TRANSFIGURAÇÕES
À minha Mulher.
DE VOLTA
Voltar do mundo assim desiludido
Depois do crime feio,
E o pequeno remorso aborrecido
À porta, mal se veio!...
Se um Satanás, ao menos, realizasse,
Assombradora, a gente,
E então, grande, o Remorso se elevasse
Terrorificamente!
Mas nem Deus nem Demônio! Confundido
Com os mais, trivial e frouxo,
Se arrasta a inútil vida, aborrecido
Incompletado, coxo!...
Não!...longe da terra e da torpeza!
Vamo-nos para o Sonho!
— Ideal! Ideal! tanta fraqueza
Fortalece risonho!
Arte, oh! nobre avara! arca bendita
Do Escolhido, no mundo!
Abriga para sempre esta alma aflita
Em teu seio profundo!
TRANSFIGURAÇÃO
Tudo dorme em silêncio. A luz é extinta.
No entanto, a construir o meu castelo,
Olhos ardentes, sem que alguém pressinta,
Fita a pupila, há muito tempo eu velo.
Projeto coisas de Arte. E não se pinta,
Mesmo empregando-se o maior desvelo,
A qualquer um que o não conheça e sinta,
Este prazer de louco, estranho e belo.
E quando, então, já sem saber, eu piso
Como quem vai por outrem arrastado,
Apalpo a mesa, sento-me indeciso...
Só se estivésseis, vós que ouvis, ao lado,
Vendo o meu gesto, e a cor do meu sorriso,
Para ficardes álgido e pasmado!...
A VITÓRIA
— Sol fecundante e bom, ora parado,
Inútil, com uma luz fria doirando
O espetáculo doente revelado
Pela aniquilação, que vem chegando —;
Teu rico e grande olhar, negro e brilhante,
De uma eloquência que desencaminha,
Hoje não veio como dantes vinha,
— Hoje fitou-me manso, e aniquilante!
Bem o sei!...bem o sei! — As que, abraçadas
Por braços resolutos e vulgares,
Daqui se foram, mandam-me as risadas
Que aí vêm cristalizando pelos ares...
Bem de pressa também, frívola e crente,
Solto o cabelo, estonteada a boca,
Por essa estrada tu, formosa e louca,
Hás de partir maravilhosamente!
Hás de partir! E em quanto aqui, mordido
De despeito, eu sorrio-me amarelo,
Irresoluto, e num desconhecido
Mundo, em vão, a sonhar, eu me desvelo;
Como que presas por fatal cadeia,
Do Vencedor no braço destemido,
Que fascinante traz, e apetecido,
Rica fecundação na excelsa veia:
Elias e tu, do amor misterioso
Escravas, em esplêndida coorte,
Celebrareis, cruéis, o fabuloso
Festival da Vitória do Mais Forte.
MÚSICA
Rompia vitoriosa a banda. Não obstante,
Distraído, a viver em um meio distante,
Desalinhado o andar,
Eu aos poucos chegava; e, a mim próprio escutando,
Essa marcha marcial que ali estavam tocando
Não ouvia tocar.
Os meus sonhos de poeta, ante mim, naquela hora,
— Acordados tão bem como dormem agora, —
Andavam a dançar.
Chamas de estranha luz, se em nós há uma outra chama,
Por nós teu foco em vão audaz palpita e clama:
Somos dois a incendiar.
Contudo, como mais e mais me avizinhasse,
E ainda porque, talvez, a marcha se esforçasse
Alto por me falar;
De súbito, medindo o passo, inconsciente,
No amplo meio do som, como em novo ambiente,
Eu senti-me acordar.
E mesmo então não sei se fiquei acordado:
Porque, a música ouvindo, e se havendo encontrado
Com os meus sonhos, no ar,
O som dela, perplexo, afinal, com efeito,
Eu não fiquei; segui como dantes direito...
Porém a imaginar...
... Imaginava eu que era aquele que não move
Nem um passo sequer sem, que se lhe renove
Em redor, para o honrar,
A magnífica Festa, e que a marcha triunfante,
Pressurosa, a um sinal, prorrompeu nesse instante
Por me verem passar.
Havia atrás de mim o ruído marulhoso
Que a turba faz. Eu vinha adiante. E o curioso
Era aquele meu ar,
Com que, malgrado todo este alvoroço novo
Que eu bem sentia, abstrato, adiante do povo,
Eu vinha a caminhar.
VIDÊNCIA
O triste e aborrecido desenlace
Há de vir amanhã, minha querida,
Do nosso novo amor, louco e fugace,
Que ora nos doura alegremente a vida!
A saudade! ela e o tédio!... — Antes faltasse
A luz aos olhos do que ver perdida
Esta chama bendita que nos nasce
Para breve a chorarmos destruída!
Ou, então, que se fosse juntamente
A existência com ela; pois seria
A vida breve instante, certamente,
Mas seria a ventura! e assim, não fria,
Mas tonta, a boca, mas sanguínea e quente,
De longos beijos, emudeceria!
ADOLESCÊNCIA
Mas por quê? Mas por quê? Ergue-te, oh alma!
Nesses teus ainda tímidos ensaios,
Olha este velho, que recebe em calma
Do sol da vida os derradeiros raios!
Tudo o que lhe sorriu pelo caminho
Atrás ficou, extinto o que fulgia;
E, no meio do inverno, ei-lo sozinho,
Dos mais perante o engrinaldado dia.
Mas ele, ao seu presente e ao já fechado
Futuro dando as costas, passa agora
Os dias que lhe restam abismado
Nas lembranças dos tempos seus de outrora.
E dão-lhe tais lembranças, simplesmente,
Gozos tão puros e tão verdadeiros,
Que o fazem receber serenamente
Do sol da vida os raios derradeiros.
Ao passo, entanto, que ele assim recebe
Como um favor da sorte aquelas horas,
Em convulsões que o mundo não concebe
Dos verdes anos os teus dias choras!
Choras! entrando como um deus radioso
Da mocidade na feliz procela,
Pondo o teu pé do trilho tortuoso
Na ardente parte estrelejada e bela!
Mas nada é ainda! A testa florescente
Da caudal, que se alteia, brilha e abala
Estrondeando, que aí vem convulsamente,
Chega, bate, ainda insiste e já avassala;
Mal chegou! Ainda vem escurecendo
Mais paixões! Hás de ser delas batido,
Hás de ceder no embate, e, assim cedendo,
No torvelinho ver-te-ás perdido!
Se, porém, conseguires dessa noite,
— Barco frágil, — sair, brilhando o dia,
Se desse mar não te vencer o açoite
Que a cada instante quase te vencia;
Tu entrarás então, desarvorado,
Da senectude no gelado porto,
Mas suspirando pelo teu passado,
Venhas embora alucinado e morto!
Quando de longe nós podemos vê-la,
Linda é esta luta, tu verás, tão brusca,
Este bater para tirar estrela,
Que nos parece negro porque ofusca.
Então, como este velho ao já fechado
Futuro dando as costas vês agora,
Tu pássaras teus dias abismado
Nas lembranças dos tempos teus de outrora.
E dar-te-ão tais lembranças, simplesmente,
Gozos tão puros e tão verdadeiros,
Que os teus olhos verão serenamente
Do sol da vida os raios derradeiros...
MATINAS
Era tempo estivai; mas o grupo trajava
Roupa tão clara e leve, e a manhã o fizera
Tão disposto e jovial, que ele punha onde andava
Notas de primavera.
Coisas simples, banais o que vinham dizendo.
Porém eis que, olhar fito, e um modo muito absorto,
Todos param a um tempo, inesperado vendo
Um belíssimo porto.
Foi como se cada um, ante aquela grandeza,
Sentisse o próprio ser se ampliar docemente.
— Quando menos se espera assim a natureza
Chama-nos de repente.
É então que a gente acorda e ergue-se em sobressalto.
Porém, por que temer? Com seus olhos serenos,
Ela só quer fitar um momento, lá do alto,
Nossos olhos pequenos...
Úmido ainda, da noite, estendia-se o espaço
De um fluídico azul, muito doce, pesado;
De dormir ainda o sol revelava o cansaço
Num bocejo doirado.
Vasto, embalava o mar qualquer coisa nas vagas:
Recordações da noite estrelejada e quente,
Ou sonhos matinais, que acaso tu lhe tragas,
Aurora, lá do Oriente.
Mas o que, na verdade, a este grupo prendera,
Pés ao chão, olhos no ar, não foi mais que o Infinito,
Que a uma volta da estrada assim pronto irrompera,
Quase a lhes dar um grito.
Nele é que todo o mundo o olhar assim perdia,
Tão tomado por ele, ele entrando tão fundo,
Que a alma de cada um quase que se sentia
Dentro da Alma do mundo!
Entretanto é preciso a verdade dizer-se:
Entre devotos tais que assim, mudos, oravam,
Dois entes, tinham vindo, e era só para ver-se
Como estes dois pecavam!
Um rapaz e uma moça, ambos muito crianças,
Ela com olhos azuis, olhos negros aquele;
Cheios de formosura, e cheios de esperanças,
Ele nela, ela nele.
Nada viam ali: viam-se, simplesmente,
Mas de maneira tal (fato estranho e esquisito!)
Que por sua atitude acreditara a gente
Verem outro Infinito!
... Outro Infinito, é exato, em fina luz banhado,
Feito de mar que sonha e de um azul que canta,
E ante o qual é tão pio um homem ajoelhado
Como em Igreja santa!
Oh! tu a quem o Amor já visitou clemente,
É que podes dizer, coração sofredor,
Se há um altar mais sagrado em que se ajoelhe um crente
Do que o altar do Amor!
DECADÊNCIA
Eu vou perdendo totalmente quanto
A alma de um noivo deve ter consigo.
Murcham-se as flores, emurchece o acanto
Que floresciam em meu casto abrigo.
Murcha o sorriso nos meus lábios. Tanto,
A mim, que de sonhar fui tão amigo,
Custou-me o andar sonhando, que ao encanto
Dos sonhos fujo, como de um perigo.
Assim estou. Assim se vai levando
Da mocidade a taça, a que esvazia
O tê-la cheia a andar-se caminhando.
Mas tu não vens!... — Esperarás o dia
Em que, de tudo se desesperando,
Perdendo tudo, fique a boca fria?!
INSÔNIA
É treva o quarto. Quieto e morno,
Pesa o silêncio e reina em torno
De tudo,Ansioso, só, multiplica as pancadas
Um relógio febril; e, àquela hora, lançadas
No fundo do noturno e atro mutismo
Essas pancadas, parecia
Que assim convulso as repetia
Um pobre coração dentro de um negro abismo.
É treva. Por um feio sonho
Todo abalado, abro tristonho
Os olhos. Vai lá no ar, fúmeo e esvoaçando,
Ainda, o meu triste sonho. E eu, eu, em sede, olhando
A treva, fico com a treva ingrata,
Ainda adormida a consciência
E tendo apenas a ciência
De que sofro uma dor que me alaga e me mata.
Ai!...mil vezes assim, no entanto!
— Se acentuando, e crescendo, enquanto
Do pesado torpor a ideia despertava,
A feral sensação desse, que me acercava,
Estranho mundo não me avassalasse,
E o sangue, assim surpreendido,
Em jatos loucos, insofrido,
Como então se elançou, ai! jamais se elançasse!
“Meia-noite, talvez,” murmuro,
E qual se acaso, mal seguro
O ouvido, eu reescutasse essa frase falada
Em outro e estranho tom; ela bem propagada
Ainda não era quando, pelas veias
Febres e frios perpassando,
E o meu cabelo se eriçando,
Do Temor eu me vi nas geladas cadeias.
Contudo, rindo-me nervoso,
Na minha mente, pressuroso,
Eu buscava fixar as ideias vazias
E áridas que bebi em laboriosos dias,
Por amor de verdade atormentado,
Quando, ao deixar nossa áurea crença,
Meus pobres mortos, em presença
Apenas eu me vi de um mundo despovoado...
Foi nesse transe, nessa enferma
Luta do espírito, a acender-ma,
Mais e ainda mais, no meu sangue supersticioso,
O escuro, maior ainda, e ainda mais silencioso;
Foi então que chegaste, oh! pobre amigo,
O lábio seco e entreaberto,
Mudando um passo morto, incerto,
A me olhar, a me olhar, querendo falar comigo!
Vieste tal qual vinhas andando
Naquela noite em que, deixando
Meu ar de animação, eu a porta entreabria
Já com o respeito e a dor que implanta uma agonia,
Quando, como um espectro, a olhar tão langue,
A língua negra, já sem fala,
À toa erravas pela sala,
E, me vendo, em teu seio apertaste-me exangue.
Assim chegaste! E ainda aqui tenho
Na minha fronte o traço e o cenho
De cruel obsessão! Embalde atormentando
O espírito, ainda agora, em insônias eu ando,
Sem poder descobrir o que queriam
Contar, talvez, que grande mágoa
Aos meus dois olhos cheios d'água
Daquele modo os teus revelar pretendiam!
O quê?! Mas — transe inolvidável! —
Assim, no ar, pura sombra, impalpável,
Tu estavas; e eu, assim, abalado, eu estava:
Se, porém, eras sombra apenas, era lava,
Lava crua teu olhar... nem sei dizê-lo!
Meu olhar compungentemente
Fitando sempre, triste, inclemente,
Como se ele quisesse absorver-me só em vê-lo!
E eu não pude! não pude mais!
Com estertores e com ais
Dos nervos aliviando a tensão requintada,
Brusco voltei a face, — a pálpebra cerrada, —
Tentando achar ideias e conforto
Que conseguissem preocupar-me,
E onde eu pudesse refugiar-me
Da tua convivência horrorosa de morto!
Tudo baldo! Se eu conseguia
Refletir, o que eu refletia
Só de ti é que vinha e só de ti falava!
E, se aquela visão lá pelo ar se apagava,
Diferente visão, outro momento
Da enfermidade a recordar-me
Vinha, e muda ficava a olhar-me,
Fria e morta, em meu triste e infeliz aposento!
Naquela noite, como quando
Disseste “abre!”, se derramando
Tristonho o teu olhar pela janela aberta,
Ai! de novo te vi da câmara deserta
Olhando com saudade, e em despedida,
Aquele porto faiscante,
Movimentado e deslumbrante,
Com toda a imensa dor da esperança perdida!
Que cena! À beira-mar coalhavam
Barcos festivos; lestos, davam
Proa ao mar uns batéis na circunvizinhança;
E ao longe, lá no azul que mal a vista alcança,
Sobre esses velhos mundos de onde vinha
Nos fazendo sonhar, inflada
E branca, uma vela isolada
Desponta, e pouco a pouco, a oscilar, se avizinha.
Via-se a doida marinhagem
No alvoroço da manobragem
Girando pitoresca; a industrial cidade
Expandia-se grande em rara atividade
Erguendo rudes ondas de rumor:
E tudo isto regurgitava
De luz, sob a luz se agitava,
Alto brilhando o sol no mais rico esplendor!
Eu, que ali estava te falando
Naturalmente, procurando
Tirar-te a negra ideia à custa de mostrar-me
Sem preocupação, sentisse aqui forçar-me
Ao peito muito embora atroz soluço,
E nos meus olhos um nevoeiro
De pranto, oh! pobre companheiro,
(Vendo que ias morrer!) eu, sem nenhum rebuço,
Desejara poder dizer-te
Tudo, e poder, talvez, conter-te
Assim para esta vida! Exclamar-te: não vás!
Fica, não creias, não, noutro mundo falaz!
Pois que! olhos fechar, não ter mais gozo,
Nem a si próprio conhecer-se
Nunca mais, nunca, desfazer-se
De si e por si mesmo, é acaso delicioso?!
Quem foi vida tornar-se morte?!
Mas tu aceitas essa sorte?!
Certo que é negra a dor, mas bendita seja ela,
Que ainda é um modo de ser! Ouve-me: até naquela
Região onde o fogo morde eterno,
Onde há só penas, para terem
A consciência só de serem
Pedem a vida, lá, dentro do próprio Inferno!
Mesmo às garras da dor, e cheio
De aflição, do caminho em meio,
O espírito às vezes para e queda-se, em torno olhando.
Levemente sorri, fundamente pensando.
Nem de longe parece estar vencido!
Embalde a dor lacera-o, morde-o!
Pode fazê-lo com mais ódio!
Ele sorri, de tudo, a sonhar, esquecido!
E quando nós, então, só havemos
Passado um dia, e conhecemos
Os anos que a vida tem de mais belos, apenas,
(Como tu,) sem jamais sabermos o que são penas,
Quando, na embriaguez da mocidade,
Imaginamos esta vida
Uma festa ininterrompida,
Festa na qual se é rei, mais que rei, divindade!...
— Tal cena, e ideias tais, confusas,
Nessa noite, todas profusas
Vinham-me, elas e mais quantas outras passadas
Cenas e ideias tive! E, em fúnebres revoadas,
Iam e vinham, a girar por voltas
Caprichosas, aborrecidas,
Zombando nestas vindas e idas
Das minhas, ante a insônia, impotentes revoltas!
Iam e vinham! E quando ia
Todo o bando, horrorosa e fria,
A primeira visão novamente voltava,
E aquele mesmo olhar, triste e rubro, me olhava,
Se fixando de novo em ponto certo,
Ou vacilante, deslocado,
Enquanto eu ia, alucinado,
De queixas sempre enchendo o meu quarto deserto!
“Ai a vida!...ai a vida!...” Assim,
Nesses lutas, fora de mim,
Exclamei uma vez. Sufocando, esmagado
Sob o peso do mundo, eu quase alucinado
Senti-me então! Terrível realidade
Tudo é miséria! Por que a vida?!
A vida é a paz interrompida!
Parêntese de dor feito na eternidade!
Tudo miséria! Refletindo,
Os fios de tudo se seguindo,
Vê-se, no destrinçar da trama complicada,
Negra mão trabalhando em tudo, amaldiçoada,
E com medo, com horror a mente sonha
Posta lá em cima, posta no alto,
Nos dominando, oh sobressalto!
E a sorrir, de um deus negro a figura medonha!
“E por tal ter-se amor!...” Dizia,
E ansioso, e triste se perdia
Por rilhos tais, assim, meu espírito enfermo!
Como uma maldição, o céu torvado e ermo,
Sem por mais fim, a noite derramava!
“Dormes?”um galo vigilante
A outro inquiria; e, rouquejante,
“Como dormir aqui?”de longe outro chorava!
“Tudo miséria!...” novamente
Eu repetia. Eah! — dissidente, —
Irrisório fugindo ao destino prescrito
Ante a porta infeliz do caminho maldito,
Onde tudo se vai grosso escoar,
Com a grande massa confundido,
Nela arrastado e comprimido,
Ínscio firme-se o pé, deixe-se o mais passar!...
“E o tens querido!...” fui pensando...
Mas nisto, lento, se enlutando
De cor triste e pesada, inteiro o meu passado,
Em fila processional, passando vem! Calado,
Vejo-o todo passar, eu que, se via
Aquele préstito tremendo,
O que já fui nele revendo,
Meu próprio desfilar fantástico assistia!
Todo o caminho em que meus passos
Assentei tinha ainda os traços
Feitos com o meu sangue; abatido e piedoso,
A custo ia fazendo o meu trilho tortuoso,
Por um indigno injuriado aqui,
Logo impelido rudemente,
Já tonto, em quanto, indiferente,
Me olhava a multidão, que de tudo se ri!
Todos aqueles que me cercam,
Embora à luz do dia percam
Aquela feição oblíqua e disfarcem os gestos,
Nessa noite eu os vi todos maus e funestos
— Esses que são os meus fiéis amigos! —
Escusos trilhos preferindo,
E ocultos, torpes, me ferindo
Como os mais, como os mais sendo meus inimigos!
Mas até vós, presos por laços
De sangue a mim, e cujos braços
Caros de modo tal apoiam-me esta vida
Que é de vós que ela vem calma e favorecida,
Até vos ali estáveis, meus irmãos...
E algum também bem o fazia,
— Que eu percebi! — quando podia,
Sem ser visto, fazer movimentos com as mãos!...
E, pois, eu vi que tudo estava
Olhando sôfrego, que ansiava
Tudo, em fatal conluio, esperando na estrada
Da vítima serena a vinda descuidada,
E que, ao ver-me do mundo sobre o trilho,
Tudo correu com sede e fome
Para aquele crime sem nome
Sobre quem neles punha a confiança de um filho!...
Então por dentro foi crescendo
Em mim, a todo transe, horrendo,
O vesgo vulto do Ódio! “Ah ser bom e ser manso!...”
E espumando, eaumentando a sombra, avanço a avanço,
Crescendo sempre foi, crescendo até...
Até que enfim ultrapassou-me
— O vesgo ódio, — que iluminou-me,
E em vez de mim ficou, flamívomo, de pé!!
Não vos quero dizer agora,
Não! que instante foi o dessa hora
Em que eu, vencido assim, no peito me pisando
O Ódio, eu a chorar, ainda assim, afrouxando
A mão, tomado de um horror profundo,
Me achei, por mais que o Ódio forçasse,
Insistisse, por que ficasse
O seu punhal aqui, ameaçando o mundo!!
Eu: “não!” Ele: “Porque?” Eu: “não!!
— Quem me tira desta aflição?!! —
— Clara corneta, entanto, acordando os soldados,
Retiniu matinal. E os meus olhos, pisados
Dessa insônia tão longa e tão medonha,
Pararam; pois, qual se fizesse
No som um trilho, e aí viesse,
Ela veio dançando, Ela veio risonha.
Vi-a tal qual vira-a de tarde,
Quando, batido, errava embalde,
Em vão cuidando achar no cheiroso caminho
O que só encontrei com o nobre carinho
Daquelas mãos, onde senti surpreso
Como um pedido e uma promessa,
Com estaarte com que começa
A falar uma moça antes de ter-nos preso.
Sem eu saber, a pouco e pouco
Neste meu cérebro de louco
Fixava-se a impressão daquela sorridente
Imagem de mulher, abençoadamente,
Em meio desse mundo grave e vário
A que calado eu presidia
Por esse tempo em que eu vivia
A vida espiritual de artista solitário.
Vendo-a sorrir, fui me acalmando
Daquela angústia, e mais pensando
No dia, que, talvez, vinha chegando agora.
Eu respirava enfim! E o sol de nova aurora
Ainda aclarava pálido, indeciso,
Quando afinal um pensamento
De um outro tom, de um outro acento,
Que entre os outros surgiu, deu-me um leve sorriso.
Pensei: “és moço; é, pois, ser forte!”
Animando-me desta sorte
Como um irmão anima outro irmão que está triste.
E, porque tal pensasse, essa imagem que viste,
A imagem dela, divulguei mais clara,
Ora melhor ela sorrindo,
Eu o aperto de mão sentindo,
E o sentindo melhor do que quando a encontrara.
Agora estava convencido
Plenamente de que um sentido,
Um sentido qualquer tinham esses agrados;
E, na doida efusão dos pobres lisonjeados,
Não vendo nuvens, sem prever procelas,
Olhei ao que é e ao que passou-se
Cheio de um riso bom e doce,
Dizendo: “tu és amado e és amado das belas!”
Nisto, porém, com aquele vulto
Um outro vi, que estava oculto,
Mão no ouvido, talvez, meio se arreceando
Por de trás da cortina, e que então, escutando
Aquilo que eu falara em liberdade,
Se resolvera a aparecer-me,
— Lábios rubros, — por convencer-me
De que o poeta dizia uma grata verdade.
Mas, redourando o escuro espaço
Com seu perfil de fino traço,
Veio outro vulto, louro; ainda um outro ressalta;
Depois cria-se um novo; e desta vez não falta
Mais um p'ra unir-se aos que já estão na sala,
Por belo grupo atrás seguido:
Ficando-me eu, assim perdido
Entre essa multidão, encantado e sem fala!
— Foi aquela linda morena
Que me deu a boca pequena
Por amor, e eu beijei qual de um monte na frágua
Por um dia estivai bebe-se um pouco de água,
Aquela, cujas faces atraentes,
Deixando-nos embriagados.
Aos olhos dos enamorados
Eram como um país de coisas excelentes.
Foi essa outra loura de um dia
No qual com tanto amor eu ia
Que quase estava a andar com os braços abertos.
Que ardores descobri sob a neve encobertos!
Deu-se tal qual se eu fosse um viajante
Que entre mármores se perdendo
Ficasse a olhar, surpreso, vendo
Descer do pedestal um corpo palpitante.
Entre todas as que chegaram
E desse modo povoaram
Esta memória, eu vi, vi também a criança
Primeira dentre as mais que foi minha esperança,
Pela qual dispendi tão pura vida,
Cujo nome era o meu segredo,
— Tanto a amei, com tanto medo! —
Sem saber que essa chama era vã e perdida.
E, ainda arisca, veio aquela
Rústica filha, tenra e bela,
De quem, rindo, gostei fora dos povoados,
Menina que fugia a lançar uns pesados
Epítetos em mim se um beijo eu tinha,
Caso, pedido, mas que, adiante,
— Fora de alcance, — interessante,
Atirava-me dois com os dedos em pinha.
Eram os mais daqueles vultos
Afetos vãos, pobres incultos
Desses que pela estrada imos sempre deixando
E que uma ou outra vez estamos recordando;
Alguns olhares com alguém trocados,
Indagando-se curiosos,
Crentes e a um tempo duvidosos,
Mas, inconstantes, logo a outro olhar desviados.
Ora, no entanto, lisonjeiro,
O meu humor, tanto ao primeiro
Como ao último dava um gostoso sorriso.
Riam e rodeavam-me. E, neste paraíso,
Como sem fala, e sem querer mover-me,
Senti, senti uma carícia
Magoada e cheia de delícia
Ir aos poucos nascendo e no peito crescer-me.
— Subia o sol. Galos em coro
A cantar, com o pescoço de ouro.
Mas súbito o local faz-se paragem estranha,
E aquela tão louçã, tão garrida companha
De moças não é mais à vista agora
Do que deusas enguirlandadas,
Vaporosas deusas ou fadas,
Surtas, por certo, do ar, filhas da doce aurora.
Contudo, embora assim mudassem
De veste, e o riso iluminassem
De uma expressão melhor, eu ainda distinguia
Claro essas deusas tais; e, entre todas, eu via
Com seus olhos azuis de soberana,
Alto entre todas colocada,
E para mim, terna, voltada,
Ela, que já criara esta paixão insana!
... Em certo instante eis escapou-se
De mim um beijo, e eis escutou-se
Outro beijo pelo ar. Foi o transbordamento
Da emoção! Bom e meigo, eu, desde esse momento
Então falei, e a todas, — mariposa
Pousando em quanta flor que é bela;
Beijei a esta, falei aquela:
Dei cem beijos, e disse uma porção de coisa!
Pois isso é que é ser moço! Triste!
Triste por que, se em nós existe
Tamanha embriaguez?! É horrendo o sumidouro?
Encha-se com azul, polvilhemo-lo de ouro!
Não voltam, nunca mais, estes rosados
Venturosos dias que temos
Nos quais, tão certo nós sabemos,
Se sonhamos também somos nós os sonhados!
Naquela festa ingênua largo
Tempo passei. Porém, amargo,
Dos pensamentos maus que já se tinham ido,
Cauteloso ficara, em um canto escondido,
— A asa de fumo, — um pensamento ainda...
Veio... e falava confidente
Coisa real, infelizmente...
Então pus-me a pensar de novo com esta vinda.
Mas, não sei se porque eu mudasse
De ar, e a elas desagradasse,
Nisto vi pouco a pouco irem se esvaecendo
Essas sombras, fugindo. E eu, que as estava vendo,
Como restassem só duas ou três,
Eu, vi também que tu partiste,
Embora fosses meio triste,
E às vezes te voltando, a olhar-me ainda uma vez.
Quando, como uma flor aberta,
A minha câmara, desperta,
Ouvindo se mover novamente a cidade,
Estava toda a rir cheia de claridade,
Quando morrera em toda a parte a mágoa,
Esse primeiro raio, brando
E áureo, de sol, que eu vi entrando,
Veio encontrar-me triste, os olhos rasos de água.
A CAUDAL
Parece-me que eu vejo a natureza
Que leve nos inunda e nos rodeia
Vertendo aromas, flores e riqueza,
Como uma enorme cornucópia cheia.
Os olhos pasmos, mudo de surpresa,
Arrojado, no entanto, o poeta anseia
Com a impossível e assombrosa empresa
De abarcar tal dilúvio, que o estonteia.
Na perfumada e esplêndida torrente
Que ampla e sonora está se despejando
As mãos ele mergulha loucamente.
Mas eis que nisto se distrai, — olhando
Como cai a caudal profusamente.
Sempre, larga, das mãos lhe transbordando.
PERCAMO-NOS!
Percamo-nos, e à custa de perder-nos
Um pelo outro, na vida feia e dura
Vale, oh amor, por força pertencer-nos
Um dia ao menos de real ventura!
Não um só dia! Pode a vida inteira
Ser luz de irradiar belo e infinito,
Quando nos doura os olhos a cegueira
Que o amor derrama pródigo e bendito!
Ah! dá-me o teu amor, nos elevemos,
E lá bem alto, sem saber de nada,
Viver num beijo eterno poderemos,
Julgando a terra em flor e iluminada!
A BENÇÃO
Eu tenho dias de tranquilidade
Raros e belos, quando, enfim, descanso,
Após a luta insana e a ansiedade
Do puro no alto céu azul e manso.
Qual se vivesse em bem diversa idade,
Ou em outro mundo, lá do meu remanso,
Por isto tudo, com serenidade,
Contemplativo, a minha vista eu lanço.
E vem-me um tal sorriso, uma ternura
Tão nova se difunde em meus olhares,
Quando assim vejo as coisas dessa altura;
Que, sentindo que cresço e que encho os ares,
Julgo-me um deus, e então tenho a loucura
De abençoar, bondoso, a terra e os mares.
A ALGUÉM
Ter-se um gozo furtivo, antes de gozo
Promessa apenas, se estender o braço,
A palpitar, sedento, louco, ansioso,
— Do abismo à beira, sem olhar o espaço,
Mas, quando já se atinge o fruto de ouro,
De vertigem tomado, vacilar-se
Sem equilíbrio, o ideal tesouro
Vendo fugir-nos, vendo-o separar-se
Para sempre de nós, e esse momento
Tão fugaz, de favor, gerar tirano
Dias sem fim do mais atroz tormento:
Eis toda a história deste amor humano!
Oh! vida! vida, como és tão diversa
Hoje daquela que passei na idade
Em que pude, súbido, olhar da excelsa
Mansão celeste da serenidade!
O pranto humano agora, deplorável,
Cega-me a vista; esta exigente e rude
Paixão desfez a linha imperturbável
Daquela anterior nobre atitude!
E agora, para sempre, no caminho
Dos mais eu trilharei, sedento e louco,
Queimada a veia pelo ardente vinho
Da paixão!
E hei de assim, a pouco e pouco,
Me empenhando na guerra por ganhá-la,
Mas agora raivoso de avistá-la
Tão longe; hei de, decerto, a curta vida
Assim gastar, até que, sempre ardendo
Em sede, e ao ver, enfim, — sonho ou magia,
O próprio fruto se me oferecendo
Eu morrerei em um formoso dia.
O SONHO
Deixá-los que se vão, não vás estulto
Implorando piedade em frouxo pranto;
Esse amor imperfeito a ti é insulto;
Fica, contenha-te um orgulho santo!
És grande, coração! Esse tumulto
Que a ti próprio por vezes causa espanto
Reprime! Guarda o teu sagrado culto
A um coração merecedor de tanto!
À beira do caminho descansando,
Espera: ele há de vir lá do Oriente...
E se ele não viesse... Delirando
Não vás! Virá, meu coração descrente,
O teu amor virá lá se elevando...
Espera: ele há de vir lá do Oriente...
DE LONGE
Pudesse eu ver que aquela que em meus sonhos
Sorria, pura e boa, amante e crente,
Era outra que viveu nesses risonhos
Passados dias fugitivamente...
Acontecesse que não fosses ela,
E, olhando, me verias, admirada,
Ver-te a, como se eu não visse aquela
Por quem a vida trago atormentada.
Eu antes de te achar vinha sozinho,
Olhando em distração para diante,
E deixando ficar pelo caminho
Quantas seguiam-me até eu ir distante.
Ah! foi porque eu te vi — amante e crente.
Que transformado acompanhei teu passo,
Evim por todo este caminho ardente,
Cortando atalhos, sem sentir cansaço.
Esse do amor, criança, engrinaldado
Quiosque, que vemos a sonhar distantes,
Tem o caminho todo salpicado
Com o sangue dos mártires amantes.
E a que não pode atravessar, calada,
Nos braços deles, partilhando dores,
Não se põe a sorrir assim na estrada:
Deixa que passem sós os sonhadores.
BEBÊ
Cai, não cai, meio assustado,
Mas rindo, com o braço aberto
— Em falta de asas, — o ousado
Já chegou perto.
Há quatro dias apenas
Que deu um passo ao acaso;
Vendo, foram as pequenas
Contar o caso.
Desde então é aquela festa;
Todos o andam rodeando:
Exibições como esta,
Tão raras, quando?
O entusiasmo em lufadas
Ora povoa estas almas;
Retinem as gargalhadas,
Soam as palmas.
Cai, não cai, meio assustado,
Olhem-no, aí vem, — braço aberto,
E tanto fez este ousado
Que já está perto.
— Gorda burguesa criadeira, —
A mãe chama acocorada...
A andar daquela maneira
E mais um nada...
Tal e qual o lenço branco
Da esperança nos acena;
O trilho é largo e é franco,
O andar sem pena...
— Chega!Ei-lo vai triunfante
Nos braços dela atirar-se,
Como um riso delirante
Fora quebrar-se...
Mas ela foge... Parado,
Ele põe-se a olhar a tudo...
Se já tivesse falado
Tornara a mudo....
Fugiu... Assim, de repente,
Foge tudo o que se espera.
Tudovai-se, infelizmente,
E é vã quimera.
Em um regozijo imenso
Os mais riem-se do fato...
Só ele fica suspenso,
Estupefato...
Ficou a todos olhando...
Mas afinal distraiu-se;
E tanto riso escutando,
Também sorriu-se.
Se lhe ensombraram de um lado
E do outro, no rosto, aquelas
Covinhas do meu pecado,
Tenras e belas.
Este bebê faz-me aflito
De tanto lhe querer bem.
Quem o mandou ser bonito
Não sei, também.
Quando ele se ri, no queixo,
Embaixo, faz um papinho...
Perdido às vezes me deixo
Vendo o diabinho!
E tenho então uns desejos
Parece que de mordê-lo,
Vontade de só com beijos
Já desfazê-lo.
— A mãe se põe novamente
Lá de longe lhe acenando,
E ele, bom, de pé, contente,
Sorri, olhando.
Nada a boquinha cheirosa
Em água, que cai por fora;
Parece molhada rosa
Da cor da aurora.
A gente de novo o anima,
Essa que há pouco caçoava;
Cada qual agora o arrima
Com uma palavra.
Contudo, se equilibrando,
Ele guarda-se indeciso,
Primeiro as coisas pesando
No seu juízo.
Meus senhores, não é à toa,
Podeis facilmente vê-lo,
Que à cabeça lhe povoa
Raro cabelo.
Ele é um sábio, e tão profundo
Que, desde a sua chegada,
Ele não tem neste mundo
Dito ainda nada....
Refletiu um bom espaço,
Abstrato, como que ausente...
Mas, afinal, deu um passo,
Treme-tremente.
Lá vai! Vozeiam! — Vozeia
Como com este menino,
Atrás do santo uma aldeia,
Tocando o sino.
... Mas tais coisas não se fazem!
Pregaram-lhe outra pirraça!
Como no mundo se aprazem
Com a trapaça!
A mãe se foi afastando,
Prolongando o trilho ingrato...
E ele não pôde! Chorando
Caiu de quatro.
Não sei se o bebê queria
Dizer-lhes assim se pondo
O que só um nome diria
Breve e redondo...
Porque é de mais! Mas agora
Não riem. Qual potentado,
Que manda, quando ele chora
É respeitado.
A mãe toma-o sobre o seio,
Beija, abraça; ora o requesta
A irmã; e o pai próprio aí veio
Fazer-lhe festa.
Ai que tinham esquecido
Quem é o tirano da casa,
Quem pode aí ser temido
Quando lhe apraza!
Às vezes ele já tira
Voz de homenzinho, do peito,
(E é então quando o pai o admira
Mais satisfeito).
Tenham cuidado! — Pois isso!
Tratem-no bem, que ele, quando
E bem tratado, é submisso
Abdica o mando...
Olhem como já calou-se!...
Ah estas profundas dores!
Onda que mal elevou-se
Já cai, em flores!
No mesmo lábio rosado,
Muitas vezes, indeciso
O choro vê-se de um lado,
Do outro o sorriso.
— Nova folia! Em reassomo
O sol do riso aparece!
Todos alegres, tal como
Se nada houvesse!
Ei-lo, o bebê, novamente
A sorrir, se equibrando,
Com os olhos avidamente
Nos procurando.
Quem fala, — há muito eu sei disto,
Não que falar para o espaço,
Quer ser ouvido; e ser visto
Quem muda o passo...
Pois, meu amor, eu, se se há de
Os outros andar sofrendo,
Quero estar tua vaidade
Satisfazendo.
— Já vem! Sinal com uns adejos
De mãos já deu! (Assim, antes,
O ginasta atira beijos
Aos circunstantes.)
... Mas o que foi?! Eu o tinha,
Palavra, por mais sisudo!
— Levantou a camisinha,
Mostrando tudo!
Este demônio! Nas festas
Em que o metem os maiores,
Sem esperar-se faz destas,
E faz piores.
Fique-se aí! Que modelo
De bondade agora, e graça!
Mas esperem que hão de vê-lo...
A festa passa...
Ah não tarda que o teremos,
Vesgo, a olhar para tudo isto
Como nós quando dizemos:
Está tudo visto!
Desata então num berreiro
Que põe a casa em abalo!
E que venha o mundo inteiro
P'ra consolá-lo!
Não há meios! É uma coisa
Sem igual, um embaraço!
Nada quer, e não repousa
Em nenhum braço.
Ninguém! Nem eu o consolo!
Quem sabe apenas do meio
E a mamãe... que o deita ao colo,
E tira o seio.
O guloso ali, aflito,
Se apega choramingando,
E então, como um bezerrito,
Fica mamando.
A AUSÊNCIA
Por mais que os dias se prolonguem, cedo
Os que são nossos lá se vão embora,
E quando restam poucas é que o medo
Vem de se ouvir soar a última hora.
Eu, no entanto, que o sei, eu passo ansioso
Ante esta lei fatal que ao tempo prende,
Marcando este pisar angustioso
Aos dias todos que das mãos desprende.
Mas estas horas como aceitaremos,
Estas horas de ausência e de desejos,
Se quando estamos juntos nós vivemos
Cheios de tanto afeto e tantos beijos?
Amar é nunca se sentir fadiga
Por estar perto do seu bem-amado,
É ter sede que a fonte não mitiga,
E estando longe estar desesperado!
Eu vivo assim. E se este tempo aceito,
Da ausência, é porque só quando ele passe
Chegam-me as horas de apertar-te ao peito,
Se esbate a noite e nova aurora nasce.
HELENA
Arredondou a terra carinhoso,
Abobadou o céu, vasto e radiante;
Sobre a terra por flores, copioso,
Foi pondo estrelas pelo céu adiante.
Depois, — vale orvalhado e luminoso,
Ficou sorrindo todo o seu semblante:
E este simples sorriso silencioso
Era da Glória a estrofe palpitante.
O tempo em vão de séculos se enchia;
Milhões de vezes transformou-se a cena
Esse vivo sorriso ainda sorria!
Mas tinha enfim de aparecer Helena:
Ele fundiu-se, transformou-se um dia,
Quando ela então nasceu, doce e serena.
PECADOS
Já ocultamos os dois mais de um segredo,
Coisas que nunca nós revelaremos...
Uns pequeninos crimes que, com medo,
Mas a rir, mas felizes cometemos.
Moças e moços que me olhais, não cedo,
Não nos vos falo do quanto conhecemos...
Destrinçareis vós mesmos este enredo,
Se vos quiserdes como nos queremos.
... Vamos! A estrada é larga e está florida!
Se tais pecados tem esta doçura,
Continuemos a pecar, querida!
Dizem que só quem guarda com usura
Belas lembranças disto pela vida
Pode ir sorrindo para a sepultura.
MOLLICIA
Com tanto ardor eles vinham,
— Aqueles versos, —
E desse ardor que eles tinham,
Pelo ar dispersos,
Informes, eles, agora,
Nada lhes resta!
Ninguém neste mundo chora
Esses que, desta
Sombria vida fugindo,
Sem ter nascido,
São, novamente partindo,
Do Indefinido.
Mas eu meus versos lastimo.
De natureza,
Tinham mais que os que ora eu rimo
Graça e pureza.
Eu sou, no entanto, o culpado.
Presentemente
É o meu único cuidado
Este exigente
Amor; tudo o mais e deixo,
Deixo de parte:
Ora, morre se há desleixo
Tudo o que é de Arte.
Porém que não me aborreça
Pelo crime
E antes meu crime esqueça
Quem não o estime.
Com tanta sede vivemos,
Que é só de louco
A água fugir, se podemos
Beber um pouco
AS IDIOTAS
Fronte estreita, enrugada, pequenina...
— Que aflição em nossa alma ela desperta!
Sem queixo, quase, mão pequena e fina,
Uns lábios de papel, a boca aberta!
Que paz sinistra de região deserta
Naquele ser de tão estranha sina!
Ela vagueia a vista à toa e incerta,
Rindo do que nem vê nem imagina!
Mama-lhe ao seio uma criança. Nota
Quem lhe vê a figura compungente
Que é, por certo, também uma idiota.
Olham-se as duas daqui a pouco, e, como
Querendo ironizar-se mutuamente,
Uma ri, outra ri, fazem-se um momo!
MORTE PÓSTUMA
Et vraimentquand Iamortviendra que reste-t-il?
P. VERLAINE
Desses nós vemos: lá se vão na vida,
Olhos vagos, sonâmbulos, calados;
O passo é a inconsciência repetida,
E os sons que tem são como que emprestados.
— Dia de luz. — Respiração contida
Para encontrá-los despreocupados,
Aí vem a morte, estúpida e bandida,
Rangendo em seco os dentes descarnados.
Mas embalde ela chega, embalde os chama:
Ali não acha nem de longe aqueles
Grandes assombros que aonde vai derrama!
E abre espantada os cavos olhos tortos:
Vê que eles têm os olhos vítreos, que eles...
Eles já estão há muito tempo mortos!
HOMO SUM
Por que será, oh meu amor? Agora,
Depois que eu durmo junto de teu seio,
Meu coração não bate como outrora
Carregado de febres e de anseio.
Sou nos teus braços um convalescente,
Graças ao bem de refrigério raro,
E abrindo os olhos vejo diferente
As coisas, com olhar simples e claro.
Comparo, então, surpreso, estes meus dias
De lucidez e calma com aqueles
Tempos de tão estranhas travessias
E meço o abismo que se fez entre eles.
Eu julgava o Poeta com o direito
De ser santa relíquia em plena guerra,
E que as estrelas que tivesse ao peito
O seu valor marcassem sobre a Terra.
Que os bárbaros fugissem confundidos
Por caminhos espessos e medonhos
Vendo-lhe acaso os ombros revestidos
Do grande manto feito de seus sonhos.
Que ele pudera residir sereno
Nas regiões ideais, de onde se avista
Este mundo em que estamos tão pequeno,
Preocupado com tão vã conquista.
Hoje, que teu carinho me adormece,
Eu de tal modo me apequeno e humilho
Que muitas vezes quase me parece
Ser o teu louro e pequenino filho.
Habito a Terra. E como toda a gente
Vivo na obscura e incalculada lida
Em que os homens se empenham surdamente
Para ganhar o negro pão da vida.
Por nosso amor me despenhei embaixo,
Mais velozmente do que fui subindo,
Mas agora, que assim o exício eu acho,
Olho para o alto e fico-me sorrindo...
O BOM MENDIGO
Vai tão humilde! Nem parece
Ser um homem a caminhar.
Nesse passo, certo, anoitece
E ele não sabe onde há de dar.
Vede, entanto, trêmulo e doente,
Ainda — é estranho! — vai a sorrir;
Mas nesta vida sorri somente
Quem sabe ao certo aonde há de ir...
É que lhe fala dentro d'alma
— Quem sabe? — alguma oculta voz.
Ela lhe dá talvez a calma
Que não existe em todos nós.
Oh! certo, fala! Humilde, manso,
Com as injúrias que sofre um réu,
Caminha só quem o descanso
E a paz espera lá do Céu.
BOA NOVA
Como se fosse por um terramoto,
Eu tinha há pouco tempo a alma abalada:
A voz de um mal a tanta gente ignoto
Carpia dentro em mim descompassada.
Desse tempo, a que horror surdo eu devoto,
Enfim já não me resta quase nada,
Todos vós que me vedes, como eu noto,
Notais esta mudança inesperada.
Hoje, então, minh’alma abriu torrentes!
Nunca em mim eu senti pulsar-me a vida
Assim em pulsações tão eloquentes!
Ainda este fogo nos meus olhos brilha!
— Talvez já fosse a nova pressentida:
Hoje nasceu minha primeira filha.
ESTRELA
— Que procuras no céu, calado e avaro?
Nos meus olhos — mentindo-me disseste —
Achavas outro céu, sereno e claro,
Que de uma luz mais meiga se reveste.
— Vejo as estrelas, vejo-as e comparo,
Correndo toda a abóboda celeste.
Quero encontrar um mundo estranho e raro
A branca estrela de onde tu vieste.
— Mas como podes distingui-la, quando
Elias são tantas, tantas, e se, ao vê-las,
Nossos olhos perturbam-se, baixando?
— Guia-me os passos uma fé seguia:
Há de ser dentre todas as estrelas
A iluminada de uma luz mais pura.
SAGESSE
Vendo estas duas crianças,
— Meu coração bipartido, —
Eu não me deixo perdido
Ir vagando entre loucas esperanças.
Não as sonho nem rainhas
Nem deusas de mundo estranho;
Quase que são do tamanho
Delas as pobres esperanças minhas.
São humildes e cortadas
De um modo medroso, estreito.
Contas tão arrazoadas
Não sei de um outro pai que as tenha feito.
Dá-se um contraste completo
Entre essa medida avara
E a extensão do meu afeto,
Cujo limite em vão se procurara.
Como tantas tem crescido,
Quero que cresçam viçosas,
Como açucenas e rosas
Tem aos montes nas várzeas florescido.
Qual se fosse um pálio aberto,
Que eu possa, apenas, segui-las,
E vê-las sorrir tranquilas,
Fechando os olhos e trilhando certo.
Que eu seja o tendal passivo,
Elias o liame viçoso,
E eu viva a vida cativo
Sob esse peso meigo e delicioso.
Depois, — o mais é baldado!
Que sigam a sua sorte,
Como eu segui resignado
O meu singelo, meu obscuro norte.
Teremos de ver mudanças
Com os anos, naturalmente:
Se são filhas no presente,
Hão de ser mães mais tarde estas crianças.
E os votos que eu hoje faço
Por elas, simples, risonhos,
Hão de ser, traço por traço,
Pelos meus netos seus ardentes sonhos.
Cuidados, mágoas, pequenas
Ou graves, que experimento
Criando-as, virá o momento
Que elas tudo terão, mágoas e penas.
Pois seja assim! Sem ruído,
Como à noite se repousa,
Já então numa fria lousa
É possível que eu tenha adormecido.
Mas quem ficar neste mundo
E queira andar consolado
Não viva nem um segundo
Sem um afeto que lhe dê cuidado.
SONETO BRANCO
Asas brancas de branca mariposa,
Filhas da lua, pétalas aladas,
Entrai: toda esta casa já repousa,
Éreis por mim, apenas, esperadas.
No alvo luar, aí fora, há qualquer coisa
De esponsais, que dirigem brancas fadas,
Solenidades que turbar não ousa
Nem o sopro das auras molentadas.
Dormem virgens sonhando. Brancos sonhos,
Sonhos castos e vagos são aqueles.
— Asas brancas, nesta alma andam risonhos
E vagos sentimentos a falar.
Fecundai-os, casando-vos com eles,
Dai-me um sonho também para eu sonhar.
FLOR MORTA
Quando ela passa a luz empalidece;
Flui do sol morto clarão de lua.
Como um alfanje, o seu andar parece
Deixar a estrada solitária e nua.
Esse estuário humano que ela enfrenta
Inteiro volve os olhos para vê-la,
Mas lembra-nos deserta estepe atenta
À luz enferma de isolada estrela.
E serena ela vem, criando um sonho
De cabeça pendida, casto e sério,
Mortuário, mas branco, mas risonho,
Um sonho angelical de cemitério.
Parece a Morte, mas enobrecida,
Morte que só faz bem, que, piedosa,
Traz aos velhos a paz apetecida,
Poupa a criança, não regela a rosa.
Tem a graça secreta do esqueleto
Armado na melhor das atitudes.
De seus olhos nos vem um fluido preto
De olhar isento de vicissitudes.
Uma rainha de região deserta,
Onde tudo se fez túmulo e cruzes.
O passo, de tão leve, nem desperta
Dos fogos fátuos as aladas luzes.
Aí vem, sonâmbula. Os seus magros braços
Parece que se alongam de repente
Nas mangas brancas de refolhos lassos
E que nos chamam funerariamente.
AS TRÊS GRAÇAS
Eu tenho em casa três Graças:
Clio, Otília, Aidê, — são três.
— Borboleta que esvoaças,
Estuda-lhes a graça e a candidez.
Somos velhos companheiros,
Eu e a mais velha, que é Aidê.
Da vida dias inteiros
Ela vive a ensinar-me o A B C.
E eu fico mudo, suspenso
Dessa boquinha do céu:
A seria, por vezes penso
Que a estes meus olhos é que turba um véu.
Ela tem-me até provado
Que é falso que exista o Mal:
Basta eu ver inesperado
Surgir-me o seu rostinho angelical.
Eu penso: é que certamente
É mais justo andar-se assim
— A alma a sorrir, muito crente; —
Não sorri este ser, confiado em mim?
Quem sabe se os das crianças
Cândidos olhos não vêm
Em tudo (digo) áureas nuanças
Que nós não vemos, mas que as coisas tem?
E assim, em cismas perdida,
Fica minh'alma a cantar.
— Lá fora ruja a outra vida!
É um céu aberto o meu ruidoso lar!
Nem sempre, porém, sozinhos
Podemos estar, em paz.
Em quase todos os ninhos
Se alvoroçam dois filhos, dois ou mais.
— Aí vem a Otília!... Não fala
Claro e corrente, ainda não!
Porém o que a língua cala
A face e os olhos a dizer estão!
Esta é o alvoroço! esta é a vida
Em flor! Esta é o meu jardim!
É ela chegar e em batida
Partir-se, álacre, por silvais sem fim.
Latadas de frescas rosas,
Amoras, jambos, romãs,
Aromas, sombras saudosas
Ela recorda, e edênicas manhãs.
Um bucolismo inocente,
De outras Esferas, etereal,
Onde o passaredo ardente
É de ouro e tem ondas de prata o vai.
E aí vamos os três no sonho
Que de uma delas floriu.
O nosso rancho é risonho?
— Onde há criança um Paraíso abriu!
Perfeita ilusão! E tanto
Que, enfim, eu julgo parar
De uma alfombra sobre o manto
E esquecer-me das duas a pensar...
Não sabem elas que eu penso
Na Clio... — Sabem-no os pais:
Nosso coração é imenso,
Nenhum filho entre os filhos é de mais!
Esta veio ainda outro dia...
Nem eu guardo os traços seus.
Ainda em vão ando em porfia
Por ver seus olhos a sorrir nos meus.
Parece que ainda vacila
Entre um mundo e outro rival.
É como luz que cintila,
Mas sem saber de onde será fanal.
Como que ainda a esperamos,
— Fadas à porta a cantar
“Buenasdichas”, que nós vamos
Fazendo ainda mais belas a sonhar.
No entanto, com esta eu sinto
Ir-me a subir... a subir
Para esse mundo indistinto
De que ela acorda, aos poucos, a sorrir.
Mistério, por que arrebatas
E nos esmagas assim?!
— Oh! alma, que te desatas
Da terra, voa intrépida ao teu fim!!...
— Ah!...estas duas crianças...
Pálidas que elas estão!...
Mas, se não falham lembranças,
Nosso rancho era alegre e folgazão!...
— Lágrimas? De onde vêm elas?
Por que assim os olhos meus?
— Ah! Destino, o que nos velas?
— Louras crianças, vos proteja Deus!...
A VISITA
Vemo-nos face a face. Incendidos, magoados,
Como no eclipse o sol, são seus olhos funéreos.
Ela tem mãos de lobo. E os dois globos parados
Ficam no meu olhar, melancólicos, sérios.
Cabeça ao alto, entanto, ares transfigurados,
Em silêncio feral, deusa dos cemitérios,
Olho-te. Mas vede: audazes, rebelados,
Andam no meu semblante uns sorrisos aéreos.
Enfim... enfim se esvai! Finalmente desfeito
Vejo o negro fantasma. O coração eu sinto,
Ora, qual pedra bruta, estacado no peito.
Tenho, e percebo enfim, eriçado o cabelo,
Covas fundas na face, o sopro quase extinto,
E o corpo na algidez de uma estatua de gelo.
DOLÊNCIA
Cestmoi. J'ai fait unIong voyage
Au tour du monde que je suis.
P. VERHAEREN
Tu vês, eu chego cansado
De andar por longos caminhos:
Faze um leito de paz de teu cuidado,
Arma uma tenda feita de carinhos.
Não trago suor na fronte,
Mas meus olhos lacrimejam...
Não perguntes que ponto do horizonte
Eu vi, e os trilhos que eu tomei quais sejam.
Na minha testa, tão quente,
Põe tua mão, branca e fria,
Como se faz a alguém que está doente,
Como, afetuosa, minha mãe faria.
Assim! O espírito agora
Aos teus cuidados entrego.
Vai-te com ele pela estrada afora,
Como se fosses conduzindo um cego...
Transforma em rede de afeto
Meu leito, e leve o embalança;
Com um pouco de ilusão, calmo e quieto,
Talvez eu durma um sono de criança...
Vem sem suor minha fronte,
Mas meus olhos lacrimejam...
Não perguntes que ponto do horizonte
Eu vi, e os trilhos que eu tomei quais sejam.
FILHA MORTA
Crocitando, num vento de loucura,
Veio a desgraça me bater à porta!
Ao berço imóvel de uma sepultura
Mandei agora minha filha morta.
Não sabe um pai o que é ser pai enquanto
Os tem aos braços, descuidado e crente;
Sabe o que é amá-los, pálido de espanto,
Quem vê que é pai para os chorar somente.
Exânimes caírem-nos na estrada!
Do céu em vão pedirmos a clemência!
É de luto cobrir toda à jornada,
É transformá-la numa penitência.
Porque um pai, quando entrega um filho à Morte,
Faz-se um homem-cipreste. Mata os passos.
Aonde quer que o destino nos transporte,
Vamos levando o seu caixão nos braços!
Os filhos são para nos por ao peito
Piedosamente as duas mãos cansadas,
Para, fechando-se o caixão estreito,
Alguém sentir as pálpebras molhadas.
Não é irem tão pálidos sorrindo,
Como tu foste, minha filha, há pouco,
E um pai ficar o préstito seguindo,
Neste sorriso trágico de louco!
Eles então às vezes vêm somente
Espreitar quando estamos descuidados,
Para às mãos nos fugirem de repente,
Apavorando uns pobres desgraçados?!
Não vale ter um coração piedoso,
Em nossos filhos adorar o Céu.
Esse amor, tão humilde, é mau, é odioso,
Como o crime nivela-nos a um réu!
Eu sei que o sofrimento é a única escada
Que entre os astros do Céu e a Terra oscila.
Que a Dor é que nos ergue abençoada,
Fazendo um homem de uma pobre argila.
Mas a angústia não lêssemos na face
Destes seres angélicos, ao menos,
Nos seus ombros a Dor não balançasse,
Eles sendo tão frágeis, tão pequenos!
No trágico silêncio em que padecem
Olham à gente com tão grande espanto!
Interrogar-nos como que parecem
Qual o motivo por que sofrem tanto!
E fica o pai, com o pisar de um lobo,
Vagando inútil em redor do leito,
Sorrindo à toa, como um triste bobo,
Quase a arrancar o coração do peito!!
Ai esta dor! Não pode haver no mundo
Coração que a receba resignado!
Ela revolta o próprio Céu profundo!
— É a dor horrível do ludibriado!
Irrisórios simulacros inúteis
De proteção — vê-se, afinal, — nós somos!
Contra aquele martírio vãos e fúteis
São todo o pranto ou todos os assomos!
Estes seres — que não nos cause assombro,
Uma missão já tinham confiada...
Eles vêm para a mão pôr-nos ao ombro,
Mas justamente quando está gelada!
Vem acordar-nos para o negro trilho
Com seu fúnebre e tácito carinho!
— É só depois de se perder um filho
Que a selva escura vemos do caminho!
É preciso, no entanto, ter coragem,
Olhar para si próprio resoluto,
Aceitar o bordão, saco e roupagem,
E não tremer-se vendo o céu de luto...
INCOERCÍVEIS
Formas angelicais... nuanças esquivas
Da cor, do brilho... espirituais sorrisos,
Passam em teorias sugestivas,
Como revelações de paraísos...
Anéis entre grinaldas, e, cativas
Dessas grinaldas, frontes de indecisos
Seres... — Ah! quanto sonho as chamas vivas
Nos trazem, desses dias imprecisos!...
No entanto, em vão esperareis que um dia
Página estranha, radiante e bela
Palpite desses sonhos e sorria.
Ah! muito em vão! Tão melindrosa é ela,
A vida que eles têm na fantasia,
Que neste mundo nunca se os revela!...
A CRUZ E SOUSA
Não gemem na minh'alma árias langues de morte,
Antes vibram clarins e há alvorotos de guerra;
Somente, um tal tremor faz-me vibrar tão forte
Que eu sou, todo, um soluço a ansiar sobre a Terra!
Não! os que, como tu, morrem sacramentados
Com a Extrema-Unção da glória, e andaram, impolutos,
No casulo do Sonho, esperando, calados,
A Vida após a Morte, a Pompa Real nos Lutos,
Não nos fazem pensar na frialdade ao peito
De uma laje medonha, ao caírem exaustos:
Vê-se neles o gesto augusto de um Eleito...
Ouvem-se hosanas no ar, abrem-se céus em faustos!
Lembra! quando, em redor, tudo, tudo aluía,
O Mundo e as Almas, ante um ocaso tremendo,
Se no roxo calar da Tarde se entreouvia
O cataclismo vir, como um louco, gemendo;
Lembra que éramos dois a sorrir serenados,
Vendo a Morte chegar como chega uma irmã;
Aos seus braços de múmia até o mundo alongados
Ficávamos a olhar sem covardia vã.
Fui eu, talvez, fui eu quem te levou para ela,
De outro modo de ser a volúpia te dando,
Quando, como uma vela acompanha outra vela,
Nossas almas na Terra iam peregrinando.
Talvez por minha voz amiga e o meu carinho
Falassem-te a voz dela e suas mãos de gelo,
No meu amor, talvez, te fez ela o caminho,
Tão florido que tu ficaste a ansiar por vê-lo.
Mas é que, assim seguindo antes de mim, levaste
Para longe, sem dó, o marco dos meus passos;
Tenho de ir e de vir onde estás, onde andaste,
Porque são meus os teus e são teus os meus braços!
Depois, hoje em teu vulto eu já não acho aquele
Ar humano que faz nossa tranquilidade
Aqui na Terra triste; um resplender há nele
Que assusta, e assusta mais tua serenidade!
Os teus olhos, tão bons para mim, tão piedosos,
Cujo afeto nimbava o meu ser só de luz,
Perderam a clemência antiga, e, perigosos,
Me atraem agora como um abismo seduz!
A tempera, porém, da vida é a própria morte
Que apura, é o fogo audaz das desgraças supremas.
Quanto maior a voz mais cerrada a coorte
Dos que deixaram nela as palavras extremas.
Antes chorem por ti as almas peregrinas,
Débeis e sãs que amaste e que te amaram tanto,
De que eras tu o teto, o repouso e as matinas,
Almas de que eras a Alma, enternecido e santo.
A vida junto a ti tinha sempre outro aspecto,
Era mais vasta a Terra, o Céu mais alto arqueado,
Porque tudo o esto teu transmudava secreto,
Contagioso bem, Lovelace sagrado.
Antes chorem por ti esses seres obscuros,
Verdes grotas da Dor, que tua alma, lanceada,
Amou, chorou, sondou em mergulhos seguros,
— Pobres pobres da rua, ébrios tristes da estrada.
Todo o soluço vago, anônimo, incoercível,
O soluço sem voz e sem eco, que vem
De origens sem história, esse ansiar terrível,
Duplo por não se ouvir, — tempestade de além, —
Tu sentiste em tua alma e puseste em teu Verso,
Desse caos foste a luz, foste a expressão sangrenta,
Tu, que dele vieste e andaste nele imerso,
Flor do abismo, que a Dor fez abrir opulenta!
Antes mudem de cor os lagos que odiaste,
Hoje que és um fantasma incorpóreo a segui-los!
No círculo de praga em que os asfixiaste
Como convulso e livre hás de agora zurzi-los!
Vejo-os, vesgos, fugindo, e, verdes, tiritando,
A se esgueirar de medo em obliqua escápula
— Grandes lesmas do Mal sob o Bem se ocultando,—
Mas ouço a tua voz, que implacável ulula!
Alma convulsa e torva, e esses gnomos peludos,
Meio mal, meio nada, esses frutos violentos
De móvitos fatais, monstrengos ventrudos,
Lembrando podridões nos lassos movimentos;
Esses — pasmo de ver! — ainda langues voejam,
Quirópteros da luz, sem te ouvir a risada
Implacável de morto, e mesmo sem que vejam
Junto deles, fatal, tua sombra parada!
Mas ah! se a quanto é vil fora melhor jamais
Teres passado aqui sobraçando uma lira,
Levando um sonho augusto em teus olhos leais,
Fonte de teu amor e razão de tua ira;
Como deve chorar a Natureza inteira,
A que, de tanto amor, te entregaste vencido,
No encanto e soluçar daquela vez primeira,
Quando uns braços, enfim, nos recebem perdido!
Mar, oh! “pássaro verde” e estranho, formidável
Ave da Solidão, só para o Céu cantando,
Como ele soube ouvir tua voz, amorável
Quando ao forte que é triste acaso estás falando!
Que ânsia sã, primitiva, ele sentia ao peito
De acordar na alva praia e dormir ao teu lado,
De se fazer tritão e viver, satisfeito,
Por teu rico orquestral nas grutas embalado!
E os navios no mar, velejando graciosos,
Que andavam-lhe a fugir como seus próprios sonhos!.
Logo após a explosão de pássaros airosos,
Como beijos em chusma ou afetos risonhos!...
Campos de paz, da Bíblia, ou milharais, e as eiras,
Onde a faina e a cantiga entrelaçam-se irmãs,
Campônias e aldeões de rústicas maneiras,
Duras frontes, senis, faces rubras, louçãs...
Ele os via em longínqua, em antiga paisagem!
Amava-os de um amor que já não é do mundo,
Como um Deus ama a um ser, ou o devoto à imagem,
Delirando, a sorrir, por um sentir profundo!
A Cidade a agitar-se, as Igrejas, os Portos,
— Estes dando p'ra o Mundo, aquelas para Cima —
O nada da Cidade, — a miséria e os confortos, —
Ele tudo viveu e refletiu na Rima!
Manhãs finas de maio, em que na ermida canta
Um sino de ouro e há na alma outro sino a cantar,
Porque a Terra flori, e a Esperança levanta
Ermidas de Ilusões dentro em nós a sonhar!...
E essas Tardes de lenda, aromais e saudosas,
Tardes de paz, de amor por tudo o que é remoto,
E é puro sonho, e é da Alma, horas miraculosas
Das castas Intuições, em que só fala o Ignoto;
Oh! Tardes sem igual, céus tocados de mágoa
Angelus a soar como uma litania
Do Céu, preces na Terra, olhos que se enchem d'água,
Expirar... aspirar... fé... fervor... agonia...
Ah! Ocasos e Manhãs! ah! Mistérios e Sonhos!
Quem melhor vos sentiu sobre a Terra ajoelhado!
Tudo era fogo e amor nos seus olhos tristonhos,
Tudo devotação, nesse negro abençoado!
Tu, oh! Noite Real, de asiático manto,
Que revestes de pompa as nudezes gloriosas,
Que sustentas de paz todo o Orgulho que é santo,
E com Promessa augusta as Missões Perigosas!
Fala, Noite, por mim, daquele Grande Afeto!
Selvagem que te amou como se ama uma tenda,
A ti, Seio da Paz, do qual, morno e quieto,
Ele ficava a olhar para a Vida tremenda!
Ah! e então, piedosa Noite, eras toda carinho,
No silêncio a falar-lhe e em todos os murmúrios...
Era bem o teu filho, eras bem o seu ninho...
— Andavam, lá pelo ar, uns estranhos augúrios...
E ei-lo, feliz, sonhando!... — O teu manto sagrado
Era dele! Em umbela arreava-se o céu!...
— E ele errava sozinho, a dormir acordado,
Poeta de um sonho imenso e desse sonho réu!...
Oh! luas que ele amou, luas de ouro e de prata,
Fino alfanje a ceifar as rosas das Esferas,
Ou face opiada e velha, — aérea, antiga sonata,
Chegando de vagar, lá de passadas eras...
Luas de esto tão casto, alvas de tanta mágoa,
Jarras brancas de jaspe em que o jasmim floresce,
Como a espuma do mar canta e flori na frágua,
Caçoilas de que o aroma antes sonho parece!...
Que bailadas de amor lhe inspirastes, tão novas!
De que mago sentir o segredo lhe destes,
Que ele viveu por vós na colheita das trovas
Mais ricas que cantou, mais brancas, mais celestes!
Quantas vezes sua alma errou tremulamente
Nos filtros do luar, estudando o Mistério,
Vendo passar um Anjo... uma Virgem gemente...
Depois da um Efialto um cântico funéreo!...
Ah! como lhe era real o ideal desse mundo
Que é todo fugitivo e que é todo recato!
Ele andava a sorrir, em um sonho profundo,
Do invisível a ver todo esse Encanto Abstrato!...
Ei-lo, enfim, que se foi, como um galé liberto
Que vivera algemado em caverna infernal,
Adivinhando com a alma um mundo que bem perto
Sonoro se movia à luz de um sol jovial!
Anda, talvez, ainda, e estas horas ouvindo
A música etereal das primeiras Esferas,
Cheio de embriaguez, preguiçoso dormindo,
Respirando o olor de eternas primaveras!
Que caudal de poesia ora verter não há de
Daquele peito de ave! Ah! talvez lhe pareça
— Tal é sua ânsia! — breve a própria Eternidade
P'ra quem do Grande Amor viva, goze, e padeça!
Vieram voando indicar-lhe o caminho ofuscante
Grandes Anjos de esbelta e de augusta presença,
De clâmides de prata e broquel em diamante,
Seres que ele sonhou em sublime doença.
Ah! não os vê, não sente uma angústia amorosa
De os divisar tão longe, — Íntegros e perfeitos, —
A alma que não anseia, isolada e queixosa,
Entre estes corações tão pequenos e estreitos!
Repousa, enfim, repousa, embalado no Afeto
Que procuraste embalde encontrar sobre a Terra
Achaste teus irmãos, te abrigaste em teu teto,
Depois da mais augusta e da mais santa guerra!
Mas eu irei falar-te, ainda assim! Não vacilo,
Bem sabes, quando vou por amor caminhando.
Este soluço ainda hei de domar! Tranquilo
Hás de me ver sorrir, mesmo embora chorando!
Tu também, onde estás, terás pena e cuidado
De quem amaste aqui! Hás de vir para vê-los
Nessas horas de ocaso em que tudo, magoado,
Volta-se para o Além, trêmulo, a ansiar de anelos!
Hás de vir!hásde vir! Neste embate e perigo,
Que mais ardor nos põe quanto mais rijo e fero,
Tua sombra andará para sempre comigo,
Serena, ou a clamar, como um deus dos de Homero!
Depois... cedo virá ensurdecer-me um grito...
Me hão de todo invadir uns extremos cansaços...
Nossas almas, então, “perdidas no Infinito”,
Hão de trocar, p'ra sempre, “os imortais abraços”!
ALMA MATER
Alma ansiosa, de abranger a Terra,
Alma cheia da dor da Natureza,
Alma que ao Homem e à alma dele encerra,
Como uma pomba sob outra asa presa;
Alma em que o Afeto é lua, em que a Pureza
Tem o altar, onde, entanto, se descerra
Para a Culpa, que é a filha da Tristeza,
O sacramento do Perdão sem guerra.
Oh! alma de minh'alma soluçante,
Fundo deste meu fundo entristecido,
Oh! sol de minha sombra vacilante!
Raia em mim, que de mim ando perdido,
E nessa tua luz, pura, radiante,
Eu adormeça então, mudo, esquecido!
OS VERSOS
Versos... são candelabros que se tocam
Tirando estrelas do cristal ferido...
Óleo de que perfumes se deslocam,
Estranhos, num vapor vago e fluído...
Bergantins marchetados de ouro e prata
A balouçar num mar sonoro e ardente,
Que todo em nenúfares se desata
E em ilhas verdes, infinitamente...
Versos... largas cadeias de diamante,
Lançadas de um extremo a outro da Terra,
Para pô-la risonha e soluçante,
— Áureas grilhetas de amorosa guerra...
Flores do Desespero, doloridas,
Lírios feitos de sangue, transmudados,
Sob o ardor das insônias homicidas
Qual de um punch à luz verde germinados...
Versos! que alma sonora e tumultuosa
—Céu em que os astros chocam-se cantando—,
Que alma grande, alma nobre, alma ansiosa
Não vos anda risonha procurando?
Dos Eleitos vós sois os mensageiros!
Canta, por eles, florescente a rima,
Por eles mergulhais, filtros traiçoeiros,
As almas numa embriaguez opima.
Adernando-vos leves e graciosos
É que o Poeta arrebata e nos transporta
Para aqueles países fabulosos
Do Sonho, abrindo ao Infinito a porta.
Não pode alguém se libertar dos laços
Sob os quais o tenhais escravizado
Enquanto lhe ritmar, sonora, os passos
A grilheta de um verso terso e ousado.
Ah! toda esta ânsia que nos arde ao seio,
Todo este fogo que nos queima a boca,
Se revela das formas neste anseio,
Nesta sofreguidão absurda e louca.
Porém, se nós pudéssemos apenas
Abrir os olhos, dominar o Mundo,
E em atitudes nobres e serenas
Mostrar-lhe todo o nosso estranho fundo...
Se sem palavras se dissesse tudo,
Num ardor, num cantar vivo e direto,
Fora melhor que se ficasse mudo:
Era mais simples e era mais completo...
PROMETEU
(Fantasia baseada na tragédia de Ésquilo)
PROMETEU (encadeado no Cáucaso)
Mas o que é? Como que ouço um trêmulo arruído
Agora. E há também um perfume esparzido
Aqui em torno, parece. A mim, porém, quem há de
Ora se abalançar, homem ou divindade,
Por um afeto heroico? É talvez um ocioso
Que quer na minha dor encontrar o seu gozo.
Mas venha, em todo caso, e neste amaldiçoado
Por tanto amar, que foi seu único pecado,
Veja como de Zeus se reflete a doçura!
Agora, porém, divulgo, ora o ouvido apura:
Asas aí vêm batendo, este ruído é de aves,
O ar inteiro em redor tem gemidos suaves...
Mas por que no pavor meu coração desperta
Se se aproxima alguém desta rocha deserta?.
CHEGAM AS OCEÂNIDAS (coro)
A voz do terror não sigas,
Somos da paz mensageiras,
São nossas asas ligeiras
Asas velozes de amigas.
Chegaram às verdes grutas
Profundas os retinidos
Dessas cadeias tão brutas
E o eco dos teus gemidos.
Para vencer os temores
Do velho pai, o Oceano,
Tivemos trabalho insano,
Gastamos beijos e flores.
Mas por fim nas leves asas
Deste carro, — bando inquieto, —
A essa dor em que te abrasas
Trouxemos o nosso afeto.
PROMETEU
Vede, filhas do deus dos tritões e dos ventos,
Das algas e corais, vede vós meus tormentos!
Filhas de Tétis clara, em Prometeu se ensina
Como é que um deus é deus se outros deuses domina!
OCEÂNIDAS (coro):
O teu sofrimento é tanto
Que os corações quase parte;
Vê através de que pranto
Estamos a contemplar-te.
No Olimpo esse Zeus agora
Pôs uma lei insensata:
Para viver ele mata,
Para ele rir outrem chora.
PROMETEU
Antes houvesse aberto as entranhas da Terra,
Eo Tártaro letal, esse que aos mais aterra,
Me abrigasse, uma vez que estas duras cadeias
Não me deixam viver! Morte é o mesmo que peias!
Furtaria-me assim ao escárnio, ao motejo
Dos mais. Na condição hórrida em que me vejo
Dos inimigos meus — graças, Zeus, devo dar-te! —
Contra mim mesmo eu sou o joguete-estandarte!
OCEÂNIDAS (coro):
Mas quem a Zeus acompanha?
Entre os mais deuses quem há de
Rir de ignomínia tamanha
Imposta a uma divindade?!
A fraqueza tem por sorte
Gerar sempre a tirania;
Mas chega também o dia
Do fraco vir a ser forte.
PROMETEU
Ah! e em verdade o hão de ainda ver, mãos atadas,
Impotente, ficar lá nas plagas sagradas!...
Esse mesmo a quem hoje o meu mal pouco importa
Ainda, sabei, um dia há de bater-me à porta!
Sem coroa real, de um acordo mendigo,
Há de então ser bom Zeus, me há de chamar de amigo.
Mas aí nem que venha ele mesmo quebrar-me
Estes ferros cruéis e venha lisonjear-me,
Nem que baixes assim de supremo que tu és,
Zeus, eu te livrarei! Hás de beijar-me os pés!
OCEÂNIDAS (coro)
Ah! de que estranha couraça
És tu, que nada te prostra!
Se mais te fere a desgraça,
Mais indomável te mostra!
O filho de Cronos é duro,
Pena maior pode dar-te,
Tememos por tua parte
Tenhas mais negro futuro.
Mas, para assim padeceres,
Neste Cáucaso maldito,
Faltaste a grandes deveres?
Qual foi teu negro delito?
PROMETEU
Foi aos homens levar a sagrada Esperança.
Estudai o meu crime e de Zeus a vingança.
A mim me condói a Dor. Vi que a Terra gemia.
Mas a Esperança é vã, nasce e morre num dia,
Se uma chama do Céu constante a não aquece.
Só sob um tal calor ela nunca perece
Dei essa chama então. Mas o homem sorrira,
E prendiam-me aqui cheios de injúria e de ira!
OCEÂNIDAS (coro)
Como sementes de flores
Que produzissem espinhos,
O teu amor e carinhos
Deu-te suplícios e dores.
Mas vê se esqueces um pouco
O teu atroz sofrimento.
É vão, é imprudente, é louco
Buscar na dor alimento.
PROMETEU
Comodo sempre foi aconselhar, amigas,
E é fácil descansar das alheias fadigas.
Por vontade eu errei. Já de há muito o sabia:
Custa trabalho e dor dar aos mais alegria.
Mas não choreis de mais o meu mal! Tudo passa!
De um extremo a outro extremo anda errante a desgraça,
Ao acaso ela pousa, ao acaso se vai;
Não se sabe a que porto ela irá quando sai...
O OCEANO (chegando)
Também a voz do sangue, mas primeiro
A vir o coração é que me obriga.
Tens em mim teu mais firme companheiro,
Minha visita é uma visita amiga.
Para que pronta e claramente vejas
Que eu não sou de ostentar vãos sentimentos,
Dize-me, Prometeu, o que desejas;
Meus passos não serão tíbios nem lentos.
PROMETEU
Também tu, velho Oceano? É por curiosidade
Que vens, ou te pungiu meu mal, na realidade?
Enfim... olha e verás. Zeus reflete e calcula,
Quando sobre um amigo atira o mal e açula.
Minha miséria é tal que é dos deuses vergonha,
É de rir e chorar, ridícula e medonha!
O OCEANO
Eu vejo. Mas embora reconheça,
Prometeu, o teu senso e o teu talento,
Que eu te aconselhe mal não te pareça
Qual deva ser o teu procedimento.
Deixa-te de arrogâncias e de insultos,
Zeus é Zeus, pode mais do que tem feito;
Deves prestar-lhe obediência e cultos,
Ganha para isso habilidade e jeito.
Talvez que te pareçam rabugices
Os meus conselhos, mas de língua solta
Sempre tu foste. Cheio de estultices,
Em orgulho a razão trazes envolta.
Denota apenas inexperiência
Com maiores lutar em qualquer parte.
E agora sigo. Toda a diligência
Farei, que possa, para libertar-te.
PROMETEU
És feliz, tu que vens à plaga amaldiçoada
E voltas sem ficar comprometido em nada!
Vai! Mas esquece, é vão pretenderes, amigo,
Agora o grande Zeus conciliar comigo;
Antes obres prudente, antes tenhas cautela,
Não lhe excites a raiva. Em mim bem vês o que é ela!
OCEÂNIDAS (coro)
Prometeu, ouve os gemidos
Que por ti enchem os ares,
Chegaram, certo, aos ouvidos
Dos homens os teus penares!
A Colchida se levanta,
E a Arábia bela e guerreira,
Por ti levanta a viseira
Toda a Ásia soberba e santa!
Como soubeste estas almas
Encher de tanto calor!
Os teus martírios são palmas,
Augusto triunfador!
PROMETEU
Ah! não canteis assim! Nos meus olhos o pranto,
Vede, é torrencial, no meu seio, entretanto,
Ondas tais de emoção ainda vibram e gemem,
Nervos, carnes em mim se agitam tanto e tremem,
Que imortal como eu sou tenho medo da morte!
Este doce pungir, mais do que eu sou, é forte!
Amor, fogo sagrado, oh! força incomparável,
Criadora fecunda e veio inesgotável,
Que mais fértil se faz quanto mais prolífica,
Amor, sagrado amor! a Natureza é rica,
É assombro, é maravilha, ela é a Natureza
Porque veio deti, palpitante e surpresa!
Quando habitas acaso um coração augusto,
E o fazes de si mesmo o seu assombro e susto,
De tal modo ele avulta e de tal modo cresce,
Tão outro e tão estranho o seu perfil parece
Aos seus olhos de cego e de louco abençoado,
Que quanto Zeus existe é mesquinho a seu lado!
Ah! no meu pulso, embora, e em meu pé a corrente
Da cólera do Olimpo andasse eternamente!
Eu não posso morrer! Vitorioso ou réu,
Meu reino é sempre meu, no Cáucaso ou no Céu!
Esse fogo que eu trouxe e a divina Esperança
Para sempre são meus, são minha eterna herança!
Tais batalhões, porém, só com tais elementos,
Pouco a pouco, a cantar, ou gemendo em tormentos,
Levantarei um dia aqui embaixo, na Terra,
Que o Olimpo me há de ouvir anunciar-lhe a guerra!
OCEÂNIDAS (coro)
A nós esses pensamentos
Tão altos, tão arrogantes,
Perturbam os sentimentos
Que obedecemos constantes.
É doce uma larga vida
Passada na paz serena,
Sem maior abalo ou pena
Na obediência vivida...
Voltemos às nossas grutas
Feitas de musgo e coral;
Aos deuses fiquem as lutas,
Que às ninfas só fazem mal.
(Vão-se)
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
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