3/07/2023

Reino da Estupidez (Poesia), de Francisco de Melo Franco


O REINO DA ESTUPIDEZ



CANTO I

Não canto aquele herói pio e valente
Que depois de ter visto a cara Pátria
A cinzas reduzida e campo vasto,
Mil perigos contrastando, um clima busca
Aonde com os seus ditoso seja.
A mole Estupidez cantar pretendo
Que, distante da Europa desterrada,
Na Lusitânia vem fundar seu Reino.
Dita-me, oh musa, que eu não posso tanto,
Os nobres feitos, e diversos casos,
Que a esta grande empresa acompanharam.
Viu feio monstro de cruel figura,
Desgrenhados cabelos, olhos vesgos.
Disforme ventre, circular semblante,
Da lúgubre caverna aonde jazia
Bocejando saiu, e longo tempo
Nas vizinhas montanhas reparando,
Estas vozes soltou de mágoa cheia:
 — É possível que sendo venerada
Em outro tempo pela Europa toda,
Hoje aqui viva sem domínio ou mando
Nestas brenhas incultas desterrada?
É possível que a Deusa que usurpara
De sábia o nome, e ser de Jove filha
Dos meus vastos domínios me expelisse
E haja sobre o meu posto o seu trono?
Esta inação quero deixar um dia.
Não há de ser assim; essa tirana
Há de ver uma vez o quanto posso.
A fria Estupidez acesa em ira,
Tanto jamais se viu; ao Reino escuro
Aonde mora a macilenta inveja
Com a furiosa e vingadora Raiva,
Quanto lhe sofre a natural
Ligeiramente marcha.
 — Oh fortes Deusas,
Soluçando lhes diz, — se tantas vezes
Em tais empresas já me socorrestes
Não podereis deixar também agora
De dar-me a mão em tão aflito caso.
A soberba Minerva injustamente
Depois de meus domínios ter roubado,
Domínios que na Europa tanto prezo,
Por cúmulo de mal em feias selvas
De ninguém habitadas, me desterra.
O fero coração das negras Fúrias,
Por ser causa comum, enterneceram
Da mole Estupidez as brandas queixas.
 — Deixai, amiga irmã — somente dizem —
 —Vinde também conosco, e vingaremos
Essa injustiça que te faz Minerva.
Em si não se fiando, também chamam
O duro Fanatismo, a Hipocrisia;
E tu, Superstição, que tanto podes
Nas crédulas Nações, não os deixaste.
Em forte batalhão todas armadas
Os elementos turbam. Negra nuvem
De mil coriscos prenhe se encaminha
À parte, donde sopra o frio Noto.
A raivosa Coorte ali se encobre,
Sutis estratagemas ali traça.
Já França se lhes mostra, e destramente
Tomando cada qual sua figura
Para o combate espreitam útil meio.
Então o Fanatismo, que tomara
Um ar sisudo e marcha compassada,
Vendo reinar somente a Humanidade,
De tristeza e rancor se despedaça;
Suas máximas duras assoalha,
Já entre o povo ou entre a sábia gente.
Em vão é trabalhar: com riso e mofa
A porção mais sisuda lhe responde.
Mas o povo uma vez entre apupadas
Pelas ruas o corre duramente,
Qual o cão que danado se presume.
Da vil Superstição, da Hipocrisia
Mais efeito os trabalhos não produzem;
Reinam a seu pesar a singeleza
Nos costumes, candura e sã verdade.
Minerva, que o ardil não desconhece,
Nos ânimos infunde novas luzes;
Luzes, que dissipando a fosca névoa
Com que a reta razão manchada fica,
Com próprias cores a Verdade pinta.
Da gálica nação, ligeira e douta,
Mil pragas vomitando, fogem todas.
Iradas ainda mais ligeiras buscam
A britânica gente; ataques novos
Em conselho ali põem; ferve de novo
Nos bravos corações, rancor funesto.
Fulminam tudo, a toda a parte correm.
Mas que importa, se a ti, profundo povo,
Brilhantes aparências nunca iludem?
Se por entre a verdade e falso buscas
Manifesta divisa, e só descansas
Quando das coisas tens a sã medula?
Desesperam dali as Fúrias logo;
Voam, não fogem desta gente clara
A que intratável e ferina chamam.
Vão discorrendo pelo frio Norte,
Aqui, ali, novos combates dando.
A Deusa tutelar vendo com susto
Que alguns dos seus a vacilar começam,
Que se deixam levar dos vis enganos,
Convoca incontinenti um grão congresso,
Daqueles que sustentam fortemente
O seu brilhante e majestoso trono.
 — Alunos meus, mas não, não disse tudo —
A falar, principia desta sorte.
 — Amados filhos que da infância tenho
A meus peitos nutrido, e com desvelo,
A vás, a vossos pais tenho livrado
Da vil escravidão em que os tivera
A frouxa Estupidez noutro tempo,
Sabereis que este monstro bafejado
De muitas Fúrias que tornar lhe juram
Seus antigos domínios, disfarçado,
Armando laços, entre vós passeia?
A vosso lado noite e dia velo;
Mas de modo têm sido os seus encontros
Que entre vós sinto alguns já titubeantes.
Que mágoa a minha, que pesar não fora,
Se em triste cativeiro ainda vos visse,
Comigo ingratos, para vós tiranos.
Ao leão rugidor, que em torno gira,
Constantes, resisti! As almas fortes
Com fantásticas formas não soçobram
Qual destro capitão que descortina
Ardilosas ciladas do inimigo,
Na vossa frente, pelejando marcho.
Vitória conseguiu já dele a França,
Outro tanto tem feito a gente inglesa.
Com estas vozes tal esforço inspira
Nos vacilantes peitos, que ligados
Um corpo fazem, como nunca, firme.
De novo as Fúrias seus ardis empenham,
Multiplicam combates, dobram forças;
Mas a sábia coorte, a peito aberto,
Sem perigo alcança a vencedora palma.
Qual anoso carvalho, cujos ramos
Tanto procuram as cinzentas nuvens
Quanto as raízes vão minando a terra,
Despreza imóvel a sobeja fúria
Dos ventos zunidores que o combatem.
Vendo sem fruto o seu trabalho, as Fúrias
A certo aceno se congregam todas
Em oculto lugar, aonde só moram
As negras sombras da tristonha noite:
A raiva então, de cujos vesgos olhos
Cintilam o ódio e a cruel vingança,
Assim as outras fala, em tom irado:
 — Será possível que um poder tão forte
Qual é o vosso e qual o meu conheço
Em nada pare? Que nenhum efeito
Haja destas fadigas resultado?
Ao lado chora, sem dizer palavra,
Aflita, a Estupidez; e largo espaço
Aguda mágoa põe na língua freio.
Senão quando, depois de feita a
Deste modo começa o Fanatismo:
 — A vosso e meu pesar já tendes visto
Que suamos em vão; Minerva impera
Nos duros peitos desta gente infame;
Deixemos pois estes gelados climas,
Bem digna habitação de tais cabeças;
Daqui fujamos para o meio-dia,
País de toda a Europa o mais ditoso;
Aqui mais resistência não teremos;
O povo habitador deste terreno,
Apesar dos passados contratempos
A meu mando viveu sempre sujeito.
Não chores, cara irmã; o teu Império
Segundo creio, lá verás fundado.
Fugir, fugir desta inimiga terra.
Todas, a uma voz prontas concordam;
Da fria região logo desertam,
E sobre as asas dos ligeiros ventos
As amenas Espanhas vão buscando.

 



CANTO II

Era alta a noite, e o enregelado inverno
Já começava a sacudir as asas
Que ao sereno gotejam frio orvalho.
Dormia tudo, e só nas ermas ruas
Errantes cães ladrando se encontravam.
Foi então que a Lisboa, rica e vasta,
Em segredo baixou o bando infame
Se à soberba Madri primeiro iriam,
Hesitaram, enquanto o Fanatismo
Não decidira que no Luso Reino,
Como mais certo, começar deviam.
Por acordo comum assentam todas
Que aos públicos lugares com disfarce
Ir, sem demora devem, para que espreitem
Que diz o vulgo, que censura o sábio.
Uns, que murmuram do atual governo,
Que louvam outros; desta sorte podem
Cair melhor no que fazer-se deve.
Dispersas pelas praças vão notando
As práticas diversas a que assistem,
Não só ouvindo, mas também seu voto,
Como a bem lhes fazia, declarando.
Não deixam sem visita parte alguma;
De formas diferentes se revestem
Já de homem, de mulher, de moço ou velho,
De casquilho, de frade ou de jarreta,
Segundo julgam que requer o caso.
Nesta pesquisa muitos dias andam,
Até que chega o desejado instante
Em que haviam proposto se ajuntassem
Para, em pleno conselho, darem conta
Do que ouviram dizer, do que fizeram.
Em oculto lugar, que não perturbam
Nem o tropel dos anafados machos
Nem das velozes rodas o ruído
E nem do povo o barulhado trato,
Lugar que fica além do claro Tejo,
As vagas sentinelas se congregam.
Duvidam entre si qual delas há de
Dar primeiro razão do que passara;
Da sua parte cada qual recusa;
Mas nisto a Raiva impaciente fala:
 — Não noteis, companheiras, que eu primeiro
Tome mão da palavra; serei breve.
Nem deve para nós haver cerimônia.
Por mil sítios andei, andei de noite.
Assisti uma vez a um caso grande:
Era um cadete de figura esbelta
Que diziam ser filho de tal conde,
Vestido muito bem de ponto em branco;
Uma espada tremenda tinha à cinta,
Toda de prata, sem senão lavrada;
Para mais casquilhar, como soldado
Nem da guerra sabia a menor coisa,
Porém de namorar todos os modos
Manejava melhor que o seu florete,
Em que muitos progressos tinha feito;
Na assembleia passava as noites todas
E nela com respeito era escutado.
Assentava consigo que nos olhos
Trazer devia as setas de Cupido,
Pois, para requestar qualquer senhora,
Não precisava mais que pôr-lhe a vista.
Encontra por acaso um velho grave
Com a sua família passeando;
A uma filha pelo braço tinha,
Por bela conhecida e que trazia
Havia tempo ao tal cadete louco.
Apenas a conhece, em torno gira,
Um dito solta, e outro, disfarçando;
Na filha inquietação o velho nota,
No mancebo repara e em seus gracejos;
Diz-lhe que a deixe, que não seja tolo;
Que a não serem os anos se vingara.
Do comprido florete tira logo
O bravo militar enamorado.
Quer defender-se o vacilante velho,
A dois passos porém, ferido cai.
Acode imensa gente mas, fogoso,
Destroça tudo, e impaciente leva
Entre o tumulto a aturdida moça.
No fundo do seu peito o velho geme.
Ao ministro se queixa, magoado;
Este ao fidalgo busca, e de bom modo,
Propõe-lhe queira ao pai levar a filha.
Qual sibilenta cobra cuja cauda
Pisou o incauto e frouxo caminhante
Assim no militar se acende a ira;
Descompõe o Ministro, e se não foge,
Não voltaria, como foi, inteiro.
Pelo sucesso espera o pai aflito;
Em resposta, o ministro só lhe torna.
Amigo, são fidalgos; tenho feito
Da minha parte o que fazer podia:
Para os pequenos só as leis tem força.
Aqui imóvel fica o triste velho
Como quem dos sentidos perde o uso;
E depois de assim estar por algum tempo.
Dá tão grandes suspiros que parece
Dentro do peito o coração estalar-lhe.
Acusa de infiel a sua sorte
Porque tenha num reino tal nascido
Que tantos Neros tem quanto fidalgos;
Diz que já o Pombal faz tanta falta
Porque ele era somente quem sabia
Desta raça abater o grande orgulho.
Mas ao tempo que o velho isto dizia
 — Meu antigo, calar, do mal o menos
E segredo! — lhe torna o bom Ministro —
Já que a filha perdeu, não queira agora
Perder também a vida, pois bem sabes
Que estes nossos fidalgos portugueses
É gente que não tem nem Lei nem Roque.
Folguei de ver esta ousadia e fogo
Que nas outras nações jamais notara.
Vi de noite roubar, também de dia;
Uma forte quadrilha de marujos
Quem faz por ali maior faxina;
Nada medo lhe põe; zombam da ronda
Que de vis sapateiros composta
E de outros tais, que dormitando levam,
Por espadas, espetos ferrugentos.
Isto vi, companheiras, e mil casos
Que não refiro por não ser extensa.
Logo a Superstição em pé se põe,
Mas fazendo primeiro mil momices:
O chão prostrada por três vezes beija,
Outras tantas, rosnando certas coisas,
Faz sobre o coração quinhentas cruzes.
Debaixo da camisa também tira
Uma grande almofada que constava
De muitas orações, muitas relíquias,
Contra mal feitiços, contra a peste,
E muitas contra a tentação da carne.
Beija e rebeija o venerando Breve
E, com os olhos para o céu erguidos,
Com o mesmo se benze imensas vezes.
Deste modo disposta, principia
A dar conta fiel do que passara:
 — Tão outro Portugal agora vejo,
Que o mesmo não parece; quem diria
Que estas pobres mulheres perseguidas
Do Dragão infernal, em pouco tempo
Haviam de encontrar pelos conventos
Pronto socorro a seus cruéis tormentos?
Mal haja esse judeu, esse tirano,
O Paulo de Carvalho, homem ferino,
Que as tristes proibiu este remédio.
Já não camaradas, como dantes.
Fui aos frades capuchos; quarta-feira:
Que coisas lá não vi edificantes!
Na portaria estavam certamente
Para cima de cem, ou mais mulheres;
Umas em convulsões, outras zurrando
Coisa má na verdade, pareciam!
Apareceu depois um frade idoso;
Vinha de estola armado, e pela cara
Todos diziam que já era um santo;
Não era destes frades que capricham
Em trazer os sapatos de camurça
Muito amarela, e o calcanhar brunido,
Que o cabelo penteiam, que arregaçam
O escovado burel, quando passeiam.
Este não era assim; de muito estudo
Via pouco, seus óculos trazia;
E cuidava nos hábitos tão pouco
Que no peito trazia de simonte
Mui boa quarta, se não fosse arratel.
Apenas se avistou, umas entraram
A fazer-se em pedaços, outras davam
Horrendos uivos, como cães famintos:
É dor do coração ver tal martírio!
Suspenso esteve o frade muito tempo,
Para todas olhando, e de repente
Em profundo silêncio ficou tudo.
Num livro entrou a ler, primeiro baixo.
Mas depois, carregando as sobrancelhas,
Com uma voz de trovão e irado lia:
Aqui é que foi pena... De improviso
Todas quebraram o silêncio a um tempo;
Tais urros, tais bramidos atroaram
O claustro todo, que ainda hoje tenho
De susto, o coração como abafado.
O frade cada vez mais lhes gritava
Batendo com o pé, que se calassem.
A muito custo, acomodou a bulha:
Suspiravam somente, enternecidas,
Como quem de um combate se livrara.
O exorcista já lia em voz mais mansa
E, benzendo-as três vezes, só lhes disse
Que se fossem paz de Jesus Cristo.
Umas a par das outras em fileira
Pondo em terra o joelho, a manga beijam,
E com grande mesura se despedem.
Não para aqui somente a caridade
Do bom religioso: de outro lado
Aflitas mães, com os filhos entre os braços
Ante os pés do exorcista os apresentam.
Umas lhe dizem que cruéis lombrigas
As pobres criancinhas martirizam;
Outras lhe pintam os horríveis danos
Que aqueles inocentes recebiam
De uma sua vizinha, geralmente
Por bruxa e feiticeira reputada.
Prontamente os benzeu, e com brandura
Uma prática breve foi fazendo
Que tivessem fé viva, enfim lhes disse.
Que do seu Santo Padre se lembrassem.
Desta longa fadiga descansava
Já no seu aposento o bom fradinho
Quando o porteiro a toda pressa o chama;
Uns poucos de galegos carregados
De presuntos, perus e de bom vinho
Pelo padre exorcista perguntavam.
A sua caridade isto lhe rende
E ser entre os seus padres respeitado.
Lisboa já não é, torno a dizer-vos,
A mesma que há dez anos se mostrava.
É tudo devoção, tudo são terços,
Romarias, novenas, vias-sacras.
Aqui é nossa terra, aqui veremos
A nossa cara Irmã cobrar seu reino.
A fina Hipocrisia é quem se segue.
Com os olhos baixos, macilento rosto,
Longos vestidos de cor parda e negra,
A fazer sua vênia se levanta.
Depois em voz submissa, assim começa:
 — A cidade corri e tive o gosto
De ver por quase todos praticadas
As máximas sutis que lhes pregava.
No público passeio onde concorre
A mais luzida gente desta Corte,
Uma tarde me achei, e perto estavam
Quatro sujeitos de figura séria
Enquanto ali se via reparando.
Dizia um deles — Vejam bem, amigos,
Os ocos cascos destes dois mancebos:
Em lugar de topetes concertados,
Medonhas conchas de revelhos cágados
Da injúria do tempo lhes defendem
As vaidosas cabeças; os vestidos
Se não têm as feições já nos sovacos,
São vestidos de ginja e de jarreta.
No umbigo o espadim atravessado;
Por calções, holandesas calças trazem.
Gemem os pobres pés dentro das talas
Dos lustrosos sapatos, carregados
Do peso enorme das luzentes placas.
Casquilhar à malteza a isto chamam.
Muitos dias não há que a moda chefe
Era o contrário do que vemos hoje.
O ter de português o nome indigno
É a pena maior que me atormenta.
Nomear português a qualquer homem
É fazer-lhe a maior descompostura
Que pode proferir a aguda língua
Duma vil regateira enfurecida.
É chamar-lhe, sem dúvida, macaco,
Somente imitador dos vãos caprichos
Das estranhas nações, não das virtudes.
Sem rebuço, é chamar-lhe um ignorante,
Um confirmado tolo, que não sabe
Nem artes, nem ciências, nem comércio.
Miserável nação! que fielmente
Os tesouros franqueia aos estrangeiros
Por chitas, por fivelas, por volantes,
E por outras imensas ninharias!
Nisto estava inflamado o homem, quando
O fio lhe cortou aos seus discursos
O estrondo que faziam nas calçadas
As fumegantes rodas de um carrinho.
Quatro asseados e membrudos moços
Prontos saltando da vermelha tábua
Ajudam a descer um gordo bispo
Que na Corte se achava com licença.
Vinha todo de seda, e do pescoço
Uma cruz lhe pendia cravejada
De lúcidas safiras, de brilhantes;
O majestoso anel cegava os olhos,
E pouco menos, as fivelas de ouro.
O austero censor ficou pasmado
A mirar o prelado passeando,
Depois, com vozes de azedume cheias,
Para os outros se volta, assim dizendo:
Oh, costumes, oh, tempos primitivos!
Tempos em que o Pastor só diferia
Do seu rebanho pelas sãs virtudes,
Pela vida exemplar com que o guiava!
Quem o Santo Evangelho lê atento,
Do supremo pastor quem lê a vida
A presença de um bispo petimetre,
Como pode levar paciência?
Se o venerando apóstolo das gentes
Aqui aparecesse, poderia
Por companheiro ter um homem destes?
O grande Paulo, que o enrugado rosto
Todos os dias de suor banhava,
E para não servir jamais de peso
A seus caros irmãos, antes queria
Ganhar escasso pão com seu trabalho.
Santa religião, tempos ditosos!
Ou tu não és a mesma, ou teus ministros,
De pastores o nome não merecem!
Nesta prática sempre os quatro amigos
Se foram com a noite retirando.
Não fiquei do discurso satisfeita.
A horas em que o bispo já dormia,
Medonha e enormíssima figura
Tomei, e como seta despedida
A seu rico aposento fui direita.
Estirado em colchões de branda pluma
Em profundo silêncio repousava;
Mil divertidos e agradáveis sonhos
Ao redor do semblante revoavam:
Um, a bela assembleia das senhoras,
Outro, o whist, o bom café pintando.
Depressa os fiz fugir, e prontamente
Seu lugar ocupando, este discurso
Em breve lhe intimei, com voz horrível:
 — É possível que durmas descansado
Sem te lembrares do que diz o povo
Do teu modo de vida, do teu fausto?
Não digo que pratiques fielmente
As máximas austeras de Evangelho;
Para teres de santo o nome honroso
Não precisas de tanta austeridade.
Embora te regales, te divirtas,
Ainda mais, se é possível, do que dantes
Mas nisto deve haver certa medida.
Sê embora um velhaco, um libertino,
Um lobo tragador do teu rebanho,
Mas devem outras ser as aparências;
De outro modo, serás mal reputado,
E muita duração os teus prazeres
Não podem ter se não mudares logo —
Do brando leito espavorido salta:
Na visão acredita e volta prestes
Em menos de oito dias ao bispado.
Em modesta liteira então passeia;
Aos pobres manda dar todos os dias
Seu caldo por jantar, e às terças-feiras
Dez réis a cada sendo aleijado.
Dizendo que ocultava muitas coisas
Acabou de falar a Hipocrisia.
Tão somente restava o Fanatismo,
Que tinha sobre todos ascendente,
E daquela palestra, presidência.
 — A vossa exposição — assim começa —
 — Com prazer escutei; tudo promete
Um êxito feliz à nossa empresa.
Aquele furioso e ardente zelo
Que em Paris fez correr rios de sangue
Na celebrada noite dos franceses;
Aquele matador e fero gênio
Que os duros castelhanos animava
A regar de indiano sangue um dia
México e Peru, entre este povo
Agora mesmo eu incitar podia.
Um inglês, um gentio, um maometano,
Se as leis civis o não vedassem tanto,
Com a mesma presteza assassinados
Aqui seriam como a um cão se mata,
Pois por alma de cão qualquer é tido
Que a santa fé de Roma não professa.
Agora, pois, só resta que assentemos
Se deve ser aqui ou em Coimbra
A nossa cara Irmã entronizada.
Nesta Corte, anos há, se tem fundado,
Uma coisa, chamada Academia;
Mas isto, quanto a mim, sem diferença,
É um corpo sem alma que não pode
Produzir ação própria, ou um fantasma
Que em bem poucos minutos se dissipa.
O meu voto é que vamos demandando
O mesmo assento donde foi lançada
A mansa Estupidez injustamente.
Cobrar novos esforços é preciso,
Que por fim a vitória está segura.
Todas em uma voz nisto concordam.
Entretanto saltava de contente
A mole Estupidez, com tais risadas,
Que nos montes vizinhos retumbavam.

 

CANTO III

Do fértil Portugal, quase no centro,
A vistosa Coimbra esta fundada:
Pelo cume soberbo de alto monte,
E pelas fraldas, que o poente avistam,
Vai-se ao longo, estendendo até que chega
A beber, do Mondego as mansas águas.
Defronte, outra montanha senhoreia
A líquida corrente dividida
De longa ponte, pelos grossos arcos.
Aprazíveis campinas, férteis vales
Do cristalino rio retalhados,
Em torno a cercam, aos habitantes dando
Os mais belos passeios do Universo.
Da fronteira montanha, que dominam
Dois famosos conventos, se desfruta
A linda perspectiva da cidade
Que tem tanto de bela, quanto é dentro
Imunda, irregular e mal calçada.
A terra é pobre, é falta de comércio:
O povo habitador é gente infame,
Avarenta, sem fé, sem probidade,
Inimiga cruel dos estudantes,
Mas amiga das suas pobres bolsas.
Aqui de muito tempo está fundada
A nobre Academia Lusitana.
O monstro, que é dotado de cem olhos,
Que ao longe avista os mais pequenos vultos,
Que debaixo do teto o mais forrado
Nada se passa sem lhe ser notório;
O monstro, que por outras tantas bocas,
Quanto sabe e não sabe põe patente;
Aqui em altas vozes apregoa
Que vem a Estupidez em breve tempo
Seus domínios cobrar, seu diadema,
Armada de terrível companhia.
Na minha fantasia acende, Oh Musa,
Um fogo vivo; põe na minha língua
Expressivas palavras, com que pinte
As proezas que vou dizer agora.
A Acadêmica gente alvoroçada
Não pensa, não conversa noutra coisa;
Em quase todos, geralmente reina
Excessiva alegria e nos Conventos,
De que consta a cidade em grande parte,
Mandam os guardiães que os refeitórios
De mais vinho e presunto se reencham.
Da Universidade o grande Chefe
Um claustro universal convoca logo,
Para que em pleno conselho votem todos
O que deve fazer-se neste caso.
Em comprido salão, cujas paredes,
Ricamente compostas, têm em ordem
Dos lusitanos reis próprios retratos,
Em soberba cadeira se apresenta
O reitor, e por um e outro lado,
Os lentes e doutores assentados
Segundo o vão capricho os destinara,
A dar o seu parecer se aprontam todos.
Tira nisto o barrete o presidente,
E ao lente primaz de Teologia
Acena que comece. Logo feita
Ao congresso em geral submissa vênia,
O seu voto profere nestes termos:
 — Muito ilustres e sábios acadêmicos!
Por direito divino e por humano,
Creio que deve ser restituída
À grande Estupidez a dignidade
Que nesta Academia gozou sempre.
Bem sabeis quão sagrados os direitos
Da antiguidade são; por eles somos,
Ao lugar que ocupamos, elevados.
Oculta vos não é a violência
Com que foi desta posse desbulhada.
Vós, testemunhas sois dos sentimentos
Com que a vimos partir tão desprezada:
Porém sempre, apesar do seu desterro
Constante, tributei dentro em meu peito
Homenagens devidas à que fora
Na minha infância carinhosa Mestra
E na velhice, singular Patrona.
Entrai pois, companheiros, em vós mesmos,
Ponderai sem paixão: para que serve
As pestanas queimar sobre os autores,
A estimável saúde arruinando?
Para levar este tempo em bom sossego,
Divertir e passar alegremente,
Acaso precisais de mais ciência?
Se os dias desta breve e curta vida
Tivéssemos com os livros perturbado
Teríamos acaso mais prebendas,
Mais dinheiro, mais honra, mais estima?
De que podem servir estes estudos
Que mais da moda se cultivam hoje?
A bárbara geometria tão gabada
Que mil proposições, todas heréticas,
Aqui faz ensinar publicamente,
Sabeis para que presta neste mundo?
A sua utilidade temos visto,
Diga-o a Inquisição e mais não digo.
Oh, góticos estudos nunca ouvidos
Nos tempos, em que tanto florescia
Um Seara, maior do que o seu nome
Um Pupilo, um frei Paulo de São Mauro,
Que sempre chorarão os frades bentos!
Histórias Naturais, Foronomias,
Químicas, Anatomias, e outros nomes
Difíceis de reter, são as ciências
Que vieram trazer os estrangeiros.
Há coisa mais cruel, mais desumana,
Mais contrária à razão, que ver os médicos
Um cadáver humano espatifando,
Um corpo que habitou o Espírito Santo?
Nunca tal praticaste, oh bom Lopes,
Quando pelo Natal, em um carneiro,
O bofe, o coração, as tripas todas,
A teus hábeis discípulos mostravas.
Quem pode sem desprezo ver um lente
De imensos estudantes rodeado,
Pelos campos vagar, ali colhendo
Uma ervinha, uma flor, um gafanhoto?
Acolá, com um fuzil ferindo as pedras?
Deixemos, pois, um dia, oh sábia gente,
Estes prestígios que nos têm cegado;
Ponhamos como dantes estas coisas
Em seu antigo ser; como bons filhos
Recebamos a nossa Protetora;
O que foi sempre seu, em paz governe.
Qual sussurrante enxame, que em tumulto,
Segue a vereda que seguiu a Mestra,
Assim dos frades todos e dos becas
Seguiu a turba o explanado voto.
Algum destes, talvez quisesse opor-se,
Mas de um colega refutar os ditos
Da honra do Colégio é menoscabo.
A porção principal tinha votado;
Faltava a outra, que em desprezo é tida;
Lentes de capa e espada são chamados,
Que aos colégios não têm algum acesso,
Nem recolhem da Igreja os doces frutos.
Pelo mesmo teor votaram muitos;
Mas chegando a Tirceu, homem singelo,
Que seus dias consome, sobre os livros,
Contemplando a profunda Natureza,
Os longos cumprimentos põe de parte,
E com voz resoluta assim começa:
 — Não é a glória vã de distinguir-me
Quem me obriga a encontrar a tantos votos
Que, por serem conformes, talvez sejam
Ao parecer de muitos, verdadeiros.
A glória do meu rei, o amor da pátria,
São dois fortes motivos que me impelem
A dizer francamente quanto penso.
Trazei, sábios ilustres, à memória,
Aquele tempo em que contentes vistes
Entrar nesta cidade triunfante
O grande, invicto, o imortal Carvalho,
Às vezes de seu rei representando;
Daquele sábio rei, cujo retrato
Inda agora me anima e me dá forças
Para que, em seu favor, em sua glória,
Derramando o meu sangue, exale a vida.
Vistes ao grão marquês, qual sol brilhante
De escura noite, dissipando as trevas,
A frouxa Estupidez lançar ao longe;
E erigir à ciência novo trono
Em sábios estatutos estribado.
Das vossas mesmas bocas retumbaram
Cânticos de louvor nestas paredes.
O triunfo cantastes na presença
Do zeloso ministro respeitado.
Que diferente linguagem hoje escuto?
Como é possível que sem pejo ou honra,
O contrário digais do que dissestes?
As sublimes ciências da Natura
Como podeis tratar com tal desprezo?
Oh, tu, sombra imortal, oh grão ministro,
Da face do teu Deus onde repousas,
(— a cabeça abanou, deu três caudas
Ouvindo esta blasfêmia, o bom Bustoque —)
Vem um instante aparecer agora
Aqui nesta assembleia e destas bocas,
Que em teu nome entoavam tantos hinos
Ao heroico triunfo das ciências,
Blasfêmias ouvirás.... Mas, ah! não venhas,
Nem permitam os céus que tanto saibas.
Que dor a tua, que aflição não fora
Ver sem fruto as vigílias, os trabalhos
Que por zelo da pátria padeceste!
Ver, sobretudo, ingratos e falsários,
Que afetando aparências de alegria,
No fundo do seu peito, idolatravam
A mole Estupidez, como uma Deusa!
Se o mesmo que então eras, hoje fosses,
Quisera, oh pai da pátria, que tivessem
Com a tua presença validade
As minhas vozes, o meu zelo ardente.
Ainda reinará, com mágoa o digo,
Na nossa Academia essa tirana,
Essa vã divindade. Mas protesto
Que nem hoje o aprovo, e que inimigo
Há de em mim encontrar, enquanto o sangue
Seu círculo fizer, neste meu corpo.
Se algum de vós, ilustres companheiros,
Comigo pensa, sem temor exponha,
Apesar da torrente, os seus discursos.
As almas varonis nunca temeram,
Ainda à vista dos maiores perigos,
Pela glória da pátria e da verdade
Expor a vida, derramar seu sangue...
Ao dizer estas vozes se arrasavam
De lágrimas seus olhos, e as palavras
Já presas lhe ficavam na garganta.
Os homens grandes, os varões preclaros,
Também sabem chorar, quando a ternura
A bem da humanidade os estimula.
Nos ânimos fradescos e nas becas
Contra Tirceu um tal rancor fervia,
Que vivo o tragariam se a presença
Do sério presidente o permitisse.
Disfarçando, porém, com riso e mofa
A dissonante fala receberam.
Acabou-se a função, e timorato
Não decide o reitor o que se faça.
Era já noite e nos colégios ambos
Esquisitos manjares esperavam
Aos rubicundos e nutridos becas.
Nos conventos, porém, coisa mais grossa
Em que o dente atolasse, preparavam;
Famosas postas de vitela tenra
Sobre as brasas chiavam nos espetos;
Perus assados e tremendos quartos
De bom carneiro, por mil modos feitos;
Muito vinho e presunto, eram as massas
Com que os seus refeitórios adubavam
Enquanto os outros com prazer comiam,
E à saúde da Deusa grandes copos
De bom vinho enxugavam; pensativo,
O tímido reitor, escrupuloso,
Passeia as salas todas; até que chega
O Patrício a saber se ainda não ceia
Sua Excelência, que já eram horas.
Responde-lhe que não, que estava aflito,
E os motivos lhe conta, consultando-o:
 — É bom caso, senhor! Vossa Excelência,
Do que deve fazer inda dúvida?
Depois de ser de um voto tanta gente
Tão sábia, tão distinta? Pouco importa
Que diz meia dúzia desses homens
Que apenas são por lentes conhecidos.
Coma Vossa Excelência alguma coisa,
Durma, que tudo em paz há de fazer-se.
Assim o consolou o bom mordomo.
Sua Excelência mais quieto fica,
Um pouco come, e no seu brando leito
Vai alívio buscar a seu cuidado.
As Fúrias que em Coimbra já se achavam,
Que no claustro geral tinham estado,
Do famoso orador pondo na língua
Palavras que ao seu caso mais faziam,
Ao sombrio lugar onde descansa
O lânguido Morfeu, ligeiras voam.
Nunca ali penetrou a luz da aurora;
Em perene repouso dorme tudo.
Somente os frescos zéfiros, brincando,
Com suave sussurro as folhas movem.
Murmura ao longe a cristalina fonte,
Escabrosas pedrinhas volteando.
Sobre viçosa relva recostado,
Entre rubras papoulas, verdes mirtos,
Nada pressente o Deus do que se passa.
Então depressa no soturno bosque,
Já quase dormitando, as flores colhem,
Que a mole cabeceira lhe formavam;
Dos soníferos ares se retiram,
E, de improviso, ao belo quarto chegam,
Aonde, ainda perplexo, o presidente
Com os olhos no teto vigiava.
Mal das flores se espalha o grato cheiro,
Boceja, estende os braços, adormece.
O Fanatismo então, tomando a forma
Dum pequeno rapaz, gordo e risonho,
Cujos ombros adornam duas asas,
Junto ao leito volteja em curtos giros,
E com doces palavras, assim fala:
 — Não te assustes, oh homem venerando,
Eu não sou coisa má que te apareça;
Tuas altas virtudes me encaminham
Desta dúvida vã a pôr-te fora.
Aos lentes, doutores e estudantes
Ordena que amanhã de tarde saiam
A receber, em préstito pomposo,
A nobre Estupidez; faze-lhe as honras
Que lhe são por direito bem devidas.
Com mais se não cansou o Fanatismo:
Pois sair com a sua não duvida;
Nem Minerva sutil e poderosa
Aqui já lhe fazia a menor guerra;
Deixou por uma vez os portugueses
Como gente rebelde e refratária
Com a sua ignorância e prejuízos
Docemente abraçados. Nisto acorda
O devoto reitor, e ainda imagina
Que um divino clarão no quarto brilha.
Da cama salta, e a toda pressa manda
Que venham o secretário e os escreventes.
Um comprido edital se lavra logo,
Que as ordens da visão continha todas
Pelas mesmas palavras com que a ouvira.
O douto secretário, que em Aveiro
Alçou já vara branca, o subescripsi
Põe no fim do papel, e o presidente
Por extenso se assina, em letra grande.

 
CANTO IV

Apenas o edital se põe na porta
Da grande sala que para os atos serve,
Entre o corpo que forma a Academia
Um novo reboliço, um alvoroço
Geralmente se move; não se fiam
Na fé dos que referem a notícia;
Desejam com seus olhos ver a nova
Que tão doce alegria lhes motiva.
Deixam os estudantes nos bilhares
A partida no meio, e perturbados,
Das capas lançam mão, como sucede;
Mas o dono da casa, que o barato
Não dá por bem parado, clama e grita:
 — Parceirinhos, pagar! nada me importa
Que venha a Estupidez ou que não venha!
Dão-lhe dois encontrões, por terra o lançam
E, a qual primeiro, pelas vias correm.
Outros, no sete-é-ponto extasiados,
No whist, no marimba e mais na banca,
Os dados com as cartas deitam fora.
Jamais os obrigou a tanto excesso
Nem do lúgubre sino o toque infausto
Que os chama às aulas, nem tampouco a ama
Com a nojenta vaca ao lume posta,
Praguejando a tardança e quem lha causa,
Nem ainda a venal e imunda moça
Que fretada os espera a certas horas.
Tal a cega paixão, o vil apego,
Que estes míseros moços têm aos vícios!
Esta gente, revolta e mal criada,
Tão soberba e ociosa, que entre tantos,
Apenas se acham ao muito doze
Que o nome de estudantes bem mereçam,
A ler o edital chegam a montes,
E batendo nas palmas: — Bravo, bravo,
Oh, que férias agora não teremos!
Viva a Estupidez! — dizem saltando.
Nos colégios, conventos e nas casas,
Os doutores, os frades e estudantes
Disputam sobre o caso; e mil castelos
Acerca do futuro levantando,
Melhorar de fortuna todos cuidam.
Nestas gratas ideias se recreiam,
Até que o sino, a grandes vozes brada
Que venham todos, que é chegada a hora
Em que o novo edital cumprir se deve.
Prontamente concorrem, e marchando
Ao rude som de ingratos instrumentos
Vão a Deusa esperar além da ponte.
Ainda bem ao convento franciscano
O préstito não chega, eis de repente
Uma nuvem brilhante vem ao longe
De luzentes estrelas esmaltada;
No meio, um trono ricamente feito;
A mole Estupidez sentada nele,
Entre tanto aparato, lá disfarça
A sua horrenda e natural figura.
É tudo traça das astutas Fúrias.
Mansos ventos curvados encaminham
A majestosa pompa. Em terra postos
Os soberbos joelhos, com as palmas
Para o céu levantadas, se assombravam
De ver baixar com tanta majestade
A Deusa tutelar da sua Atenas.
Brandamente ondeando a nuvem para
Aonde com o reitor os lentes-chefes
Com o queixo caído presenciam
Tão grande maravilha nunca vista.
Têm de recato um suntuoso pálio
Com que a Deusa recebem reverentes.
Coisa mais espantosa! De improviso
O caminho, que trouxe, a nuvem segue;
A frouxa divindade por três vezes
Com alegre semblante a todos lança
Uma bênção papal, como a bons filhos.
Os donatos repicam à contenda,
Das descaradas moças dos conventos,
E pelas freguesias vis garotos!
Ninguém se entende com tamanha bulha!
Às janelas acode, acode às ruas,
De toda a qualidade imenso povo.
Entretanto, com passo vagaroso,
Duas compridas alas se encaminham
Ao antigo mosteiro que desfrutam
Os reverendos Crúzios, satisfeitos
De hospedar esta noite a Protetora
Da sua santa casa. À portaria
Com alegres festins é recebida.
De noite, em toda a parte, as luminárias
Fazem emulação à luz do dia.
Em função de barriga e de badalo
Fazem os frades consistir a festa.
Mas o pio reitor, que obediente
Ao milagroso sonho ser deseja,
De novo ordena que se aprontem todos,
Que na manhã seguinte bem montados
Iriam conduzir à Academia
A Régia Estupidez, sua Senhora.
Assinala também os oradores
Que haviam celebrar tão grande feito.
O válido mordomo, que algum dia
De mochila exerceu o nobre emprego,
Toma a seu cargo o aprestar as bestas.
Ainda descansava a roxa aurora
Nos braços de Anfitrite, e os vis lacaios
As portas dos doutores despedaçam
A fortes golpes de calhaus tremendos.
Abrem a seu pesar os frouxos olhos
Estas almas ditosas, engolfadas
Em mil suaves e felizes sonhos;
Mas não vendo luzir o sol nas frestas,
Querem o sono agasalhar de novo;
Debalde o querem, que os valentes moços
Cada vez as pancadas mais duplicam.
Tal há que a mil diabos encomenda.
Os lacaios e quem lhos manda à porta,
Por ver o seu descanso interrompido,
O seu sono de doze boas horas.
Mas, enfim, o motivo é forte e justo,
E para aparecer à divindade
É preciso o cabelo bem composto,
A batina escovada, a volta limpa,
Coisas em que despendem longo tempo.
Cada qual asseado o mais que pode
Vai buscar o reitor, e em companhia
De uma rica berlinda a seis tirada,
No pátio de Sansão se ajuntam todos.
Os soberbos capelos ali tomam:
Brancos, verdes, vermelhos, amarelos,
Azul ferrete ou claro; o mesmo as borlas;
Por humildade, os frades só barrete.
Em duas grandes alas repartidos
Os barrigudos e vermelhos monges
Acompanham saudosos esta grata
E deles sempre amada Padroeira.
Reverentes, a mão todos lhe beijam,
E a todos vai lançando a santa bênção.
Chega enfim ao prior, ele prostrado:
 — Oh Deusa! (assim lhe diz.) Ampara e zela
A estes filhos que te adorarei tanto.
Por ti deste sossego é que gozamos.
Esta forte saúde, esta alegria
Desfrutamos por tua alta bondade.
Seria para nós ditosa sorte
Se fizesses aqui tua morada;
Mas já que somos nisso desgraçados,
Benigno influxo sobre nós derrama
Que a nossa gratidão será constante.
Abraça-o ternamente a divindade;
Diz-lhe que se console, que ela sempre
Nos seus olhos trazia a tão bons filhos.
A nobre comitiva dos doutores
Entre os braços a toma, a qual primeiro,
E quase ao colo na berlinda a mete.
Logo montados pelas ruas tomam,
Que de mais povo são sempre assistidas.
Uns de encarnado vão todos cobertos,
Altivos, soberbões, consigo assentam
Que não há no universo outras figuras
De mais contemplação, de mais respeito.
O vermelho durante as bestas serve
De compridas gualdrapas. Outros picam
O fogoso cavalo quando passam
Pela porta de tal ou tal senhora.
De preto muitos vão; porém os frades
Vestem ao mesmo tempo muitas cores,
Branco com preto, azul com encarnado.
Se tu, oh grão Fidalgo de la Mancha,
Famoso Dom Quixote, esta aventura
Nos teus andantes dias encontrasses,
À sem-par Dulcineia, quanto destes
A render vassalagem mandarias!
Tu que não perdoaste aos pobres padres
Conduzindo a cavalo, por ser longe,
Entre archotes e velas um defunto,
Que os fizeste voar de susto e medo
Pelos campos e montes, que farias
A esta encamisada de doutores?
Por gente feiticeira e endiabrada,
Por maus encantadores os terias;
Como tais o furor do Rocinante,
Do elmo de Mambrino as influências
E o pesado lanção experimentaram.
Musa, renova no teu vate o fogo
Que já fizeste arder na sábia mente
Não digo de Despréaux, daquele ativo
E discreto Diniz, na Hissopaida;
Renova, enquanto acabo, que a preguiça
Da mole Estupidez já me acomete,
Já começo a sentir os seus efeitos.
Mas ah! que um estro de repente agita
A minha fantasia. Eu vejo, eu vejo,
Da nossa Academia ao grande pátio
Chegar contente a numerosa tropa.
Em triunfo é levada a Deusa Augusta
A um soberbo e majestoso trono;
Gemem debaixo dele aferrolhados
A Ciência, a Razão, o Desabuso.
Põem-se em sossego os assistentes todos;
Levanta-se o Bustoque, e de joelhos
À Deusa pede uma comprida vênia.
Em bárbaro latim começa ufano
A tecer friamente um elogio
À sua Protetora; e nele mostra
O quanto é indecente que nas aulas
Em português se fale, profanando
A sacra Teologia e as mais Ciências;
Que em forma silogística se devem
Os argumentos pôr; sem silogismo
Não sabe como possa haver verdade.
Nisto mais de hora gasta, e enfim conclui
Animando a que sejam sempre firmes
Na fé que devem a tão alta Deusa.
Levanta-se depois o grão Pedroso
Que de prima a cadeira em leis ocupa.
Com a beca estendida, a mão no peito,
Prostra-se em terra, a sua vênia pede
À mole Estupidez que muito folga
De ver um filho seu com tal presença,
Tão cheio de si mesmo, tão inchado.
Principia a falar com voz de estalo;
Com a esquerda aciona, e com a direita
Que estende as mais das vezes sobre o peito,
Sua em mostrar a vã Genealogia
Da nobre Deusa a quem louvar pretende.
A sua antiguidade patenteia;
Faz depois elogios nunca ouvidos
Ao Direito Romano, e no remate
Concorda em tudo com o seu colega.
Vem depois o reitor, jura por todos
Submissa obediência e lealdade.
Da mole Estupidez põe na cabeça
Uma importante coroa cravejada
De finíssimas pedras do Oriente.
As mãos lhe beija logo reverente
E manda a todos que outro tanto façam.
Os oradores vêm; oferece um deles
A discreta oração de sapientia
Que foi causa de ser tão cedo lente;
O outro o mesmo faz da sua análise Do parto
Um bando de retóricos rançosos
Depois acode; um deles assim fala
(Parece que Bezerra se apelida):
―Soberana senhora, a vossas plantas
Tendes rendida por vontade e gosto
A porção principal do vosso reino.
As portas das ciências nós guardamos.
Porque sendo as palavras distintivo
Que dos brutos separa a espécie humana,
Eu creio que só nelas deve o homem
Da vida despender os curtos dias.
A mocidade pois assim levamos
Nesta bela ciência industriada.
Quando a mesma palavra se repete
Ou duas ou três vezes, lhe ensinamos
O nome que isto tem; quantas apóstrofes
Pode o exórdio levar sem ser notado.
Nestas coisas e noutras semelhantes
De sorte os engolfamos, que supresso
Fica o gosto, se o tem, às vãs ciências
Que servem de cansar o espírito humano.
―Oh bom filho, insiste nesse sistema
Que, por ser verdadeiro, mais me agrada —
Abraçando-o, lhe diz a divindade.
Vem atrás um varão muito asseado,
Um livro trás na mão, mui douradinho:
―Oh Deusa singular, a quem respeito,
Esquecido da minha fidalguia;
Este poema fiz, que Joaneida
Por nome tem; humilde, vo-lo ofereço
Dignai-vos aceitar a minha oferta.
―Oh meu morgado, quanto sou contente
Da tua oferta, ve-lo-ás com o tempo;
Aqui ao pé de mim quero te assentes
Para mostrar o quanto te venero.
Assenta-o junto a si a divindade.
Dos estudantes vem a turba imensa.
Um lhe oferece uma flor, outro um bichinho,
Um ninho de pardal, um gafanhoto,
Da História Natural, suados frutos.
Outro vem todo aflito, mil queixumes
Formando contra um tal que lhe usurpara
A glória de fazer já sete máquinas
Que subiram ao ar com bom sucesso.
―Filhos amados — lhes replica a Deusa
―Esse vosso cuidado me consola;
Esse desvelo de ajuntar coisinhas
Tão lindas, tão bonitas, bem recreia
Uma alma como a vossa tão sensível.
Prossegui nesse estudo; eu vos prometo
A minha proteção em toda a vida.
Ao queixoso assim diz: — Sinto deveras
Que tenhas essa causa de tristeza.
Mas olha, um bom remédio: outras de novo
Faze, que lá irei mesmo em pessoa
Assistir a fazer justiça inteira.
Os doutores vêm logo por seu turno
Vassalagem render, e vão passando.
A mole Estupidez brinca entretanto
Com os lindos anéis do bom morgado,
Que, aflito, não quisera ter tal honra,
Receando que ali se descobrisse
Que cabelo não é, mas que lhe cobre
A luzidia calva, cabeleira.
Porque em menos não preza o ser bonito
Do que fidalgo ser, e ser poeta.
Seguem-se finalmente os lentes todos,
Que são alegremente recebidos.
Mas chegando a Trigoso, fica a Deusa
Assombrada de ver tal catadura,
Não menos carregada que a de um touro
Que sopra e para trás a terra lança
Quando para investir se ensaia irado.
Com imensa alegria rematada
A geral confissão de vassalagem:
 — Em paz gozai (a Deusa assim profere)
Da minha proteção, do meu amparo;
Eu gostosa vos lanço a minha bênção.
Continuai, como sois, a ser bons filhos,
Que a mesma que hoje sou, hei de ser sempre.



---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.


 

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