredo eterno!...
e tu não podes guardá-lo!...
é forçoso sepultá-lo
num abismo... e esse abismo
hei de, com ferro rasgá-lo
no teu nobre coração...”

Desceu, três vezes, o ferro.
Um grito rouco ressoa...
Roja um cadáver no chão.

VIII
Viu-se, nas margens do Tâmega,
entre gratas alamedas,
línguas de rogo cingirem
um vasto e nobre edifício.
Ao clarão das lavaredas,
que o fumo em rolos enturba,
vulto sinistro se viu,
rindo dos gritos da turba.
Em brasa as traves crepitam,
ao redor as chusmas gritam,
mas, em socorro... ninguém!
O senhor daquele prédio
quis gozar do fogo o assédio,
que apagar não ousa alguém.
Aquele vulto, que passa,
tem nas mãos ensanguentadas
um punhal, com que ameaça
as multidões aterradas!
Quem há aí, que tente a morte
contra um homem grande, e forte
do poder de Satanás?!

“Maldito!” o povo clamava,
quando a última centelha
dentre as cinzas faiscava.
“Maldito!” a turba rugia,
quando, ao longe, o campanário,
com seu dobre funerário,
um cadáver anuncia.
“Maldito!” que esse cadáver,
de punhaladas cortado,
fora na cinza encontrado
daquele incêndio!... “Maldito!”
soava um pávido grito
contra o bárbaro precito,
que matara o seu irmão!
Fraticida, entrega às cinzas
o segredo da traição!...
e, Caim, não vê que o sangue
lhe borrifa a ímpia mão!

Foi este homem, que eu vira,
sobre as penhas escalvadas,
quando o látego cortante
das indômitas rajadas
lhe sacudia os cabelos,
e lhe dava aos olhos, belos
daquele brilho sinistro
das paixões alucinadas,
terrível fascinação!
este o homem, que pede,
nos andrajos da pobreza
escassa esmola de pão;
e me diz: “Eis que um mendigo,
o teu futuro prediz!
Vai! que a dor irá contigo!
Olha... a sombra da desgraça
caminha a par com o infeliz!”

De tal homem, insondável
como o segredo de Deus,
como o segredo do inferno,
que disputa o império ao céu,
de tal homem, que escarnece
as palavras do conforto,
para a fé extinto, morto,
para o amor sarcasmo atroz...
foi deste homem, que eu, na infância,
despertada à sua voz,
recolhi no coração
lições amargas da vida.
A mais viçosa ilusão
da Primavera florida,
aquele amor, todo flores,
o mais santo dos amores,
o primeiro... injuriou-mo!
Do escalpelo da ciência,
que lhe dera a experiência,
Senti profundos os traços
golpearam-me as entranhas.
Ouvi palavras estranhas,
que, nunca, em lábios devassos,
ousou dizer-me o cinismo;
desci, com ele, ao abismo
do que há aí mais nauseabundo
no prostíbulo imundo
das paixões degeneradas,
sem crestar as flores de alma
no fogoso entusiasmo
do despejo e da orgia...
A minha cândida palma,
da descuidada inocência
casto dom de áurea poesia,
aos pés dum ímpio caía,
como troféu conquistado
pelo crime impenitente!
Eram máximas, que ouvia
nas lições do desgraçado;
mas que máximas!... que infâmia
gravá-las mão pervertida,
em coração de inocente,
mal entra as portas da vida!

E gravou-as! Leio-as sempre,
quando o espírito ansiado,
almeja luz de esperança.
no denegrido horizonte
da vida escura, que vivo.
Se me impele a confiança,
e me diz que a morte afronte,
de vivas crenças altivo,
ouço-as sempre... que eu não posso
esquecê-las, arrancá-las
da consciência, onde estão.
Um homem pôde gravá-las,
e não pode a aspiração,
nem o desejo sedento,
nem a vaidade... nem essa...
esquecê-las, um momento!

“Não creias. É mau o homem,
é mentira a consciência,
é fantasma a providência,
verdadeira é só a dor.
Não creias. O céu é sonho
de vaidosa fantasia;
o inferno é mercancia
dos que te vendem o céu.

Não creias. A alma, que existe,
são os sentidos, que sentem:
depois, os vermes desmentem
essa quimera imortal.

Não creias. A sepultura
é do berço o complemento:
a vida vem num momento,
noutro momento se esvai.

Não creias. Honra e desonra
é um jogo atraiçoado,
em que perde o mais honrado,
e, dizem, lucra no céu!...

Não creias. O amor singelo
ideal, casto, infantil,
é pieguice pueril,
sensual hipocrisia.

Não creias. Se o pranto vires
em mulher, que o pranto ostenta,
é a astúcia, que fermenta
a cavilosa traição.

Não creias. A virgindade,
em coração de mulher,
não chega nunca a nascer:
nasce e morre em embrião.

Não creias. Dizem que existe
santa amizade! É mentira!
quando a desgraça te fira,
abandonado serás.

Não creias. Quando o infortúnio
à tua porta bater,
manda-o calar, e morrer,
cospe-lhe insultos na dor.

Crê na matéria, na infâmia,
dom dos homens: nada mais!
joga com armas iguais,
paga afronta com afronta.

Pisa aos pés a caridade,
insulta os homens, e Deus;
afronta as iras dos céus,
zomba da vil sociedade.”

Dor! amargo patrimônio
de infelizes, que se extremam
da turba alvar, que sorri!...
esses lábios, que blasfemam,
quando os corrompe a desgraça,
beberam tragos violentos
de venenosos tormentos,
que lhe deste em negra taça!
Como teu poder é forte,
dor! que império tens no homem!
que veneno corrosivo
tu lhe filtras!... dás-lhe a morte
ao sentimento nativo
da consciência do mal!

Águia ferida em suas penas,
das regiões puras, serenas,
caiu, perdeu-se, abismou-se
neste sujo tremedal,
em que o despejo, revolto,
insulta homens, e Deus...
donde o sarcasmo vai, solto
das algemas da piedade,
poluir a virgindade
das almas puras, que podem
sonhar delícias nos céus!

IX
Como é que o homem se espanta
de se ver, cedo, cansado
quando mal começa a vida?
Hoje, pode a aurora, apenas,
na infância de alma nascida,
antes do sol das paixões,
queimar-lhe o seio... e das cinzas,
de congelados vulcões
nem um clarão reverbera.
O vulgo chama quimera
essas noites infinitas,
em que o talento lacera,
uma a uma, as ilusões.
Não crê, não pode elevar-se
à dor, que toca o sublime,
e, no gênio, um cunho imprime
de descrença e desconforto.

Pergunta o mundo ao poeta:
— como, tão cedo, está morto
quem, há pouco, amanheceu? —
E pergunta o poeta ao mundo:
— como pode o humilde tojo,
que nasce e vive de rojo,
ver o raio que fendeu
o cimo de alto cipreste?

De amargoso sacerdócio
o talento Deus investe.
Da desgraça o gênio é sócio,
desta desgraça, que enturba,
como a nuvem da ciência,
a luz dum mundo que a turba
não aspira, nem deseja.
O pensamento, que sobe
da baixeza, onde rasteja
o trivial, o comum,
não tem, na terra, repouso,
queima-o a sede do gozo,
não satisfaz gozo algum.

Gasta-se o homem, que pensa;
o pensamento devora-o;
o prisma, caro à inocência,
vem a ciência, e descora-o...
Agra ciência da vida,
que adivinha a inteligência
concentrada, resumida
em se ler no coração,
onde a luz vem, refletida
mostrar-lhe o mundo, ao clarão
dos incêndios, em que
morre para os outros, na velhice,
de asco e enfado, a ilusão!

Não é no mundo, na luta
das paixões escandecidas,
que se vão esmaecidas,
donosas crenças ao nada.
Não é no mundo, é no ermo,
no pensamento insulado,
neste trabalho contínuo
dum espírito abrasado
em meditar no que é.
O livro, espelho da vida,
desmente as crenças e a fé.
O homem, de alma esvaída,
sem pudor para calar
os desenganos, que teve,
sente orgulho em desvendar
os segredos, que a desgraça,
filha do crime, devassa
nas trevas do coração.

E o talento sente as dores,
adivinha os dissabores
que na alma não sentiu.
Tem, na mesa do infortúnio,
um quinhão de dor, distinto,
dele só; e sem prová-lo,
sente o agro do absinto
desse cálice de agonia,
que, de sobre o pensamento,
o seu anjo não desvia.

O amor, eterno móvel
das ambições generosas,
sintoma eterno de vida,
tela, nunca denegrida
por torpes nódoas... o amor!
Esse, que é filho do instinto
nobre e bom de coração,
como o sentira na infância,
como, aqui, no ermo, o sinto,
e senti-lo-ei na ânsia
da final aspiração...
Esse não sofre, não perde
o condão do seu destino...
Ao nascer, nasceu divino,
morrerá manchado? não!

E sabeis qual ele seja
este amor, que vive em si,
que, no céu, tanto deseja,
e descrê de tudo aqui?
Sabeis que lágrimas custa
este amor indefinido
abrasado, e consumido
em procurar a verdade,
a verdade eterna e augusta,
que se esconde à humanidade
em pavoroso mistério?

Este amor, que anseia amor,
na mudez do cemitério,
é o amor, que vós sentis?
Este amor, que esposa a dor,
não é privilégio amargo
de quem é muito infeliz?

O amor, nos belos dias,
da mocidade inexperta
alto vai nas fantasias;
raro, desce ao frio estudo
da mulher anjo, encoberta,
como um sacrossanto mito.
Nobre ardor impele a alma
ao transporte, ao infinito.
Vê-se, na terra, uma imagem,
é profunda a adoração;
presta-lhe a alma homenagem
de entusiasta afeição;
mas no Céu; que, neste espaço,
curto e estreito, de ar impuro,
não respira o coração.

Luminoso fulge um traço,
onde corre o pensamento;
a cintila da poesia,
desferida pelo amor,
irradia um fogo etéreo
aos gelos desta existência,
positiva, sem mistério,
turva, e rude, e descarnada,
sem alento, amortalhada
nos ouropéis da ciência.

Mancebo, ninguém te diga,
nessa florida estação,
que vem perto o Inverno
triste arrefecer tanto fogo,
que, depressa, consumiste
num sonho de coração...
Num sonho, sim, que tão rápido
e ser no amor inocente,
que nem delícias, nem dores
desses primeiros amores,
raro, a memória as consente.

E eu recordo-as todas, sinto-as,
porque a saudade, e só essa,
tem sido o doce maná
no meu deserto da vida.
Embora a alma arrefeça,
a minha vida foi lá;
vivo, acordado, dos sonhos
vejo as imagens, que vi...
Umas pálidas, sombrias
mortas dentro de alma, e frias
como eu sinto a alma aqui.
Outras, mal pôde a memória
tributar-lhes vassalagem
duma delida lembrança...
Esquecê-las foi coragem...
Calco aos pés a ignóbil glória...
nem eu tenho outra vingança.
Outras... vejo-as, ondulantes
sombras lívidas, errantes,
como nuvens alvejantes,
que, no espaço, o norte espalha.
Ei-las vão... além... passando,
envolvidas na mortalha,
e nas auras suspirando,
como a saudade suspira.

Tenho a saudade e esta lira,
minha querida pobreza,
minhas joias, meu tesouro
não disputada riqueza,
neste meu século de ouro
e de lama! E só com ela,
há tantos anos, caminho
sobre um chão onde renasce
dum espinho um novo espinho.
E, muitas vezes, cansado,
nesta fadiga incessante,
em busca doutro destino,
tenho abastardado o hino,
nobre impulso de minh’alma,
aviltando a inspiração;
tenho aos pés calcado a palma,
e arrojado a lira ao chão.

Mas vendê-la a grandes, nunca!
Se manchada a vejo aqui,
é de a ter roçado em manchas,
que insultei, com frenesi.
Ao que vive circunscrito
em si próprio, e a luz da alma
bebe a haustos, do infinito,
que lhe importa o tremedal
em que, revoltos, disputam,
e, matéria vil, relutam
os que têm direito à herança
dum diadema sensual?

Aviltados dons, perdidos,
momentos nobres, de dor,
quanto dera eu da existência,
se eu vos visse esquecidos!
Dons do amor, prostituídos,
em fantásticas paixões,
sem nobreza, nem renúncia
de rasteiras sensações...
Poesia, a que vexames,
e cruéis humilhações,
sem pudor, eu te aviltei!
Quantas lágrimas infames
eu te fiz chorar, mentidas
calculadas, pervertidas,
vergonha doutras sentidas,
que, uma só vez, eu chorei!

Por esse mundo, dispersos,
eu lancei baratos versos...
versos só... poesia... não.
Meditai-os! Não têm alma,
nem amor, nem consciência;
são momentos de existência,
sem vigor do coração.
Não são meus, nem podem sê-lo,
nem orgulho deve tê-lo
que, vaidosa, aí presume
que era seu esse perfume,
essa baixa idolatria.
Foram lâmpadas extintas,
ao findar dum curto dia...
eram quadros cujas tintas
sobre a tela não são já.
A soberba envergonhou-se,
a razão emancipou-se,
e descorou-as de lá.

Celeste dom da poesia,
joia sem preço, calcada
aos pés da turba, que insulta
as desventuras do gênio;
pomba mística, oculta
no santuário do amor;
filha do céu, que na terra,
vens ungir o sofrimento
e fazer sagrada a dor,
vituperada por homens,
algozes do pensamento;
bálsamo santo, alegria,
que deixa tanta agonia
desafogar-se em cantares,
às luzes do firmamento,
e ao hino eterno dos mares;
amor de infelizes, poesia,
tu me bastas, santo alento,
quando o limite do mundo
na estreiteza me angustia.
Ave linda, vens pousar-te,
descida lá do teu céu,
entre a folhagem das selvas;
e no regaço me lanças
uma folhinha das relvas
dos jardins do doce Alceu.

X
Luísa, flor dentre as fragas,
donairosa camponesa,
toda graças e pureza,
lindo esmalte das campinas,
colhes no prado as boninas
brincas à tarde, na espalda,
onde verdeja a alameda
da viva cor da esmeralda?
Brincas, Luísa, afagando,
o que mais amas no bando,
o teu alvo cordeirinho?

Vais ainda àquela fonte,
espelho aonde te vias,
onde me viste sozinho,
e de falar-me tremias?
Vens daí ver esconder-se
no purpurino horizonte
o sol dos teus devaneios?
Cantas a trova singela,
namoro da filomela
dos requebrados gorjeios?
Colhes as pedras brilhantes,
como penas rutilantes,
que te seduzem, no leito
do regato cristalino?

Sentes a crença no peito
palpitar de devoção,
quando, ao longe, ouves o sino
do aldeão presbitério
pedir-te a doce oração,
que, desde o berço, tu oras,
quando o sagrado mistério,
nas tão poéticas horas,
do entardecer te enleva?

Quando, à noite, o gado metes,
farto e ledo, em seu redil,
vais no coro das donzelas,
onde as não viste mais belas,
descantar cadenciosos
carmes de alma tão saudosos,
dum sabor tão infantil!...

E eu que muito a amei!...
À tarde
quando o Sol no ocidente
de escarlate as selvas tinge,
com o brilho refulgente
de floresta incendiada,
fui sentar-me, pensativo,
sobre a crista dos rochedos,
decifrando em minha alma
indecifráveis segredos.

Além, nas várzeas do vale,
tinha quanto o coração
sonha de belo, e imortal,
na sua ardente ambição.
Nem mais formosa que ela,
nem mais pura o mundo a tinha!...
Quisera vê-la, e não vê-la...
Antes fugir-lhe!... ofendê-la...
Mais valera não ser minha!

Por essas horas, que falam,
quando o coração é mudo,
quando as palavras se calam,
porque o silêncio diz tudo,
procurei nos olhos dela
ver a luz daquela estrela
onde os olhos dela eu via;
e, ao senti-la entre a ramagem,
esfriava-me a coragem,
e o pejo me estremecia.

Em tua face corada
pelas rosas do pudor,
não sabia eu ler segredos
que debalde esconde o amor.
Vim, depois saber no mundo,
onde o talento fecundo
tudo sabe, e nada oculta,
que a surpresa, quando tinge
de purpúrea cor a face,
é o amor, que não se finge,
é um místico enlace
de duas almas, que a flama
do mesmo facho abrasou.

Vês, Luísa, o mundo chama
ao teu corar e tremer
um nome simples, bem simples,
que não soubemos dizer.
E por quê? eu nunca pude
conseguir dissessem lábios,
quando a singeleza é rude,
esta palavra, que os sábios
do coração nos ensinam!
Simples palavra... e mal pensas
a que missão a destinam
e que paixões ela diz!...
Há um amor todo amarguras,
preço de crimes, e ofensas,
qual o dão instintos vis;
mente em suas alegrias
cala as surdas agonias,
a taça dos seus prazeres
tem venenos infernais.

Este amor não era o nosso;
nunca empeçonhei o gozo
dos teus risos festivais.
Eu velava o teu repouso,
como estremecido irmão,
na virgem fronte dum anjo,
vela a grinalda inocente
do virginal coração.

Aquele amor fulminante
que abrasa a flor que toca,
e da consciência sufoca
gemidos de ingente dor;
aquele indômito amor,
que se apraz na impudência
dum torpíssimo egoísmo!
Ai! Luísa, eu hoje posso
pela voz da consciência,
dizer-te, do meu abismo,
que este amor não era o nosso.

Olha, o mundo não sabia
como a nossa vida era...
O velho torpe riria,
se, tão novo, eu lhe dissera,
que, nos meus sonhos, te via!
eu era só, e não tinha
entre aqueles fraguedos
senão tu, que os meus segredos
no silêncio adivinhasse.
Ninguém viu a minha alma...
Tanto amor, tanta poesia,
eu pensei que, se a dizia,
lhe abastardava o perfume.
Era egoísmo? ai! não... ciúme?...
Também não... nem hoje sei
como escalda o vivo lume
desse inferno... e creio, e juro
que me, lá, não queimarei...
Mas o teu nome adorado,
que eu não disse, nem diria,
o meu sacrário de afetos,
que não fora profanado,
e eu pensei nunca seria...
o nosso amor, tanto a medo,
escondido num segredo,
todo o mundo o conhecia.

Desceu do céu, despenhou-se
para vir na sociedade
receber a torpe marca
duma impostora piedade!
Lamentavam-te... previam
que as flores murchas caíam
do teu diadema!... Devassos!
Eu não sabia que o amor
murcha as rosas do pudor,
nem pudera inda sentir
que o diadema da candura
da fronte pode cair!

Que enlevos puros mataram
os moralistas zelosos
daquele amor inocente!
Que puro sonho acordaram
com seus gritos “virtuosos”
dum preconceito impudente!

Que a sociedade, atalaia
de incautas virgens, proclama
quando a virgem sente, e ama,
com descuidada efusão,
que do amor a flor desmaia
nos seios do coração,
e que é desonra a pureza,
e blasfêmia a devoção.

Amor, do céu refletido,
pura cintila da flama
que diviniza a paixão,
oh! angélica virtude,
como te arrastam na lama!...
Vê, que máscara hedionda
os hipócritas te dão!...
Despem-te as cândidas galas
que, no berço, a fé te deu!
Nua das joias, que o gênio,
emprestadas, pede ao céu,
mostram-te esquálida, sórdida,
vagas, espectro do susto,
gemes, golpeada nas carnes
sobre o leito de Procusto,
onde o hipócrita demarca
o tamanho à honradez!...

A candura de teus lábios
manchou-ta um beijo?... talvez!...
na tua coroa de virgem
nenhumas flores já vês?
Olha... pede à sociedade,
que te abriu os olhos de alma
à nudez da realidade,
que tos feche ela, outra vez...
.....................................................

XI
E eu vi que o mundo era triste!
vi um cortejo humilhado,
inaugurar o reinado
do dinheiro e da torpeza.
Vi a púrpura do crime
nos faustos da realeza;
vi a nobre dor, que oprime
quem quis ser leal à honra,
enxovalhada de insultos,
que se ostentam, sempre inultos,
sob a máscara dourada.


Em leilão apregoada,
vi que a mulher se vendia,
não de rojo e maniatada,
mas, voluntária, sofria,
enquanto ao luxo sorria,
cativa no coração.
Quis sondar-lhe a alma, e pude
sobre o peito pôr-lhe a mão;
achei-a fria, sem pena
da aviltante condição,
do rebaixado desdouro
a que, na alma, a condena
mais um vil punhado de ouro.

Conheci homens altivos
de soberba independência,
encararem, revoltados,
os opulentos, manchados
do pranto da indigência.
E, depois, vi-os passarem,
na carruagem pomposa,
e de lama salpicarem,
com visagem desdenhosa,
a indigência importuna..

Vi roçar-se o vil talento
pela estúpida grandeza
dos heróis improvisados.
Em degradante proscênio,
vi poetas, laureados,
pelas migalhas da mesa,
assoldadarem o gênio
a miseráveis lentilhas.

Vi a luz de que tu brilhas,
fulgurante divindade,
refulgir, espavorida,
da ciência, pervertida
ao sabor da sociedade.

Vi apóstolos da luz,
que da base demoliam
o vulto inútil da cruz.
E em redor da cruz gemiam
muitas crenças virtuosas,
que a penúria perverteu.
Umas... o ouro cegou-as...
outras, a campa fechou-as;
e são estas da virtude,
moribunda, quase extinta,
o derradeiro troféu.

Vi as ânforas, fecundas
de inesgotável poesia,
jorrarem ondas de metro,
meigo de estilo e harmonia.
Nunca, tão alto, subira
a musa grega, na lira
das canções apaixonadas.
Oh, que almas tão cativas!
que paixões, que ânsias vivas
dos aéreos sonhadores!
Foi-se Deus, mas veio a crença
na mulher de áureas madeixas;
Portugal fez-se Provença
de arroubados trovadores.

Irrisão! Todo esse afago
de entusiasmo forçado,
esse exaltar-se do engenho
pela arte eletrizado,
em cadências numerosas,
eram modos de poesia,
gentilezas primorosas
dos artistas da harmonia.

Quando Byron domina
uma escola, a do “cansaço”
todo bardo a lira afina,
pelo tom do desalento;
todos têm de fogo um traço,
no espírito, sedento
de vida, escassa no espaço,
de paixões, que n’alma grande
são incansável tormento.

Soa um canto harmonioso,
rico de afetos divinos.
Quem o canta? É Lamartine.
Já não há quem não afine
naquela corda os seus hinos.
Sai das trevas o poeta,
crê, adora, vive, sente,
consulta, à noite, as estrelas,
chora em estilo de profeta,
canta em êxtase fervente,
inveja a sorte do Tasso,
quer a dor de Bernardim!
há pouco ainda o cansaço
lhe dá tudo escuro e feio...
felizmente, a crença veio
envolver tudo em cetim!

Carecia de alma a lira,
que tantas crenças fingia.
Era a formosa mentira
esmerando-se em branduras
de harmoniosa magia.
Nem a mulher respirava
no coração o perfume,
que o sacerdote do culto,
o cantor, desperdiçava
em cada altar, onde oculto
um novo anjo sonhava!...
Que o seu amor era imenso,
infinito e bem podia,
por cada anjo, que via,
repartir um grão de incenso,
e um diadema... de poesia!


Era na vida, sem sonhos,
nesta existência real,
que eu procurava o poeta,
em seu amor imortal.
Não o vi... Minto... encontrei-o
no vigor da vida e fé,
cheio de esperanças, sentindo
quanto o amor, na infância, é;
aspirando, em cada nota
do silencioso canto,
o aroma puro e santo
de remontada afeição;
segredando o sentimento,
que na alma não cabia,
à mudez da solidão,
onde o silêncio é poesia,
que adormece o sofrimento;
onde a mágoa, contraída
pela mão do desalento,
sente que é maior que a vida,
e suprema sobre a dor.

A ti, prodígio de amor,
joia de extrema amizade,
um gemido, que a saudade
irá comigo gemendo
pelas veredas escuras
desta existência, sem ti!

***

Amavas!... Eras exemplo
de probidade no amor.
Viste, neste mundo, um templo
de sincera adoração,
sem misticismo impostor.
Amavas, com que ternura,
com que virtude severa!
Renunciaste os prazeres,
que o mundo fácil te dera!...
Com que nobre sacrifício
amparavas um arcanjo,
na sua extrema agonia,
quando na terra despia,
o invólucro mortal,
a crisálida dum anjo!

A chorar, tu me disseste
que o amor, ao pé do túmulo,
era sagrado, sublime.
Era!... e a dor, que sustive
calada no coração,
sem o remorso dum crime...
essa dor é preito à honra,
é majestosa ovação,
que, pelo instinto, concebo;
é solene desmentido
no labéu torpe, cuspido,
na face da geração,
em que nasceras, mancebo!
...........................................

***

Aquela gentil criatura
chorava, não pela vida,
mas por ti, na despedida,
tanto ao pé da sepultura.
E tu, febril, inspirado
por não sei que impulso aéreo,
rasgas o seio ao mistério,
falas do transe da morte,
dizes que a morte é mentira,
para a alma, que, em transporte,
a novos mundos aspira.

E ela ouvira-te, suspensa
de teus lábios, e, improviso,
lhe subira o sangue às faces.
Nos roxos lábios um riso,
instantâneo, lhe fulgura,
riso de fé e esperança,
de conforto, e confiança
na tua fé, que não pode
restringir a sepultura.

Fria mão, quase cadáver,
em tua mão tu sentiste...
Duas lágrimas lhe viste,
as derradeiras, descer...
e nos lábios incendidos
viste-as brilhar, e morrer.
Entre soluços quiseste
dar-lhe um adeus... não pudeste!
Ela... sim!... no paroxismo,
sorrindo à beira do abismo,
não foi mulher na coragem!
eram dum anjo a mensagem
destas palavras, que ouviste:

“Amei-te muito... bem viste
que fui tua, enquanto pude
chamar à vida, que tinha...
tanta no meu coração...
chamar-lhe tua... não minha...
E tanta vida... acabou!...
Hoje... não posso... já não
ouso dizer que sou tua...
da sepultura é que sou!
Meu esposo n’alma, e irmão...
hás de ouvir-me... Na agonia
da mulher, que muito amou,
sem um vestígio de crime,
quem nos diz se Deus imprime
um cunho de profecia?!
Olha... o mundo é muito estreito
para a vida, que transborda
os limites de teu peito...
Não podes viver aqui...
Querem-te os anjos... não posso
pensar que o “sempre” da morte
quer dizer que te perdi...
Não! tu vens... breve, buscar-me
no céu, na estrela, que vimos,
quando a Deus, ambos, pedimos
outra existência... mas nunca
outro amor!... Vens esposar-me,
no espaço imenso, abraçar-me
num devaneio imortal...
Não vás à campa chamar-me...
não vás... que aí nada existe...
Esse silêncio é fatal...
Gera na alma o terror
ímpia descrença... talvez!...
Qual me viste, e qual me vês
foi um sonho... um fundo abismo
onde cai murcha uma palma...
Sabes a vida do amor?
Vai ser a minha, sem dor,
vida infinita da alma...
...........................................

Derradeiro beijo, amigo!...
Adeus... é tarde... escurece
o meu belo e curto dia...
Vem depressa, vem comigo,
dou-te metade dos louros
do meu sonhado troféu...
Serás, esposo... o primeiro
entre os arcanjos do céu...
Dá-me outro beijo...

E morreu.

XII
O ateu, Senhor, não olha,
cego de orgulho, não vê,
em tantos lances da vida,
o vosso dedo, que os traça.

Da “razão” escravo, crê
na ventura, e na desgraça.
Reina o acaso, ou fatalismo,
vãs palavras, galardão,
com que se brinda a piedade
e laureia a corrupção.

Surge a escola, o aforismo,
que reputa inútil Deus:
É mentira o bem, e o mal,
nada é vil, nada é sublime;
não tem cadafalso o crime,
nem a virtude troféus!

E eu, Senhor, sinto-me grande
quando, na terra, pequeno,
até, na dor abatido,
vejo que o homem se move,
involuntário, impelido,
por misterioso aceno
duma suprema vontade.
Nunca tive um claro dia
de fugaz felicidade,
desde que peço à poesia
ilusões para viver!
E que flagelo seria
ser desgraçado, e não crer
na Providência que ordena
seja galardão da pena
este condão de enlevar-me,
forte da própria agonia,
nas visões, que pode dar-me
o vigor da fantasia!

E eu, Senhor, vejo o mistério,
nos longos dramas do pranto.
O terror, que infunde o espanto
na maquinal multidão,
o impotente orgulho humilha
desta vaidade, que é filha
da presumida razão.
Nos golpes grandes, que vemos
retalhar a humanidade;
nesses açoites extremos,
que deixam sangue a escorrer,
e que a soberba do homem
encara sempre a gemer...
nessas tormentas, sem porto,
nessas trevas, sem fanal,
quando o alento afrouxa, morto;
sem ver ao longe um indício
que lhe diga: “és imortal!...”
descrer de Deus, do conforto,
fora um tremendo suplício,
luta de morte infernal!

Senhor! eu vi nas orlas do ocidente
um negro disco, triste véu de luta
dilatar-se, esconder o Sol nas dobras.
E no dorso do mar, sereno há pouco,
perpassa o furacão; e o mar cavado
geme, soturno, como geme em ferros
o leão faminto que fareja o sangue.
Relâmpagos eu vi de luz sinistra
lampejarem nas trevas, azulando
as escarpas das ribas fragorosas.

E eu vi, Senhor, ao longe, entre coriscos,
um vulto escuro a balouçar nas vagas,
romper abismos, ressurgir ao cume
da procela, que roça o bojo às nuvens.

E a terra o vulto vem, fugindo à morte,
e a morte, em derredor, vem-lhe mostrando
as fauces do sepulcro, e as agonias,
que gelam de terror o sangue, e a alma!

Mais perto, eu vi; Senhor, um tubo negro
ruir, vergado ao vórtice, que ruge,
nas fendas do baixel, que se retorce,
nos braços da tormenta, em luta insana.

Em terra, ouvi um grito... eram mil gritos,
erguidos para vós, Senhor, no afogo
da dor, do desespero, inferno incrível
em tantas almas, que não têm só uma,
que seja, Deus do Céu, por vós ouvida!
Do mar percutem sons de aflitos brados;
ouvem-se os nomes dos que em terra pedem
um milagre, um perdão, se aquela morte,
a morte do afogado expia crimes!

“Mãe! socorro, ó mãe!” dizem as vozes
que vêm das ondas no bramir do vento;
“filho, querido filho!” a mãe responde,
sacudindo nas mãos inútil facho,
que mor terror incute aos naufragados.

E a morte, em derredor, mostra-lhe as fauces
do cavado sepulcro, e as agonias,
que gelam de terror o sangue e a alma!

Por quem chamavas tu, na tua angústia,
amigo, anjo no amor, anjo na morte?!
Por quem chamavas tu, filho extremoso
de estremecida mãe, de pai, que as rugas
da velhice precoce o pranto abrira?!
Por quem chamavas tu? Dizem que um nome
em teu lábios vibrou, roxos da morte,
um nome... era o de Deus, que fora sempre
o teu fanal na dor, fanal extinto
no lance atormentado em que o procuras!

E a morte, em derredor, mostra-lhe as fauces
do cavado sepulcro, e as agonias,
que gelam de terror o sangue e a alma.

E eu, Senhor, que ouvira o grito
daquela imensa aflição
buscar no amor infinito,
piedade, implorada em vão,
não quis negar-vos, Senhor!
Nem pude ver na tormenta
do irado mar, que rebenta,
tocado por vossa mão,
um capricho sanguinário
do vosso braço arbitrário,
que se apraz cavar nas ondas
a procela, a morte, o abismo...

Senhor, não pude negar-vos,
porque eu vi no paroxismo
dessa angústia de cem vidas
a inocência, a candura
pedir na mesma tortura,
o vosso amparo, Senhor!
Vi dois anjos abraçados
à margem da sepultura,
repassados de terror,
celebrar, na morte, o amor,
que seu pai lhe dera em vida.
Vi, no vórtice, sorvida
uma existência sem mancha,
um homem, tipo da honra,
um moço sem mocidade,
austero na probidade,
desvelado filho e irmão;
e, para todos, sorriso
de bondade, e de afeição.

E morreram, quando a súplica
fervente, ardida, ansiosa,
era a vós, Senhor, mandada
nas vascas incomportáveis
daquela morte horrorosa!

Pois a prece afervorada
em tantos lábios, meu Deus,
compadece os maus da terra,
e não comove a piedade,
eterna essência dos céus?!
...........................................

E o ateu, Senhor, não olha,
cego de orgulho, não vê,
em tantos lances da vida,
o vosso dedo, que os traça.
Dores há aí que desluzem
a luz da crença. A desgraça
com ervada flecha passa
o seio mais forte em fé.
A esperança estremece,
a fé vacila, e perece,
e a fé, meu Deus, que é
senão a humilde aliança
com um ser que não seria
sem mistério, que a razão
não desvela, não alcança,
se a não leva o coração?

Amigo! Eu longo tempo, alucinado
na sinistra visão daquele transe,
esqueci-me do anjo, arrebatado
de teus braços, um dia.

Lembrei-me de ti só... pedi-te à campa,
procurei-te no espaço, alma gemente,
pairando sobre o leito de agonia,
da atribulada mãe.

Depois, amigo, recordei, que o anjo
te fizera na morte a profecia
da tua breve ausência dessa alma,
que da terra, tão cedo, te fugia....
E busquei-te no espaço.
Busquei-te, e nesta febre de saudade,
que ilumina visões de fantasia,
um luminoso traço,
vi das trevas profundas levantar-se
e esconder-se no céu...
Instantâneo se rasga o denso véu...
depois, mundos de luz, num giro eterno,
os olhos de alma, deslumbrados, viram.

Confusos turbilhões de aéreas flamas,
nas límpidas torrentes cintilavam
De elétrico fulgor.
De toda a parte um hino, em sons estranhos,
de pulcras harpas, ressoava: “Hosana,
ao gozo eterno dum perpétuo amor!”

Fendendo o espaço, com a ígnea cauda
da estrela errante, duas flamas, numa,
que cingem nuvens do candor da espuma,
vi, rápidas, passar.

Um préstito de arcanjos vai cortando
as amplidões do céu, e a lira eólia
dos cantares sagrados ao Senhor,
cuja fronte radia luz ondeante
em carmes divinais vai entoando:
“Hosana,
ao gozo eterno dum perpétuo amor!”

Eu vi-te, pois, no céu. Eras amigo,
devias sê-lo, ó alma! A profecia
do anjo, na agonia,
cumprida foi! A morte atormentada,
o transe da asfixia, nas roscas da procela,
foi tributo de dor, extremo grito,
que pagaste na terra, onde, proscrito
dum mundo teu, e dela,
poucos anos te foi pesada a vida.

Espíritos, brilhai no seio esplêndido
das lúcidas esferas!
Vagai, sombras eternas! que eu vos veja
como aceno de esperança à minha dor!
Ao ver-vos, minha alma aspira, ufana,
um prêmio no martírio animador!
Juntai ao coro de anjos vosso hino,
num salmear divino,
que eu não possa imitar! Dizei: “Hosana,
ao gozo eterno dum perpétuo amor!”.

XIII
Oh Alda, eu, quando ouvi gemer o bronze
além pelas quebradas da montanha,
perguntei se morreras.

“Morreu!”

me responderam Lábios frios,
faces sem pranto, corações sem dor.

“Viveu!”

Íntima voz ouvi....

“Viveras!...”

Alda, querida irmã, eu vou de joelhos,
orar por ti a Deus!
Pura tu eras, eras santa... e a prece
será talvez a flor, que orvalham lágrimas,
e não cabe em troféus
troféus de mártir, qual tu foste aqui!

Embora a minha prece inútil seja...
é tão doce o chorar, pedir por ti!...
é dor suavíssima elevar-se a alma
neste enlevo de fé, que diz ao Eterno:
Senhor! em vosso amor entrou um anjo!
Senhor! dai recompensa à virtuosa!
Senhor! realizai-lhe as vivas crenças,
que lhe deram coragem na tortura!
Olhai, Senhor, tragou quanta amargura
o cálice de infeliz em si continha.
Recolhei-a, meu Deus, em vosso seio...
Vai pura, não traiu, no desespero,
a divina missão para que veio.
Mensageira da dor, Senhor, quiseste,
mandá-la aqui sofrer... Sofreu, calada,
humilhou-se no altar do sacrifício,
o colo sujeitou à mão cruenta!

Fibra a fibra, retalhada,
gemidos... nem um só lhe ouviram homens
nem souberam, que a morte a devorava,
que veneno lhe foi n’alma vertido,
nem viram gotejar o sangue oculto
do pungente cilício, que lhe encrava
de agudo espinho o coração transido.
............................................................

Oh Alda! pavoroso sonho eu tive.

Descera a noite. Escuridão espessa,
caliginoso céu, trevas do caos
pesavam sobre a terra, que fremia.

No soturno rugir do fogo interno
das profundezas deste abismo lôbrego,
dum anjo eu vi fulgir a asa cândida.
Subiu, subiu, librou-se, alto, no espaço,
e na vasta amplidão que cinge o globo,
com sonorosa voz esperta os ecos:

“Abismo, que o tigre nutres
de infâmia e de rancor!
Terra, fojo de serpentes,
latíbulo de abutres!
Potro de espinhos pungentes,
gotejantes de sangue,
onde a Virtude se estorce
e desfalece, exangue.
Manda dizer-te o Senhor,
terra, terra maldita,
que o pesar, a dor infinita,
segunda vez pungiu
a suprema onipotência
da inteligência incriada,
que te fez surgir do nada,
homem de barro vil!
Resfolga sangue, precita,
terra, terra maldita,
que te escondes num covil,
como a fera esfomeada,
a devorar, no segredo,
a virtude indefesa,
que se debate na presa do
cinismo feroz!
Pávida furna do algoz,
terra, terra maldita,
és na ciência infinita,
a mancha da criação,
que, tantas vezes, provocas
eterna maldição!
Maldita sejas, ó terra!
O teu nome maldito
soa no espaço infinito,
na voz do Eterno,
no urrar do inferno,
soa no canto da ave,
que louva o Senhor,
enquanto, homem, tu blasfemas,
Caim sanguinolento,
de infâmia avarento,
contra a virtude dos céus,
que desce à terra, um momento,
contra o santo sofrimento,
contra ti, e contra Deus!
Terra, terra maldita,
és, na ciência infinita,
a mancha da criação,
que tantas vezes provocas
eterna maldição!
Maldita sejas, ó terra,
como Lúcifer, maldita
da maldição infinita,
que o anjo mau fulminou.”

E o meu sonho mudou. Rasgam-se as trevas.
Límpidas nuvens pelo sol doiradas,
a prumo, sobre o globo, a fronte erguem
às campinas do céu, cor de ametista.
Do seio delas, que tocara o anjo,
da maldição de Deus, terrível núncio,
ó Alda, rutilaste de improviso.
Ligeira vibração te vibra as orlas
da cândida mortalha. A fronte cinge-ta
de mirto funeral verde grinalda.
Teu rosto é lívido, e as pendidas pálpebras
são roxas, cor dos lábios mal cerrados,
daquele extremo “adeus” que murmuraste,
cingida ao coração da mãe, que apertas,
ao seio represado de amarguras,
no desejo de erguê-la ao céu contigo. Três
vezes te chamei, Alda! Teu nome
não tinha eco na mansão da glória.
Teus olhos não abriste à luz da terra;
teus lábios não moveste à fala de homens.
Os anjos, esses sim, ao perpassarem
em luminosas legiões no espaço
osculavam teu rosto, e tu sorrias
um rápido sorrir.

Depois, ó Alda,
os anjos pararam,
as harpas calaram
os cantos, que ouvi.
Silêncio profundo
nos orbes do mundo
se fez, nesse instante.
Celeste cintila
num disco rutila
em volta de ti.
E a terra a teus pés
aos justos da terra
pergunta quem és;
e os justos levantam
as mãos, e descantam
um salmo ao Senhor.
E os anjos, e os santos
respondem aos cantos,
que sobem daqui.
Silêncio profundo
nos orbes do mundo
reinara, outra vez.
Os olhos abriste,
e a terra, que viste,
chorando, tu vês.
Os lábios frementes
entoam gementes,
chorada canção.
Ó Alda, teu hino
humano e divino
recordo... era assim:

“Sofri... sofri, muito... na curta existência,
mas longa de mágoas, sem culpa, Senhor!
Fui grande nas crenças do amor, que previa;
e, ao ver quanto a vida real nos mentia,
senti que era grande, nos transes da dor.

Sonhei, como sonha a candura... Embalei-me
nos místicos hinos da lira infantil.
Pensava que à débil razão da pureza,
nas lutas do crime, bastava a defesa
da própria candura... vaidade pueril!

Diziam que a vida era eivada de dores,
contavam martírios, em volta de mim;
ouvia, e pensava que o mal era o prêmio,
de quem procurava delícias no grêmio,
do mundo, que exulta em mentido festim.

No ermo escondida, obscura, sem nome,
meus pobres desejos ninguém mos vedou;
sofria, se, às vezes, a brisa noturna
levava de rastos a cândida urna
do aroma da rosa, que um sopro esfolhou.

Ao longe, o que eu via no drama da vida,
mal posso dizê-lo... não era ambição!
Dizia-me a alma, que, ao longe, existia
o anjo num homem... um sonho que, um dia,
devera espertar-me em ditosa afeição.

E esperava ansiosa a promessa do instinto.
Por ele às estrelas do céu perguntei;
das brisas da noite seu nome aprendia;
nas sombras da acácia pensava que o via
colher-me o suspiro que, em vão, suspirei.

E esperava ansiosa, por ele, indecisa
imagem de arcanjo, que em sonhos flutua.
No peito, escondido, calava o mistério,
ninguém me seguira no êxtase aéreo,
amor confiado aos silêncios da lua.

Senhor, depois vi, quanto a mente ansiara,
um ente a dizer-me: — Em sonhos te vi.
Sonhei-te no berço, busquei-te no mundo...
Es tu... deves sê-lo!... és o mito profundo
que em traços divinos na alma esculpi! —

Pois sim, serei tua... a ti me consagro...
Sou tua e não minha... é teu este amor!
Serás meu verdugo, se lágrimas queres,
se o pranto é destino de tantas mulheres,
será meu destino humildade na dor!

Ouviu-me, e nos lábios passou-lhe um sorriso...
de amor? de piedade? quem sabe dizer!
Exprime-se em risos a alma corrupta?
no lábio o sarcasmo revela essa luta,
que, em risos, procura o perverso esconder?

Depois... tudo soube, Senhor! A desgraça
toldou de improviso de negro o meu céu!
Apenas trilhara no mundo um só passo,
eu li a tristeza desse homem... “cansaço”
sepulcro de afeto que nunca nasceu!

Caí, Deus eterno, caí das alturas
do orgulho, da esperança, do amor, da ilusão!
Senti gelo n’alma, senti que tal sorte
não tinha recurso entre a vida e a morte...
Morrer com valor fora a minha ambição!

Ai! tudo que a terra na infância me dava
de belo, de puro, de encanto, e de amor,
vestiu-se de negro, de enfado, e de enojo,
caí de abatida... esta fronte de rojo
não pôde exaltar-se até vós, ó Senhor!

Gemi, solitária... ninguém pôde ouvir-me
gemidos represos no peito... ninguém!
Impus à minh’alma um silêncio forçado...
Calei-os... e a campa, mistério sagrado,
não há de na terra contá-los também.

Senhor! dai-me um prêmio por tanta amargura,
um prêmio que a mártir vos pede... o perdão!
Perdão, para o homem, que fica no mundo,
no peito cevando um remorso profundo,
qual sombra do crime, fatal punição!

CORO DE ANJOS
“Graças, Senhor, que remiste
do cativeiro da vida
a pobre mulher cuspida
na face, no coração!
Graças, Senhor, que desceste
vossa mão compadecida
ao atormentado abismo
daquela imensa aflição.
Graças, Senhor, que tiveste
compaixão da desvalida,
da pobre mulher cuspida
na face, no coração!”

XIV
E, portanto, o mundo é triste,
vorazes herpes consomem a
natureza corrupta,
sórdida, vil, dissoluta,
degenerada no homem.
O crime ostenta-se, impune
com desgarro insultuoso.
Ao opróbrio o ouro une
um privilégio afrontoso
de aviltada tolerância.
Daqui foge, espavorida,
a virtude que não curva
à insolente arrogância,
ao despejado impudor
que vos arremessa à face,
o dinheiro afrontador.

Filha, vergôntea mimosa,
nascida à orla do abismo,
olha o sorvedouro imundo
donde o esquálido cinismo
te vê crescer para o mundo!
Vê, na voragem, sumidas
tantas afeições cuspidas,
augustas crenças manchadas,
tantas almas combalidas,
flores duma hora manchadas
pelo espírito do século!

E é assim o mundo, filha!
Lê-me estes quadros: decora,
imprime-os no coração.
Mas o tom destas palavras
os teus ouvidos desflora?...
Ilusões te mato?... Embora...
Eu sei que a alma se humilha,
quando se vê tão de rastos,
em tão baixa condição.
Mas o mundo é este... aprende-o...
Quero erguer-te o véu do enigma;
desde já... criança, entende-o,
qual ele é... não te aventures
a sondá-lo em outra idade,
quando o capricho, a vaidade,
mais calculada, e sutil,
cuida que pode em beleza,
o que não pode a destreza,
simulada em torpe ardil.

Verdade amarga! É forçoso,
custa muito acerbas dores
pegar da mão inocente,
conduzi-la aonde as flores
têm o áspide latente,
e dizer-lhe: “a flor da fé,
nas ilusões da candura,
filha, esmaga com teu pé,
porque não achas ventura,
como a quer teu coração.
Sonhaste afetos?... mentira...
Reprime a santa ambição,
antes que o mundo te fira
com desenganos mortais.
O gênio inspira-te imagens,
na região, onde vais
pedir culto e vassalagens
ao teu amor grande e nobre?
Quebra a lira, o mundo é pobre,
não tem amor para ti...
Ovações, prêmios à lira,
não se dão... roubam-se aqui.”

Verdade amarga!...
Foi crime,
foi talvez em outras eras,
desluzir doces quimeras,
o melhor que a vida tem!...
nessas épocas austeras
de temor, e amor a Deus.
eram infames as frontes
que enastram, hoje, troféus.
A inocência velada
era a sedução punida.
Podia a fé, descuidada
pelos desvios da vida,
confiar-se às ilusões.
Entre o dever e as paixões
estava Deus... nome intruso,
dizem os sábios do tempo,
pelo fantasma do medo.
Provou-se inútil, escuso
esse mito, vão segredo,
que abastarda o coração!...
É que o amor quer expandir-se,
nos horizontes infindos
da fervente aspiração!

Quer tocar dos sonhos lindos
a realidade, o gozo,
que nenhum Deus caprichoso
manda sentir, e conter.

Entre as paixões e o dever,
que nos dais, sábios? que lei
em vosso nome, filósofos,
à inocência darei?

Uma só. Filha, não temas
manchar as crenças supremas,
que te elevam para o céu,
se, tão cedo, ascosas manchas
és forçosa a ver, aqui.
Ninguém tens... filha, sou eu,
eu só, entre o mundo e ti.
Contra ele as débeis armas,
as que eu tenho, ele mas deu;
ostentou-se-me qual era,
envelheceu-me, num dia
tanto viço e primavera,
tanto amor, que se expandia,
em troca de vitupérios...

Anjo, crê, não há mistérios
que tu não possas sondar.
Tudo aqui descobre a face,
tudo se mostra qual é.
Temes as chagas tocar
deste mundo apodrentado,
sem o bálsamo da fé?
Não temas! Abre esses livros
onde o gênio atormentado
horríveis quadros gravou.
Caia, embora, espedaçado
o véu, que a terra separa,
do ideal santo de crenças,
que a tua infância sonhou.
Deixa-o cair... tarde ou cedo...
chorarias... sem remédio...
quando o mentido segredo
te rasgasse alheia mão...
Rasga-o tu, que, nesse esforço,
quebras o espinho ao remorso,
poupas muito do que é vida,
crença e luz, no coração.

Ouve:
Que a flor mais recatada,
toda amor, e candidez,
sem ambições, descuidada,
tranquila, acalentada,
em recordações talvez,
de altos céus onde voara
para vir pousar aqui...
um anjo, filha, que eu vi,
e, na alma, retratara,
com belos traços, que, apenas,
vejo impressos, hoje, em ti...
essa, que o mundo apontara
inacessível, defesa
ao astucioso verme
das celeradas paixões,
afrontosas à pureza!...
...........................................
...........................................
...........................................

Que é do teu aroma, flor?
a tua alvura, açucena?
como pôde o ardente amor
daquela imensa paixão
esfriar, tão cedo, cinza,
de escandecido vulcão!
Como pode ser que eu sinta
sobre o peito, fria a mão,
quando peço ao meu passado
reminiscências de ti!
Que triste imagem, sem alma,
hoje te vejo, tão outra,
daquela imagem, que eu vi,
quando prostrado a teus pés,
te pedia... o quê?... que fosses
a desgraçada, que hoje és!...
...........................................
...........................................

Filha! se há tesouro, caro
de sofrimentos que apenas
recordá-los... é morrer...
és um tesouro de lágrimas,
que me sorris, e condenas;
dás-me instantes de prazer,
em troca de anos cortados
por pungidora aflição.
Vês-me nos lábios forçados
o sorriso contrafeito
que responde ao beijo terno,
mas não vês que dor, que inferno,
escondo no coração.

XV
Deixa-me recordar, Maria, um hino
de fé, verdade, e amor,
ouvido por ti só.
Ouça-o agora o mundo... eu profanei-o...
E tu... ambos, no pó,
calcamos essa flor.

Não recordas? Eu sim! Passaram anos,
revoltos de paixões,
muito ao longe de ti.
A saudade não mata... é grande o homem!
Vence sempre, e eu venci...
Achei consolações!

Mas não pude esquecer-te... O que tu foras
quem sê-lo poderia,
na terra para mim?
“Mulheres”? essas não! A alma nutre-se
de enlevos, sem um fim...
se o tem, a alma esfria.

Escuta o hino:

Em horas de agonia,
quando, em volta de mim tudo era triste,
meu anjo, eu te chamei, e tu me ouviste;

Quase extinta sentia,
no frio coração, a luz do amor,
meu anjo, eu te chamei, na minha dor.

Sem fé, sem luz, sem guia
sem alma para o mal, nem para o bem,
virtude e crime olhava com desdém.

O meu passado eu via
de pálidas saudades nubiloso...
sentir assim é triste... é tormentoso!

Contristada, sombria,
a alma perde aquela ardente ânsia,
que tão rica de esperanças vem na infância,

E desta dor vivia
o pobre coração... neste morrer!
Afiz-me ao fel... achei no fel prazer!

Ao perto me sorria
a estância, onde não pulsa o coração...
Mal sabes quanto dói sorrir então!

Apaga-se a poesia,
os alentos congelam-se... Que resta?
O cálculo, sem fé, que o mundo empresta.

XVI
Saudade, que me dóis, não fujas, crava
o teu pungente espinho sem piedade;
grava em meu coração, ó deusa, grava
os belos quadros da florida idade.
Eu quero padecer. Desta alma trava,
assombra-a de tristezas, ó saudade.
Cala-me os hinos do falas futuro;
traz-me o passado, e aquele amor tão puro.

Aquele amor... Não podem já dizê-lo
lábios afeitos a mentir amores;
recorda o coração o quadro belo,
mas não podem pintá-lo falsas cores.
A frase é falsa, é louco, é vão desvelo
querer de árido peito haurir verdores.
Não sinto, não, por mais que o seio abra,
ungir-me a fé a juvenil palavra.

Comigo estás, mulher, sempre comigo;
em sonhos, és, qual foste, um anjo, um nume;
brilha o sorriso no teu rosto amigo,
ferem teus olhos da paixão o lume.
Não acha em nosso peito infausto abrigo
o Lúcifer maldito do ciúme:
em sonhos, és, qual foste, o dom extremo
que concede aos da Terra o Ser-Supremo.

E pude-te perder, tesouro imenso,
após tamanha luta de incerteza!
e pude arrefecer o fogo intenso,
fundindo nele a única riqueza
que neste mundo tinha... Ai! quando penso
que, neste amor, senti mais que avareza,
como Jó na penúria transformado,
suspeito que o Senhor me há castigado.

Recorda-te. Era o Sol no ocidente,
beijavam-te seus raios moribundos.
Éramos dois, uma só alma ardente,
voando deste mundo a novos mundos;
o lábio estava mudo; mas veemente
orava o coração; ambos jucundos,
anelantes de amor, nesse transporte,
talvez a Deus pedíssemos a morte.

Pedimos, sim; tal foi nossa ventura
que logo ali nos excrucia o medo
do breve instante que a bonança dura
neste de prantos mísero degredo.
Um nefasto presságio nos augura
à nossa doce crença a morte cedo:
nos extremos da dor, ou da alegria
pede-se a campa como a eu pedia.

Por que te amei eu tanto, se era crime
que o meu amor egoísta e delirante
calcasse a ímpia lei que te reprime
pulsar no peito o coração amante?
Se a mão do homem nessa fronte imprime
de serva humilde o estigma aviltante,
por que fui eu, em louco amor aceso,
fazer-te dos grilhões sentir o peso?!

Querida, o teu viver era um letargo;
nenhuma aspiração te atormentava;
afeita já do jugo ao duro cargo
teu peito nem sequer desafogava.
Fui eu que te apontei um mundo largo
de novas sensações; teu peito ansiava
ouvindo-me contar entre carícias
do livre e ardente amor tantas delícias.

Não te mentira, não. Sentiste-o, filha,
esse amor infinito e imaculado,
estrela maga e que, incessante, brilha,
no puro peito ao casto amor sagrado;
afeto nobre, que jamais partilha
o coração de vícios ulcerado.
Não sentes, nem recordas já, sequer?
Quem deste amor te despenhou, mulher?

Eu não. Se muitos crimes me desluzem,
se pôde transviar-me o seu encanto,
ao menos, uma só me não recusem,
uma virtude só: amar-te tanto.
Embora injúrias contra mim se cruzem,
cuspindo insultos neste amor tão santo,
diz tu quem fui, quem sou, e se é verdade
o opróbrio aviltador da sociedade.

E eu disse-te: “Este amor não te condena,
perante Deus, perante a consciência;
podes o mundo contemplar serena
qual virgem soberana de inocência;
o remorso cruel não te envenena
o sentimento desta infinda ausência;
se eu, porventura, de ti for olhado,
não volverás o rosto envergonhado.

Não é verdade, pois, irmã querida,
que não houve mulher mais adorada?
Escuta o coração: viste na vida
consagrar-se afeição mais recatada?
Conheces que jamais foste traída,
nem podes ser com outra confrontada?
Sabes o que é amor profundo e eterno,
que foi meu céu, e me é hoje inferno?
...........................................................

Por que assim me despenhaste
nesta insanável tristeza?
Dá-me conta da pureza
da alma, que te entreguei.
Dá-me os prantos que eu chorava
quando tuas mãos beijei.
Dá-me as preces, que eu orava,
as preces que eu já não sei!...

XVII
Pude na alma concentrar-me,
vivos lances recordar-me,
lances daqueles meus dias,
poucos, longos de agonias,
sacrificados a ti.
Escravo, a rastos, se querias,
renunciei-me, aviltei-me,
de altivo, que era, desci,
para elevar-me a teus olhos.
Entre nós a tempestade
da tartufa sociedade
cavara abismos e escolhos,
humilhações, que venci...
Tudo por ti!

Soberbo, e ingrato furtei-me
às honrosas condições,
com que fizera infelizes
nobres, puros, corações
que conspiravam em dar-me
novos alentos no amor;
fui cruel, por libertar-me,
fiz-me escravo, e fui traidor.
Quis altear o teu prestígio,
incensando-te, sem alma,
cada afeto, e cada palma,
que, em peitos nobres, colhi.
Impassível, vi correrem
bagas de pranto, e sorri...
Fiz de bronze o coração,
abafei a compaixão...
Tudo por ti!

Eras escrava... eu sabia,
o teu pranto mo dizia;
mas esse pranto mentia;
pois que nunca a mulher nobre
o seu tormento descobre,
quando algemas a comprimem.
As que, a esmo, vão chorando
um barato pranto, imprimem,
como vergonhoso indício,
em cada lágrima fria,
indelével, feia mancha,
no seu falso sacrifício
de mentirosa agonia...
E, contudo, eu pude absorto,
no carpido desconforto,
com que choravas, Maria,
pude crer-te, pude amar-te
essa dor abençoar-te,
como irmão, acarinhar-te,
sofrer contigo... e sofri...
Afrontei... afrontaria
com desonrosa ufania
quantos verdugos o ódio
conjurava contra ti.
Sofrera opróbrios... bem sabes
que afrontas, mudo, curti...
Sofrera novas, e muitas...
Tudo por ti!

Apaixonada, rendida,
não temias ver manchada
tua honra, e denegrida
essa alma imaculada
de aleivosas tentações.
Nesse lânguido quebranto
de contrafeita tristeza,
que impostor era o teu pranto
de moribunda pureza!
E eu, tão velho nesta lida
de sondar os corações,
deixei-me ir, cega criança,
ao sabor das comoções,
de ternura, e confiança,
com que a mim te abandonavas,
naquele pranto... cuidavas
que eu via a dor dum remorso
pressentido, antes do crime?
Vi, decerto, vi... e o esforço,
com que o homem se reprime
na presença dessa dor...
É sublime, é maravilha!
luz do céu, que, raro, brilha
no que há nome aqui de amor.

“Pura ainda duma nódoa,
nesta face hei de cuspir!...
Esta consciência é pura...
e amanhã há de a tortura
este pobre anjo pungir,
abandonado, talvez,
por quem abismos lhe cava
de perdição, a seus pés!”

Não! virtude é tua a glória!
Venceste! desceste aqui,
quando o homem vacilante,
entre a mulher suplicante,
e o fogo vivo do amante,
alheado já de si...
vai manchar... E não manchei!...
De meus pés pura te ergui...

Serás anjo qual tens sido...
Serás! não profanarei,
esse laço santo, e ungido
pelos homens, ou por Deus...
Mulher... vês? não te perdi...
És, qual foste a casta esposa,
que, a sofrer vida de penas,
não pisaste uma só rosa
da florida capela,
que te faz, na dor, mais bela,
e, quanto mais desditosa,
mais radiosa!... assim te vi...
Anjo, assim te deixarei...
Perder mais?... mais perderei.
Tudo por ti!...
...........................................

***

Ai!... escrúpulos de poeta
são como a néscia inocência...
Pobre crente!... O bem pintado
duma estudada aparência
pinta-lhe coisas!... coitado!
O dom Quixote moderno,
não vê moinhos, vê anjos.
Sempre cético, no inferno
das desilusões, se o quer
uma pouca de arte e estudo,
arma sutil da mulher,
o desgraçado vê tudo!

E, depois, a “prosa” diz-lhe:
aquele “anjo” puro e limpo
de feias manchas da culpa,
que tu puseste no olimpo
caiu do seu pedestal,
não em braços de poeta
que lhe pregasse moral beata,
honrosa e discreta...

Bardo! o teu casto evangelho
desagrada já, de velho,
de infecundo, frio, e insosso!...
Os teus afetos são mitos...
Desce os voos infinitos
da região da quimera
às paixões... de carne e osso.

XVIII
...........................................
Pois, se eu não tenho alma
que supere o desconforto,
por que sorris, homem frívolo,
se te digo que estou morto?
se, perdida a esperança, existo,
sem amar, sem crer, sem fé...
se não é morte, o que é isto?
Pois um cadáver que é?

Esta vida é já castigo,
é já inferno em que peno;
vês palpitar minhas veias?
Ai! não é sangue, é veneno.

XIX
Ditosos são aqueles que percorrem
as difíceis paragens desta vida
opulentos de seiva, onde não morrem
os vívidos alentos da paixão.
Ditosos, porque têm, no transe extremo,
na alma hinos de amor ao Deus supremo
e ao mundo um suave adeus, no coração.

Assim, que poucos vão daqui ditosos,
quão poucos os que vêm com alma aqui!...
Seus últimos instantes são penosos,
excruciada a vida lhes correu!
Assim lhe fora a vida ao pobre amigo!
Ao resvalar-lhe o pé sobre o jazigo,
do fel o trago extremo, ali, bebeu.

Cortado de aflições, sorrindo a elas,
a mão de amigo dando ao inimigo,
acarinhando a morte, entre as procelas,
que a vil má fé do homem levantou,
do berço à sepultura vai sereno
a sorrir da tristeza ao torvo aceno
que, em leito de agonias, lhe acenou.

Caminha e leva n’alma atribulada
imagem de mulher, roubada ao mundo...
mulher, em vil leilão mercadejada,
acorrentada aos pés do seu chatim...
Resgatá-la... por quanto?... é pouco o sangue,
a força é débil nesse corpo exangue,
a vida não resgata, a morte sim!

Mau foi cevar paixões com sangue de alma,
paixões, que o mundo diz “infando crime”...
o mundo, em cujo seio abrolha a palma
do austero pundonor... sempre ironia!...
Mau foi deixar nutrir no seio a esperança,
sem ter, no ardil, travado uma aliança
com a régia estupidez, com a hipocrisia.

Hasteam-lhe uma cruz, cingem-lhe a fronte
de espinhos, e de fel roçam-lhe os lábios;
não há birbante alvar que o não afronte,
réptil ascoso, que o não manche aqui!
Alma soberba que és na dor sublime,
deixas à turba condenar um crime,
que não te acusa a consciência em ti!

A fronte já pendida ao pó do nada
cuspida e injuriada tenta erguer-se...
Levanta-se, e, num grito, a dor rasgada,
na fibra derradeira, é “maldição!”
Seu cântico suavíssimo de morte,
depois é fé, e amor!... Morreu um forte...
Agora, arraia vil!... pisa-o no chão!

XX
És tu Ângela? é de ti,
que me vem esta frescura
de celeste orvalho à alma,
requeimada de secura,
sedenta dos gratos pomos
que saboreia a paixão?
Tentas rasgar a espessura
das trevas do coração,
com os lúcidos assomos
da minha estrela de amor,
perdida, há muito, na escura
cerração da minha esperança?

Mensageira de bonança,
quem te há dito a minha dor?
Quem te segreda a amargura,
que devora o esquecido,
o solitário cantor
de abrasadoras saudades?
Donde vens “irmã”? Que impulso
te fez voar para mim?
Dileta filha do gênio
que me contas os suplícios,
que, a sofrer, na terra, vim!

Ângela! crê-me... Há um destino,
deve havê-lo... é um segredo,
entre o humano e o divino,
obra do céu, que os proscritos,
rebeldes em seu degredo,
dizem ser fatalidade!
Sei.

Sei que vivo, há anos,
quase extinta a mocidade,
esperando... não sabia,
que novo astro, que dia
doutra vida para mim.
Descrido em sonhos, descria
daquele anelo ideal,
arroubo de alma sem fim,
que, a poder muito podia,
só dizer-me: “és imortal!
Esse espírito, que estala
as gastas cordas do peito,
não dorme o sono do leito
daquela gélida vala!”

Nada mais! Daqui da terra
fugira, tudo, que fora
luz de estrela precursora
de venturas malogradas.

Nada a esperar! E, contudo,
tantas vezes me dizia
um brado íntimo, mudo,
agra e doce profecia:
“Crê e espera a fada errante
em regiões onde habitam
os espíritos, que anseias,
abrasada e anelante
das pulsações, que palpitam
corações, órfãos, aqui...
Crê e espera! Anjo é, e existe
perto e longe. Vive em ti,
porque sente, e foge, expulsa,
como tu da turba ignara...
Vive da vida, que pulsa
tua alma ardente, avara
duma ventura impossível.”

Impossível!... Ângela, vês?
Impossível... Pôde a alma
pressentir-te, adivinhar-te,
pôde erguer-se, acompanhar-te
no sublime, onde respiras,
mas... feliz... não pode ser,
nem por crenças, que lhe inspiras,
nem do amor santo, espontâneo,
que não se sente nascer...
que vem de dentro, instantâneo,
como lava irresistível,
fogo de intenso prazer...

Ângela... vês?... é impossível!
..............................................

E, contudo, é outra a vida,
outra alma esta que eu sinto!
Se é sofrer... a taça é outra...
travor novo o do absinto.
Em tua fronte, esculpida
vejo a sina do talento,
altos segredos do instinto
no sondar do sofrimento.
Ouvi sons da tua lira,
e, de ouvi-la, estremeci...
Quem será, que vem dizer-me,
nestes sons misteriosos,
que chorara, e que sentira
em segredo, o que eu sofri?
Há dois órfãos desditosos,
há dois ermos tormentosos,
onde os sons de dois gemidos
choram em triste harmonia?
Existes, anjo, entre os homens,
ou teus hinos vêm, mentidos,
insultar minha agonia!?

Existia!

Irradiava-se
daquele rosto a cintila,
como éter luminoso
da elétrica pupila.
Na tez pálida, mostrava-se
o doer contínuo intenso,
o cismar triste num gozo
impossível... e adorado,
com toda a alma da infância,
com todo o amor, todo o incenso
da abrasada juventude,
reprimida em sua ânsia.

Existia!

Eu nunca pude
esquecê-la... esquecerei-a?...
cinzelada, como a estátua
da Níobe, que pranteia,
no da alma mudo pranto,
o morrer de tudo, quanto
lhe adoçara a vida aqui!...

Não! ó Ângela, por ti,
que farei?... Diz-mo, profeta!
Onde irá contigo o espírito?
Em que céus te luz a meta
do meu destino, e do teu?
Só tu podes, tu, poeta,
que concebes o que eu sou,
dissipar a sombra, o véu
que me esconde ao longe o enigma
que ninguém profetizou.

XXI
Amizade, dom precioso,
perfume santo na ara
do tranquilo e eterno gozo;

Alva pérola, tão rara
das paixões no oceano iroso;

Amizade, luz querida
de corações, que puderam,
entre as ruínas tristonhas
das ilusões, que perderam,
salvar-vos, crenças risonhas
na lealdade do amigo;

Hálito suave e sereno
do peito de homem, sem seiva,
porque o cético veneno,
infiltrado, ulcera e eiva
o melhor do coração;

Formosa, vem bafejar-me,
com singela expiração,
a corda aspérrima, rude
do lutuoso alaúde,
sempre gemente e funéreo!

Dá que eu possa a ti altear-me
deste baixo, e positivo
viver de mágoas rasteiras,
em que morre o estro vivo,
sem ideal, sem mistério,
como ele é naquela dor,
grande, e ardente do amor.
Ai! suavíssimo martírio,
que enquanto a vida golpeia,
deixa expandir-se em delírio
a febre de alma, que anseia!

Não! meu Deus! é agro o cálice...
Afastai-o! Antes assim...
antes n’alma esta frialdade,
esta lânguida atonia,
triste, e escura soledade,
profundo sono, sem fim,
contínua noite sem dia!
Mas, Senhor! nesta pobreza
de comoções que dão vida
fogosa, cálida, ardida,
dai-me o plácido remanso
daquela branda amizade,
daquele afago de irmão,
em que me acolho e descanso
das lutas do coração!

Amigo! vê que estas páginas
são minha alma! vieram
aos lábios, que tas disseram,
do coração, que tas disse.
Eu não me escondo a teus olhos!
Sabes que sofro... sabias
que profundas agonias,
há muito, escondo... e de mim!
Predisseste, muitas vezes,
os desastrados reveses
a que vieste, e a que vim!
Quase marcaste o momento,
em que tanto sentimento
expirar devera, enfim.

E expirou!

Que salvei eu
desse opulento tesouro
De afeições? Só tenho um louro,
o meu mais caro troféu...
É teu nome, amigo, aqui,
como a primeira expressão,
que saudei, quando a escrevi
no livro da solidão...
Deixa que fale a vaidade,
outra, já não tenho, amigo...
Deixa expandir-se a amizade.
Este orgulho é justo e nobre,
engrandece-se contigo;
dou-te um nome, que não posso
dar no mundo a mais alguém...
Foi condão, só meu, só nosso,
esta aliança de extremos
que te devo... Aos lábios vem,
vem da alma a confissão...
Fiz-ta já, sem pejo, amigo,
quando em ti, buscando um abrigo,
encontrei braços de irmão...
...........................................

Olha... eu vim buscar ao ermo
paz, e um novo coração...
Ai! não pode já fazer-mo
tal milagre a solidão.
Sentir profunda saudade
do amor, que, em outra idade,
me deu vida, alento, e ar...
Pude! Amei, senti, transpus
a minha alma abatida
aos jardins daquela vida
cheia de flores e luz...

Tens assim horas, no dia,
atribuladas na cruz
da saudade, e da agonia?

Ilusão! ainda és bela,
mesmo pálida e sombria!
Na longa noite da alma
brilhas, instantes, mas brilhas!...
Rica das pompas do dia,
um relâmpago desferes
de deslumbrante poesia;
mas depressa a luz se apaga,
que o artifício acendeu...
A arte morre esvaída,
onde o coração morreu.

XXII
Mulher! onde hás descido que não vejo
vestígios teus no mundo onde hei subido,
queimando incensos puros de um desejo
três vezes santo, só a Deus devido?
Busquei-te num altar com teu cortejo
dos anjos, teus irmãos... Tinhas fugido,
fugido para a terra, onde perdida
nem memória já tens duma outra vida!

E a buscar-te, assim, vão indo tristes
meus já tão longos dias! Longos anos
contai em vida breve, se não vistes
durarem muito os mágicos enganos.
O sonhos infantis, que me fugistes,
desta vida mostrando-me os arcanos,
volvei, sonhos, volvei, ainda um dia;
pousai sobre o meu leito de agonia.

Deixai-me ver o céu da minha infância,
aquele céu de estrelas namoradas,
Por onde se perdia esta alma em ânsia
de crenças que nem já tenho sonhadas.
Deixai-me inda aspirar essa fragrância
de viridentes flores cultivadas
por mãos de arcanjos, que lá vão perdidos
convosco, ó sonhos, nunca mais volvidos!

Eu fui sempre infeliz. Alma abrasada
em anelos de amor sempre impossíveis,
seguindo uma visão, palpava o nada,
o nada, o vácuo... sensações horríveis!
De novo, erguia a crença despenhada
aos mistérios de amor incompreensíveis;
e, quando a esperança, toda luz, radiava,
súbita escuridão meu céu toldava.

Que importava ter alma entusiasta
de formosas mentiras desta vida?
Sonhar o belo, em vão, é dor, e gasta
no devorar-se a alma em insana lida.
Não é cinismo, não, que nos arrasta
ao baixo afeto de alma desflorida...
Há delícias no amor? queres gostá-las?
Desce, aqui, do teu céu, para encontrá-las...

É isto o coração? a vida? o homem?
Amor é isto só? num gozo breve
se esfriamos vulcões que nos consomem,
e amarga esponja as lágrimas embebe?
Aonde, aonde essas visões se somem,
visões queridas de sonhar tão leve
na doce madrugada dos amores,
em que há prantos e bênçãos para as dores?

Ai! não. A vida é mais. A bela imagem,
o rútilo fantasma que extasia,
que nos cativa e acurva à vassalagem,
e, a cada instante, a crença ludibria;
essa eterna visão, falaz miragem,
que aos sequiosos lábios nos mentia,
segue-nos sempre, ou sempre a nós seguimos,
e, ao pé da campa, ainda a lá sentimos.

O que é dizer “estou morto”? Vã mentira!
não morrem corações predestinados
para este amor profundo que delira
em febre de desejos malogrados;
enquanto um hausto de ar o peito expira,
enquanto os olhos buscam arroubados
sobre a terra a mulher que Deus não fez,
não se morre... agoniza-se, talvez.

XXIII
Mentira! escárnio atroz!... Ontem vivia...
ainda ontem pisou sobre meu seio
a celeste ave. E a pomba mensageira,
falou-me do seu céu! tanta alegria
lhe irradiava a fronte! e com que enleio
me disse: este raminho de oliveira
é símbolo de paz! A tempestade
de tua vida passou. Repousa agora
no regaço da cândida amizade.
Aqui me tens... Mas olha esta alma chora...
Pressinto a morte breve... E tu sozinho
e, tu sem mim, perdido irás na senda
daquele em que te eu vi fatal caminho
da infâmia, do remorso! Ai! eu não quero!
Tens força? tens? suplica a Deus comigo
pede-lhe a morte, pede que eu espero.

XXIV
Abre-te, meu coração, às grandes dores,
de lágrimas te nutre! Ergue-te, alma,
ao teu abatimento: olha, e contempla
as muitas não sabidas agonias
escondidas no lodo da miséria.
Olha e contempla, e, a chorar sobre elas,
esquece as tuas fantasias negras.

XXV
A pobre mãe, sentada entre os dois filhos,
do peito os aconchega, e diz: “aquecei-vos,
filhinhos: não choreis... É fome?... eu dei-vos
o pão todo que eu tinha... Ora, esperai...
Eu tenho aqui o livro em que rezava
a vossa santa avó; irei vendê-lo...
não volta mais a santa ao mundo a lê-lo...
Tereis hoje mais pão, filhos sem pai!”

Consigo a mãe os leva aconchegados
nas dobras do capote. Um dos meninos
folheava com os dedos pequeninos
o livro, e certa imagem queria ver.
A estampa era Jesus preso à coluna;
costumava beijá-la a criancinha:
achou-a, deu-lhe um beijo, e a pobrezinha
quisera já seu livro não vender.

Susteve-se, e pensou: “...Mas os meus filhos!...
e a fome!... e as longas noites de dezembro!...
e o dia de amanhã!... Eu não me lembro
de nada mais que venda...” E caminhou...
Viu pão num tabuleiro; entrou à loja,
e disse, a soluçar de dor e abalo:
“Quanto vale este livro? quer comprá-lo?”
— Veremos... — disse alguém; e examinou.

— De que serve? — pergunta um homem nédio
os óculos montando mui de espaço; —
— já falta nesta folha um bom pedaço,
e os outras... ai! que sujas que elas são!
É livro lá do tempo de Afonsinhos!
Tem as letras comidas neste canto...
E que é feito da cara deste santo,
que, enquanto a mim, já foi um São João? —

“As nódoas (disse a mãe das criancinhas)
são lágrimas... talvez!... da santa alma,
que já se foi a Deus buscar a palma,
do muito que penou... dela é que são!...
Talvez também que os dedos de meus filhos,
estragassem a página rasgada...
mas ela não tem letras... não faz nada
a quem quiser rezar... Compra-mo ou não?”

— Quanto quer? —   "Veja lá, que eu não entendo...
o que eu quero é dar pão às criancinhas...
Valerá oito pães?... Pelas alminhas
dê-me os oito pra hoje e pra amanhã.”
O lojista entregou o livro à pobre,
e disse:
— Vá com Deus! Grande empreitada!...
Três pães inda talvez... mas oito? nada...
Um livro que já esteve na sertã!...

Tomou a pobre mãe o livro, e disse:
“Pois fique-se com Deus.”
E os inocentes,
que vendo o pão, sentiram, mais pungentes,
da fome as dores, clamam: “dê-nos pão!...
Entrega o livro a mãe:
Pois sim, eu vendo...
Dê-me os quatro, sé pode; ou três... que importa?
A santa bem me vê aqui tão morta
de trabalhos, de fome, e de aflição!”

O homem repassou inda três vezes
as páginas do livro, e fez reparo
em outras nódoas feias... — Comprei caro...
— (disse ele), mas, enfim... são três... aí tem... —
Rompeu ela um dos pães entre os dois filhos.
De lágrimas a face tinha cheia;
e o quinhão, que tomou daquela ceia,
foi lágrimas... Ai! chora, pobre mãe!

Chora, se to não veda o mundo, chora!
És desvalida? o céu te abre um tesouro...
cada lágrima tua é conta de ouro,
que lá te encendra e guarda a mão de Deus.
Não cesses de chorar... semeia pérolas
sobre a terra maldita! morre em dores!
Já teus espinhos desabrocham flores...
verás que lindas são à luz dos céus!



---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

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