3/07/2023

Raios de extinta luz (Poesia), de Antero de Quental

 



RAIOS DE EXTINTA LUZ


A...

Wilhelm Storck, Oliveira Martins
Eça de Queirós, Alberto Sampaio, Jaime Batalha Reis
Luís de Magalhães, Joaquim de Araújo
João de Deus
D. Carolina Michaelis de Vasconcellos
Santos Valente, Alberto Teles
Antônio de Azevedo Castelo Branco, José Ben Saúde
F. Machado de Faria e Maia
José Falcão, Manuel de Arriaga
Anselmo de Andrade, Manuel Duarte de Almeida
etc., etc
.

a todos os que amaram e admiraram Antero.

 

*** 

PALAVRAS ALADAS

Raios de extinta luz, ecos perdidos
De voz que se sumiu no espaço absorta —
Meus cantos voarão de idade em idade,
Como folhas que ao longe o vento espalha.

Não sabe a folha já mirrada e seca,
Que um sopro do tufão levou revolta,
Que outro sopro talvez desfaça em breve —
Não sabe a triste o ramo onde nascera,
A seiva que a nutriu, quando inda bela,
O tronco que adornou com verde gala,
E onde entre irmãs folgou por tarde amena?
Soltos do tronco, sem calor, sem vida,
Filhos órfãos que um seio não aquece,
Um seio maternal ébrio de afetos,
Meus cantos voarão de idade em idade,
Como folhas que ao longe o vento espalha.

Mas se alguém, vendo a folha abandonada,
Lembrar e vir na mente o tempo antigo
Em que bela, vestindo pompa e galas,
Brilhou rica de seiva e luz e vida;
Se na mente sonhar a pura essência
Que animara esse pó aí revolto;
Se corpo der à sombra fugitiva,
E a voz unir ao eco, e o foco ao raio;
Se alguém souber do canto o sentir íntimo,
Oh, esse há de entender a vida, a crença
Dessa alma que animara outrora o canto.

Se alguém tiver no peito a urna mística
Onde o Amor se recolhe, esse há de amar-me;
Se livre, por tiranos não comprado,
Pulsar um coração, esse comigo
Há de a aurora saudar do novo dia;
Se uma alma recordar a eterna pátria
Que lhe dera o Senhor, do céu saudosa
Comigo a Deus num hino há de elevar-se.

Aos mais será mistério o canto e a lira,
À Liberdade, a Amor e a Deus votada:
E já, soltos do tronco onde medraram,
Meus cantos voarão de idade em idade,
Como folhas que ao longe o vento espalha.


LAÇO DE AMOR

(Ao amigo Santos Valente enviando-lhe para o seu Álbum a poesia “As Estrelas”)

Que hei de dar de melhor? Aí, nestes tempos
De pobres afeições, de tíbias crenças,
— Fonte que os sóis do estio tem secado —
Aonde há fé tão viva, que trasborde,
Enchendo um peito noutro peito amigo?
Que esperanças cá da terra há aí tão firmes,
Tão ricas de futuro, que dois seres
Possam firmar-se nelas sem receio
E abandonar-se todo ao seu arrimo,
Qual braço de mulher em braço de homem?
E quem pode encontrar-se em igual via,
E ir, com norte igual, seguir seu rumo
Quando tantos caminhos vão cruzando
Nestes tempos o mundo do espírito?
Ah, neste século, amigo, solitário
Cada qual segue triste a sua estrada,
Caminheiro de um dia, e silencioso,
Contando, como o avaro, os tristes restos
Das suas ilusões, das suas crenças,
A si pergunta o que ficou de tudo;
Olha as bandas longínquas do horizonte
E de novo interroga, em desalento,
Se o futuro lhe guarda alguma esperança,
Se o abismo é o termo da jornada?!

Se lá de longe em longe alguma tenda,
Se uma fonte que ensombra alta palmeira.
Lhe alveja no deserto; se inda um pouco
Lhe repousa a cabeça afadigada,
Não faz, crente no Deus que o tem guiado,
A oração da noite, a ação de graças
E, antes que cerre as pálpebras, medita...

No repouso só busca o esquecimento:
Dorme o sono agitado de uma noite
Sob a tenda que o acaso lhe depara;
De manhã, sem levar uma saudade,
Sem as deixar também, ei-lo seguindo
Do fatal peregrinar a longa via.

Que lhe importa o passado ou o futuro?
Para dor que sofre em si tudo é presente,
Aqui, ali, em toda a parte o punge...
Quem lhe dera esquecer, não recordar-se...

Orações? são incenso cujo aroma
É de lágrimas... e as dele se hão secado!
Orgulhoso na dor, da dor o orgulho
Fá-lo erguer solitário e silencioso,
Como se ergue o granito no deserto
Ermo, nu... se medita... e só consigo.

Assim vai cada qual seguindo o rumo
Que o acaso ou o fado lhe depara:
Quem se pode encontrar? que laço estreito
Há que os aperte? Ideia ou sentimento
Aonde em crença igual juntos comunguem?
........................................
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........................................
Com tudo Deus existe! e nós, seus filhos,
— Ingratos — se numa hora o olvidámos,
Dentro temos a voz de eterno brado!
Quem pode renegar seu pai? Nós somos
Como esse Adão oculto no arvoredo
Que não quer responder a quem o chama:
Porém se a voz do pai clamou três vezes,
Não pode resistir — “Eis-me presente.”—

Dissidentes no mais, Deus nos reúne:
No ímpio, ou crente, em todos Deus existe
E todos chama a si, e a todos ama.
Nós somos como rios que descendem
De varia serra, e em vário leito correm:
Mas, que importa? essas serpes tortuosas,
Após rodeios mil, após mil voltas,
Vão todas dar no mar; some-as o Oceano.

Que importa a crença varia e o vario afeto?
Este laço de amor a todos une:
— Existe um Deus que é Pai; somos seus filhos.


FORÇA-AMOR

O que destrói os mundos,
E dá que os mares frementes,
Em volta aos continentes,
Cavem abismos fundos;

A mão que faz que a noite,
Sem luz, amor, encanto,
Se envolva em negro manto
Aonde o mal se acoite;

Que pôs no olhar o brilho,
E deu ao lábio o riso,
À planta o pomo liso.
Seio de mãe ao filho;

O que é verbo da vida,
Do amor, da luz, do afeto,
O que sustenta o inseto
E a planta desvalida;

E disse à nuvem branca
— Em densas trevas morre,
E disse ao vento — corre,
Assola, espalha, arranca;

Quem faz da vida morte,
De puro incenso, fumo;
E deixa, em mar sem rumo,
O homem lutar com a sorte;

Se é Deus... oh! não! não pode
Do amor o foco imenso,
Que abrasa em fogo intenso,
Se à mente nos acode;

Não pode o sopro dele
Mandar a morte e o pranto,
Em vez do doce encanto,
Que imenso amor revele!

Algum gênio das trevas,
— Espírito infecundo —
Espalha sobre o mundo
Estas vinganças sevas.

Não ele; o Deus suave!
Daquele seio imenso,
Só manda à terra o incenso
E o balsamo que a lave!

........................................

— Estranhas ver a morte?
De vida andas repleto:
O Deus, o Deus do afeto
Também é o Deus forte:

Poeta! és tu que ignoras
— Envolto em sonho aéreo —
O revolto mistério
De mais revoltas horas! —


PAZ EM DEUS

...pax hominibus bona voluntate.

O Deus que me criou pôs-me no peito
Um tesouro tão rico de esperança,
Que não há quem mo roube ou quem mo gaste;
E pôs-me n'alma fonte tão perene
Daquele Eterno-Amor, que de lá desce,
Que não há sol ou calma que ma seque.

A fonte que nasceu em solo árido
Se um dia murmurou, morreu no outro;
Mas a que vem dos montes, que o céu tocam,
Descendo lentamente e sem ruído,
Até que brota entre as flores da campina,
Essa não morre com a luz de um dia...
Fonte de puras águas abundantes,
Traz do céu sua origem. Lá se esconde,
Entre nuvens, o foco que a alimenta:
Eterna, como o céu donde partira,
E serena, como ele, a paz e a vida,
Como ele, tem no seio e dele manam.

Assim daquele amor. Constante e puro,
Que ardor ou calma ou sol pode secá-lo?
Que pó da terra conspurcar-lhe o brilho?

A maldade dos homens não te mancha,
Oh minha paz, oh minha pomba cândida!
Na terra o caçador te aponta a flecha,
E o tiro parte em vão. Como tocar-te,
Se tão alto voaste, e o dardo apenas
Mediu a meia altura que levavas?
A flecha cai na terra... ao céu tu foges!

Vai pomba imaculada! irei contigo
Abrigar-me também no seio eterno,
Quando um dia o Senhor julgar que é finda
A missão que me deu de aqui servi-lo.
Aqui fica-me a esperança que me alente,
Fica a luz que me guia, o Amor, a crença.

E foi Deus quem me deu o meu tesouro,
Como à ave que voa deu a pena,
Que a libra pelo espaço; e ao olho morto
Do ancião, a luz que aponta melhor mundo.

Na assembleia dos homens, se um, olhando-me
Disser — “Aquele é rei”— irei prostrar-me
Diante do Senhor, abrindo o espírito
À voz que dentro dele Deus murmura;
E Deus vendo-me puro na consciência
Dirá — “Ergue-te em paz: não és culpado!”—

Se sentir dentro d’alma alguma ferida
Vertendo sangue e fel, em dor extrema,
Buscarei no Senhor o meu alivio:
E o Senhor, pondo um dedo sobre a chaga,
Dirá— “Fica-te em paz: estás curado”! —

Oh minha doce paz! por ti se cumpram
Os decretos do Eterno: tu me escuda
Dos tiros que a maldade em mim dispara;
A força do leão põe-me na mente,
A mansidão da pomba dentro d’alma.
Oh pomba ingênua, pomba imaculada,
Filha do céu ao céu voemos juntos.


NUMA NOITE DE PRIMAVERA
(DO POEMA VASCO)

1º FRAGMENTO

Esta quadra d’amor quanto nos punge,
Com tão doce pungir! Como sorrindo
Nos mata de desejos; nos esmaga
Sob o peso infinito dos anelos,
Que esta vida e mil outras não fartaram!
Esta quadra d’amor, com seus sorrisos,
Quanto nos punge o peito, ai, quanto mata!

Tal é a essência do Amor; tal Deus há posto
Um veneno no mal, na flor um áspide!
Prazer e dor, sereis talvez um único,
Único ser, que nos penetra e abrasa
Num fogo que nos doe, mas que é tão doce?
Punhal, que ferindo o peito, nos consola,
Mas, que a afagar nos vai roubando a vida,
Antegosto do que é o céu e o inferno?
Será isto o amor? será?... quem sabe?

Talvez! Se é laço universal e único
Deve o bem como o mal juntar num todo;
Se é vida é também morte; se é saudade,
É desejo também; e se algum anjo
O criou, há demônio que o perturba;
Se é um sol que nos brilha dentro d’alma,
Também queima e devora, também mata!
E é isto amor? será! será! quem sabe?

De vida mais completa é antegosto,
De melhor existir que além começa:
Talvez! então o amor será a morte?
Triste noiva, é mister esperar-lhe a vinda
Para amar e gozar e viver muito?!
Celebre-se o himeneu sobre uma campa:
Aguarde-se a hora extrema, como aurora
De um bem, que além da vida só começa;
E contando os momentos como séculos,
O primeiro dos dias seja o último...
Mas será isto amor? será!... quem sabe?

Talvez!... Mas quando a lousa funerária
Rangendo, cobre um corpo estremecido:
Quando a terra só pode dar-lhe os ósculos,
Que inda há pouco lhe dávamos convulsos,
Que vem, que vem aos olhos? Vem só lágrimas
E ao peito vem só dor! O luto, o pranto
Se assentam sobre as campas, não a esperança!
E será isto amor? será!... quem sabe?

Mas as lousas são frias. Quem pernoita
Na devesa onde só o eterno sono
Se dorme... não! ninguém por lá pernoita!
As dores, como gazes, se evaporam;
No ambiente da vida os ais não podem
Muito tempo ecoar; há tanta lágrima,
Tantas consolações para os que sofrem!
Não duram, não!... a mão que enxuga o pranto
Beija-se... e mais... e mais... encontra-se a alma
Com quem se casa a pobre solitária:
E a outra! a outra lá! partiu-se o laço...
E é isto amor? será! será?... quem sabe?

Feliz do que viaja em mundo novo!...
Triste do que ficou sobre uma lousa
Assentado a chorar: o que é da esperança?
Nunca saiu da campa voz amiga
A consolar a dor! Fica-lhe apenas
Um prêmio, triste prêmio! o das lágrimas:
Esse — se foi constante — há de cingir-lhe
A fronte com a coroa... do martírio...
E será isto amor? será!... quem sabe?
........................................

2º FRAGMENTO

........................................
Será! será! Que importa, se é tão doce,
Se mata com um sorriso, entre caricias!
Vai, razão fria! vai... isto ou aquilo
Que importa seja o amor?! É sempre belo
— Um momento sequer — gozar a vida.

É belo o amor; é bela a vida; é belo
Tudo aonde o Senhor a mão há posto...
E o Senhor fez o mundo! e a ti, ó noite,
Noite de primavera, deu-te estrelas,
Que são almas no espaço a procurar-se;
A ti, mulher, a ti deu-te o mistério
De matar ou dar vida... e a mim, sim! — creio —
Inda há de dar-me uma hora de ventura!
........................................
Oh! dai-me a taça do veneno doce,
Que mata embriagando! Dai-me prestes
Uma taça de amor aonde libe!...
 

 

SALMO
(CXXXII - De Davi)

Do amor é santo o laço!
 O forte ao fraco ajude:
 Ao irmão mais fraco escude
 Do irmão mais forte o braço.

E a graça do Senhor virá sobre eles:
Virá, bem como um óleo perfumado,
Que na fronte de Arão caído, escorre,
Que inunda a barba toda, e vem descendo
Até que a fímbria da túnica lhe beija.

Virá, bem como o orvalho sobre o monte
Sacrossanto de Hermon, e sobre o cimo,
O cimo de Sião, que Deus amara:
Porque sobre as justas frontes
Dos irmãos que estreita o amor,
— Mais que o orvalho sobre os montes —
Desce a graça do Senhor.


À BEIRA-MAR
(O CREPÚSCULO)

Oh! vem Maria! sobre a rocha erguida
Em áspera costa, sobranceira ao mar,
Vamos sozinhos ver as brancas ondas
Sobre os rochedos, em cachões, saltar!

Ali, bem juntos, ao cair da tarde,
De mãos trocadas a falar de amor,
Quero, ao contar-te mil segredos d’alma,
Ver-te nas faces virginal pudor.

É próprio o sítio, é propicia a hora,
Incerta, dúbia entre sombra e luz;
Já descem trevas pelos fundos vales,
Inda algum brilho sobre o mar reluz:

Inda no dorso das inquietas ondas
Dourada fita tremeluz, além;
Mas, já ao longe, da campina os viços,
Envolvem sombras que dos montes vêm.

Gigante imenso de esplendor e brilho,
O sol, um instante, viu-se ali nutar;
Depois cansado, declinando rápido
A lassa fronte repousou no mar.

Semelha ao entrar-lhe pelo seio túmido,
Que de mil fogos inda foi tingir,
Medalha de ouro, que em caldeira imensa,
A pouco e pouco visse alguém fundir.

Em tanto a sombra vai descendo os montes
E envolve as terras misterioso véu;
Já se divisa, vergonhosa e tímida,
Pálida estrela tremular no céu:

Como em teu seio, pura virgem, nasce
Ligeira mágoa de fugaz pesar,
Que vai crescendo, e transmudada em lágrimas
Te vem dos olhos nos cristais brilhar:

Como nos brota dentro de alma, e lavra
A pouco e pouco no veloz crescer,
Algum afeto que em paixão tornado
Nos vem no peito com fulgor arder:

Assim da estrela nasce o brilho, e cresce
A pouco e pouco pelo céu de anil;
Ponto luzente, no começo apenas,
Por fim brilhante, entre safiras mil.

Solidão calada pela terra alarga-se
Prelúdio augusto da noturna voz;
Em doce enlevo, cisma o homem estático
Em Deus, consigo meditando a sós.

Hora saudosa de incerteza mística,
De luta harmônica entre sombra e luz.
Por ti nos desce sobre o seio ardente
A santa crença que para Deus conduz!

Hora em que é grato no regaço amigo
De alguma esperança de melhor porvir,
Olvidar mágoas de um presente incerto,
E, esperando, e crendo, nessa fé dormir.

Em que amor gera dentro de alma os laços
Que as almas ligam com estreito nó,
E que no arroubo de amoroso rapto
Funde dois seres numa vida só.

E eu também quero sentir n'alma os íntimos
Celestes gozos que esta hora tem;
Em livro aberto ler um nome augusto
Que em letras de ouro vejo escrito além.

E no regaço da mulher amada,
Que é minha esperança de melhor porvir,
Quero estas mágoas ir depor e apenas
Guardar um peito para amor sentir.

E antes que as terras iluminem fogos,
Com a luz divina que o Senhor lhe deu;
E antes que morram esses brilhos últimos
Do sol nas dobras do noturno véu;

Quero ao soído gemedor das ondas
Casar as mágoas deste imenso amor,
Ardente e puro, como aqueles lumes
Candentes focos de vivaz fulgor.

Quero nas horas do crepúsculo ameno
Sobre o rochedo sobranceiro ao mar,
Aos pés da virgem que escolheu minha alma
Ler-lhe nos olhos confissões sem par.


ASPIRAÇÃO

Por que é que minha alma anseia
De visões e mágoas cheia,
Por que ao longe devaneia
Minha mente sem cessar?
Por que à tarde, em fins do dia,
Ao cair da maresia,
Vou sobre a costa bravia
Mágoas carpir sobre o mar?

Por que se me oprime o peito
— Já de há muito à mágoa afeito —
Nesse momento imperfeito,
Misto de trevas e luz,
Quando tudo, ao longe e ao perto,
Se veste de um brilho incerto
E eu, desta alma no deserto,
Só diviso a paz na Cruz?

Por que ao murmúrio das fontes,
Quando a sombra desce os montes,
Fito o olhar nos horizontes
E fico mudo a cismar!
Por que à noite, à lua cheia,
“Por noites da minha aldeia”,
Choro e riu e devaneia
Meu agitado pensar?

Oh! quem é que assim me inspira
À mente que me delira,
Ao coração que suspira
Alívios, consolo e paz?
Quem faz que além desta vida
Veja uma outra prometida
E anseie essa pátria querida,
Não esta pátria falaz?

Não vem de mim nem da terra
— Que tal ouvir não encerra —
O que este peito descerra
Num hino de tanta fé:
Eu cismo às vezes de amores,
Porém são outros ardores,
Outros são os seus fervores,
Outro amor que este não é...

Eu tenho sonhos de glória,
Que me acodem à memória
Como a visão ilusória,
Que brilha e que se desfaz:
De ouro e nome tenho sede;—
Do poder aspiro à sede...
Mas toda esta glória cede
À glória de luz e paz!

Oh! trasborda-me este afeto,
Que aqui dentro anda secreto,
Como de vaso repleto
Trasborda puro o licor!
Oh! inunda-me este oceano
De um amor tão sobre-humano,
Tão puro de todo o engano...
Que nem sei se é isto amor!

Oh! embala-me esta esperança,
Aonde a alma me descansa
Em pura e santa bonança,
Tão bafejada de Deus,
Que não pode — eu bem o vejo —
Descender-me este desejo
Senão da pátria que invejo...
Oh! esta esperança é dos céus!

És tu oh Deus que me chamas!
És tu Senhor que me inflamas
Naquelas ardentes chamas,
Que me dão tão pura luz!
És tu, oh Pai! que da altura,
Olhando a minha amargura,
Me estendes a mão segura,
A mão que a ti nos conduz!

Sim! minha alma te pressente!
Guiada por luz ingente
Desse fanal que não mente,
Já p'ra ti desprende o voo...
Oh! quem tem essa luz querida,
Não tem outra prometida,
Não pode amar outra vida...
Senhor! eu busco-te... eu vou!


A PIRÂMIDE NO DESERTO

Além na solidão, sobre os desertos,
Tu só te ergues altiva e apontas céus;
E deixas, sobranceira às tempestades,
Rugir de um mar de areia os escarcéus!

Tu só! Quem te criou? Mistério imenso
Ao nascer te encobriu, te envolve o ser...
E agora eis-te, rival das serranias,
Como elas condenada a não morrer.

Tu só! Além, na extrema do horizonte,
Passa o árabe no auge do furor,
Luz-lhe na mão o alfanje, o olhar fuzila,
Vão com ele em tropel morte e terror!

Mas lá surge do acaso arroxeado,
Ao mando de medonho furacão,
Nuvem de ardente pó que rui sobre ele,
Que o sepulta em deserto, árido chão.

Mas tu sorris às fúrias da tormenta,
Não temendo arrostá-la inda uma vez,
E ela, a que troou pelos espaços,
Vem tremendo morrer-te aí aos pés.

Do cimo sublimado, erguido às nuvens,
Vês os séculos nascer, ruir no pó;
E em meio da ruina dos impérios
Ficas tu, ó gigante, eterno e só!

Além, nesse deserto a quem assombras,
Que vidas, que paixões se hão revolvido!
E a todas o deserto, qual sudário,
Nas dobras da mortalha há envolvido.

Tu podes apontar ao viajante
Um nome ou um lugar na solidão:
Dizer — Ali, Palmira foi cidade —
— Aqui, foi um herói Napoleão. —

Tu só podes dizê-lo. Quem mais sabe,
Que pó envolve agora o que morreu?
Quem pode diferençar, num mar infindo,
Um pó de um outro pó que o envolveu?

Só tu! Na solidão, sobre os desertos,
Tu só te ergues altiva, e apontas céus;
E deixas, sobranceira às tempestades,
Rugir de um mar de areia os escarcéus!


DESALENTO

A sorte, amigo, a sorte é dura às vezes!
Agora nos afaga e nos alenta;
E logo nos oprimem seus revezes...

Após leda bonança vem tormenta;
Sucede a noite escura ao claro dia,
E ao rápido prazer a mágoa lenta!

Assim de minha ardente fantasia
Aos sonhos perfumados de venturas
Que a beijar-me a fronte eu já sentia,

Ai! seguiram-se tristes amarguras
Que a vida a pouco e pouco vão comendo;
Deixando espinhos só onde as verduras
Eram brandos aromas rescendendo!


CONFORTO
(Paráfrase do soneto antecedente)

A Sorte só p'ra o fraco é dura às vezes!
P'ra o forte, que a virtude e crença alenta,
P'ra esse não há sortes nem revezes...

Por que após da bonança vem tormenta,
Por que a noite sucede ao claro dia,
É força definhar em mágoa lenta?

Não! que aos males, que gera a fantasia,
O sábio opõe as íntimas venturas
Da virtude e da fé que em si sentia.

Não chores mais, poeta, as amarguras
Que só os bens da terra vão comendo:
A consciência é jardim onde as verduras
Mil perfumes p'ra o céu vão rescendendo.


A SENDA DO CALVÁRIO

Ave, Christus!

Deixai, deixai passar o homem forte,
O ungido do Senhor;
Se a cruz que arrasta agora é cruz de morte
Também é cruz de amor!

Deixai! na praça o povo aglomerado
Vomita a injúria ali;
E ele, sereno o rosto e resignado,
Olha o céu, e sorri.

Sorri... não fero riso de desprezo
Que ao passar pelo lábio perde o encanto,
Mas riso que transluz por entre o pranto
Ao que da cruz de amor arrasta o peso.

Sorri... Que mais importa ao homem forte
Ou desprezo ou louvor,
Se da estrela seguiu, que foi seu norte,
O mágico palor?
Tem dentro, como em erguida fortaleza,
A fé, voz que lhe vai bradando — “Avante!
É teu prêmio o opróbrio do ignorante,
De tal morte morrer, tua grandeza!” —

E diz, vendo a consciência onde serena
Lê a imagem de Deus,
E do futuro vendo a praia amena:
— “Posso subir aos céus!
Posso agora, depondo em terra o peso
Da missão dolorosa desta vida,
Buscar a pátria minha prometida,
Donde o divino amor transluz aceso.” —

Ai pode! Herói, e mártir, deixa a terra,
Que é cumprida a missão:
O Mundo o teu preceito guarda e encerra
Na mente e coração...
Morres tu; mas a ideia que deixaste
Não morre, como a luz em fim do dia,
Nem o fogo do céu que em ti ardia,
Nem o exemplo sublime, que legaste!

Oh, mártir! cada lágrima chovida
Nessa senda de dor,
Conquista mais um espírito p'ra vida,
Para a luz do Senhor;
E um dia (e talvez cedo venha o dia)
De cada dor que aí te curva agora,
Nascerá qual da noite nasce a aurora
Um mundo de verdade e de harmonia!
........................................

Deixai, deixai passar o homem forte,
O ungido do Senhor;
Se a cruz que arrasta agora é cruz de morte,
Também é cruz de amor!
 

 

A JOÃO DE DEUS
(Depois de ler a sua poesia)

Fique em silêncio eterno a minha lira;
 Pomba do céu tu vai; Deus te bem fade,
 Nesta alma em teu lugar guardo a saudade,
 Se a essência sobrevive à flor que expira.
 ........................................

Foi o canto do cisne, o canto derradeiro
Daquela augusta voz que se esvaiu no ar;
Adeus da terna amante ao seu amor primeiro
Que eterno ela julgou, mas cedo viu findar;
Último adeus de quem, há pouco ainda crente
— Numa hora apenas — vê, qual sombra na corrente,
Morrer-lhe as ilusões com a morte desse amor
E triste se envolveu no véu de uma erma dor.
Sofreu da solidade... E onde há aí um peito
Que não sofra também, ainda ao mal afeito?

Sofreu da solidade em que a alma lhe ficou,
Depois que ao longe e triste o eco se finou
Daquela única voz, que ainda repetia
A sua voz, bem como, à tarde em fins do dia,
A nuvem que passou reflete um raio ao sol,
Que mesmo oculto a tinge aos fogos do arrebol.
Sofreu quando da sorte a mão pesada veio
Pousar-lhe sobre o peito e comprimiu ali
A ânsia que animara o arfar daquele seio,
Seio que só bateu — poesia! — amor! — por ti!

E ele então disse: “Aqui deponho a minha lira:
Se esta alma a outros céus, a outra pátria aspira,
Se esta ânsia infinita não posso aqui fartar,
Que vale — eco sem voz — que vale o meu cantar?
Vale mais que eu, em silêncio, espere o grande dia,
Cuja aurora imortal, em luz, em poesia,
Me há de envolver, e assim levar-me àquele céu.
Céu do que amou, creu, esperou e sofreu.
Entanto — esperando — viva em silêncio profundo,
Deixando em vão rugir, — qual voz do mar — o mundo;
Aqui guardo a saudade, esse talismã só,
Como da flor já seca inda se guarda o pó.” —

Cobriu o rosto após com o manto da tristeza;
O sol daquele céu fugiu ao longe... além...
E a noite sem luar, sem brilho, sem beleza
Ao negro que ia lá veio ajuntar também.
........................................
........................................
Poeta, essa não é tua missão. Curvar-se
Um momento é do homem; porém não prostrar-se
Gemendo em desalento, e face contra o chão,
Como quem aceitou da dor a escravidão.
Poeta é quem tem fé, quem busca no futuro
A crença que lhe nega este presente impuro:
Não quem deixa cair a lira, não quem vae
Pedir ao desalento abrigo e amor de pai.
É virtude sofrer, nunca perder a crença;
É ter esperança tal que a dor mais crua vença;
É não pedir seu prêmio aos homens, mas a Deus,
E passar neste vale, o olhar fito nos céus.

Tal é tua missão: — Lutar! O sofrimento,
Ao pé do eterno bem, o que é mais que um momento?


ADEUS

Fique em silêncio eterno a minha lira;
Vai, eflúvio de Deus! Deus te bem fade:
Nesta alma, em teu lugar
 fica _a saudade,
Se a essência sobrevive à flor que expira.

Dizer-te adeus! não pude; quando ocorre
Tal voz ao lábio, o lábio empalidece,
Como a nota da lira nos falece
Ante a lua que cai, e o sol que morre:

Ante o sopro que varre o cedro e o vime,
Ante o sublime aspeto do oceano,
Ante a esposa do mártir sobre-humano,
Ante tudo o que é grande e que é sublime.

Embora!... quando a lâmpada crepita
Já falta de óleo, lânguida esvoaça;
A nuvem estala; ruge a onda e passa,
Guarda silêncio a abobada infinita.


PER AMICA SILENTIA LUNAE

Guardai in alto.........................

DanteInferno, canto 1º.

I
Eu amo a noite às horas sossegadas
Que o Senhor manda à terra, como balsamo
A tanta dor que a punge, e o sol do dia
Parece escarnecer com tanto brilho,
Nem sabe respeitar; quando o silêncio
Com manto protetor envolve os tristes,
Os que choram saudades; quando o orvalho
Refresca o seio à flor, e em cada balsa
A viração perpassa suspirando;
Quando é mais puro o ar, mais doce a brisa,
Mais sumidos, mais vagos os rumores,
E detrás da montanha, saudosa
Como a virgem dos sonhos, surge a lua.

II
Eu amo então a noite. — Paz e esperança
A quem sofre, buscando algum alívio;
Ao feliz exultando de alegrias
A lembrança de Deus a quem as deve;
A quem descreu de achar inda na terra
Ventura que lhe foge... o olvido ao menos;
A toda a crença um exultar de afetos;
A todo o desconforto, uma esperança;
A toda a natureza, amor e vida;
Eis o tesouro santo que nos abre
— A nós e ao mundo — a noite, eis seu tributo.

É doce então abrir os seios d’alma
Aos eflúvios do céu: flor que hão crestado
Ardentias do sol, e ainda tímida
Palpitando entre o susto e a esperança,
Retoma agora aos poucos novo alento
Ao sentir-se segura, e abrindo o cálix
Estremece de amor a cada gota
Dos orvalhos do céu: como que a vida
Solta de tanto laço que a comprime,
Como gás que ao calor se há dilatado,
Se expande livre agora e cresce e absorve
Em si mil harmonias, mil poderes
Que esse universo tem: como as correntes
Ocultas, que os oceanos comunicam,
A natureza e o espírito permutam
Simpatias e forças, em que a alma
Mais cresce e mais compreende, e mais abrange,
E neste permutar de força e força
Quase na vida universal se funda.

III
Passa a lua; do alto olhando a terra
Procura o triste por lhe dar alívio;
Perpassa a viração e busca do ermo
A florinha minada que refresque;
Corre manso o regato, e banha a erva
Que um pé calcou, e o sol deixou crestada;
Tremula a estrela, símbolo de esperanças,
Enviam-se harmonias as esferas;
Tudo amor, tudo afetos comunica;
E o espírito do homem busca livre
Da soberana harmonia a eterna fórmula,
Do eterno amor o foco, a pátria sua.

Lembranças de um viver já pressentido,
Ou memórias — talvez — de uma outra vida,
Que nos relembra vaga, e como em sonhos,
E sobre o fundo desta se destacam
Como pela penumbra um vulto incerto...
Aspirações, memórias, ou saudades,
O que nos enche o peito e nos enleva
Como um sonho de amor — e mais ainda —
Senão este mistério do futuro,
Esta atração do ser a vida nova,
Que se foge e se busca e nos revela
A vida universal, então sentida
Mais forte na harmonia do Universo?

IV
Busca-se, anseia-se, e o alvejar da campa
Mais que o sorriso de uma amante é doce;
A lembrança da morte mais que a esperança
Do poder ou da glória nos enleva;
Terrores, incertezas se dissipam,
E sem saudade, sem temor se anela
Mais mundo, mais espaço, e viver novo
!

V
E quem pode temer? Teme o que um dia
Sonhou na mente uma ambição terrena
E mais não vê por todo esse universo,
E além dele não vê sublime e grande:
O que engolfado nos prazeres do mundo,
Esqueceu o seu Deus e seus destinos
Nem sonha mais ventura além da campa:
O que pungido por cruel espinho
De uma dúvida atroz, sente a cada hora
Cair-lhe a uma e uma cada crença
De sobre alma, deixando-a erma e nua,
Como as úmidas pregas de um sudário,
Aos poucos desdobrado, deixam ver-se
Os descarnados membros do cadáver.

VI
Mas quem se assenta às horas do mistério,
Entre as flores do prado, ou sobre a encosta
Da colina virente e olhando a lua
Que banha em luz a esfera cristalina,
Inveja quem habita nesses mundos...
E fita o olhar por esse espaço, e cuida
Sondar-lhe o infinito; quem anela
Desvendar-lhe os mistérios e buscando
A região que se sonha e não se avista
Dá-la por pátria à sua alma... oh! esse
A viagem não teme, antes anseia,
Quebrada a forma deste ser, alar-se
Em busca de outra mais perfeita, e sempre
De degrau em degrau, de esfera em esfera,
— Metempsicose eterna! — sublimar-se
Na progressão deste ascender constante
Da parte ao todo, do mortal princípio
Em busca de um futuro inatingível,
Porém melhor cada hora, e a cada passo.

E quem pode temê-la, essa viagem,
Quando fitando o olhar no alto, avista
Banhado em luz o espaço imenso e puro,
Patente e franca a estrada do Universo,
E como que visível o infinito?
Quando tudo no céu e pela terra
Parece, como irmão, dar-nos confiança
Em nós e em si para seguir avante?
Quando se sente palpitar no seio
Não só já a mesquinha vida própria
Mas todo o grande ser do que é criado?
Quando nas aras do Universo, o espírito
Comunga, como irmão, na mesma crença,
Com tudo quanto vive, e a mais aspira,
Ah! quem pode temer, noite de encanto,
Noite pura e sagrada ao Deus de afeto,
Protegido por tua luz amiga,
A aspiração dos imortais destinos.
Um pouco mais ao peregrinar constante,
A entrevista do infinito e do homem?

VII
Por ti, noite de amor, por ti nos desce
Tanta ventura ao seio; e como o orvalho
Que o pó da terra ressequido e árido,
Que o vento impele, fixa sobre o solo
E como que consola e alivia,
Assim como teu eflúvio o triste espírito
Que incerto das paixões refoge à dúvida,
Numa crença fixaste — a crença eterna
Do amor universal, todo harmonias,
Porque és afetos toda! Em cada balsa
Descanta um rouxinol; a cada rosa
Uma brisa osculou; em cada fonte
Brilha um raio da lua; em cada peito
Murmura um eco que de amor só fala!
 

 

NA PRIMEIRA PÁGINA DO INFERNO DO DANTE

Este é o livro das vinganças nobres,
O inferno dos que têm o céu na terra:
Nem vingança; justiça.
— Oh vós que as lágrimas
Trazeis sempre nos olhos, sem que sequem,
Lázaros no banquete da existência,
Oh filhos do dever! lede este livro,
Porque através de um mundo de misérias,
Do largo peregrinar chegando ao termo,
Heis de ouvir, lá das bandas do futuro,
A grande voz do Cristo, a voz eterna,
Erguer-se sobre os filhos da verdade:

“— Felizes dos que sofrem — terão prêmio:
Feliz do pobre e triste, órfão de afetos,
Será rico: no céu seu pai o espera!”
 


DANTE — DIVINA COMÉDIA
(Purgatório, Canto VI)

Oh Itália aviltada! Oh não sem rumo
No meio da tormenta!
E era esta a rainha das províncias?
Hoje... cloaca informe!
Outrora mal bradasse: — “Pátria, Pátria!”
Um cidadão, um filho,
Alma nobre — acolhia-los no seio
No seio que lhe abrias!
Agora espreita cada um o peito
Do vizinho e olha o gládio:
E os que estreita no cinto o mesmo muro
E o mesmo fosso... comem-se!
Alonga, alonga, oh triste, pelas praias
Teus olhos macerados;
Desce-os, desce, infeliz, ao próprio seio...
A paz! onde a encontraste?


MOMENTOS DE TÉDIO

Sinite parvulos ad me venire.

Ventura! aurora doutro eterno dia —
Amor — Verdade — Bem — Quanto desprende
Seu voo cá da terra e quanto estende
Azas no céu, só busca esta harmonia,

E as alturas fechadas! tudo esfria
E morre, lá por cima, e não se entende...
Certo é que o fruto só p'ra terra pende,
Parece que p'ra terra a luz se cria!

Há tanto quem sem luta espere havê-la!
Sem se erguer, quedo o mundo, cuide vê-la...
Talvez, se assim quedasse, a possuísse!

Chama-se isto voar! Toda essa altura
Dava-a bem por uma hora de ventura...
Antes minha alma não voasse... e visse!


A UM CRUCIFIXO

Dieu nest pas! Dieu nest plus

Há mil anos, oh Cristo, ergueste os magros braços,
E clamaste da cruz: “Há Deus!” e olhaste, oh crente,
O horizonte futuro, e viste em tua mente
O alvor do céu banhar de luz esses espaços!

Por que morreu sem eco o eco de teus passos?
E de tua palavra (oh Verbo!) o som fremente?
Morreste! ó dorme em paz: não volvas, que descrente
Arrojaras de novo à campa os membros lassos!...

Há mil anos! há mil! Que é dela a tua esperança?
Ainda, como então, Amor — traduz — Vingança,
E é o interesse glacial das almas o sudário
!

Ainda, como então, virás o mundo exangue?
E ouvirás perguntar: “De que serviu o sangue
Com que regaste, oh Cristo, as urzes do Calvário?!”


DECOMPOSIÇÃO

“Eu não sou dos que a pátria só adoram”
Como adora o regato a própria serra:
Deus numa gleba apenas não se encerra;
Se visita esses mundos, que demoram

De céu a céu, também cafres o imploram.
Mas deixai que uma lágrima sincera
Possam os olhos dar, olhando-a, à terra
De onde a primeira vez aos céus se foram.

Sim, ver-te, Portugal! eu choro ao ver-te!...
Como ao Leão gigante do Ocidente
Lhe cai a garra, e em nada se converte!...

Não é isto o que eu choro: o que me dói,
É como aquela juba onipotente,
Em penas de pavão se decompõe!...


NIHIL

Homem! Homem! mendigo do Infinito!
Abres a boca e estendes os teus braços
A ver se os astros caem dos espaços
A encher o vácuo imenso do finito!

Por que sobes à rocha de granito?
Por que é que dás no ar tantos abraços?
E cuidas amarrar com férreos laços
Um reflexo da sombra de um espírito?

Vê que o céu, por escárnio, a luz nos lança!
Que, à tua voz, a voz da imensidão
Responde com imensa gargalhada!

A ideia fechou a porta à esperança,
Quando lhe foi pedir gasalho e pão...
Deixou-a cara a cara com o Nada!!...


QUINZE ANOS

Eu amo a vasta sombra das montanhas
Que estendem sobre os largos continentes
Os seus braços de rocha negra, ingentes,
Bem como braços colossais de aranhas.

Dali o nosso olhar vê tão estranhas
Coisas, por esse céu! e tão ardentes
Visões amostra o mar de ondas trementes
E as estrelas, dali, vê-as tamanhas.

Amo a grandeza tenebrosa e vasta:
A grande ideia como um grande fruto
De um árvore colossal que isto domina;

Mas tu, criança, sê tu boa... e basta,
Sabe amar e sorrir... mulher, é muito...


SARCASMOS

Está deserta a estrada do Infinito,
É apenas o céu do nada espelho,
A eternidade é fóssil: Deus é velho,
E o homem olha o céu de fito em fito!

A cruz de Cristo está feita um palito,
Embrulham-se caminhos no Evangelho;
Cada qual dá a Deus o seu conselho:
Nem já é Verbo o verbo... é só um Dito!

Nada disto me dá a mim cansado;
Mas morrer Satanás também de frio...
Mas não haver já mal que se combata...

Não poder já ao demo um condenado
Render a alma imortal... por desfastio...
É isto o que me dói, o que me mata!...


AMOR DE FILHA
(No álbum de uma Senhora)

...o sangue é vida, e as Mães a fonte dela...

JOÃO DE DEUS

Ainda a trabalhar, dedos formosos!
Nem tanto afinco: Deus também não quer
Que se cumpra o preceito tanto à letra;
Preceito é trabalhar, não que se estraguem
Esses formosos dedos de mulher.

Já o sol se escondeu atrás da serra,
E o bordado não cessas de bordar;
Quando abri de manhã esta janela,
Já lá estavas no posto, de olhos roxos,
Como se foram roxos de chorar!

Forte trabalho! não me enganas, bela!
Bem sei eu quem te dá tamanho ardor...
Pois nem um olhar a quem passou na rua,
Dizendo: — É bela! e olhando-te? nem isso?...
Ai tanto trabalhar! só por amor...

Que importa o que passou? no peito um nome
Te domina, e na mente uma imagem só...
Feliz cabeça, que há de ornar em breve
O bordado gentil em que trabalhas
Com esse afinco, que causou meu dó.

Feliz! sim; que lhe guarda aquele peito
Largo e rico tesouro de afeição;
Pois magoar estes olhos, e estes dedos
Formosos estragar — homem ditoso —
Só faz o amor que vem do coração!...

Tu, que talvez repouses no ócio brando,
(Se não corres talvez de flor em flor)
Vê tu que sacrifícios imerecidos!...
Mas um menino cego é quem nos vence,
Que a isto e a mais obriga o louco amor!
........................................

Mas, não! Quem lá no fundo, meio oculto
Entrevejo na sombra, como quem
Teme do dia a luz — luz orgulhosa,
Luz que ao feliz afaga, ao triste aflige —
Quem triste e só, se oculta mais além?

Quem, se o dia findou, recebe o beijo
E outro recebe logo que é manhã?
Quem — enquanto a alampada noturna
Alumia a vigília — sente em sonhos
Uma lágrima de amor molhar-lhe as cãs?

Perdão, mulher! e mais que mulher, filha,
Perdão! louco julguei e ímpio também,
Que tinhas outro amor: como se possa
Ter uma filha amor ou pensamento
Que todo não pertença a sua mãe!

Feliz, quem — pobre — tem um tal arrimo;
Quem — cega — pode ver uma tal luz:
Quem — cega e pobre e triste e desprezada —
Tem uma mão de filha que piedosa
Até aos degraus do túmulo a conduz!...
........................................

É nobre o teu trabalho, mulher bela —
Bela daquela luz que vem dos céus,
A quem nas aras da fiel piedade
Sacrifica ilusões da mocidade
E segue o seu caminho crente em Deus!

Nem mais um riso, amigos! Respeitemos
O que ela faz ali com tanto ardor;
Não são enfeites vãos, do prazer sócios,
É o pão de uma mãe que ali granjeia,
Trabalha por amor... mas outro amor.

Trabalha e enxuga o pranto à velha enferma:
Trabalha noite e dia; é Deus que o quer:
Que importa à filha, quando a mãe lhe sofre,
Que o sol nasça ou decline, ou que se estraguem
Os seus formosos dedos de mulher?


GARGALHADAS
(No álbum do seu condiscípulo Dr. José Bernardino)


Risum teneatis!

Bem é falar de tristezas
Por estes tempos de risos,
Em que passa a Gargalhada
Na face dos paraísos,

E, como o vento do polo
Forte — mas triste, mas frio —
Que leva as folhas com as flores,
Como as enchentes do rio.

É o nível da igualdade
Desde a rocha até à flor,
Desde o amor da virtude
Até à virtude do amor.

Como os remoinhos de pó
Que a gente vê, a tremer,
Sob a tarde, nas estradas,
Como demônios correr;

Como a espuma batida
Que a rocha escarra no mar
E a onda depois atira,
Com escárnio, por esse ar;

Como os grous em debandada
Ao partir-se-lhe a cadeia:
E o torvelinho que atira
No deserto os grãos de areia;

Como tudo, enfim, que geme
No abraço dos turbilhões
E, de olhos postos no inferno,
Lança ao céu as maldições:

Folhas mortas e flores vivas,
Pó da terra e diamantes,
Águas correntes e charcos,
Os de perto e os mais distantes;

Vozes profundas da terra,
Vozes do peito gementes,
De envolto as feras bravias
Com as aves inocentes;

Como as palhas assopradas
Depois das malhas, na eira,
Ou gotas de água rolando
De alta não na larga esteira —

Tudo partido, enlaçado,
Em desesperados abraços,
Ruindo pelas quebradas,
Rolando pelos espaços,

Nos paraísos perdidos
E— agora — feitos desertos,
Como legião de demônios
Rugindo infernais concertos;

Tudo vai, se rasga e parte,
Como em cidade assaltada,
Sob esses tufões gelados
Da tormenta — Gargalhada!

Das tormentas! Que sem conto
São esses ventos de morte;
E dum ao outro horizonte;
E dum modo e doutra sorte.

Os suões do céu humano
E os simuns do seu deserto;
O que a gente vê ao longe,
O que a gente sente ao perto;

A gargalhada do sábio,
Que se chama... indagação;
A gargalhada do cético,
Que tem nome... negação:

A gargalhada do santo,
Que tem nome — fé e crença;
A gargalhada do ímpio,
Que se chama... indiferença:

A gargalhada da história
Que se chama... Revolução:
E a gargalhada de Deus,
Que tem nome... Escuridão;

Ei-las aí vêm, as tormentas,
De todos os horizontes,
Subindo de todos vales,
Descendo de todos montes.

Ei-las aí vêm: já espectros,
Já como lavas ruindo:
Já nuvem, já mar, já fogo,
Mas sempre, sempre caindo,

Desde a França... e são revoltas;
Da Alemanha... e são ideias;
Desde a América... e são fardos;
E da Rússia... e são cadeias;

De Inglaterra... e são carvões
De fumo enchendo os portos;
Do Oriente... e são os sonhos;
E da Itália... Cristos mortos;

Da Espanha... e são traições,
À noite, por trás dos brejos,
— Mão na faca e mão nas costas —
dê cá... e são bocejos.

É destes lados que sopram...
E são os ventos assim...
Levando os cedros do monte
Como os lírios do jardim...

***

E, contudo, no meio da alegria
Terrível, que enche o espaço como o eco
Das grandes trovoadas — e debaixo
De tantos ventos e de tantos climas,
A Alma — a flor do Paraiso antigo —
Lírio belo do vale — peito humano,
A Sulamita da Sião celeste —
A Psique triste e pálida, que vaga
Nas praias do infinito — a Alma, oh homens,
Em meio do folgar que vai no mundo,
Cada vez chora mais e mais soluça,
E mais saudosa — a eterna expatriada! —
........................................
........................................

É que o rir do leão sempre é rugido —
E isto, que sai da boca tenebrosa
Do mundo — e o mundo escuro diz Progresso,
E Força, e Vida, e Lei— isto é soluço
Que sai do peito condenado, — e quando
Vai a sair, para iludir o misero,
Diz à boca: “Olha tu como nós rimos”...
Mas não é mais que o arranco da agonia!
Nem pode ser. — Aquele riso enorme
Quando sai é com o ruído das tormentas
E, como as grandes águas, vai rolando,
E esmaga... e não consola!
É como a orgia
Que cuidando folgar... se está matando!
E como esses que dizem dos rochedos
Que brincam com as ondas... quando as partem!

Não é o riso belo da Harmonia,
É apenas gargalhada de Possessos!
Há dentro deste mundo algum demônio,
Que o obriga a torcer assim a boca
Lá quando mais se agita e mais lhe dói!
Senão, olhai e vede essa alegria
— Quer seja Ideia ou Força ou Arte, ou seja
A Industria ou o Prazer — de qualquer lado
Que rebente dos lábios — vede como
Faz frio a quem a vê! como entristece
Ver o gigante louco dar-se beijos
Como em mulher formosa... e ao longe, ao longe
Todo o campo alastrado de flores mortas!
........................................
........................................

Mas basta! A luz dourada
Um dia há de surgir!
E a venda, desses olhos,
Por fim também cair!

E a Gargalhada imensa
Fechar a horrível boca!
E ser canto suave
Essa atroada rouca!
Então!...
........................
........................
........................

Alma, que sonhas?
Que louco desvairar!...
Então!!... Mas — Hoje — esta hora...
É toda p'ra chorar!

Coimbra, Novembro, 1863.


À ITÁLIA

(Poesia recitada no Teatro Acadêmico por A. Fialho de Machado, na noite de 22 de outubro de 1862)

Itália e Portugal! que duas pátrias!
Ambas tão belas, tão amadas ambas!
Uma, a pátria do berço; outra a das almas:
Uma, a das artes; outra a dos combates!

Oh! deixai que hoje, aqui, sobre o meu peito,
As estreite, a final. — Há quanto tempo
Eu quisera juntar-vos, pelas frontes,
Beijar-vos, bem unidas, soluçando,
Como quem, tendo pai, mãe encontrasse.

Portugal! nobre filho de guerreiros!
Viste, primeiro, o sol da liberdade,
Mais feliz, não maior e nem mais digno
Que tua irmã, a Itália. — Ela, entretanto,
Chorava, olhando o céu, negro de nuvens!

Cobriram-na de afrontas! sobre os ombros
A toga negra, já como sudário:
O seu corpo partido em dez retalhos:
O estrangeiro assentado nos seus lares...
E não se via sol no céu da Itália!

Dizei-me vós, se pode o grande rio
Existir, sem que as fontes o basteçam?
Se pode quem nasceu fadado às glórias,
Esquecido morrer? Se os fortes netos
De Mário e de Catão, ir assentar-se
Sozinhos sobre o tumulo dos fortes
— Olhos no chão e pulsos algemados?
Se é possível que exista um povo — um povo! —
Sem ser livre, e sem sol o céu da Itália?!

O céu da Itália!... esse céu
Tem, por sol, a liberdade!
Riqueza... de claridade...
Mas se foi Deus quem lha deu?!

O que Deus dá é sagrado!...
 Estava o povo escravizado
E parecia, de esquecido,
Prostrar-se tão compungido
Ante os pés de seu Senhor?!

Pois bem! a esse povo escravo
Bastou-lhe o brado dum bravo
Para se erguer, — ei-lo em pé!
E aos tiranos, aos senhores,
Aos fortes, cheios de fé,
Bastou-lhes ouvir os clamores
Dessa turba esfomeada

Para deixarem a espada...
Raia a nova claridade,
A aurora da liberdade,
Dum proscrito no palor!

O povo toma as espadas,
Meias gastas e olvidadas,

Sobre as campas dos avós:
E, ainda vestido de dó,
Com esforço sobre-humano,
Ergue os ombros... e o tirano
Treme... nuta... ei-lo no pó!...

Quem derruba, sobranceiro,
Altos colossos por terra?
Quem é que faz duma guerra
A festa do mundo inteiro?

Um homem?
Não!
A Justiça!...
Deus! — o único juiz
Dos povos na grande liça!

Só Deus! —
Ele dá ao triste
Alívios... não ódios vis!
A essa Itália que hoje existe
Segredou-lhe, em quanto opressa,
Como sagrada promessa,
Em vez de iras da vingança,
Estas palavras de esperança:

“Tudo tem alivio à mágoa:
A flor murcha, a gota d’água;
Cruz, o moribundo exangue;
Um filho, a fera mais seva;
Amor, o mártir; a treva,
Um raio de claridade...
E o povo, que é vida e sangue,
Não há de ter liberdade?!”


A GENARO PERRELLI
(Ao artista e ao patriota italiano)

A arte é como a luz: brilha do alto,
Mas quer livre brilhar: do Deus do belo
Ela é religião: seu templo imenso
Quer sacerdotes mas rejeita o bonzo.
E o artista é como astro gravitando
Em céu e espaço livre: acaso o servo
Pode entoar um canto de ventura?

Só a mão, que não aperta
Grilhão de escravo, desperta
Na arte tal majestade,
Tal sentir e tal verdade —
Vede essa fronte inspirada
Do artista, alumiada
Ao clarão da liberdade!


GUITARRILHA DE SATÃ

Estranha aparição
Que em minhas noites vejo,
Ó filha do desejo!
Ó filha da soidão!

Não sei qual é o teu nome,
E donde vens ignoro:
Sei só que tremo e choro
Como de frio e fome!

Que por fundir contigo
Suspiros, ais, rugidos,
Dera ideais queridos,
Deuses e fé que sigo.

Sim! dera as profecias
E os cultos salvadores,
E os Gólgotas e as dores
E as Bíblias dos Messias!

Por ti minh'alma clama,
Corre a meus braços breve,
Sejas de fogo ou neve,
Sejas cristal ou lama!

Se és Beatriz, sou Dante;
Sou santo, se és divina;
Se és Laís ou Messalina,
Sou Nero, ó minha amante!


SERENATA

Caiu do céu uma estrela,
Ai, que eu bem a vi tombar!
Era a noite pura e bela,
Murmurava ao longe o mar...

Era tudo êxtase e calma,
Perfume, encanto, fulgor...
Só no fundo da minha alma
Que desconforto e que dor!

Dorme e sonha, minha bela,
Embalada ao som do mar...
Caiu do céu uma estrela,
Triste do que a viu tombar!

Era uma estrela caída,
Uma entre tantas, não mais!
Era uma ilusão perdida,
Era um ai entre mil ais!

E hás de viver torturado,
Louco, incerto coração,
Só por um astro apagado,
Por uma morta ilusão?

Dorme e sonha, minha bela...
Como chora ao longe o mar!
Caiu do céu uma estrela,
Ai de mim que a vi tombar!


O POSSESSO
(Comentário às Litanies de Satã)

I
Não creio em ti, Deus-Padre onipotente,
Criador desse espaço constelado,
Que do Caos e o Nada conglobado
Arrancaste o Universo refervente;

Não creio em ti, Deus-Filho, em cuja mente
Foi o Bem inefável feito e nado;
E não creio no Espírito gerado
Do eterno Amor, como uma chama ardente;

Saibam-no a terra e os céus: do Credo antigo,
Cheio de Graça e Fé, refúgio e abrigo,
Bênção da noite e prece da manhã,

Só creio no Pecado inelutável,
Na Maldição primeira inexpiável,
E no eterno reinado de Satã!

II
Quando o Tédio, com plúmbeo capacete,
Esmaga a fronte ao homem desolado,
E o Fausto pensador vê a seu lado
A Negação sentada ao seu bufete,

Seu lábio é vil três vezes, se repete
Preces vãs e esconjuros, humilhado:
O nome de Homem, trágico e sagrado,
Só a quem desafia a Deus compete!

É grata a maldição à alma robusta
Do que nenhum pavor divino assusta,
E no Vazio ergueu seu templo e altar...

Mais fecundo que o Céu, criou o Inferno
A blasfêmia. — Honra, pois, e preito eterno
A Satã, que nos deu o blasfemar!


EPIGRAMA TRANSCENDENTAL

Quem vos fez, céu profundo e luminoso,
Terra fecunda, poderoso oceano,
E a ti deu vida, coração humano,
Que és todo um céu e um mar misterioso,

Bem sabia que o céu, o mar, a terra,
Tinham de ser só cárcere e geena;
Que havia a vida ser só luto e pena,
E campo, o coração, de eterna guerra.

Por isso o estranho artífice sombrio,
Que, concebendo o plano da obra ingente,
Irônico talvez, talvez demente,
Logo se arrependeu e o confundiu;

Não deu seu nome, como o arconte epônimo,
À obra de sua mente e sua mão:
O Criador furtou-se à Criação...
E sendo um mau autor ficou — anônimo.


NA SEPULTURA DE ZARA
(A Joaquim de Araújo)

Feliz de quem passou por entre a mágoa
E as paixões da existência tumultuosa,
Inconsciente, como passa a rosa,
E leve, como a sombra sobre a água.

Era-te a vida um sonho. Indefinido
E tênue, mas suave e transparente...
Acordaste, sorriste... e vagamente
Continuastes o sonho interrompido.


GLOSA CAMONIANA
(Na carteira de Eduardo Coimbra)

Pés em chagas, seguimos pela via
Dolorosa, em demanda da Verdade;
Mas achá-la entre os homens ninguém há de...
Triste o que esperatriste o que confia!


AS FADAS

As fadas... eu creio nelas!
Umas são moças e belas,
Outras, velhas de pasmar...
Umas vivem nos rochedos,
Outras, pelos arvoredos,
Outras, à beira do mar...

Algumas em fonte fria
Escondem-se, enquanto é dia,
Saem só ao escurecer...
Outras, debaixo da terra,
Nas grutas verdes da serra,
É que se vão esconder...

O vestir... são tais riquezas,
Que rainhas, nem princesas
Nenhuma assim se vestiu!
Porque as riquezas das fadas
São sabidas, celebradas
Por toda a gente que as viu...

Quando a noite é clara e amena
E a lua vai mais serena,
Qualquer as pode espreitar,
Fazendo roda, ocupadas
Em dobar suas meadas
De ouro e de prata, ao luar.

O luar é os seus amores!
Sentadinhas entre as flores
Horas se ficam sem fim,
Cantando suas cantigas,
Fiando suas estrigas,
Em roca de ouro e marfim.

Eu sei os nomes de algumas:
Viviana ama as espumas
Das ondas nos areais,
Vive junto ao mar, sozinha,
Mas costuma ser madrinha
Nos batizados reais.

Morgana é muito enganosa;
Às vezes, moça e formosa,
E outras, velha, a rir, a rir...
Ora festiva, ora grave,
E voa como uma ave,
Se a gente lhe quer bulir.

Que direi de Melusina?
De Titânia, a pequenina,
Que dorme sobre um jasmim?
De cem outras, cuja glória
Enche as páginas da história
Dos reinos de el-rei Merlin?

Umas tem mando nos ares;
Outras, na terra, nos mares;
E todas trazem na mão
Aquela vara famosa,
A vara maravilhosa,
A varinha do condão.

O que elas querem, num pronto,
Fez-se ali! parece um conto...
Mesmo de fadas... eu sei!
São condões que dão à gente,
Ou dinheiro reluzente
Ou joias, que nem um rei!

A mais pobre criancinha
Se quis ser sua madrinha,
Uma fada... ai, que feliz!
São palácios, num momento...
Beleza, que é um portento...
Riqueza, que nem se diz...

Ou então, prendas, talento,
Ciência, discernimento,
Graças, chiste, discrição...
Vê-se o pobre inocentinho
Feito um sábio, um adivinho,
Que aos mais sábios vai à mão!

Mas, com tudo isto, as fadas
São muito desconfiadas;
Quem as vê não há de rir.
Querem elas que as respeitem,
E não gostam que as espreitem,
Nem se lhes há de mentir.

Quem as ofende... Cautela!
A mais risonha, a mais bela,
Torna-se logo tão má,
Tão cruel, tão vingativa!
É inimiga agressiva,
É serpente que ali está!

E têm vinganças terríveis!
Semeiam coisas horríveis,
Que nascem logo no chão...
Línguas de fogo que estalam!
Sapos com asas, que falam!
Um anão preto! um dragão!

Ou deitam sortes na gente...
O nariz faz-se serpente,
A dar pulos, a crescer...
É-se morcego ou veado...
E anda-se assim encantado,
Enquanto a fada quiser!

Por isso quem por estradas
For, de noite, e vir as fadas
Nos altos mirando o céu,
Deve com jeito falar-lhes
Muito cortês e tirar-lhes
Até ao chão o chapéu.

Porque a fortuna da gente
Está às vezes somente
Numa palavra que diz;
Por uma palavra, engraça
Uma fada com quem passa,
E torna-o logo feliz.

Quantas vezes, já deitado,
Mas sem sono, inda acordado,
Me ponho a considerar
Que condão eu pediria,
Se uma fada, um belo dia,
Me quisesse a mim fadar...

O que seria? um tesouro?
Um reino? um vestido de ouro?
Ou um leito de marfim?
Ou um palácio encantado,
Com seu lago prateado
E com pavões no jardim?

Ou podia, se eu quisesse,
Pedir também que me desse
Um condão, para falar
A língua dos passarinhos,
Que conversam nos seus ninhos...
Ou então, saber voar!

Oh, se esta noite, sonhando,
Alguma fada, engraçando
Comigo (podia ser!)
Me tocasse da varinha,
E fosse minha madrinha
Mesmo a dormir, sem a ver...

E que amanhã acordasse
E me achasse... eu sei? me achasse
Feito um príncipe, um emir!...
Até já, imaginando,
Se estão meus olhos fechando...
Deixa-me já, já dormir!

 

O SOL DO BELO

(Recitada na noite de 13 de maio de 1862, no Teatro Acadêmico, por A. Fialho Machado)

O sol do belo a todos alumia!
Sua auréola cinge cada fronte
Bem como o rei do dia, mal desponte,
Dá luz igual a todo o ser criado!
Este baptismo santo envolve e lava
Todos na mesma onda inspiradora!
Queima com a mesma chama abrasadora!
Orvalha em igual pranto derramado!
Juntas as almas, que o sentir enlaça,
Comungam, como irmãs, na mesma taça!

Vê-os, agora, artista. — Eles estendem-te
Os seus braços e o afeto é que os impele!
Esse braço, que vezes mil repele
O laço, que em vão, tenta escravizá-lo...
A corrupção hipócrita de tantos...
Que sabe resistir a quem o oprime...
É esse que, num ímpeto sublime,
Se ergue a ti, se ergue ao irmão para estreitá-lo.
É que a alma, que não verga à tirania,
Curva-se, livre, ao belo que a alumia!

Sim! aqueles que do alto de um vão trono
— Mal firme trono que estremece ao vento —
Pedem, como tributo de um momento,
Respeito, amor, afeto à mocidade,
(Mas pedem como quem ordena a escravos)
Não são esses aqui os respeitados!
Não são esses que são aqui amados!
Não escuta voz de império a liberdade!
Mas quem de amor nos lábios traz doçura
Esse é que leva a flor de uma alma pura!

Pura e nobre! Embora, despeitados,
Lhe chamem louco e frio a esse peito...
Não se acreditam vozes de despeito.
Frio! quem diz que é frio o peito moço?
Que o sentimento é extinto nestas almas?
Di-lo a velhice que não tem no seio
Nem uma voz de amor, nem um anseio,
A dar ao belo, que arrebata o nosso: —
Di-lo quem a deseja corrompida...
Porém na mocidade habita a vida!

A vida! sim! Bem como em cofre de ouro
Se guarda o que há melhor, o que há mais puro,
Deu-lhe o Senhor a guarda do futuro,
Confiou-lhe em depósito essas gemas
— O amor, a fé, o belo, a liberdade!
O amor! o que nos dá sentir profundo!
A fé! a que nos mostra melhor mundo!
A liberdade! a que espedaça algemas!
O belo! a nossa flamula brilhante!
E sobre tudo, a voz que brada — avante!


I
Flor dos povos! oh tu que inda te embalas,
E inda em botão, aos ventos do futuro!
Que tens por vasos e jardins e salas
Toda a vasta extensão do tempo escuro!
E frontes gloriosas a adorná-las,
A fronte da história, o grande auguro!
Lírio que sais do seio à humanidade
Como filha melhor — Fraternidade!

Deixa que escreva aqui teu nome todo,
E já daqui aspire teu perfume!
E, arredando com as mãos o frio lodo
Do presente, me aqueça a esse teu lume!
Deixa beijar-te em sonho, e deste modo
Trazer-te unida ao seio, que consume
Esta ânsia ardente de destino novo,
E este fogo roubado ao seio do povo!

Porque te vemos só quando sonhamos...
E, irmã! só nos sorris em nosso sono...
E, a dormir, doce amiga, te beijamos!
Tu — só em nossas almas — tens teu trono
Ainda! mas, sem ver-te, te adoramos,
E, como um cão fiel segue o seu dono,
Trazemos ante o olhar tua lembrança,
E caminhamos cheios de confiança!

Fraternidade! esta palavra é suave,
Como antegosto de melhor destino!
Como a onda de um Ganges que nos lave!
E como a posse de um penhor divino!
Como o voo sereno de uma ave
Que, sendo apenas ponto pequenino,
Entanto faz, transpondo ao longe um monte,
Sonhar com melhor céu e outro horizonte!

O grande céu! o céu da humanidade!
Onde os povos serão constelações,
E, destilando a luz da liberdade,
Serão astros e estrelas as nações!
Onde há de o grande laço da igualdade
Reunir a vontade e os corações!
Cobrindo-os, a dormir, os mesmos céus,
Terão todos também o mesmo Deus.

Não vejo outro Evangelho de ouro escrito
Dentro no homem, — nem sei que outro areal,
Outro cabo, outro monte de granito,
Do grande navegar surja a final!
Guiados pelo instinto do infinito
É para lá que os povos — não real! —
Hão a proa virar lá quando um dia
Marearem pela bússola harmonia!

II
Hão de então, como irmãos, reconhecer-se
Os amigos — há tanto tempo ausentes!
Hão então (caso novo e estranho!) ver-se
Face a face as nações, sem que dementes
As entranhas se rasguem! e há de ler-se
Um protocolo, em letras de ouro, ingentes,
Escrito, sem emenda e sem errata,
Por mãos do amor — o grande diplomata!

III
Ele é quem concilia as diferenças,
Quem nos concílios há de erguer a voz,
Tirando nova ideia e novas crenças
Das esfriadas cinzas dos avós!
E, sem trabalhos, e sem dores imensas,
E sem rios de sangue e pranto após,
Rasgando o ventre à velha liberdade
Sairá à luz a jovem igualdade!

É doce ver assim, à luz da esperança,
Pelo futuro dentro, as coisas belas...
Prever do céu humano essa mudança,
Que em sóis converte as mínimas estrelas!
Do passado infeliz eis a vingança!
E dos mortos as faces amarelas,
Corando de ventura e de alegria,
Hão de surgir, enfim, à luz do dia!

IV
E nós também, também comungaremos
Na grande comunhão das novas gentes:
Também os nossos braços ergueremos
— Braços livres de jovens impacientes —
E o cinto deste Velho quebraremos,
De aonde a espada e o ceptro estão pendentes,
(Já tão gastos!) lançando-os à ribeira...
Para o coroar de palmas e oliveira!

Espanha — irmã! que boda alegre a nossa!
Como hão de então teus seios palpitar!
Que ribeira de lágrimas tão grossa
Teu branco véu de noiva há de estancar!
Como há de parecer pequena poça
Para os banhos, então, o grande mar!
E entornar-nos volúpia nos desejos
O misto de ódio antigo e novos beijos!
........................................

Mas tu estás presa!... e nós... estamos dementes!
Separa-nos o abismo! os teus algozes...
cruz de Inácio... e as garras inclementes
Dos leões orgulhosos e ferozes...
E a estupidez do povo dos valentes,
Destes pardais de atroadoras vozes...
Entre nós nos cavaram oceanos...
Sejam-lhe ponte os corpos dos tiranos!

Por que beijas teus ferros, pobre louca,
E cuidas estar beijando coisa santa?
E, tendo em tuas mãos coisa tão pouca,
Tão tênue como a capa de uma santa,
Pensas avassalar a terra amouca,
E te ergues com vaidade e glória tanta?
Oh! tu, cuidando os orbes abraçar,
Só ruinas abraças — Trono e Altar!

Lembre-te a voz do Cid! a atroadora
Voz que se ouvia ao longe nos combates!
Porque tu estás feita salmeadora
No coro das igrejas — porque bates
No peito, em vez de erguer dominadora
A tua mão em meio de combates,
E livre e bela, oh Espanha, olhar os céus
Procurando por lá teu novo Deus!

V
Como nos amaremos, doce amiga!
Como então amaremos! que noivado
O nosso não será!... Não tem a espiga
No campo cor melhor, nem mais dourado
Esplendor, do que tu, bela inimiga.
Hás de ver a ventura... quando o estrado
Do leito nupcial for Liberdade,
E for dossel o céu — Fraternidade.


EXCERTOS DE UMA TRADUÇÃO DO “FAUSTO”

I
DEDICATÓRIA

Ainda uma outra vez, imagens flutuantes,
Vos ergueis ante mim, como outrora radiantes
Ante mim, que vos fito em vago enleio incerto!
Voais... mas eu hesito em vos reter agora...
Assusta o meu olhar a luz da vossa aurora,
E teme as ilusões, meu coração desperto!

Que aérea multidão! que virginais coreias!
Meu velho coração, pois que inda te incendeias
Não é melhor ceder? sim, sim, rejuvenesce!
Dentre as nevoas surgi, visões do tempo antigo!
Sim, levai-me também no vosso bando amigo,
Levai-me aonde há luz e cantos, e alvorece!

Reconheço entre vós as sombras fugidias
De outro tempo melhor, de mais alegres dias:
Meu coração evoca imagens adoradas...
Sussurra em torno a mim voz de saudoso encanto:
É o primeiro amor, que passa como um canto
De antigas tradições vagamente escutadas...

E as lágrimas, também, correm silenciosas!
O lamento dorido, as mágoas saudosas,
Renovam-se; desperta a dor que dormitava...
Sim, a dor, ante mim, mostra-me os dias idos,
E nomeia-me os bens, sob meus pés fundidos,
Quando em minha ilusão julguei que os abraçava!

Almas a quem cantei, não me ouvireis agora!
O círculo fiel dos amigos de outrora
Desfez-se como a voz deste canto primeiro!
Rodeia-me hoje a turba: o seu aplauso é triste:
Quem folgou de escutar-me, em tempo, se inda existe
Disperso erra no mundo, ah! num mundo estrangeiro...

Como a saudade então, uma longa saudade,
Desse reino encantado, onde há paz e verdade,
Me fala ao coração numa queixa sumida!
Meu canto sobe e desce, incerto e flutuante,
Sobe e desce indeciso e com tom murmurante,
Bem como uma harpa eólia aos ventos suspendida.

E tremo sem saber porquê, e lentamente
Sinto o pranto nascer, correndo docemente,
Ungindo o coração que embala e adormece...
O que tenho, o que sou, mal o vejo a distância...
É a nuvem no mar, é um sonho de infância...
Só, à luz da saudade, o passado aparece!

II
NA CATEDRAL

(Ofícios; órgão e canto. Margarida no meio da multidão. O Espírito ruim por detrás dela)

O ESPÍRITO RUIM
Como foste, como eu te conheci,
 E como estás mudada, Margarida!
 Que pensamento é que te traz aqui?
Ainda adormecida,
 Tua alma há pouco, lembras-te? buscava,
 Esta sombra do altar — mas não chorava,
 Não, não chorava as lágrimas que choras!
 Rezar era então brinco de criança,
Para ti, inocente...
Lias nas tuas Horas
 As tuas orações — e docemente
 Sorria a Deus tua infantil confiança...
 Margarida!
 Quantas ruinas em tão curta vida!
 Que pensamento oculto te tortura?
E, no teu coração,
 Que pecado te rói essa alma impura?
 Não rezes: Deus não te ouve a oração!
 Rezas por tua mãe? por ti foi morta,
 Sim, morta lentamente, a infeliz!
 Olha o sangue espalhado à tua porta...
De quem é ele, diz?
 E escuta! nesse seio criminoso
O que é que já se move?
 Sim, o que é que se agita, e te comove
 Com um pressentimento doloroso?

MARGARIDA
Ai de mim! ai de mim! quem pudesse livrar-me
Desta turba cruel de negros pensamentos!
Vejo-os de toda a parte e a todos os momentos,
Erguer-se em volta a mim, correndo a torturar-me!

CORO E ÓRGÃO
Dies irai, dies ila
Solvet saeclum in favila.

O ESPÍRITO RUIM
Cai sobre ti a cólera do céu!
 Soa a trombeta! as campas se quebrantam!
A terra estremeceu,
Os mortos se levantam.
 Também teu miserável coração,
Que dormia desfeito,
 Já renasce das cinzas, já o chamam
 Para os fogos eternos que se inflamam...
Teu pobre coração
 Estala-te também dentro do peito!

MARGARIDA
Oh! quem me dera ao menos daqui fora!
 Esta música faz-me uma aflição!
 Este órgão parece alguém que chora...
Parte-me o coração!

CORO E ORGÃO
Judex ergo cum sedebit,
Quidquid latet aparebit,
Nil inultum remanebit.

MARGARIDA
Que opressão! que quebranto!
A abóbada estremece!
Estas pedras, parece
Que querem desabar!
Sufocam-me de espanto
Estes tetos escuros!
Afrontam-me estes muros!
 Mais ar! mais ar!

O ESPÍRITO RUIM
Esconde-te infeliz! e onde irá ocultar
Seu pecado e vergonha essa alma desonrada?
Mais ar? pedes mais ar?
Ai de ti desgraçada!

CORO E ÓRGÃO
Quid sum miser, tunc dicturus,
 Quem patronum rogaturus
 Cum vix justus sit securus?

O ESPÍRITO RUIM
Os justos no céu de horror e desgosto...
 De ti, de te ver, desviam o rosto...
 Estende o inferno as mãos para aqui...
 Ai, de ti!

CORO E ÓRGÃO
Quid sum miser, tunc dicturus.

MARGARIDA
Vizinha, dê-me os seus sais.
 (Cai desmaiada)

III
A CANÇÃO DO REI DE TULE

Era uma vez um bom rei
Em Tule — essa ilha distante,
Ao morrer, deixou-lhe a amante
Um copo de ouro de lei.

Era um copo de ouro fino
Todo lavrado a primor;
Se fosse o cálix divino
Não lhe tinha mais amor.

Seus tristes olhos leais
Não tinham outra alegria:
E só por ele bebia,
Nos seus banquetes reais.

Chegada a hora da morte
Pôs-se o rei a meditar
Grandezas da sua sorte
Seus reinos à beira-mar.

Deixava um rico tesouro,
Palácios, vilas, cidades:
De nada tinha saudades,
A não ser do copo de ouro.

No castelo da devesa,
Naquelas salas sem fim,
Mandou armar uma mesa
Para um último festim.

Convidou sem mais tardar
Os seus fieis cavaleiros,
Para os brindes derradeiros
No castelo à beira-mar.

Então, vazando-o de um trago,
E com entranhada mágoa,
Pôs nas ondas o olhar vago
E atirou com a taça à água.

Viu-a boiar suspendida,
Até que as ondas a levaram:
Os olhos se lhe toldaram,
E não bebeu mais em vida!


A DOR
(Do poeta Hungaro Sandor Petöfi)

O que é a Dor? Um mar. E a alegria?
Pérola oculta nesse mar fremente.
Quantas vezes a pérola encantada,
Entre as rochas profundas sepultada,
Se dissolve esquecida, lentamente,
E nunca chega a ver a luz do dia?


A CASA DO CORAÇÃO

(Imitado do alemão, no Álbum da filha de João de Deus)

O coração tem dois quartos:
Moram ali, sem se ver,
Num a Dor, noutro o Prazer.

Quando o Prazer no seu quarto
Acorda cheio de ardor,
No seu, adormece a Dor...

Cuidado, Prazer! Cautela,
Canta e ri mais devagar...
Não vá a Dor acordar...


ESTÂNCIAS
(Imitadas do alemão)

Rebentam flores mil das minhas lágrimas,
E só serpentes nascem dos meus cantos;
É que os meus cantos são envenenados,
E só puros, só doces os meus prantos.

***

Se queres conhecer o homem e o mundo,
Não desvies de ti o olhar profundo;
Mas foge de te ouvir e de te ver,
Se a ti mesmo te queres conhecer.


ROMANCE DE GOESTO ANSURES
(Posto em linguagem moderna)

No figueiral figueiredo,
Lá no figueiral entrei.
Seis donzelas encontrara,
Seis donzelas encontrei;
Para elas caminhara,
Para elas caminhei;
Chorando a todas achara,
A todas chorando achei;
Logo ali lhes perguntara,
Logo ali lhes perguntei,
Quem foi que ousou maltratá-las,
Tratá-las de tão má lei?

No figueiral figueiredo,
Lá no figueiral entrei.
Uma delas respondera:
— Cavaleiro, não o sei...
Mal haja, mal haja a terra
Que tem mau e fraco rei,
Que se eu as armas vestira,
Por minha fé, que não sei
Se homem ousara levar-me,
Levar-me de tão má lei...
Com Deus ide cavaleiro,
Ide com Deus, que não sei
Se onde me falais agora
Nunca mais vos falarei.

No figueiral figueiredo,
Lá no figueiral entrei.
Eu então lhe replicara:
— Por minha fé, não irei;
Antes olhos dessa cara
Bem caros os comprarei;
A longas terras distantes
Só por seguir-vos me irei;
Por caminhos desvairados
Atrás de vós andarei;
Línguas moiras de aravias
Por vós eu as falarei;
Mouros se me aparecerem
A todos os matarei.

No figueiral figueiredo,
Lá no figueiral entrei.
Nisto o mouro que as guardara,
Perto dali encontrei:
Se ele bem me ameaçara,
Eu melhor o ameacei;
Um tronco seco esgalhara,
Um tronco seco esgalhei;
Com ele a todos matara,
A todos desbaratei;
As donzelas libertara,
Todas sim as libertei;
Aquela que me falara
Com ela me casarei.
No figueiral figueiredo,
Lá no figueiral entrei.


A M. E.

Terra do exílio! Aqui também as flores
Têm perfume e matiz; também vicejam
Rosas no prado, e pelo prado adejam
Zéfiros brandos suspirando amores:

Também cá tem a terra seus primores;
Pelos vales as fontes rumorejam;
Tem as moitas seus sopros, que bafejam,
E o céu tem sua luz e seus ardores.

Em toda a natureza há amor e cantos,
Em toda a natureza Deus se encerra...
E contudo esta é a causa de meus prantos!

Eu sou bem como a flor que não descerra
Em clima alheio. Que importam teus encantos?
Não és, terra do exilio, a minha terra.


AD AMICOS

Propter Solatium.

Renasço, amigos, vivo! há pouco ainda
Disse ao viver: “Afunda-te no nada!”
E já, bem vedes, surjo à luz dourada,
— No lábio o rir, no peito esperança infinda!

Ah, flor da vida! flor viçosa e linda!
Envolto na mortalha regelada
Do  pensar — perdão! — foste olvidada...
Flor do sentir e crer e amar... bem vinda!

A vida! como a sinto, ardente, imensa!
Não única! tomando a imensidade!
Livre! perante Deus surgindo forte!

Que amor! que luz! que pira vasta, intensa!
Plenitude! harmonia! realidade!
Mas melhor que tudo isto é sempre a morte!

 

A Q. M. Q.

Fica-te em paz! não pode a mão do homem
Partir o seio à arvéloa queixosa,
Quando o canto soltar, e a voz chorosa
Erguer lá contra as mágoas que a consomem.

Respeito o teu sacrário: embora tomem
Por orgulho o respeito; eu colho a rosa
Mas não a flor modesta e melindrosa,
Que se oculta entre as mais... e que as mais somem.

Mais que amor tenho crença: essa existência
Pede-me um culto por quem dera a vida,
Por que dou esta dor, que aqui se encerra.

Mulher! mulher! de que valera a essência,
A essência pura, a uma alma que é descrida?
Fica-te em paz: fique eu com minha guerra!


IGNOTO DEO

Corre aos braços da mãe o filho amado;
— Por olvidar, volvendo a sua história —
Corre à mente do infeliz doce memória;
Corre à luz de um olhar o olhar buscado;

Vem o alivio animar peito magoado;
Corre o forte a buscar na morte a glória;
Desfeita do viver sombra ilusória,
Foge o espírito livre ao seu ansiado.

Tudo busca quem o ama: a luz dourada
Busca do seu viver, como no escuro
Quem avista uma luz lhe vai ao encontro.

Só tu, ventura! uma vez sonhada;
Só tu, sombra de amor! que em vão procuro,
Só tu, foges de mim, só não te encontro!


IGNOTO DEO

Senhor! eu sou teu filho! eu sou aquele
Que tanta vez pecou, porém, contrito
Tanta vez tem erguido a ti o grito
Da águia que o tufão no alto compele.

E a águia sofre também, como ave imbele,
E mais que ela (que põe mais alto o fito)
Mas da águia que lutou, o brado aflito,
Senhor! o teu ouvido não repele.

Eu não caio, meu Deus, sem ter lutado;
Fraco sou, por que sou de barro e limo,
Porém, na tua Lei medito e cismo.

E eu sou teu filho! A um filho desgraçado
Que há de um pai recusar? Oh, dá-me arrimo,
Estende-me tua mão por sobre o abismo.


FIAT LUX!
(Poemeto)

Et terra erat inanis et vacua.

Tinham os astros já mil anos, — tinham
Talvez cem mil— ou tinham um minuto —
(Pois quem sabe contar horas ou séculos
No relógio — que tem o firmamento
Por quadrante, — e algarismos, sóis e estrelas?)

Estavam há muito ali.
O velho Caos,
O oleiro do infinito, que entre as duas
Mãos — o tempo e o espaço — os amassara,
Cansou por fim também de fazer mundos,
Não tendo já mais barro, nem mais raios
Com que o barro pintar.

Ora, limpando
As mãos, que estavam sujas do trabalho,
E esfregando uma palma contra a outra,
Soprou depois os restos, sem ver onde,
Por esse abismo além.

Oh pó de mundos!
Migalha dos banquetes do Princípio!
Triste parto das sombras, atirado
Sobre o berço de luz do firmamento!
Morcego horrível, meio tonto e cego,
Caído no salão de lustres de astros!

O pó soprado, informe bola escura,
Como filho enjeitado, que se esconde
Pela sombra dos muros, foi rolando
Pelos cantos do espaço, envolto em trevas...
Que o não vissem os sóis.

***

E foi descendo,
Estranho, negro, horrível, monstruoso.
E, quanto era maior a treva, ainda
Mais o medo crescia que o olhassem...
E mais o horror de si o endoudecia...
E mais girava, imenso já de inchado
De terror e delírio!

Os grandes astros
Como um viveiro imenso de fulgores
Atiravam, de sol em sol, as notas
Do eterno concerto...

***

E foi rolando,
Vertiginoso e bêbado de horrores!

O feio, ébrio da mesma fealdade!
O mal, possesso do seu mal! As trevas
Cheias de medo de se ver tão negras!

E o firmamento arfava num delírio
De harmonia e ventura! O espaço ardente
Suava luz — girando no infinito —
Pelos poros do céu... que são estrelas.

***

Oh! como a ave da noite eterna, ao ver-se
Dentro do dia eterno... endoidecia!
Como rolava tonta a um lado e ao outro
Batendo as duas asas — Sombra e Espanto, —
Por todo esse infinito já não via
Um só buraco que a escondesse!

* * *

O Abismo
— Escravo, mas herói — chorava mudo...
E engolia os soluços.
Despojado,
Que lhe havia ele dar?

Os outros riam.

***

Oh! a beleza é cruel! A altura é fria!
E impiedosa e feroz! A ave aérea
Não tem dó do inseto! A virgem branca
Pisa o negro réptil! o louro infante
Crucifica o morcego! Os astros de ouro
Viram a Terra assim... e não choraram!

* * *

Um riso louco, então, feito de raios
Infinitos de luz, encheu o espaço!
O giro das esferas cambaleava
E estorcia-se, doido, em grandes frouxos
De hilaridade e brilho! E o eco eterno
Que em vez de voz, repete os esplendores,
Confuso com as mil ondas tumultuosas
Parecia tempestade de harmonia.

Todo o céu se inclinava, incendiado
Numa aurora boreal prodigiosa,
Vendo o truão horrível do infinito!

***

Foi então que o Abismo, o triste escravo
Dos senhores da luz — partido, opresso
Com a imensa dor daquele rir, — não pôde
Suster-se mais.

Ouviu-se desde baixo
Vir subindo um suspiro — e quantos ecos
Da antiga confusão há aí no espaço:
E todas as tristezas que ficaram
Dos combates de outrora: e os sofrimentos
De quantas lutas houve, antes do tempo:
E essas mil dores, e essas mil torturas,
Que custou cada sol: todo esse inferno
De negrumes, que o céu lançou, despindo-os,
Quando quis ser só luz... de ais e gemidos
Quando quis ser só canto... a parte infame
Que na injusta partilha coube ao Abismo...
Tudo isto, no suspiro do cativo,
— Triste, mas grave; queixa, mas não súplica...
Antes acusação, — na voz debaixo
Tudo isto ali subiu!

***

Os grandes astros
Enfiaram de pasmo e emudeceram!
E, se em seios de luz há aí remorsos,
Sentiram-no nessa hora...

***

Então abriram-se
As portas do silêncio — e, como um sopro
Que agitasse as esferas, voz sem timbre
(Se há ouvir...) se ouviu: “Quem faz chorar o Abismo?”

 * * *

Oh! o grande bem e a grande formosura,
Que tendo a estrela e o céu, inclina a face
Para a grande abjeção! A Aurora imensa,
Que quer saber quem escurece a Treva!
A ventura sem fim, que se conturba
Porque a desgraça sofre!

O Abismo horrível
Sentiu que seus mil males vacilavam,
Sobre a base da eterna injúria, e se iam
Com esse sopro de amor. — E estranho, e pávido,
Duvidou se sofria e teve, em sonho,
Como visões do céu donde o lançaram...
E quase perdoou...

Estava adorando!

***

Oh, gota de piedade, que adoçaste
Aquele oceano de injustiça! Oh, lágrima
Teda feita de bem!... Bebeu-te o Abismo!

***

E a Terra informe viu.

Como o silêncio
De algum poço — que o fundo das montanhas
Guarda velado pela treva — pode
Ouvir, cheio de horror, o eco primeiro
De uma pedra descendo: como o centro
Da mina pode ver o alvião primeiro
Que a abre de par em par, — assim a Terra
Viu a coisa sem nome que descia
Pelo infinito abaixo.

***

Olhou transida.
Era uma Mão — que parecia treva,
Tanto brilhava! E vinha-se alongando
Com cinco dedos — cinco continentes
De luz — fixa, sem cor, indefinível,
Leviatã de brilho, pelo éter
Descia — e as ondas de harmonia erguiam-se
Como em tormenta de esplendor — horrível...
Tanto era belo!

Ao longe, ao longe, ao longe,
Até aonde a visão abre os espaços,
A orla do infinito radiava.

***

E cada sol, e cada estrela, vendo
Aquela Mão descer, dizia — Certo
Que me vem afagar
! — E estremecia.

E a Mão passou em face das estrelas...
Mas não as viu. — Passou o grande coro
Dos sóis... e não os viu. — A via-láctea...
E não a viu. — E foi seguindo avante.

***

Lá onde o escuro é tanto que sufoca
O tempo, no nevoeiro esquecimento,
Onde em vaga fronteira se confundem
O ser e o não ser — lá para o extremo,
É onde a Mão já ia...

***

E os grandes astros,
De sol em sol, de um horizonte ao outro,
Inquietos, através do éter imenso,
Lançavam vozes de ouro, perguntando
Onde vai o Senhor?”

***

E a Mão descia.

Já não havia mais. Tinha chegado
Por defronte da Terra. E nessa hora
Dois infinitos — um de horror, e o outro
Infinito esplendor, se contemplaram.

***

E os astros de ouro pelo céu disseram:
Eis que Deus vai brincar também com a Terra!”
E a Mão estava.

E a Terra negra olhava-a,
Como um selvagem um espelho; o susto
Com o prazer inefável combatiam-se
Lá dentro... e a massa informe estremecia.

Convulsa se agitava. Fascinada
Parecia recuar... e aproximava-se!
E, num último esforço, dando um salto
Enorme, por fugir — caiu no centro
Daquela Mão.

***

E os astros murmuravam
Aos sóis: “Certo que Deus a precipita!”

***

Mas a Mão não se abriu para lançá-la.
Os grandes dedos sobre a massa horrível
Se fecharam. Pareciam, sobre o corpo
Tenebroso, que tinham apertado,
Cinco chagas de luz.

E consultaram.

***

Os cinco dedos entre si disseram:
Que havemos nós fazer a isto?”
E todos Imóveis ali estavam.

E entre os dedos
Donde — bem como um sapo entre os dois seios
De uma virgem — a Terra olhava o espaço,
Pareceram-lhe ao longe os grandes astros
Como pontinhos negros.

Um segundo
Roubado à eternidade é quanto basta,
Quer se seja morrão, quer seja estrela.

***

Então a grande Mão abriu-se e disse
À Terra: Vai! — E como águia sublime
Desde os Alpes se atira, a Terra ergueu-se,
Levando um voo imenso entre as estrelas!

***

Viam-se-lhe luzir no dorso negro
Cinco traços de luz! Leito de brilho
Aonde os cinco dedos se pousaram!
E lepra de esplendor!

***

Rolou no espaço.

E os astros entre si se consultaram:
Dar-lhe-emos nós lugar?”

E o Sol altivo
Falou e disse: — Eu vejo-lhe no dorso
Uma mancha de luz — a Natureza!

E a Lira disse: — Eu vejo-lhe outra forma
Resplendente — é Ideia!

E Vésper disse:
— Eu vejo-lhe um sinal de afago — é Alma!

E Vênus disse: — Eu vejo reluzir-lhe
Uma cicatriz de luz — é Amor!

E disse,
Então, o Sete-estrelo: — Eu adoro-lhe
Como o sitio de um beijo do Eterno...
— É Imortalidade!

***

E o coro imenso
Abriu-se e deu lugar à Terra escura,
De cuja face cinco grandes feridas
Gotejavam a luz — a Natureza,
Que tem de Deus a força; a Ideia, filha
Da imensidade dele; a Alma, eterna
Como seu ser; o Amor, que é olhar dele;
E a Imortalidade luminosa,
Que é o berço onde nele repousámos.

***
........................................

E, agora, oh Terra! que és, entre mil rodas,
Uma roda do carro — vai rolando
E desprende, ao rodar por sobre o tempo,
Tuas cinco faíscas prodigiosas,
Pela estrada do Ser — a Eternidade!



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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

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