3/06/2023

Últimas Poesias (Poemas), de Francisco Mangabeira


ÚLTIMAS POESIAS



MATER

E partiste levando no teu peito
Todo o meu coração; na face tua,
Pela primeira vez de risos nua,
O meu futuro gélido e desfeito.

Voaste às regiões de ouro, onde estua
A luz eterna, procurando um leito.
Por isso eu trago merencório o aspeto
E julgo ver-te, quando vejo a lua.

Deixaste-me a vagar pelo universo,
Arrimado ao bordão puro do Verso
Sem ver o sol que de antes via em ti.

Não há na terra um dissabor como este...
Dizem que existe um Deus — e tu morreste!
Dizem que ele é piedoso — e eu não morri!

 

O RIO AMAZONAS

De onde vem esta voz frenética e atroante
Que parece escapar do peito de um gigante,

E, rasgando do espaço o ilimitado véu,
Espalha-se a gritar por todo o vasto céu,

Após ler abalado a mata, a costa, a serra,
Como se acaso fosse o desabar da terra?

De onde vem ela? Agora é branda, a recordar
Um segredo de amor nos campos, ao luar;

O gorjeio sutil de um pássaro encantado
Que, contemplando o azul, fica maravilhado,

Entreabre o bico de ouro e, quase sem querer,
Solta um canto que faz a gente estremecer.

Por acaso será de algum gênio escondido
Cujo palácio escuro, amplo e desconhecido,

Inda o não viu ninguém — esta esquisita voz,
Tão rude e tão sutil, tão meiga e tão feroz?

Porque anseia, curvado e trêmulo, o arvoredo,
A maneira de leões a tiritar de medo?

Assim pergunta a brisa, ouvindo com terror
Um grito que se muda em cântico de amor.

Não achando resposta o vento em ânsia estranha,
Cresce, incha, rodopia, as árvores assanha,

Ergue nuvens de pó, torna-se furacão,
E é um doido a sacudir os ferros da prisão.

O espaço é um antro azul, imenso, esplendoroso,
E por ele o tufão agita-se furioso,

Raiva, fugindo à voz que entre explosões e ais
O acompanha, e é maior, e o aterroriza mais.

É o rio que, a rolar, canta e ruge, violento,
Respondendo talvez às perguntas do vento,

Que se amedronta, ouvindo-o...

O rio é como um rei
Que nas árvores tem uma formosa grei

De pajens triunfais e olímpicas escravas,
A que o sol dá broquéis, capacetes e aljavas.

Inda há pouco rolava, estoirando em cachões,
Na queda... A luz do dia arrancava clarões,

Incêndios imortais, estrelas, pedrarias
Do tesouro real de suas águas frias...

A cachoeira gloriosa era o espelho do sol,
Refletindo-se nela, às horas do arrebol.

Das águas a cair uns trêmulos salpicos
Ficam a rutilar como adereços ricos

Nas folhas de esmeralda, apresentando assim
Pérolas e corais em cofres de cetim,

A modo de brilhante e esplendido debuxo
O mato a revestir de um espantoso luxo.

Depois — era uma encosta — e ele, tonto, desceu,
Desviando um filete incendiado, que deu

Um gemido tão vago, um suspiro tão doce
Que uma ave se ocultou humilhada... e calou-se.

É que o gigante, sempre indômito e revel,
Mandava um fio de água a trêmulo dossel

De flores, e ela então, louca, ficou pingando,
Como um pranto a rolar das flores soluçando...

Porém, esta doçura em breve se acabou,
Porque ele, impetuoso, o dossel desmanchou,

E avolumando o curso audaz, de lado a lado,
Deu um pulo, entesou o tronco revoltado,

Empolando-se todo em desesperos mil,
Sinuoso e coleante a modo de um réptil,

Cuja cauda sem fim, retorce de tal modo
Que parece arrochar, gemendo, o mundo todo.

As onças a rugir chegam de muito além
Para espiar o duelo e, não vendo ninguém,

Rolam os olhos maus nas orbitas redondas
Esgueiram-se, e, curvando as patas hediondas,

Vão se agachar atrás das árvores senis,
A cujo tronco adusto, assombradas e vis,

Se colam...À feição de colossais espectros,
Ou desgraçados reis sem tronos de ouro e cetros.

As árvores, tremendo, afilam-se, de pé,
E ante o rio voraz, dizem juntas: — Quem é?

Mas o altivo gigante, escachoando, avança,
Aos barrancos iguais, colérico, se lança,

A separar com fúria as pedras, a torcer
As plantas, a arrancar os troncos com prazer...

E os troncos vão boiando aos tropicais fulgores,
Rebentando-se ainda em preciosas flores

Como ninhos ideais que aos pássaros seduz,
E às falenas gentis, bordadas a ouro e luz,

Que, vendo-os a descer entre olores e roncos,
Adejam devagar e pousam nesses troncos...

E bifurca-se o rio, ilhas formando aqui,
Um estreito adiante, um lago puro ali...

Mais além se desdobra em monstruosas curvas,
Encrespa ferozmente as grandes águas turvas,

Arranca uma canoa, e a vai levando já,
Por sobre a correnteza, enganadora e má,

Até que ela se afunda, e, como o adeus extremo,
Vê-se após, à flor da água, abandonado — um remo...

Assim o rio, em sua heroica estupidez,
Deixa em tudo um sinal de glória ou de revés...

É o Deus onipotente e eterno destas zonas
Este gênio monstruoso e angélico: — O AMAZONAS,

De que as árvores são esplêndidas galés,
E tem por cortesãos onças e jacarés,

Que empinam a cabeça em meio ao sorvedouro,
Para que o sol os possa aureolar de ouro

E a terra ama o titão que a fecunda e a destrói,
Como se fora um Deus! Um mártir! Um herói!

Assim, entre o respeito e as orações da mata,
O rio que, ao luar, é uma cobra de prata

E ao sol, grande réptil de fogo, ouro e rubins,
Imenso como o céu, reflete-lhe os confins,

E ao chegar no oceano os seus furores dobra.
Ninguém pôde domar a enraivecida cobra

Que pula, curveteia, um tal barulho faz,
Que parece trazer consigoSatanás.

Mas o Atlântico enorme as faces escancara
E a cobra, mais furiosa, ao inimigo encara,

Põe-se quase de pé, tomba arrancando uns sons,
Que da angústia e do horror tem os terríveis tons.

Cai soberanamente em cima do oceano,
E esboroa-se após num desespero insano.

Estrondando um rugir que vai de norte a sul...
O mar no inquieto seio ilimitado azul,

Todo o peso do rio indômito recebe,
E o engole. É um monstro mau que a outro monstro bebe,

Tal um sonho que ainda há pouco era o melhor,
Realizado, desfaz-se ante um sonho maior.

 
 
LUTA ÍNTIMA

Há dentro em mim este contraste: — um rio
De águas quase geladas que serpeia
Junto a um vulcão ardente e luzidio,
Que em labaredas infernais se ateia.

O rio é largo e às vezes tempesteia
Num turbilhão horrífico e sombrio...
Então cai cinza do vulcão, a areia
Torna-se negra, e o ar torna-se frio...

São as aspirações e o desengano
Que vivem nesse batalhar insano...
E deles eu não sei qual o mais forte.

Essa luta feroz e enraivecida
Dá-me valor para arrostar a vida
E desassombro para olhar a morte.

 

HINO ACREANO

Que este sol a brilhar soberano
Sobre as matas que o veem com amor,
Encha o peito de cada acreano
De nobreza, constância e valor.
Invencíveis e grandes na guerra,
Imitemos o exemplo sem par
Do amplo rio que briga com a terra,
Vence-a, e entra brigando no mar.

Fulge um astro na nossa bandeira
Que foi tinto no sangue de heróis,
Adoremos na estrela altaneira
O mais belo e o melhor dos faróis.

Triunfantes da luta voltando,
Temos na alma os encantos do céu
E na fronte serena radiando
Imortal e sagrado troféu.
O Brasil, a exultar, acompanha
Nossos passos, portanto, é subir
Que da glória a divina montanha
Tem no cimo o arrebol do porvir.

Fulge um astro na nossa bandeira
Que foi tinto no sangue de heróis,
Adoremos na estrela altaneira
O mais belo e o melhor dos faróis.

Possuímos um bem conquistado
Nobremente, com as armas na mão.
Se o ofenderem, de cada soldado
Surgirá de repente um leão.

Liberdade — é o querido tesouro
Que, após tanto lutar, nos seduz:
Tal ao rio que rola — o sol de ouro
Lança um manto sublime de luz.

Fulge um astro na nossa bandeira
Que foi tinto no sangue de heróis,
Adoremos na estrela altaneira
O mais belo e o melhor dos faróis.

Vamos ter, como o prêmio da guerra,
Um consolo que as penas desfaz,
Vendo as flores do amor sobre a terra
E no céu o arco-íris da paz,
As esposas e mães carinhosas,
A esperar-nos nos lares fiéis.
Atapetam a porta de rosas
E cantando entretecem lauréis.

Fulge um astro na nossa bandeira
Que foi tinto no sangue de heróis,
Adoremos na estrela altaneira
O mais belo e o melhor dos faróis.

Mas se o audaz estrangeiro algum dia
Nossos brios de novo ofender,
Lutaremos com a mesma energia,
Sem recuar, sem cair, sem tremer...
E ergueremos então destas zonas
Um tal canto vibrante e viril,
Que será como a voz do Amazonas
Ecoando por todo o Brasil.

Fulge um astro na nossa bandeira
Que foi tinto no sangue de heróis,
Adoremos na estrela altaneira
O mais belo e o melhor dos faróis.
 

SEPULCRO EM FLOR

Ela morreu! Seu rosto descorado
Lembra uma flor de cera,
Um lírio que murchou acalentado
Pelos beijos de amor da primavera.

Seu leito ainda está quente e em desalinho,
Como que já saudoso
Por ver que ficará triste e sozinho
Como um céu sem um ponto luminoso.

O travesseiro azul de velbutina
E de fronha arrendada
Guarda os sonhos finais dessa menina,
Os últimos clarões dessa alvorada.

Seus olhos, onde outrora
Tantas estrelas palpitaram juntas,
São a estrada onde agora
Segue um cortejo de ilusões defuntas.

Apesar de tão pálida, dir-se-ia
Que inda tem vida e está agonizando,
Bem como Vênus quando raia o dia,
E o dia dela agora ia raiando.

Mas está morta... Enorme
Dulçor enche seu rosto de meiguice.
Parece até que dorme
E dorme... e sonha... e ri-se...

Beijem-lhe a face desbotada e quieta
Como o amor de um doente...
Mas não orvalhe o pranto essa violeta
Que morreu linda, como o sol no poente,

Cruzem-lhe as mãos no peito,
Fechem de manso os olhos dessa louca...
E encham de margaridas o seu leito
E de beijos constelem sua boca...

Que um lenço perfumado
Envolva em rendas o seu rosto lindo;
E, pensando talvez no namorado,
Que ela fique dormindo...

E quando na canoa mortuária
For o seu corpo para o cemitério,
O vento cantará estranha ária
Pelo palácio etéreo.

E o Amazonas, desfeito em grandes magnas,
Há de chorar à toa...
Hão de muito chorar as suas águas,
Acompanhando a fúnebre canoa.

Só eu não verto pranto
Porque sei que é feliz esta donzela,
Que entra no céu maravilhado e santo
De palma e de capela.

Que tem pois que nas trevas apodreça
Sem vida a carne tua
E os vibriões perfurem-te a cabeça
E larvas te andem pela espadua nua?

Que tem que fiques reduzida a osso
No horror da terra avara,
Se tua alma saiu do calabouço,
Tão pura como entrara?

Dorme e sonha na plaga etérea e calma.
Que a dor nunca te abranja...
Porque levas ao céu também tua alma
Engrinaldada em flores de laranja.

 

FREIRA MORTA

Há em teu rosto angélico de freira
Tal expressão de amor e de candura
Que até recordas ideal roseira
Desabrochando em rosas de ternura.

Tua alma suspirava prisioneira
Como teu corpo dentro da clausura
E hoje ris porque na hora derradeira
Tiveste a hora primeira da ventura.

Morreste rindo qual uma vidente
Que vê além da morte outras belezas
Novo céu, novo sol, novo oriente...

E em tua face há tal felicidade
Que parece que sonhas e que rezas
Agradecendo a tua liberdade.

 

MARTÍRIOESTRANHO

Tem a vaga tristeza dos poentes
E no entanto brilhou como a alvorada...
Naqueles olhos fundos e clementes
Vive a gemer sua alma angustiada.

Lembra uma rola em módulos plangentes
Queixando-se por ver-se abandonada...
Ah!pobre rola de asas inocentes,
Quem te mandou amar sem ser amada?

Vive chorando, mas às vezes canta
Como se visse, prazenteira e louca,
Fugir a treva que o viver lhe espanta.

Guarda consigo uns íntimos receios...
E só a lua é que lhe beija a boca!
Só ela própria é quem lhe afaga os seios!

 

A TORRE DE CRISTAL

E toda de cristal a torre onde ela fica...
Suas paredes são
De espelhos, cuja luz estranha a multiplica,
Desde a cúpula ao chão.

Tem só um aposento estreito e sem saída,
Mas continua em alas,
Porque a sala no vidro é sempre refletida
Numa porção de salas.

Pelo teto o céu fura o cárcere dourado
Que de todo o seduz,
Vendo seu manto azul nele multiplicado
E eterna a sua luz.

Nesta frágil prisão uma princesa mora...
É moça, linda e pura...
Que mão encarcerou entre cristais a aurora
Que escondida fulgura?

Maravilhada está, a olhar em todo canto,
Porém sempre a fugir,
Uma linda mulher por sob cujo manto
Vê a carne a bulir.

Ora embaixo, ora em cima, ora ao lado, ora adiante,
Ora atrás, sempre bela,
Fita absorta a visão que a segue a todo instante...
E no entretanto é ela!

Olha os vidros: além, ansiosa, o colo arfando,
O olhar divino a arder,
A fada celestial também a está olhando,
Sem se cansar de a ver.

Mas à esquerda também vê outras, e à direita
Muitas outras ainda...
Sempre é a mesma mulher angélica, perfeita,
Idealmente linda!

No entretanto — quem sabe? — estas gentis miragens
Mais belas que as manhãs,
Serão filhas talvez de um Deus de outras paragens?
Serão todas irmãs?

A primeira, extasiada e atônita, caminha
Em direções opostas...
Elias ao seu encontro avançam... E adivinha
Muitas outras nas costas.

Para e diz-lhes: O amor voraz que em mim se esconde
Vô-lo dou porque em vós
Arde o fogo do céu... Nenhuma lhe responde...
Pois todas estão sós.

No entanto elas a estão olhando meigamente...
Sob as vestes gloriosas
Lhes treme o corpo inteiro, e, pela boca ardente,
Rindo desfolham rosas,

Avança a prisioneira, e se unem nos espelhos
Corpos angelicais...
Mas que frio elas têm nos lábios tão vermelhos!
Diz, beijando os cristais.

Recua... e angustiada exclama, vendo todas
Unidas, recuando:
Quem sois? — e elas então como se fossem doidas
Fingem estar falando.

 — Falais, e eu não vos ouço, ó tristes companheiras,
Não me ouvireis também?
Ah! quem encarcerou tão lindas prisioneiras
Que soltá-las não vem?

Do alto da torre o céu reflete-se, glorioso,
Nos vidros do aposento...
E o seu cárcere então é um reino esplendoroso,
E todo o Armamento.

Neste céu ela ri, soluça, canta, reza,
Vendo eterno arrebol...
Estrelas, as demais contemplam a princesa,
Que é da alvorada o sol...

Não desejas saber a história da cativa
Cujo fado a sujeita
A ver anjos e céus, extasiada e esquiva,
Numa prisão estreita?

Escuta: ela nasceu no meio dos olores
De uma tarde de abril...
E como a viração, a madrugada e as flores,
Fugiu, leve e sutil.

Nasceu quando te vi, de dentro da minha alma
E vaporosa, e pura,
Sorriu, voou e no ar foi agitando a palma
Do amor e da ventura.

Olhaste-a, e a pobre então olhou leve e tranquila...
E desceu, e desceu...
E de teus olhos, flor, em cada uma pupila
Um mistério se deu.

O anjo ia descendo à luz de uns olhos vagos,
De onde foram subindo
Brilhos celestiais, suavíssimos afagos...
E ele pairou sorrindo.

Olhando-o, tu — traidora! — aos poucos o enleavas,
Até que ele baixou,
E entre paredes de ouro, e pedraria e lavas,
Prisioneiro ficou.

A ilusão que nasceu do peito do poeta
Tomou a imagem tua
Que é um misto ideal de anjo e borboleta,
De madrugada e lua.

Entre espelhos, então, a prisioneira louca,
Em delícia cruel,
Vê-te sempre, e jamais da flor de tua boca,
Pode libar o mel.

Não acordes a escrava, ó linda carcereira,
Nunca rasgues o véu
Em que se enleia, louca e ingênua, a prisioneira
Pensando estar no céu.

Não vês como eu também padeço, ardendo em febre?
E receando o mal
De que um dia talvez a ventania quebre
A torre de cristal?

Conservas tu, portanto, a triste encarcerada
Na divina masmorra...
Mas se a queres quebrar, deixa que a desgraçada
Muito antes disto morra.

Olha-me sempre, pois teus olhos são a vida
Que a um coração refez!
E ai de mim!e ai de mim quando eles, oh querida,
Se fecharem de vez.

A linda torre ideal há de torná-la fria,
E então — como isto corta!
Que dor não sentireis vendo-a negra e vazia,
E a prisioneira morta!

Caia a prisão e eu morra e o vidro em estilhaços
Retalhe o peito meu,
E este crânio, e esta boca, e estas mãos, e estes braços,
Que são o trono teu!

Mas tu ris... Porque então hei de invocar a morte,
Se tudo se ilumina?
Salve! torre do amor, prisão de uma alma forte
Que se tornou divina!

Vês? Dentro, a radiar, como um anjo, vagueia,
Presa, a minha ilusão!
E olhas-me!e a torre está cheia de encantos, cheia
Desde a cúpula ao chão!

 

UMA ESMOLA!

Estão murchos os prados,
E os ninhos desmanchados
Não parecem que outrora foram ninhos...
Parecem mais sepulcros isolados,
Campas de passarinhos.

As árvores despidas
Erguem-se, retorcidas,
Sem um tremor, enquanto o sol, do espaço.
As envolve entre as malhas incendidas
De uma rede de aço.

Nas tórridas estradas
As pedras abrasadas
Ardem... O solo é cheio de diamantes...
Envolvem-se as montanhas e os valados
Em mantos flamejantes...

É a glória viva e imensa
Da luz radiosa e intensa
Do sol, que lembra um déspota indiano,
Cheio de joias e de indiferença,
A rir-se, soberano...

Enquanto o Armamento
Em um deslumbramento
Sorri, a terra chora sem verduras.
E participam desse sofrimento
Milhões de criaturas.

As florestas enormes
Alteiam-se, desformes
E mudas... Não há pássaros nas matas,
Nem mais se ouvem os cânticos informes
De rios e cascatas.

Não estremecem frutos
Pelos ramos hirsutos
Onde também não desabrocham flores...
No leito dos ribeiros, hoje enxutos,
Faíscam resplendores...

Lugarejos, que outrora
Eram lindos, agora
Estão despovoados. As choupanas
Caem... e partem pela estrada afora
Sombrias caravanas.

Em meio de lamentos
Lá vão eles, sedentos,
Buscando frutos, procurando rios...
Lembram tristes fantasmas poeirentos
Esses vultos sombrios...

As mães, angustiosas,
Afagam as chorosas
Faces das inocentes criancinhas,
Vendo-as morrer como se fossem rosas,
Ou fossem andorinhas.

Felizes as crianças,
Em cujas longas tranças
Corre o pranto materno ardentemente,
Que morrem sem sentir desesperanças,
Inconscientemente!

Há mães que, contemplando
Os filhos expirando
De inanição, lhes dá o seio exangue...
E as crianças então o vão sugando,
Porém encontram sangue.

Pela vereda nua,
Durante a noite, a lua
Vê cadáveres, só, e a madrugada
Sobre eles, toda resplendor, estua
Como mãe desvelada.

Na areia vêm-se ossos,
E nos escuros fossos
Estendem-se fileiras de esqueletos,
Que são da seca os lúgubres destroços,
Os tristes amuletos.

Quando nos move guerra
A cobiçosa terra,
Negando-nos seu viço, a caridade
Surge; como o arrebol que se descerra
Em meio a escuridade.

Deus, que às aves serenas
Deu cânticos e penas,
E à terra o orvalho que do espaço rola,
Deu asas de esmeraldas — às falenas,
E ao coração — a esmola!

A esmola é como um riso,
Que vem do paraíso
E se transforma dentro em nós num canto
É o raio de sol que arde indeciso
Pela noite do pranto.

Ai! a esmola é uma ave
De trínulo suave,
Cujas tremulas asas pequeninas
Espalham pelo ar, que é triste e grave,
Um cheiro de boninas.

Uma simples moeda
Que bata, em sua queda,
Na mão de um pobre — é mais do que um tesouro.
É um astro enfeitando uma alameda
Com lentejoulas de ouro.

Quem alivia as dores
Dos pobres sofredores
Com esmolas e amor a rebatê-las,
Sente no coração cheiros de flores
E lampejos de estrelas.

Se uma fruta madura
Não treme e se pendura
Duma pequena árvore no galho,
A alma dos homens reverdece pura,
Porque a esmola é um orvalho.

Dai esmola, que a imploram
Irmãos que se deploram
Sem terem na alma a luz das esperanças...
E então vereis os que de fome choram
Rir-se como crianças.

E não ser-vos-á pouca
A paga, porque, em louca
Festa vos bem dirão, longe de abrolhos,
Os que não tem agora voz na boca,
Nem lágrimas nos olhos!

 

INGLESA

Veio de longe, da Inglaterra... e trouxe
No olhar as nevoas do seu pátrio ninho;
Era uma estátua, mas vivificou-se
Nesse radioso e palpitante aninho.

Ao vê-la, qual se alguma Deusa fosse,
Sinto no coração, ermo e sozinho,
Uma pressão misteriosa e doce
Como um beijo de luz, como um carinho.

Seus cabelos — esplêndido diadema — 
Lançam faiscações e brilham tanto
Quanto uma loira e fulgurante gema.

E, ao ver-lhe o porte nobre de Condessa.
Cuido que este anjo vaporoso e santo
Suspende o sol no plinto da cabeça!

 

CHORO E RISO
(Ao menino Manuel Lopes Teixeira)

Quero umas rimas sonoras,
Iluminadas, sutis,
Como os teus olhos, se choras,
Como os teus lábios, se ris.

Tenho certeza que moras
Num encantado país,
Metade do dia — choras,
Na outra metade — ris.

Já me disseram que adoras
Esses tesouros gentis,
E eis a razão porque choras...
E eis a razão porque ris...

De quando em vez te alcandoras
Aos celestes alcantis.
Sorris... e eu penso que choras.
Choras... e eu penso que ris...

Se calado te demoras,
Meu peito ansioso te diz:
 — Estrela, porque não choras?
 — Criança, porque não ris?

Serafim, tu revigoras
Os teus pães, a quem Deus quis
Abençoar — porque choras.
Santificar — porque ris.

Teu choro lhes sabe a amoras
Teu sorriso a bogaris,
Só veem o céu, quando choras,
E o sol nascer, quando ris.

Eles que não têm auroras
Dos corações infantis,
Choraram, como hoje choras,
Sorriram, como hoje ris.

Julgo ver aves canoras
Esvoaçarem gracis
Nos teus olhos, quando choras,
Nos teus lábios, quando ris.

As flores murchas — coloras,
Arroubas as juritis,
Quando, criança, tu choras,
Criança, quando tu ris.

Conversas com Deus, namoras
Os Anjos e os colibris.
O mundo ri, quando choras
E canta, quando tu ris.

Só peço nestas sonoras
Rimas que sejas feliz,
Que chores como hoje choras
E rias como hoje ris.

 

ASTROS E FLORES

Astros e flores são joias
Que, a estremecer de surpresa,
No colo dá natureza
Deus engastou a cantar.
Tiveram a mesma origem,
Porém depois se apartaram:
Os astros aos céus voaram,
E a flor não pôde voar.

Quando raia a madrugada
E a luz dos astros declina,
A flor como que ilumina
O campo — domínio seu
À noite a estrela perfuma
Do céu os vergéisdourados...
Flores — estrelas dos prados!
Estrelas — flores do céu!

Da flor o brando perfume,
Transparente, leve e fino
É como um brilho divino
Que lhe dá graça e fulgor.
A luz da estrela é cheirosa
Como um seio de donzela;
Brilho — perfume da estrela!
Perfume — brilho da flor!

A flor sorri na campina
Como um perfumado sonho,
Estrela — aljôfar risonho
Que de luzes se formou.
Para a veiga nua e seca
Deus mandou a flor mimosa
E na amplidão tenebrosa
As estrelas incrustou.

São almas gentis e puras,
Inocentes e suaves,
Como os gorjeios das aves,
Das aves — suas irmãs!
Aos crentes a estrela aponta
Com a luz do seu alvo manto
O pai, risonho e santo
Das infindáveis manhãs.

Ao descrente a quem a vida
Tem sido um agro caminho,
Tão cruel como um espinho,
Tão amargo como fel,
A flor que surge ridente
Abranda o peito magoado.
Como um favo abençoado
Cheio de aroma e de mel.

Mas eu que sinto no peito
A gargalhada ferina
Da descrença que extermina
A doce imagem da fé.

Não vejo na estrela santa
Paraminha dor — conforto,
E meu peito quase morto
Odeia as flores até.

Pendeu-me a fronte cansada
Pelos revezes da sorte,
Andei em busca da morte,
Mais ela sempre a fugir!
Então surgiste! E vivemos
Numa plaga tão querida!
 — Teu riso — me deu a vida
 — Teu amor — deu-me o porvir.

Teus olhos são os meus astros
Que brilham com a luz de amores,
Tuas faces — minhas flores
Perfumadas de paixão;
Por isso digo-te, oh bela,
Do meu prazer és a palma,
Celeste flor de minha alma,
Astro do meu coração!

 

BALADA

Numa choupana morria
De amor uma camponesa,
Que era a flor de mais valia
E a santa da redondeza.

Sobre ela os camponeses
Contavam sempre, ao luar.
Histórias, em que eu às vezes
Não podia acreditar

Garantiam que era filha
De um rei de longínquas terras
Que a desterrou numa ilha
E foi bater-se nas guerras.

Depois, passaram-se os anos
E o rei nunca mais voltou...
E a noite dos desenganos
Àprincesa acompanhou.

Sofreu muito... Numa tarde,
Certa galera formosa
Ancorou, fazendo alarde,
Na plaga misteriosa.

Saltou na ilha um guerreiro
Altivo como um leão...
E ela amou o forasteiro,
E ele deu-lhe o coração.

E então a ilha encantada
Ficou de todo surpresa,
Vendo como era adorada
Essa adorável princesa.

Um dia o guerreiro ardente
Partiu, levando-a... Depois
Numa plaga rescendente
Saltaram, rindo-se, os dois.

O guerreiro valoroso
Era um pastor ignorado
Que para um prélio horroroso
Partira como soldado.

Foi tão audaz nas batalhas,
Praticou prodígios tais,
Que se cobriu de medalhas
E de louros triunfais.

A princesa mais o amava
Ao ouvir isto, e, em desejos,
Enquanto o pastor falava
Ela o cobria de beijos.

É que o pai lhe vinha à vista,
Em meio a tais narrações,
Como o gênio da conquista
À frente dos batalhões.

Um dia um pressentimento
Mergulhou-a na tristeza
E depois desse momento
Ficou sem graça a princesa.

Muito após teve ciência
De que seu amante — ai!
De uma peleja na ardência
Foi quem matara a seu pai.

O pastor fugiu, e longe,
Em um convento sombrio,
Tomou o habito de monge,
E após atirou-se a um rio.

Seu corpo boiou nas águas
E no outro dia bateu
Na terra, onde, toda mágoas,
A princesa o recolheu.

Nunca mais os passarinhos
A viram de manhã cedo
A sorrir pelos caminhos
Como o sol entre o arvoredo.

Ela morria assim como
O dia se a noite vem,
Tinha a tristeza de um pomo,
Quando verdura não tem.

Ia murchando a inditosa
Ao peso desse martírio,
Como se fosse uma rosa

Transfigurada num lírio.
Sofria o povo da rude
Aldeia transes de dor,
Vendo morrer a virtude
Encarnada numa flor.

Mas esta angústia crescia
Porque a formosa princesa
Morria de amor... morria.
Como qualquer camponesa.

 

A UMA FLORENTINA

IN A sua carne morna se condensa
A primavera em flor com a madrugada,
E das duas não sei qual a que vença
Tanto ela brilha quanto é perfumada.

E uma flor de volúpia e de descrença
Que abre a linda corola envenenada,
Trouxe no olhar a lua de Florença
E o Vesúvio na carne sublevada.

É uma ave cujo canto cheira a flores...
É deusa e me abandona... É a Traviata
Que em lugar de morrer mata de amores!

P'ratanto amor meu coração é pouco...
Oh!maldita a loucura que me mata
E bendita a mulher que me faz louco!

 

ADEUS

Adeus, eu vou partir... Esta saudade
Que de ti levo e me enche o pensamento
Falar-me-á da tua mocidade
E deste amor, momento por momento...

Tenho no coração tanta ansiedade,
Tanta alegria e tanto sofrimento,
Que sinto em mim uma outra imensidade
Cheia de sol, de trevas e de vento...

Não sei porque te vejo em toda a parte,
O que eu sei é que tu me enches a vida,
Que é pequena demais para ofertar-te.

E assim tateio entre o arrebol e a treva,
Sem saber, nos encantos desta lida,
Se eu levo o amor, ou se ele é que me leva,

 

SUPLÍCIO ETERNO

Não devo amá-la... e amo-a com loucura!
Quero esquecê-la... e trago-a na lembrança!
Ai! quem me livra deste mal sem cura
A que o destino trágico me lança?

Unia nuvem de tédio e de amargura
Cobre-me a loira estrela da esperança...
Tudo cansa por fim na vida escura.
Só este amor infindo é que não cansa...

Se os olhos cerro, vejo-a nos meus sonhos
Se à noite acordo, sinto que enlouqueço
De uma angústia nos vórtices medonhos.

E esta morte em que vivo jamais finda,
Pois, quanto mais procuro ver se a esqueci
Sinto que a adoro muito mais ainda!

 

QUADRAS PARA VIOLA

Meu amor é uma viola,
E meu triste coração
Unia infeliz castanhola,
Que tu estalas na mão...

Se teus olhos, anjo estranho,
Fitam o rio a correr,
São dois sóis tomando banho.
Astros nas águas a arder.

Por causa do marinheiro
Foi que Deus criou os sóis
E se tornou faroleiro
Enchendo o céu de faróis.

O cego, em sua desgraça,
Talvez exulte porque
Não vê a dor de quem passa
E as suas dores não vê.

Há sempre mágoas e treva
Onde há inocência e paz...
E junto de cada Eva
A sombra de um Satanás.

A lua, que há nestas zonas,
Me lembra uns olhos que sei;
É porque sobre o Amazonas
Outro Amazonas chorei.

Ao bico de uma andorinha
Que foi no rumo do sul,
Mandei-te hoje uma cartinha
Com laços de fita azul.

A minha dor é sem pausa,
Foi e será sempre assim
E desde que não tem causa
Também não pôde ter fim.

Eu sou um padre tristonho
Que benze, cheio de dor,
O esquife de cada sonho
Na tumba de cada amor.

Quem vive sem um carinho
Carrega pesada cruz.
É como uma ave sem ninho,
Um oratório sem luz.

Meu coração é um inferno,
O teu um céu de ouro e anil...
Porque vens a mim, o inverno,
Encher de flores, abril?

Já rezaste a Santo Antônio,
E ele, maldoso, te deu
Para marido um demônio...
E este demônio sou eu!

As flores vivem rogando
A ti, que tão linda és,
Que, quando no prado andando,
As calques sob os teus pés.

Não rias do meu desmaio,
Pois sei vingar-me também.
É uma faísca — o raio...
E quem o afronta? — Ninguém!

O amor é uma criancinha
Que usa coroa e bordão,
Uma inocente rainha
Que vive esmolando pão.

Os homens lembram navios
Que, em desiguais direções,
Batem por fim nos baixios,
Sem leme, nem pavilhões.

Como o rio que serpeia
Entre urzes e bambuais,
A alma do poeta se enleia
Entre alegrias e ais.

Vou quebrar esta viola,
Porque do meu coração
Cai-me a pobre castanhola
Toda em pedaços, no chão.

 

NA ALCOVA

Ventos, passai de leve!
Estrelas e luar, quebrai a luz medrosa
Na vidraça da alcova onde ela agora deve
Sorrir ao adejar de uns sonhos cor de rosa
Que a fazem suspirar entre os lençóis de neve.

A alcova cheira tanto
Que chega a perfumar inteiramente a rua...
E quanto aroma, Deus! Dir-se-á que, por encanto,
Ao penetrar a paz deste recinto santo,
Se transforma em olor todo o clarão da lua.

O vício não profana
Esse leito quetem a frescura de um ninho,
Onde ela dorme, como o rio na savana...
Agasalhando o corpo entre os lençóis de linho
Que tremem ao calor desta alvorada humana.

Por sobre o travesseiro
Se afundam a sorrir suas faces morenas...
Ela contém na carne o olor de um prado inteiro:
Sua boca é um rosai, seu colo um jasmineiro
E nos olhos ideais tem duas açucenas.

E ela dorme... E a seu lado
Velam anjos fiéis... Um é a sua inocência...
Traja um manto de arminho a luz e ouro bordado...
Com o dedo à boca, pede amor, paz e clemência,
E não há um rumor por sob o cortinado.

Outro é o amor... Deslumbrante,
Abre as asas e adeja, atirando-lhe rosas.
Ela, sonhando, ri... E o anjo, no mesmo instante,
Segreda-lhe uma história e beija-a, delirante,
Entornando-lhe n'alma as crenças mais formosas.

E ela, extasiada, sonha:
Desce um herói de além que, beijando-lhe a face,
A faz estremecer de amor e de vergonha...
E, como um lindo sol que em nuvens se ocultasse,
Esconde o rosto ideal entre as rendas da fronha.

Sua carne palpita...
Sente úmida a boca e os olhos deslumbrados.
Entesam-se-lhe, inchando, os seios, onde grita
A maldita volúpia, a volúpia bendita,
Que açula contra ela os tigres dos pecados.

E o anjo meigo e querido
Da inocência, fitando-a entre delírios presa,
Entristece-se e, então, magoado e compungido,
Colhe as asas de neve, ajoelha-se e reza...
E curva-se depois, falando-lhe ao ouvido.

Ah!mas a minha musa,
Que é um anjo também, com asas cor de opala,
Canta, pé ante pé, entra com a luz difusa
Na alcova... Foge então a inocência confusa,
E foge o próprio amor, saudoso de deixá-la,

E ela, espantada, acorda...
Voam do corpo seu canções e borboletas...
E, enquanto esse esplendor de seu leito transborda,
Desfolhando no ar versos e violetas,
Tange a musa da lira a mais plangente corda,

E ela escuta, arroubada...
E o leito, e o cortinado, e os linhos peregrinos,
Ardem, tremem à luz triunfal dessa alvorada,
Que para ao mundo vir tomou um ar de fada
Cuja vida radiosa é toda feita de hinos.

Ela está seminua!
Vai a janela abrir! Quanta alegria em roda!
Mas não vos espanteis vós que passais... A sua
Carne, cheia de olor, desabrochando toda,
Desmancha-se no olor que vai encher a rua!

 

AMARGURAS SEM FIM

Que tristeza me invade
O coração tão cheio de saudade!
Porque foi que fugiste,
Deixando-me tão só neste deserto,
Que sem teu resplendor ficou tão triste.
E era, quando eu te via, um céu aberto?

Imagina a amargura
Que me oprime e tortura
Como o avarento que ajuntando ouro,
Dorme rico e feliz, e, quando acorda,
Não encontra o tesouro,
Cujo brilho, entre lágrimas, recorda,

Ai, como eu te queria!
Não era amor, era uma idolatria,
Uma loucura, um frenesi ardente...
Às vezes eu pensava
Ver-te como uma deusa onipotente,
Da qual minh'alma se sentia escrava.

Tuas pomas arfantes e cheirosas
Eram feitas de rosas,
Rosas cheias de aroma e sem espinhos...
E meus versos febris e tentadores
Voavam cantando como passarinhos,
Em torno destas flores...

Teus cabelos escuros,
Tua voz de cristal, teus olhos puros,
O olor que de teu corpo se derrama,
Tudo me vem lembrar este passado,
E a minh’alma te chama,
Como à pátria querida — o desterrado...

Oh, vem a estes meus braços! Tem clemência
Deste amor, que a existência
Me encheu de madrugadas e de sombras!
Vem, e o resto da vida
Nos será mais tranquilo que as alfombras!

 

DIANTE DE UM OLHAR
(Num leque)

Teu vago olhar, tão cheio de mistério,
Numa inclemente dúvida me lança
Lembra às vezes o luar no cemitério
E outras vezes o arco da aliança.

Um gênio mau e um serafim etéreo
O enchem de desespero e de esperança...
É um céu, ora estrelado, ora funéreo,
Um rio — ora em revolta, ora em bonança.

 

RIMAS DE ALÍVIO

Parti, levando no peito
Funda tristeza, querida...
Embora ele fosse estreito
Para tão grande ferida.

A tua formosa imagem
Pairava em frente a meus olhos,
Qual uma grata miragem
Sorrindo por sobre escolhos...

O aroma de tua alcova
De sonhos de ouro me enchia,
Pois era uma essência nova
Que em parte alguma inda havia.

Olor peregrino, intenso,
Que sempre de ti se evola,
Como das aras — o incenso,
E o perfume — da corola.

Segui aflito e calado,
Como um pobre forasteiro,
Pensando ter-te a meu lado,
Beijando-te o corpo inteiro...

Porque teu rosto risonho
Me encheu de tanto desvelo,
Se eu ia ver este sonho
Mudado num pesadelo?...

Porque não fugi, ao ver-te,
Ou tu de mim não fugiste?
E, como eu, ficaste inerte,
E, como tu, fiquei triste?

Ai! O amor que me devora,
E me embevece e tortura,
Às vezes é como a aurora,
E às vezes é noite escura.

Não vejo nada no mundo
Como este amor que te hei posto.
Só se é o martírio profundo
Do meu profundo desgosto.

Já que os rigores da sorte
Nos perseguiram tão cedo,
Nosso amor, que era tão forte,
Nos enche agora de medo...

Tu nunca podes ser minha,
Ser teu também jamais posso.
Mas o amor que em nós se aninha
É o grande consolo nosso.

Beijei minhas-mãos, criança,
Com deliciosos enleios,
Porque te alisei a trança,
Porque te amimei os seios...

Deixa, pois, que neste instante
Te sonhe no meu deserto,
Que assim, embora distante,
Eu pensarei que estás perto.

E que a desgraça não venha...
Se sempre vivo penando,
Que ao menos o alívio tenha
De ser ditoso sonhando.

 

RESIGNAÇÃO E DESCRENÇA

Como é que vim bater a esta palhoça rude,
E os sonhos te acordei, as chamas aumentando
Do raivoso vulcão da tua juventude
Que em teu corpo indomado abre a cratera, arfando?...

Que destino fatal me conduzira um dia
Ao repouso que outrora enchera esta cabana...
Para tornar-te assim frenética e bravia,
Como a onça que passa a rugir na savana?...

Ai! Porque vens assim, tremente e sequiosa,
Recostar ao meu ombro o teu rosto bronzeado,
Como uma águia real pousando, vitoriosa,
Na atroz desolação de um cipreste esfolhado?

Meu corpo é uma ruina imensa e carcomida,
Minh'alma um paredão com limos e sem hera...
Como é que atiras, pois, no inverno de uma vida
O manto auroreal da tua primavera?

Além desta descrença ilimitada e funda
Que a minha alma transmuda em pavoroso escombro,
A doença me fez anêmico e corcunda,
Entortou-me a cabeça, e derreou-me um ombro...

Tu, porém, tens no sangue impetuoso e ardente
As ânsias triunfais da natureza brava,
E a tua mocidade arfante e onipotente
Só de um herói brutal pode tornar-se escrava.

Tu vives no repouso, e eu venho do bulício
Que há nos centros cruéis e negros da existência,
Onde o enxame infernal das abelhas do vício
Zumbe em torno aos rosais mais frescos da inocência,

Tu mostras sem corar a estas humildes gentes
A ideal carnação destes teus seios duros...
Ah! mas a cobra atrai as aves inocentes
Só com seus olhos vis, que são dois céus escuros!...

Eu trago pela vida uma saudade imensa,
Que é boa e má, eleva e abate, como um vinho.
Muita desesperança, um pouco de doença,
Grande resignação, e a cruz de um pergaminho.

Mas tu, nocéu azul da crença e da ignorância,
Tensas que eu sou talvez feito de outra matéria...
Tu é que és feita só de risos e fragrância,
Mas eu, pobre mulher... eu sou uma miséria!

A ventura que tu supões que sinto, filha,
Na tua face pobre rústica se mostra,
Que a pérola também mais resplandece e brilha
Na modesta prisão de duas cascas de ostra.

Eu não vejo no mundo um ente mais ditoso
Que a ave... Passa a cantar a vida pela selva...
No entanto a sua casa é um ninho carunchoso
Feito com algodão, folhas secas e relva.

Olha: a felicidade é um anjo vagabundo,
Que, nem mesmo no amor, palpita e se agasalha...
E, se vive por sobre a vastidão do mundo,
E nos ninhos em flor e nas casas de palha.

Porque a ave e o camponês, tão cheios de candura,
Não sabem distinguir o alegre do que é triste...
E só pode sentir o encanto da ventura
O que, inocente e bom, não sabe se ela existe.

Tu, inda ontem feliz, hás de chorar agora,
Pois, vendo que ela existe, ousaste interrogá-la...
E ai! a felicidade então se foi embora,
E jamais... e jamais no mundo hás de encontrá-la!

 

MOCIDADE INFELIZ

I
Como olírio que nasce na montanha
Ela é formosa e cândida... Parece
Que gorjeia um canário da Alemanha
Quando em risos a boca lhe floresce.

Dir-se-á que um anjo os passos lhe acompanha
Cantando os salmos de não sei que prece,
E, como as santas, uma luz estranha
No semblante dourado lhe alvorece...

Sua vida é um poema cor de rosa,
A história perfumada e mentirosa
De um casto amor que a faz chorar e rir...

Dorme com as mãos cruzadas sobre os seios.
Talvez guardando o amor de que estão cheios
E que mais tarde ela verá fugir!

II
Venturosa criança desgraçada,
Dorme e sonha, que o amor que tu procuras
E como incenso de ânfora sagrada,
Que se desfaz ao longe nas alturas...

Somente em sonhos podes ver a estrada
De um casto amor, abrindo-se em doçuras...
Desperta, hás de encontrá-la semeada
De espinhos infernais e pedras duras.

Que nunca te acordassem deste sono,
Durante o qual a modo que num trono
Cruzas no peito as mãos angelicais...

Quão ditosa serias se, dormindo,
Voasses ao céu, extática e sorrindo,
Como quem sonha... e não desperta mais!

 

A BORBOLETA

Sobre a grama pousando, descuidada,
Lembrava a borboleta a quem a visse
O laço irial da veste de uma fada
Que, sem ela o sentir, no chão caísse.

Nas suas asas rútilas e puras
Alguém pintou com sombras e clarões
Duas miniaturas
Da cauda dos pavões.

Apesar de modesta e pequenina,
Dir-se-ia um pajem louro,
Trajando a melhor seda que há na China
Malhada sob véus e rendas de ouro.

Parecia dormir a borboleta
Numa suave e doce embriaguez,
Não seria talvez ela a palheta
De um pintor japonês?

Mas, repentinamente,
Leve, as asas moveu e, nesta hora,
Dir-se-ia que este insetoaurifulgente
Era o esboço da aurora,

Por isso um negro e misero mosquito
Encandeado ficou
E pôs-se a murmurar: Seja maldito
O sol que me cegou!

Ouvindo-o, de entre as folhas um lagarto
Apareceu olhando a flor de chama;
E um sapo, inchando o ventre sujo e farto
Remexeu-se na lama.

A borboleta, envolta num lampejo,
Fechava e abria as asas, par a par...
E o sapo disse, atônito: É o bosquejo
De um incêndio no mar.

O lagarto moveu-se vagaroso
E, estirado, de rastros,
Viu no dorso do inseto fulguroso
Dois lindos sóis e uma poeira de astros.

E murmurou: — oh sapo,
De algum anjo rasgou-se o claro véu,
De que vemos o fulgido farrapo
Caindo do alto céu.

Torna o sapo: — Fujamos! e, ansiando,
Ambos se escondem logo
Num buraco e daí ficam espiando
O anjo que traja túnicas de fogo

Empinam a cabeça
E olham: — Abelhas de ouro e de coral
Zumbem, dançando a valsa mais travessa...
Parece um carnaval!

Dando com a borboleta que descansa
Perguntam: de onde veio
Esta orgulhosa dama que não dança
E mostra um dardo a ensanguentar-lhe o seio?

A roseira responde-lhes: — Impera
Num divino país
Esta deusa de quem a primavera
Fez sua embaixatriz.

As abelhas, fugindo,
Escondem-se nas rosas,
E a borboleta... move-se, bulindo
No pálio azul das asas luminosas...

E, fulgurando, voa
Em torno a um lírio que florindo está,
Pousa-lhe em cima — e dá-lhe uma coroa;
Ao lado — e dá-lhe um manto de rajá.

Parte depois, e, a modo de um amante,
Faz a corte a uma rosa a quem dá tudo,
As asas levantando a cada instante
Como um fulgente leque de veludo.

Desce e dorme... e o lagarto, o sapo, o lírio,
A abelha e a rosa com receio vão,
Dizem: — “Isto é um delírio...
O sol é velho para ser-lhe irmão.”

E enquanto eles escondem-se, de chofre,
Uma triste e misérrima formiga
Diz: — Quem será o dono deste cofre? — 
E quer furtá-lo, antes que se lho diga...

Microscópica, erguendo-se do lixo,
Nenhum ruído faz
Para ninguém saber... Como este bicho
É petulante e audaz!

Pensa: — Caiu, decerto, à luz do ocaso,
Da ilimitada, azuleia claraboia,
O precioso vaso,
A inestimável joia!

Segue... Já está perto... Já se mete
Na ponta da asa cheia de ouro em pó
E diz: — “Foi este o rutilo tapete
Da escada de Jacó.”

Como um livro de luz, tonta de som no,
A borboleta acorda, abrindo as asas...
E a formiguinha trepa-se num trono
Todo feito de brasas.

A borboleta voa, alvissareira,
Como o carro de um lindo imperador...
Mas dentro a miserável passageira
Tirita de pavor.

Voa, e a formiga — chega a fazer pena!
À mole antena agarra-se de um salto,
Palpita um arco-íris nessa antena,
Onde ela grita, vendo-se tão alto...

Não se aguentando na corrida forte,
Desamparada, cai...
Ninguém lhe vê a morte,
Nem lhe ouve o último ai.

Vai longe o algoz que a vítima não vira.
E a abelha, o sapo, o lírio, a rosa bela
E o lagarto — parece até mentira! — 
Jamais se lembram dela!

Só pensam na falena radiosa
De brilhos ideais,
Que os traiu, evoou, falsa e impiedosa,
Para não voltar mais!

 

COMPENSAÇÃO

I
Elapartiu, levando-me a esperança,
A fé e o amor... Que triste despedida!
Tudo levou!... E apenas a provança
Não a seguiu na hora da partida.

Tenho-lhe ainda a imagem na lembrança,
A voz, o riso, a boca apetecida.
Tudo cansa na vida... Só não cansa
Este amor que é mais forte do que a vida!

Ouço em torno de mini a sua fala,
E como até que a vejo nesta sala,
Que se ilumina ao brilho de seu rosto.

Ah!minha flor eternamente pura,
Que o eco te pague em sonhos e ventura
O que me deste em trevas e desgosto!

II
Há criaturas felizes que o destino
Cumula de vantagens e favores;
É com outras, porém, triste e ferino,
Só lhes dá sofrimento e dissabores.

No campo há flores de um aroma fino,
E outras há sem perfume... Como as flores
Existem aves cujo canto é um hino,
E outras que piam soluçando dores.

Dos defuntos os vícios e as virtudes
Deixam-nos, espectrais, nos ataúdes,
E enchem de mel ou fel as nossas taças.

E assim, oh glória e inveja das princesas,
Em ti fulguram todas as belezas,
Em mim se encarnam todas as desgraças...

III
Vejo-a por tudo e sempre... No telhado
A espiar-me, entrando com os clarões do dia,
Ou furando a vidraça lado a lado,
Sempre junta com o sol que além radia.

Por isto eu libo o cálice dourado
Onde treme o licor da fantasia,
Até cair no chão embriagado,
E vela em sonhos, como sempre a via...

Na solidão atroz deste abandono
Como um sonho consola! Que não venha
Algum ditoso perturbar meu sono.

Não me desfaçam este sonho lindo...
Si quer Deus que eu dormindo os gozos tenha,
Passem de longe e deixem me dormindo!

 

DOCE TORTURA

Deu-se me assim, para roubar-me a calma
Pois, tendo-a dia e noite na minh’alma,
Não posso tê-la sempre nos meus braços!

Múcio Teixeira: Prismas e Vibrações.

I
Esta que tem o capitoso cheiro
Das flores e dos frutos sazonados
E um jardim luxuriante e feiticeiro
Que desabrocha em sonhos e pecados.

Meu Deus, porque foi ela a que primeiro
Escravizou meus beijos inflamados?
E fez do meu amor um prisioneiro,
Acorrentando-o em cárceres dourados?

Porque dos meus olhares atrevidos
Fez um rasto de luz para seus passos
E ramos de ouro para seus vestidos?

Ai! Quem me quebra deste amor os laços?
Pois, se a conservo sempre nos sentidos,
Bem poucas vezes tenho-a nos meus braços.

II
Ela pensou em mim, e não podia
Deixar de ser assim...Diz-mo este vento,
Que entrou de chofre pela gelosia
E me persegue rábido e ciumento.

Mas qual seria então o pensamento
Que lhe veio à cabeça? Qual seria?
De certo não pensou no meu tormento,
E, se o pensasse, como pensaria?

Seu coração pulsou com ansiedade,
Porém este pulsar que o traz cativo
Seria de rancor ou de saudade?...

Não sei... Só sei da dor que se me atulha
Ante a paixão que no meu peito altivo
Em sonetos e lágrimas abrolha!

III
Olha: quando eu morrer, e a sepultura
Para engolir-me escancarar as goelas,
Quero a mortalha mais formosa e pura,
A mais formosa e pura das capelas.

Amortalhado em beijos de ternura,
Com as grinaldas do amor que me revelas,
Hei de ter um caixão de doce alvura,
Que o choro teu enfeitará de estrelas...

Quando entrar o cortejo pesaroso
No cemitério branco, e eu for lançado
A um sepulcro entre os outros perfumoso,

Deixa-me entre os jasmins tranquilamente,
Pois terei a ilusão de ter-te ao lado,
E só assim ter-te-ei eternamente.

 

DESOLAÇÃO

Deixa-me só... Que a dor me sirva neste mundo
De companheira, e encha o vácuo de meu peito,
Que, para agasalhá-la é grande, alto e profundo,
Enquanto o próprio eco lhe é pequenino e estreito.

Deixa-me, pois... Irei, triste poeta errabundo,
A cantar e a gemer, sem pão, sem fé, sem leito.
É um oceano de pranto a água de que me mundo,
É feita de tojais a cama em que me deito.

Passa de longo a rir, e deixa-me deitado,
No chão, morto de fome, exangue, esfarrapado,
Mas a sonhar, que o sonho é o ouro do mendigo...

Não mates a ilusão celeste que me engana,
E me coloca além da podridão humana.
E me transforma em Deus, porque sonho contigo.

II
Ai quem me embebedou?... Que anjo lindo e sereno
Ergueu-me à boca a taça em que há esta bebida,
Que me enche o coração de gozos e venenos,
E fere-o, e após lhe banha em nardos a ferida?

Quem seria? Quem foi? Porque eu exulto e peno
Entre cantos e ais a delirar, querida?
Foste tu com teu riso e teu rosto moreno,
Que me mostraste céus e infernos pela vida.

Foi o aroma que sai de tuas mãos formosas,
Foi teu místico olhar que é um outro firmamento,
Cuja luz canta, afaga e cheira como as rosas...

Ai feiticeira! Eu bebo o vinho que me lanças,
Antes que se despenque aos ímpetos do vento
O rosai deste amor, tão cheio de esperanças.

III
Vai-te, pois, oh visão ideal do meu desterro...
Vai... Porque em teu lugar me fica o desengano...
São fundas e sem fim as trevas em que eu erro,
Como um barco sem leme entre os parcéis do oceano.

Num fúnebre caixão feito de bronze e ferro,
Vai um morto... Não tem para cobri-lo um pano
É meu amor... Ninguém assiste ao seu enterro...
Ninguém chora... E quem chora a morte de um tirano?

Ai! mas uma outra dor dentro de mim se agita...
O amor que eu sepultei renasce na saudade,
E esta saudade atroz meus prantos ressuscita...

E amo-te ainda mais do que te amava outrora...
Porque este meu amor e como a imensidade,
Onde há o horror da noite e os encantos da aurora.

 

OTELO
(Noite de febre)

Entrei, e vi um vulto horrífico e felpudo
De guarda no portão...
Era negro... Pensei ver um escravo mudo
Vestido de veludo
Naquele enorme cão.

Ao ver-me, levantou-se, e a cauda sacudindo
Ciumento no ar,
Entrou pelo salão feérico, rugindo...
Quando surgiste rindo
Com músicas no andar.

A sala fulgurosa, ardente e purpurina,
Cheia da luz do gás,
Lembrava o inferno atroz onde o pavor domina
Tu eras Proserpina
E eu era Satanás.

Quis, tremendo de amor, ciúme e desespero
Possuir-te por fim...
Mas ouvi um rosnar enraivecido e fero...
E o cão, como Cérbero,
Olhava para mim...

Tremi, e recuei naquele mesmo instante...
Vendo, cheio de dor,
O cão lamber-te os pés, como um perdido amante
E rosnar, anelante,
Babando-se de amor...

Tu cerravas de manso os olhos e o acolhias
Enquanto ele, a gemer,
Roçava a cauda negra em carnes tão macias
Que se tornavam frias,
A suar e a tremer,

De raiva estremeci como um leão ao vê-lo
Num fogo sensual,
Erguer-te a saia e após, ardente como Otelo,
Revolver teu cabelo
Com o focinho infernal.

Tinhas febre, e teu cão ditoso delirava
Cheirando-te a nudez.
Pois teu vestido branco ao chão já se arrastava...
Tu eras sua escrava
E ele teu rei talvez.

Caíste a soluçar, e o cão libidinoso,
Como um sátiro vil,
Mordeu-te, e saboreou-te o amor quente e glorioso,
Espojando-se ansioso
Em teu corpo gentil.

Ao ver-me, arreganhou os dentes com loucura
Rosnando feio e atroz.
Tem receio do amor ardente que tortura,
Oh Desdêmona pura
Teu Otelo feroz...

Pois, quando ele se ergueu, na sala um medo interno
Senti nesta alma vã.
E vi-te Proserpina e ao teu Cérbero terno
Expulsando do inferno
A mim, que sou Satã.

 

O LADRÃO

Sei de um ladrão genial e desgraçado,
Cuja vida foi uma ventania
Rugindo sobre um mar encapelado...

Foi a séculos isto, — quando havia
Em toda parte ríspidos atletas
E prodígios de arte e valentia...

Quando as rainhas tremulas e inquietas
Recebiam nos leitos perfumados
Os escravos, os pajens e os poetas...

E os reis, cheios de tédio e embriagados,
Davam os corpos nus das concubinas
De presente aos leões esfomeados...

Numa terra de fontes cristalinas,
Nesse tempo de bardos e de lendas,
Ele viveu tendo a pior das sinas.

Do olhar lançava cóleras tremendas,
Porque sua alma era uma tempestade
E seus dias as noites mais horrendas...

Misto de força, crime e heroicidade,
Ele era como as nuvens abrasadas
Que às vezes correm pela imensidade.

Assaltava os viajantes nas estradas,
Quer no horizonte aparecesse à aurora,
Quer roncassem tufões e trovoadas.

Trajava um manto negro, e, a toda hora,
Tendo à cinta um punhal ou um cutelo,
Vagava só pela floresta afora,

Onde, como um titão glorioso e belo,
Se queixava da sua desventura,
Arrancando punhados de cabelo.

Também seu peito abria-se em ternura
Como se abre o luar limpo e clemente
Por entre as sombras de uma noite escura.

Chorava, mas altiva e heroicamente,
Da mesma forma que o profundo oceano
Chora de encontro ao areai candente...

Até lembrava um cedro soberano
Desgalhando-se todo ao furioso
E feroz furacão do desengano.

Fora um príncipe audaz e poderoso,
Que vencido fugiu pela floresta,
Onde se fez bandido perigoso...

E então, com a violência de uma besta
Lançada por um deus, o seu destino
Fê-lo andar numa vida desonesta

De ladrão, de guerreiro e de assassino,
Que, depois de matar o viajante,
Lhe roubava o que tinha de mais fino:

Desde o cavalo ardego e espumante
Aos sapatos dourados, e às radiosas
Joias, e à espada tremula e espelhante.

Carregado de coisas preciosas,
Ia guardá-las numa furna imensa,
Onde havia riquezas fabulosas.

Mas olhava com grande indiferença
Esta enorme fortuna amontoada
Que não valia a sua antiga crença.

E, levantando a fronte iluminada,
Erguia a mão nervosa, procurando
O pescoço cortar com a própria espada.

Olhava o céu como um algoz nefando...
E uma vez tais apostrofes sinceras
Do opresso coração foi arrancando:

 — Oh Deuses imortais de outras esferas,
Porque não me apagastes a lembrança
Do bem, se eu tinha de viver com as feras?...

Se a ilusão, que hoje em lágrimas descansa,
Tinha de fenecer, antes na vida
Jamais me aparecesse esta esperança...

Eu tinha uma coroa defendida
Por legiões de vassalos — e que é de ela?
Quem ma arrancou da fronte decaída?

Guardava-a com fervor, porque era a estrela
Que iria refulgir no Armamento
De uma cabeça tentadora e bela...

Cabeça de mulher, que é meu tormento,
Quando foi ontem meu prazer mais puro...
Funesto amor, que eu descrever não tento...

Antes eu fosse o verme do monturo,
Antes jamais eu visse o céu dourado
Se mais tarde o veria tão escuro.

Hoje vivo a cumprir meu triste fado...
Sou ladrão e assassino porque quero
Ganhar roubando o bem que me hão roubado.

Ah! mas o meu destino é tão severo
Que toda esta riqueza é diminuta
Para abrandar meu grande desespero.

Que sorte ingrata, impiedosa e bruta!
Deuses, porque não morro, se não posso
Resistir à inclemência desta luta?

O tesouro que tenho é todo vosso...
Ouro, sedas, rubins, prasios, diamantes,
Dou-vos, por ver se meu pesar adoço...

Estas lindas riquezas fascinantes
Que para ter a crença, o amor e a glória
Arranquei dos cansados viajantes,

São uma graça irônica e ilusória, — 
Pois não me podem dar o bem perdido
De que hoje tenho apenas a memória.

Já que não atendeis o meu pedido,
Fazei-me como a pedra dos caminhos,
Furai-me os olhos e tapai-me o ouvido.

Se não tenho esperanças e carinhos,
Também não tenha vida que este mundo
Por uma rosa dá milhões de espinhos.

Que este ferro... (dizendo-o, furibundo,
Alevantou a espada contra o peito,
Como querendo penetrar-lhe o fundo).

Que este ferro cruel com que hei desfeito
Tanta vida, tingindo-o de escarlate,
Me entre no coração firme e direito!

Que eu, nunca esmorecido no combate,
Matando-me, em fim ache o que buscava.
Quem a tantos matou por fim se mate!

Ah! quando os viajantes assaltava
Mal sabia que só a morte amiga
Me daria o que o roubo me não dava...

 — E, com a força da energia antiga,
Crava a espada no peito e cai risonho,
Como um herói, exausto de fadiga,

Que dorme, e tem o seu primeiro sonho.

 

FANTASIA TURCA

Ontem, a noite baixando,
Dei um passeio a Turquia...
Ia andando? Ia voando?
Nem sei mais como é que eu ia.

Só sei que sonhava, quando
Me achei — e isso me arrepia!
Quieto e ajoelhado, rezando
Numa mesquita sombria.

De fora o sói penetrando
Doirava a vidraçaria,
E, todo o templo enfeitando,
Os seus cristais acendia...

Em cima de um plinto um bando
De imagens resplandecia,
E meigo, de rosto brando,
Entre elas Maomé sorria.

A sua barba espumando
Era uma onda alvadia
Que, a sua face prateando,
De arminhos a revestia.

Tinha a túnica ondulando,
E um cetro na destra fria
A cujo celeste mando
O mundo inteiro tremia.

E vi um velho pregando
Ao manso povo que ia
Contrito, balbuciando
Rezas que eu não entendia.

Mas entre os crentes rezando
Vi uma turca... Dir-se-ia
Ser uma deusa sonhando
Ou ser a Virgem Maria...

Fui-lhe a graça adivinhando
Debaixo da nevoa fria
Do véu triste e venerando
Que a sua face escondia.

Ao vê-la, de fé aliciando,
O próprio Maomé tremia
Da parede onde, radiando,
Por entre nuvens se erguia.

Ante ela fui-me ajoelhando,
E todo me estremecia...
Mas, o seu vulto fitando,
Quem é que não tremeria?

E eu, a reza simulando,
Perguntas mil lhe fazia,
Quando ela disse, corando,
Que não me pertenceria.

Enquanto ela ia falando,
Eu a olhava e não a ouvia,
Pois lhe ia o olhar escutando...
O olhar que tudo dizia.

Depois fugimos, voando
Em dois cavalos... O dia,
Que estava bruxuleando,
Para nós amanhecia.

A bela foi-me enrolando
Num manto que me envolvia,
De sob o qual, faiscando,
A cimitarra pendia.

Deu-me um gorro em que, bailando,
A meia lua fulgia,
E onde, às aragens arfando,
Branca pluma estremecia.

(... E nossos corcéis cortando
Desertos... E a fantasia
Ao céu nos arrebatando
Num carro de pedraria...)

Cantando, rindo e chorando,
Cheio de amor nos seguia
Como escravo miserando
O vento que então corria.

Ela disse-me ofegando
Que a amava com idolatria
Abdul-Amir, rei nefando...
E quem nos ampararia?

Fugimos, pois, escutando
Uma brutal gritaria:
Vozes, cometas bradando,
Tropel de cavalaria.

Mas paramos defrontando
Uma tropa luzidia,
Em frente a qual, trovejando,
O rei nos aparecia.

Pobres de nós! enfrentando
O ciúme do rei, que ardia
Como um vulcão estourando
Aos uivos da ventania.

Ante o combate execrando
Que em breve se travaria,
Alá! ela ia clamando...
Jesus! eu clamando ia...

Minha dama palpitando
De susto, e eu de valentia...
E em frente a nós, espumando,
O rei urrava e rugia.

Da cimitarra puxando,
Avancei com galhardia
Mas eles foram cortando
A inábil mão que a tangia.

Grito! e desperto gritando
À dor que o golpe trazia;
E então, talvez delirando,
Restos do sonho inda eu via:

A tropa ia desfilando
Longe, e pela gelosia
Em brumas se desmanchando
O rei com a dama fugia.

 

MISERICÓRDIA!

Ai! meu amor, se é tanta
A paixão que por ti minh'alma encanta,
Porque é que repeliste meu carinho,
Depois de eu ter-te aos braços extasiado,
Como o condor que, aos céus arrebatado,
Sofre ao ver-se tão alto e tão sozinho!...

E então encolhe as asas,
E, tendo os olhos quentes como brasas,
Atira-se do céu, num doido voo,
E rola, e as penas quebra e se ensanguenta,
E cai, e sobre as pedras se arrebenta...
Assim fazes comigo e eu te abençoo!

Quando tu me disseste:
— Não! Eu beijei, chorando, a tua veste,
E curvando, entre ânsias, o pescoço,
Ajoelhei-me a teus pés como um cativo
E te pedi, então, um lenitivo
Qual um rei que se vê num calabouço.

E apartei-me sentindo
Profunda mágoa, ao ver teu rosto lindo
E teu colo cheiroso,
E teus seios arfantes e trementes,
Como dois anjos maus e impenitentes
De olhos de fogo e olhar voluptuoso.

E tive então saudade
De tua carne moça... e quem não há de
Gemer e soluçar de desespero
Vendo o leão de tua juventude
Abrir a goela num rugido rude
Erguendo o dorso cabeludo e fero?

O teu lençol cheirava,
A tua carne de onça palpitava
E palpitavam de ânsia as tuas pomas.
Dir-se-ia, formosa, que tu eras
Um rio de delícias e quimeras,
Um oceano de aromas!

Alevantando o braço,
Segredaste-me: Parte! e uns dedos de aço,
A mão de ferro de um sofrer eterno,
Senti de encontro a um peito que te adora
Ó minha noite escura, ó minha aurora,
Meu céu e meu inferno!

E parti soluçando,
Como um cão que de noite fica uivando
Ao ver a lua refulgir serena...
E, como um louco, vagueei nas ruas,
Tendo ante o olhar as tuas formas nuas
E teu amor de hiena.

E comecei em sonhos
A ver quadros risonhos,
Ora tu me surgias de outras plagas
Sobre uma concha, entre corcéis de espuma,
E não havia diferença alguma
Da Vênus grega a aparecer das vagas...

Outras vezes, te via
Como a cabocla tremula e bravia,
Cheia de penas, o cocar à testa,
O arco e a flecha nas mãos, entre os rumores
Das árvores, das feras e das flores,
Delirando ante a Deusa da floresta...

Depois, vi-te num trono,
Coroada a fronte em languido abandono,
E junto as mãos o cetro imorredouro.
E assim nem vias o sofrer do pobre
Que de sua alma as ilusões descobre
Para cobrir-te os pés de rosas de ouro.

Assim, sempre a encontrar-te
Aqui, ali, além, por toda a parte,
Pude ver, delirando,
A mim e a ti, a nós, numa carruagem,
Arrebatados à ideal paragem,
Viajando e sonhando!

E pelas ruas cheias,
Eu, com as minhas ideias
E sonhos, caminhei como um vadio...
E acordei do delírio de repente,
E, ao não te ver, sob este sol ardente
Estremeci de frio!

Assim, ao duro açoite
Do tédio, eu vi a noite
Surgir, e vi a aurora, e vi o dia,
E de novo outra noite e outra alvorada,
E outro sol, e outra lua, e não vi nada
Que me trouxesse aquilo que eu queria.

Ai! não me digas nunca
Parte! pois... sendo assim, a garra adunca
Da desgraça far-me-á gemer de mágoa,
Sê tão clemente e boa quão formosa...
O céu, que é tão brilhante, à flor sequiosa
Jamais negou a sua esmola de água.

Tem piedade e clemência
Para este amor que é a luz de uma existência
Cruel paixão que é o céu que além diviso...
Misericórdia à dor que me tortura,
Pois este amor, que é minha desventura,
E mais que o paraíso.

Tem dó desta desgraça!
Compaixão para angústia que trespassa
Meu coração aflito!
Sê compassiva ao meu ingrato fado,
O meu formoso anjo amaldiçoado,
Meu demônio bendito!

 

DESABROCHANDO

E muito moça ainda... Mesmo agora
Lhe nasce a flor dos seios inflamados.
Seus lábios purpurinos como a aurora
São de beijos e risos constelados.

Face infantil onde a alvorada mora,
Dando-lhe uns tons brilhantes e rosados.
Olhos, cujo fulgor tudo colora
De lampejos trementes e dourados.

Parece uma ave que se alou, há pouco,
Desdobrando, em suave desarranjo,
Um canto alegre, descuidado e louco...

E um novo céu no brando olhar se esboça
Desta criança transformada em anjo,
Ou deste anjo transformado em moça.

 

AS ÁRVORES

Junto ao rio que geme, as árvores frondosas
Se erguem como legiões de monstros sofredores,
Cujas pesadas mãos, torcidas e rugosas,
Lançam na água e no chão  — folhas, frutos e flores.

Seus pés tortos e heris o rio vai roendo,
Os vermes infernais chupam-lhes as raízes,
As parasitas vão pelo tronco crescendo
Desses grandes heróis cheios de cicatrizes.

O céu, o vasto céu, às vezes docemente
Lhes derrama os clarões do puro sol de maio...
Outras vezes, porém, dá-lhes um sol ardente,
Quando não as destrói com o furacão e o raio.

Belisca-lhes a ave os saborosos frutos,
A lagarta cruel as folhas lhes estiola,
Enquanto a cobra vil, em seus galhos hirsutos,
Silva, chata e hedionda, e entre os ramos se enrola.

A onça atrevida e má vem de distante, aos roncos,
Com as garras de punhal feri-las e arrancá-las...
E pelos arranhões, como o pranto dos troncos,
Vai pingando a resina em lágrimas de opalas...

Surge, longo, o verão e despe-lhes os galhos,
Que, quais braços senis de grandes esqueletos,
Apontam para o céu, como a pedir orvalhos...
E elas lembram então fantásticos Hamletos...

Assim, à maldição do sol e a pedir chuvas,
Sem flores a brilhar nos ramos retorcidos,
Ficam tontas de dor, como se fossem viúvas,
Cujos filhos e pães morreram com os maridos.

No entretanto, apesar de tão cruéis tormentos,
O rio ainda lhes rói os pés, ainda as formigas
Lhes abrem na raiz veredas e aposentos,
Onde vão descansar das lutas e fadigas.

Vem o inverno a roncar tufões e trovoadas...
Elas não têm do sol as túnicas brilhantes,
Porém, ainda são roídas e chupadas,
Por lesmas e répteis e larvas nauseantes...

Mas vem surgindo além a primavera... Os campos
Já se enchem de canções e ninhos; a espessura
Já é dourada e azul; os tontos pirilampos
Ardem; e o prado então se cobre de verdura...

A água do rio está cantando e radiando...
Parece até que brilha um fogo dentro dela...
O colo a terra vai de flores adornando,
Como noiva ideal para ficar mais bela.

As árvores então se enchem de folhas, onde
Surge a flor e depois o fruto, e após o ninho...
E se delas no tronco a lesma vil se esconde.
Pelos seus ramos voa e canta o passarinho.

São as filhas do amor do sol com a primavera...
E, à sua fresca sombra, em dias de mormaço,
Espoja-se de gozo a fatigada fera
E dorme o viandante ao peso do cansaço.

Verdes, cheias de sol, de ninhos e grinaldas,
Erguem-se entre o fulgor de colossal tesouro,
Como reis triunfais vestidos de esmeraldas,
Tendo incrustado um sol nas armaduras de ouro.

Mas a abelha revel rouba-lhe das fulgentes
Flores o mel; o verme os frutos lhes consome...
E, aos seus pés, em caixões urrantes e gementes,
Raiva o rio a rugir como um leão com fome.

E quem as vê assim — as árvores enormes,
Povoadas de canções, flores e borboletas,
E pompeando no ar uns mantos desconformes,
Mal sabe que elas são uns míseros calcetas.

Ah! Quem as vê assim, tão cheias de riquezas,
Erguendo um cetro verde entre as florestas bravas,
Supõe que está a ver um grupo de princesas,
Quando elas não são mais do que pobres escravas.

Vivem a trabalhar para o prazer alheio,
Para os vis animais, sendo o pior o homem.
A parasita audaz faz-lhes cancros no seio,
E elas racham-se após que os bichos maus as comem.

Servem de refrigério aos males da desgraça.
Por isto Deus as põe sempre num chão maldito
Nos rios, ou então nas matas onde passa
A onça, e a cobra silva, e o vento voa aflito...

Há no gemer do rio uma agonia estranha,
E tem-na o furacão e as matas seculares...
É para consolar uma angústia tamanha
Que as árvores leais erguem a mão aos ares.

Ao ver-vos a chorar folhas, frutos e flores
Sobre a angústia do rio, em transes de piedade,
Comparo-vos ao poeta em cujas grandes dores
Acha consolo e amparo a dor da Humanidade...

Os poetas, como vós, no verão ou no inverno,
Ou então na primavera, em lutos ou em glória,
Tornam menos pesado o sofrimento eterno,
E enchem de aroma e encanto as podridões da História.

Arvores, abrandais a imensa dor dos rios
E até dos animais, matando-vos ufanas...
Também com o sangue nós lançamos amavios
Sobre a eterna caudal das misérias humanas.

 

ATRAVÉS DUNS OLHARES

Penso então ver um rei triste e dolente
Que, despojado de laureis e trono,
Ergue as mãos, declamando tristemente
A história do seu trágico abandono.

Pobre rei solitário, que vagueias
Entre os horrores de uma noite escura,
Porque te somes nas fatais areias
Do infinito deserto da loucura?

Que estranha dor palpita em teu semblante
Como um grande crepúsculo mortuário?
Porque feres os pés, meigo viajante,
Na cruel ascensão deste Calvário?

E ele caminha, pálido e celeste,
Levando às mãos o cetro da agonia
E assim recorda um fúnebre cipreste
Onde o vento soluça uma elegia.

Pelo seu negro manto esfarrapado,
Outrora cheio de ametistas e ouro,
Fulge todo o seu sangue derramado,
Brilham todas as águas do seu choro.

No seu rosto cavado, porém moço,
Se estampa o formidando desatino
De quem se vê num frio calabouço
Preso pelas correntes do Destino.

Que rei é este? Porque sofre tanto?
Porque deixou a corte predileta,
E anda agora sofrendo como um santo,
E a falar à amplidão como um profeta?

Que grande amor lhe causa esta tristeza
E lhe enche o peito-de saudade e mágoa?
Deve ser muito linda esta princesa
Por quem seus olhos vivem rasos de água...

Então a paisagem se ilumina,
As sombras fogem todas uma a uma...
E surge uma visagem peregrina
Feita de sonhos cândidos e espuma.

Mas esta doce e languida rainha
Deve reinar em uma terra ignota.
Qual foi o berço azul desta andorinha?
Qual o mar que embalou esta gaivota?

Porque seus lábios cheios e formosos
Se entreabrem em ânsias invisíveis,
Como quem busca sonhos mentirosos,
Como quem tem desejos impossíveis?

Julga talvez que tem aos pés, gemendo,
Um atleta de fama merecida,
Que ela a sorrir vai pelo amor vencendo,
Embora esteja pelo amor vencida.

E então eu penso ver uma batalha
Onde, em meio a gemidos e lamentos,
Se ouve o ronco rouquenho da metralha
Levado para o espaço pelos ventos...

E o céu se enche de sombras e desmaios
Soltando a lava dos tufões malditos...
E o espaço se abre blasfemando raios,
E o vento corre estertorando gritos!

E, enquanto na amplidão há tais horrores,
No chão da guerra cheio de estilhaços,
Gemem heróis, em bruscos estertores,
Loucos de fúria retorcendo os braços.

Mas, depois, esta cena pavorosa
Desaparece, e, atônito, diviso
Uma leve paisagem cor de rosa,
Miniatura ideal do paraíso.

E há flores a noivar pelos caminhos,
E poemas de afago pelos ramos,
Onde, como romãs, palpitam ninhos
E, como ninhos, cantam gaturamos.

Uma fada de lábios inocentes
Passa a cantar com astros na cabeça,
E à sua voz angélica e dormente
Não existe martírio que apareça.
E tenho sonhos de ouro... Mas apenas
Cerra os olhos que são os meus delírios,
Suporto sem gemer todas as penas,
Sofro o mais horroroso dos martírios.

Pois estas paisagens tão diversas,
Ora cheias de luz, ora de abrolhos,
Eu as vejo, tranquilas e dispersas,
Quando contemplo, extático, os teus olhos!

 

A VITÓRIA NO AMOR

No paraíso, Adão contempla, extasiado,
O mistério sem fim dos tristes olhos de Eva,
E neles vê brilhar um céu nunca sonhado,
Ora cheio de sol, ora cheio de treva.

E ela, que tem no corpo um outro paraíso,
Melhor que este que Deus lhes dera por encanto,
Olha a Adão, e este olhar é doce como um riso.
Fala lhe, e a sua voz é leve como um canto.

 — “Olha as flores e o sol... Porque elas estremecem
Ante a glória solar que doura a terra inteira?...
Porque é que os seios meus palpitam e florescem
Como, aos beijos da luz, floresce uma roseira?

Tudo canta... No céu, na terra e sobre as águas
Ouvem-se hinos de amor, palpitações, anseios...
E eu reprimo no seio um turbilhão de mágoas
Para não perturbar os ímpetos-alheios:

“Sinto vencer-me o corpo uns mórbidos cansaços,
Um desejo, uma febre, um fogo, uma ânsia louca...
Porque é que temos nós a doce cruz dos braços,
A alvorada do olhar, e a papoila da boca?”

Diz-lhe Adão:  — “O Senhor fez-nos assim, querida,
Para, que, desprezando o tédio negro e fundo,
Pudéssemos fugir para outra melhor vida,
E, assim, voar ao céu, não saindo do mundo.

 Ai que ânsia! que loucura!” E isso dizendo, tomba
Suspirando, aos pés de Eva extática e surpresa...
E há pelo ar vaporoso um arrulho de pomba,
E há um desabrochar em toda a natureza.

E contemplam-se os dois, estremecendo. E o veio
Da água põe-se a cantar pela campina afora...
E a flor pergunta: — Que ave entoa este gorjeio?
E a ave pergunta: — De onde é que vem esta aurora?

Agora falam baixo, ao perfumado abrigo
Das folhas..... Quadro tal, quem poderá pintá-lo?
Diz Adão: — Ouço Deus, quando falo contigo!...
Responde Eva: — Ouço Deus, quando contigo falo!...

E na glória ideal da carne moça e nua
Abraçam-se a tremer, ante a inveja das flores.
Foi então que no céu desabrochou a lua,
Protetora celeste e eterna dos amores.

Eva suspira e geme em ânsias e delírios,
Crispando as finas mãos feitas de violetas...
E, pensando ver nela um prado todo em lírios,
Beijam-na, a esvoaçar, bandos de borboletas.

Diz Adão em segredo: “Eu não vejo os abrolhos
Ao ver os olhos teus, e ao sentir o teu beijo...
E Eva diz-lhe, a ansiar: “Quando vejo os tons olhos,
E beijo os lábios teus, o firmamento vejo”.

Então o doce olor das flores, a inocente
Frescura dos vergéis pelas manhãs cheirosas
Se encarnavam no corpo ideal de Eva tremente,
Que era como um rosai todo cheio de rosas.

E aves, flores, e terra, e todo o Armamento,
Eram como o interior de uma encantada igreja,
Onde se celebrava o santo sacramento,
Que aos ninhos e aos jardins causava ciúme e inveja.

Diz Adão: “Somos dois arcanjos condenados
A viver sem gozar, tendo o gozo tão perto...
Amemos, ainda que sejamos castigados
Por termos povoado o coração deserto...

As aves têm um ninho, e o paraíso apenas
É um abençoado e perfumoso ninho.
Se Deus para os vergéis criou as açucenas,
Criamos para nós as flores do carinho.

Amemos!” Eva cai-lhe aos pés, ébria de gozo,
Arfando, a estremecer, quase desfalecida;
E então viram no céu mais amplo e luminoso
Uma reprodução pronta e fiel da vida.

E o campo se povoou de flores e de asas,
E recamou-se o céu dos astros mais risonhos,
E a terra estava a arder como um vulcão em brasas,
E os dois tinham à fronte a loucura dos sonhos.

E as aves, no frenesi ardente da nevrose,
Cantavam, ao ouvir a música do beijo...
Foi assim que se fez, em louca apoteose,
A sagração do Amor, da Carne e do Desejo!

E assim o amor venceu a Deus, o rei dos entes.
Diante de quem o mundo e as gerações se somem,
Transfigurando dois arcanjos inocentes
Em dois diabos vis: — uma mulher e um homem.

 

POR UM POETA
(A Carlos D. Fernandes)

Havia nesse livro, que eu em uma hora li sem funda
atenção, um defeito capital consistente na dedicatória,
que é feita a uma espécie de ceboleiro de letras, que dá
pelo nome de Múcio Teixeira.
Ora, eu já conhecia de longa data esse impertinente
unicórnio do Parnaso; sabia-lhe a psicologia tenebrosa...

(De um folhetim de Carlos D. Fernandes sobre Francisco Mangabeira)

Poeta! beijo-te as mãos cheio de assombros.
Vendo como reluz o grande manto
Feito de sóis, que me lançaste aos ombros...

Venho curvado e trêmulo, que é tanto
O peso da coroa constelada
Que me puseste à fronte por encanto...

Que a tua alma divina e vitoriada
Se enterneça, pois vou contar-te agora
De um grande poeta a vida amargurada:

Imagina um leão, temido outrora,
Quando a juba, frenético, eriçava,
Rugindo e urrando pela mata em fora...

E então as outras feras humilhava
Pela força e arrogância e formosura
Com que seus inimigos derrubava.

Imagina-o depois, entre a amargura:
Crispa as garras leais, e, perseguido,
Vai abrigar-se na floresta escura,

Sem soltar um lamento ou um gemido
Que denuncie a mágoa que consome
Seu grande coração incompreendido.

Assim este poeta, cujo nome
Foi um canto guerreiro de vitória
Para os que tinham do Ideal a fome.

Ai! existência rápida e ilusória,.
Que hoje os farrapos da miséria lanças
A quem lançaste as clâmides da glória!

Porque enches de tristeza e de provanças
O coração genial deste poeta,
Que enchente já de crenças e esperanças?

Conheci-o a arrostar a sorte inquieta,
Como o nauta o furor dos elementos.
Com a indiferença heroica de um profeta.

É que ele sabe que o furor dos ventos
Passa, e logo depois fulgem mais puros
Outros sóis em mais claros firmamentos.

Ele sabe que a dias tão escuros
Sucede o almo arrebol sempre sonhado
De dias imprevistos e futuros...

Ai, pobre sonhador incontentado,
A quem o desespero do presente
Quer arrancar os louros do passado!

Bem sei que o seu espírito não sente
Dor alguma por ver como e que o assalta
Uma legião homérica e valente...

Sua afoiteza de ontem não se exalta
E, se ao peito lhe sobra estoicismo,
Por sua vez a submissão lhe falta.

Abençoado seja este heroísmo,
Que faz com que ele, impávido e sereno,
Fite o enganoso e traiçoeiro abismo.

E assim recorda um outro Deus heleno
A cuja enorme audácia todo mundo
Era estreito, misérrimo e pequeno.

É que ele tem o coração tão fundo
Como o oceano, e é, como ele, bonançoso
Às vezes, e outras vezes iracundo...

E, como o mar no leito misterioso,
Guarda monstros cruéis e ideal riqueza
Seu grande coração maravilhoso.

É que nele o veneno da tristeza
Se destrói ante a força da coragem,
Que o torna quase igual à natureza.

Sua vida inconstante é uma voragem,
Onde o martírio vive sempre alerta
E a ventura desliza de passagem.

Até recorda uma janela aberta
Por onde entra o tufão do desatino,
Que vem roncando da amplidão deserta...

É um Prometeu indômito e divino,
Que sorri do furor com que o magoa
O abutre negro e vil do seu destino.

É um doce rei que sem a ideal coroa,
De que já foi o decantado dono,
Um vivo canto de triunfo entoa...

Firma-se em seu valor, como num trono,
E, da injuria fazendo um cetro augusto,
Fica maior, ficando no abandono.

Assim o cedro válido e robusto
Ri-se do furacão que, blasfemando,
Se agita em roda do seu tronco adusto...

E é só por isso que o amo desde quando
O encontrei sob o céu de minha terra,
Contra os ursos da intriga pelejando...

E então pude sondar a luz que encerra
Seu coração repleto de virtude,
Como de paz o cimo de uma serra.

Encontrei-o uma vez, hediondo e rude,
Junto ao leito de um filho que morria,
E seus Sonhos levou num ataúde...

E era tão negra e trágica e sombria
A dor, a que ele estava acorrentado,
Que o não esqueci mais desde esse dia.

E o vejo qual navio abandonado
A chuva, ao sol, ao dia, à noite e ao vento,
Tendo ao mastro possante e inabalado

A bandeira do amor e do talento.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

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