4/09/2023

O fruto proibido (Conto), de Rodrigo Paganino

 



O FRUTO PROIBIDO

Adeus, Rosa! Adeus! E adeus para sempre!

— Ai! para sempre, meu Estevam?

— Que queres que eu faça, dize?

— Sei-o eu, por ventura? Mas partir... e o mar?... É tão bravo!

— Não só no mar há bravezas, na terra corre-se risco de maior: se eu ficasse!...

— O que fazias?

— Ou metia uma navalha no Januário ou dava um tiro nestes miolos.

— Jesus, homem, tentação do demônio é essa, cruzes! Parte, parte, meu Estevam, mas não te esqueças de mim.

— E tu?

— Eu! Sempre.

— Adeus!

— Não te verei ainda amanhã?!... Antes do embarque?...

— Não, o que há de ser seja, quanto mais estiver com demoras, mais me faltará o animo. Adeus Rosa, sê feliz.

— Adeus, Estevam, volta breve.

— Voltar para que? Para te ver entregue a outrem, que virás a amar, se é que o não amas agora?... Para presenciar essa vida de felicidade, que é a minha desgraça, o meu tormento; para compreender que me iludiste, quando me juraste um amor eterno! Amores eternos de mulher, como as flores deste nome, que duram meses, e que os primeiros sopros do inverno derrubam!...

— Deus te perdoe a injustiça que me fazes!

— Para que casas?

— E a maldição de meu pai?... Meu pai amaldiçoava me Estevam.

— E o nosso amor!

— Fica-me no coração, há de me matar, descansa.

— Antes tu morresses...

— Oh! Quem dera!

— Não falemos mais em semelhante coisa. Para que hás de dissimular ainda?

— Se eu pudesse rasgar este peito, que me oprime, se pudesse arrancar-lhe este coração que é teu, e o há de ser sempre, se te pudesse mostrar como ele padece, não duvidarias de mim.

— Queres que te agradeça talvez, queres que te bendiga não é assim, queres que estime saber, que pertences a outro, não é verdade?

— Não, Estevam, quero que tenhas dó de mim, e que me esqueças!

— Esquecer-te, eu! E a minha existência de até hoje, que foi sempre tua, e a minha fé no futuro, que estava em ti, e a minha vida toda, que te pertence; queres que esqueça tudo?... Se não fora minha mãe!...

— Tua mãe!

— Sim, minha mãe, pobre e santa velhinha, que não tem no mundo mais do que eu, que lhe queira e que a ampare. Minha mãe, que eu mataria se morresse; minha mãe, a única que me tem tido amor na terra!...

— A única! Talvez...

— Olha, Rosa, escusas de fingir, para quê? Não vale a pena. Amanhã por estas horas já estarei daqui bem longe. Só o que te peço, como um último favor, como uma esmola, é que te lembres de minha mãe, que lhe enxugues as lágrimas, que chores com ela,— não te há de custar muito, sabes tão bem iludir! — e que depois uma e outra vez te lembres de que te amei... e muito.

— Pela alma da minha te juro, há de ser minha mãe.

— Obrigado, Rosa. Adeus!

— Não me queiras mal.

— Não poderia, ainda que quisesse.

— Não queiras, Estevam, não, que to não mereço, perdoa-me e... não te esqueças de mim!... Meu pai, que nos vê, foge Estevam, ele encaminha-se para este lado.

— Adeus!

Passava-se este dialogo no pátio da quinta de Vale do Freixo no dia de São João, ao amanhecer.

Houvera um bailarico de primor, a que tinham concorrido os rapazes e as raparigas das vizinhanças e com eles os pais, as mães e os tios.

Era um poder de gente, que passara a noite a cantar, a dançar, a pular, a rir, a comer, a beber, a respirar alegria: a provar que os cuidados lhes não pesavam na consciência, nem o mau humor no espírito.

Fora um dos mais brilhantes bailaricos de que havia memória.

O dono da quinta pusera uma grande meda de vides à disposição da fogueira, e uma pipa de vinho às ordens dos concorrentes; mandara cozer varias amassaduras de pão, frigir um por aí além de peixe; transplantara dois alfobres de alface para quatro alguidares, juntando-lhes também quatro cestos vindimos com a fruta do tempo, e sobre tudo a boa vontade e o contentamento a resplandecerem-lhe na fisionomia, convidando todos a divertirem se.

Infelizmente, porém, nem todos podiam estar alegres. Naquela multidão buliçosa duas criaturas havia tão tristes, tão atribuladas, que cortava o coração olhar para elas: parecia que tinham vindo assistir, não a uma festa, mas a um enterro.

E na verdade, ali enterravam vinte anos de esperança e de amor: naquela noite se viam em despedida, e só Deus poderia saber se essa despedida seria eterna.

Rosa e Estevam tinham vivido juntos desde crianças e tinham-se acostumado a amar, antes, ainda antes de saberem o que era amor. Conheceram o que era quando começaram a padecer; porque é no sofrimento que ele desabrocha, como as rosas de mais apreço nos seus berços de espinhos.

Juntos balbuciaram as primeiras palavras, juntos aprenderam a ler, juntos iam à escola, juntos voltavam às tardes, e juntos passavam as noites brincando no campo e discorrendo alegremente, como duas avezinhas chilrando próximas na mesma árvore.

E encontra-se o que quer que seja de gorjear de pássaros no palrar infantil, que borboleteia de assunto em assunto, soltando de quando em quando notas agudas de admiração, ou modulando trilos narrativos de tanta viveza e simplicidade.

Disseram em comum as primeiras orações, e muitas vezes os surpreendia o passeante enternecido, de joelhos e mãozinhas erguidas para o céu, repetindo em coro: — "Perdoai-nos, Senhor, as nossas dividas..." dividas, de um ninho surpreendido entre as giestas, ou de uma inocente mentira a denunciar-se logo pelo rubor da candura e pelo borbulhar de duas lágrimas de arrependimento, se por ventura os interrogavam.

E que lindo grupo, quando estudavam juntos a lição do mestre, ou a reza que a mãe lhes ensinara, sentadinhos no limiar da porta, um repetindo entre incertezas e duvidas; outro escutando com toda a atenção e com ares concentrados, como quem compreendia a gravidade da sua posição de professor: mas ambos a reverem-se um no outro e a casarem torrentes de luz, que lhes chispavam daqueles olhos brilhantes, vivos, buliçosos, úmidos de alegria e languidos de sentimento.

Com o decorrer dos anos não houve remédio senão ir gradualmente rareando aqueles doces encontros. Demais, tendo morrido a mãe de Rosa, esta ficara governando a casa e em companhia de seu pai, que não era para graças. Continuaram a ver-se, a falar-se; mas às furtadelas, e quase que às escondidas.

Rosa crescera, e ao desenvolver-se tinha ganho cada vez maiores perfeições. Fizera-se mulher, mas mulher tão formosa, tão delicadamente formosa, que confortava a alma admirá-la.

Não parecia do campo, nem mesmo da terra.

Devem ser assim aquelas fantásticas visões, que, aljofradas por milhares de perolas do orvalho da manhã, se esboçam na atmosfera ao romper do sol por entre as nevoas da aurora.

Delicada flor, que a mais terna aragem encurvava, parecia quebrar-se no andar. Resvalava pelo chão, deixando apenas uma suave fragrância a denunciar a sua rápida passagem, e uma indefinida sensação na mente dos que a viam.

Por aquelas vizinhanças não havia notícia de criança tão mimosa.

Era branca; mas branca como o alabastro e como os lírios, e na suave palidez da fisionomia lia-se o sentimento daquela organização franzina e nervosa. Os cabelos negros como o azeviche, acetinados e brilhantes, poder-lhe iam servir de manto, quando os desatasse ondeando pelas costas abaixo e dobrando ainda no chão; os olhos como dois diamantes negros, sempre velados por uma doce melancolia rasgavam-se-lhe no meio de duas pálpebras escurecidas pelas sobrancelhas finamente desenhadas, e orladas dumas pestanas compridas e densas, que davam ao olhar, já de si bem triste, mais tristeza ainda amortecendo-lhe o brilho, quando raramente o iluminava.

Quem atentasse naquele rosto sempre sentido, sempre cismando como que noutro mundo, sempre voltado para o céu, sentiria, se de todo não tivesse a alma cerrada à compaixão, uma lágrima de sincera piedade cair dos olhos extáticos. Rosa era uma criatura que lembrava aqueles mistérios, os enlaces dos anjos com as formosas filhas dos homens, nas primeiras eras do mundo.

Estevam também se desenvolvera, e se formara um guapo e gentil rapaz.

Nas bem proporcionadas formas lia-se-lhes a força; no rosto franco e expansivo, a lealdade e o valor. Não havia ideia de que nunca em sua vida tivesse abusado da força: mas não constava também que tivesse recuado nunca. Não procurava o perigo, mas não se temia dele; era dotado de verdadeira coragem, fria, reflexiva, inabalável.

Estes dotes, porém, não eram de tal natureza, que pudessem cativar o pai de Rosa, homem de letras gordas, e mais para o dinheiro do que para o sentimento.

Tinha casado com a senhora Placida, depois de lhe namorar os pintos e não a fisionomia.

Vivera feliz a seu modo, porque tivera os cômodos da vida, e não compreendia felicidade possível, sem dinheiro ao canto do baú, pão na arca, vinho na adega e azeite na talha. Todo esse palavreado de amor e paixão era engrimanço, que espremido não deitava nada; nem julgava que boas razões pagassem dividas ou enchessem barriga.

Um seu vizinho e compadre, homem dos seus quarenta puxados, casca grossa como ele, pé de boi, mas abastado, e com fama de entender do negócio e da lavoura, tinha conversado com o Sr. Feliciano Gomes, assim se chamava o pai de Rosa, a respeito desta, afirmando-lhe que se não dava de tomar estado se encontrasse mulher tão perfeita como a filha. Feliciano, que há muito andava com o olho numa courela do compadre Januário, e que por mais duma vez futurara comprar-lha, alegrou-se com a ideia de arredondar a sua propriedade, à custa de tão pouco.

Tratou pois de desvanecer algumas duvidas, que ainda esvoaçavam no espírito modesto do Sr. Januário, convencendo-o de que lhe sobravam perfeições para cativar o coração mais rebelde, que por ventura palpitasse em peito de mulher.

— Mas, eu sei lá, homem?... Já não estou muito rapaz...

— Melhor é isso, não tem idade para loucuras.

— E se a rapariga me não quiser?

— Era o que faltava, compadre, deitava-lhe os braços abaixo e nunca mais lhe punha a vista em cima!

— N’isso é que eu não consentia!... Pobre Rosita!

— Então quem há de mandar em minha filha se não for eu? Quem pode saber o que lhe convém?

— Olhe, compadre, se a pequena tiver alguma inclinação...

— Sem minha licença? Não faltava mais que ver! Ensinava-a por uma vez.

— Veja lá o que faz, homem, não quero que a rapariga padeça por minha causa!

— Qual padecer, nem meio padecer. Estou vendo-a já saltando de contente, quando lhe disser: não sabes, o vizinho Januário quer casar contigo. Foste feliz...

— Isso há de ser. Não lhe hei de faltar com coisa nenhuma.

— Pois para as mulheres é o que é preciso: dinheiro para gastarem nos trapos, e andam satisfeitas.

— Parece-lhe por conseguinte que serei seu genro?

— Se me parece! Já o é desde hoje, toque lá e deixe tudo por minha conta.

— Lembre-se de que eu não quero ir contra a vontade dela...

— Qual vontade, nem meia vontade, compadre Januário; o dito dito, e até amanhã.

Esta conversação foi o começo das tristes aventuras dos dois amantes, que apresentei aos meus leitores, e cuja história, numa noite bem invernosa, ouvi ao tio Joaquim.

Enquanto Januário ficava cismando na sua vida futura e saboreando de antemão a posse da rapariga mais guapa daqueles sítios, Feliciano recolhia rindo-se e esfregando as mãos, o que nele denotava o maior sinal de contentamento.

Acabava de fazer um excelente negócio. Trocara a filha por uma courela de dez alqueires de semeadura: isto é, uma mulher que tinha que sustentar por uma terra que dava de comer.

E o olival das queimadas, e a quinta da cortiça, e o casal do petisco, e as terras do Penetra, e a horta da alamoa, e tantos outros bens e haveres, que constituíam a fortuna de Januário!

Claro estava que tinha tido uma tarde feliz.

Rosa ficou surpreendida ao ver entrar seu pai em casa risonho e cantarolando, coisa de que não havia memória; e sem lhe passar pela cabeça qual era o motivo de semelhante transformação, sentiu-se alegre também.

Havia muitos anos que seu pai lhe não mostrava fisionomia tão prazenteira, nem lhe falava com tanto agrado.

De repente deu-lhe uma pancada o coração, quando Feliciano, voltando-se para ela, lhe perguntou com certos modos em que transpareciam alegria e finura mal contidas:

— Que te parece o compadre Januário?

— Que me há de parecer, meu pai, dizem que é tão boa pessoa!...

— Sim, sim, bem se sabe isso, boa pessoa, assim como quem diz pedaço de asno; não é pelas bondades, que eu te pergunto.

— Então meu pai?...

— Não olhaste para ele nunca com os teus olhos... de ver?

— Eu não senhor.

— Pois é preciso que olhes, entendes-me? disse-lhe Feliciano derrubando as sobrancelhas e deixando cair a viseira: talvez te agradem mais esses alfenins lambidos, que por aí se andam a desfazer? Pois estás muito enganada comigo, percebes?...

E ao passo que ia falando engrossava a voz e fazia cara de arremeter. Rosa tremia como varas verdes, e, com os olhos arrasados de lágrimas, encomendava se mentalmente a todos os santos do seu calendário.

Mal teve forças para balbuciar um: — sim senhor, meu pai,— e, cambaleando, foi fechar-se no seu quarto, deitando-se em cima da cama a soluçar convulsa, como quem se despedia deste mundo.

No dia seguinte, ao almoço, parecia que voltava do cemitério, Feliciano, porém, que se não apercebia facilmente destas mudanças, ou que, se as conhecia, fingia bem o contrário, repetiu o interrompido assalto.

— É preciso que vás pensando no casamento, estás uma mulher, ouviste?

Bem quisera a pobre da rapariga não ter ouvido; mas era impossível dissimular.

— Eu, meu pai; estou assim bem, eu não quero casar!...

A resposta não se fez esperar muito. Feliciano soltou uma torrente de imprecações, acompanhamento estrepitoso[78] de uma bofetada não menos estrepitosa, que já cortava os ares ainda bem a rapariga não acabara de dizer que não queria casar.

— Grandíssima atrevida!... Eu te ensinarei a ter querer! Não queres casar, hein! E pensas que engulo essa!... Vocês lá que bebem ares por um marido! Mas tu o que não sabes é com quem estás metida: eu não nasci ontem e não hás de ser tu, minha seresma, que me faças o ninho atrás da orelha. Não queres casar, hein!... Ora mete-me o dedo na boca a ver se to mordo! É volta de festa, é namorico no caso, mas apanhe te eu, que verás por uma vez os meninos órfãos a cavalo. Não queres casar! Mas quero eu que te cases e é o que basta. O vizinho Januário pediu-te ontem e eu resolvi que havias de ser sua mulher. E é dar graças a Deus, pela pechincha! Onde podes ir que mais valhas? Andar para diante e cara alegre, quero que estejas contente, que mostres ao vizinho, que tens gosto no casamento, e que lhe agradeces os seus afetos, senão... ponho-te fora de casa depois de te moer esses ossos, e não quero mais que me chames teu pai.

Ao passo que ia ouvindo seu pai, Rosa ia sucessivamente esmorecendo.

Á vermelhidão, que lhe tingira o rosto ao receber a brutal bofetada, sucedera-se uma palidez citrina, que aumentara até ficar de puro alabastro.

Tinham lhe rebentado as lágrimas dos olhos no primeiro momento; mas não correram. Uma constrição terrível lhe afogou a garganta, pensou que ia sufocar-se: pulava-lhe o coração no peito, batiam-lhe as artérias na cabeça, semelhando o marulho das ondas, em torno do que mergulha rapidamente, um cinto de ferro lhe apertava a fronte, zunidos estranhos lhe baqueavam no cérebro.

Cuidou que ia morrer e do íntimo d'alma elevou ao Criador, uma prece de jubilo, em ação de graças.

Era um desmaio apenas, um destes abalos, que passam pelas organizações nimiamente nervosas, como o furacão pelos arbustos, extremamente débeis.

Acurvam-os até ao chão, estorcem-os na passagem; mas não os partem.

Rosa quis segurar-se à mesa, mas estonteou-se-lhe a vista, andou-lhe a cabeça à roda, desfaleceram-lhe os braços, correu lhe gelo pelas veias e deu redondamente no meio do chão. Parecia morta.

Feliciano largou uma destas maldições capazes de espavorir toda a milícia celeste e correu à filha; estremeceu-lhe o remorso todas as fibras do coração de pai. Não havia maldade nas intenções do velho; entendia a seu modo a felicidade da filha, que estimava deveras: não se persuadiu que o golpe tivesse tão fundo alcance e trepidou ante as consequências.

Mas ao vê-la voltar a si, recuperou a confiança e de novo tornou ao seu plano favorito. Intentou com aquele frio calculo de quem já não cuida em amores, que a voz do coração era uma impertinente a que se não devia dar ouvidos em questões desta ordem, e que só o interesse devia tomar a palavra e falar de cadeira: amaciou entretanto a voz, voltou-se menos ríspido para a rapariga, e disse-lhe quase enternecido:

— É para teu bem, depois mo agradecerás...

E saiu, pensando no futuro de Rosa e na conveniência de arredondar as suas terras com a cobiçada courela de Januário.

***

Pensem os que têm amado do coração, no que padecera a pobre da rapariga, ouvindo seu pai. Desapareceu de repente de ante si aquele encantado futuro, em que se enlevara. Num momento perdeu a esperança, a alegria, a felicidade.

Quando o amor verdadeiro nos domina, só há em nós uma ideia, um pensamento fixo, quase uma monomania: a posse da que se ama, a existência a dois, participando ambos das mesmas dores, das mesmas alegrias, dos mesmos perigos, dos mesmos triunfos, das mesmas glorias. Reparte-se o coração com aquela, a quem tanto se quer, e de tal maneira se alarga e aumenta a porção que lhe entregamos, que por fim nos apercebemos que já de todo nos não pertence. E bem longe de nos pesar, enleva-nos, nos mais íntimos transportes do sentimento, essa doce espoliação do nosso ser.

Se nós somos então amor e somente amor!

O universo inteiro resume-se numa só criatura, e tão grande nos parece esta, que o julgamos ainda pequeno para a albergar. Todos os afetos resumem-se num só, de todos os fios que nos prendem ao mundo, traçamos uma cadeia só, no remate da qual nos penduramos com a energia, com a tenacidade do afogado.

No outro extremo da cadeia acaba o nosso mundo. Se um pavoroso cataclismo precipitasse o globo; se as esferas se entrechocassem e confundissem; se a criação voltasse ao caos; se as trevas engolissem a luz; se num rodopiar incessante o universo, se contorcesse nos extremos paroxismos: ficasse a mulher, que amávamos, conosco, e nem nos aperceberíamos da mudança.

A luz, a ordem, a harmonia, o movimento dos céus, o revolver dos astros, o tornear da terra, o não acabar do espaço, parecem-nos puerilidades insignificantes, comparados com o infinito do nosso amor. Só há uma ocasião, só há uma fase da existência, em que o homem se exalta, se eleva, se engrandece, se iguala ao Criador. É quando ama.

Satanás se fora o demônio do amor e não o demônio do orgulho resistiria ao Onipotente.

Quando se assenhoreia de nós, o amor espalha por tudo quanto nos cerca, fulgores que nem a centelha do raio pode ofuscar, harmonias que nem os coros celestiais podem fazer esquecer, encantos, que não os tem assim a bem-aventurança.

É que a mulher reside para nós em tudo: tanto na florinha, que mal se descortina entre a relva dos prados, como na montanha arrojada, que parece lacerar os seios do infinito: se queremos colher as flores para com elas lhe juncarmos o piso, queremos transformar-lhe a montanha em pedestal, para sobre ele a levantarmos.

Da nuvem far-lhe-íamos um véu, das estrelas um diadema, dos céus sem limites um azulado sendal.

E depois descontentes ainda, pedimos com religioso fervor ao autor dos mundos, que reforme a sua obra, que dilate mais a criação, que a exalte mais; porque não nos chega, quanto existe para a mulher por quem vivemos.

E se é assim o homem, o que não será a mulher, toda sentimento, toda amor, toda afeto e... senão toda egoísmo, toda vaidade e toda presunção.

A mulher, que, quando ama deveras, arranca o homem, das trevas descobrindo-lhe novos lumes de paixão, feições novas de sentir, delicadezas desconhecidas, mimos e enlevos, que não descortina nunca a nossa natural brutalidade. A mulher, que ou ama, como cantam os cisnes, amando e morrendo desde logo pelo amor, ou nutre em si o amor, como a árvore alimenta a parasita, vivendo só para a nutrir e definhando-se em quanto ela medra à custa de sacrifícios, de abnegação, e de sofrimentos inapreciáveis; ou quando mesmo, presumida em excesso, e vaidosa sem termos, se ama a si, amando o homem, que se lhe rendeu, e bem querendo a esse rendimento, a essa homenagem, a esse culto, porque lhe desvanece a vaidade, porque é uma confissão eloquente das suas perfeições, porque finalmente é seu, e veio de si, para de novo voltar para si, como as plantas amam a água, que elevam da terra, entregam aos ares, para que estes lha restituam depois em amorosas lágrimas.

Rosa amava e amava sincera, piedosa, apaixonadamente. Não havia confeição alguma naquele sentimento, que nascera do coração, proviera da alma, e que se fortalecera aquecido pelos estos da natureza. Amara criança ainda, amara com força muito maior, quando a puberdade, lhe transformara o ser transfundindo-lhe nas artérias faúlhas de desejo.

Quando a vida nova dos dezesseis anos lhe abalou a organização infantil, quando o coração se tornou túrgido de sangue, rico de vida e farto de estímulos criadores, quando aquela flor do campo, chegou ao período, em que as pétalas se tingem de mais brilhantes cores para deslumbrarem e caírem breve, o amor de Estevam, que já a possuía transformou-se também, e dominou a mulher, como dominara a criança.

Foi para ele, que, corando de pudor, elevou os seus pensamentos de mais arrojado afeto, quando lhe esvoaçou diante da imaginação deslumbrada essa nova perspectiva, que lhe apresentava o mundo, ao conhecer-se outra pela inspiração divina, que nessa quadra da vida, patenteia à mulher os desconhecidos horizontes da procriação e da maternidade.

O amor de criança unira-se ao amor de Estevam; e deste delicado enlace nascera o amor— mulher. Não lhe assomava o desejo à mente, sem que esse desejo se não transformasse para ela na imagem varonil e fascinante do seu apaixonado. A sua nova existência era de Estevam; era por Estevam: e o homem, que tal consegue da mulher, pode chamar-lhe sua, sem que o considerem presumido.

Entretanto as palavras de Feliciano operaram em Rosa uma revolução cruel. Não se persuadira nunca, que o amor de filha pudesse entrar em luta com o amor de mulher: e nem por sombras se preparara para semelhante combate. Se o coração falasse unicamente, se não se tratasse senão de resistir à cólera e maus tratamentos de seu pai, a escolha não seria duvidosa. Matasse-a embora, que morreria contente, se até aos últimos momentos a deixassem amar Estevam; mas a maldição paterna troava-lhe ainda aos ouvidos, e todas as fibras daquela organização delicada estremeciam, só ao lembrar-se de que ele lhe proibira o nome de filha. A religião, a crença, a educação, tudo lhe falava em favor de seu pai; em favor de Estevam só o muito, que o amava, mas não era o bastante. Amaldiçoada, via os tormentos do inferno, o penar de sua alma, a espada de fogo do arcanjo exterminador, a condenação eterna, e a memória da sua infância, e os santos de sua devoção a sumirem-se-lhe para sempre.

Não enlouqueceu, porque não teve forças para tanto; não morreu, porque a intensidade própria do sofrimento lhe deu forças para resistir, fenômeno bem vulgar nas organizações nervosas; não se matou, porque lhe afastavam tal pensamento de si, as ideias com que fora criada: sofreu muito, por fim, pelo embotamento do sofrer, pareceu resignar-se.

Triste resignação, em que amortalhara os mais puros afetos, o mais risonho futuro, a mais afagada esperança!

A ideia de que se sacrificava à vontade de seu pai se não lhe deu consolação, deu lhe forças; e o persuadir-se que cumpria com o seu dever animou-a a persistir: se não ganhou o santo entusiasmo, com que os mártires se encaminhavam para o suplicio, alcançou ao menos aquela frieza apática, da mais entranhada abnegação.

Deixou de se pertencer. Fez-se cadáver, transformou-se em instrumento da vontade de seu pai, instrumento inerte, impassível, sem vida, sem pensamento próprio. Não tivera animo para se matar; mas definhava-se lentamente naquele doloroso suicídio moral.

Alguns dias depois da cena que se passara entre o pai e a filha, Estevam recolhia do trabalho cantando, e todo enlevado na sua Rosa, que julgava não ver, havia tanto tempo. A voz melodiosa corria nas voltas do caminho e repetia-se mais afinada pelos ecos de um monte próximo.

Ouvira-o Rosa, que abatida, e alheia ao mundo estava mais caída que sentada numa cadeira, com os olhos pregados numa imagem de Senhora das Dores, que tinha perto da cama; palpitou-lhe de novo o coração no peito; aquela voz abalou-a como o choque da pilha, e sem se lembrar do que fazia, cedendo ao impulso, que tantas vezes a movera, correu à porta, ao mesmo tempo em que Estevam se aproximava do limiar.

Ao vê-lo porém fugiram-lhe de todo as forças e caiu-lhe[85] desmaiada nos braços. Ao longe parecera-lhe notar na sombra o vulto ameaçador de seu pai:

— Rosa da minha vida, que tens tu, que nunca te vi assim? exclamara Estevam recebendo-a nos braços, torna a ti, sou eu, é o teu Estevam!

Perto dali corria a água de um bueiro do muro; levantou-a em seus braços, pousou-a num marco, próximo do jorro, e às mãos cheias lhe espargiu o rosto; depois ao vê-la tornar-se à vida, curvou-se, aproximou-se mais da amante como para lhe transfundir a vida, que lhe sobrava, e tão perto lhe aflorou os lábios, que dir-se-ia um rápido beijo unira por instantes as duas apaixonadas bocas. O osculo chamou à vida e à realidade a desgraçada Rosa, que desmaiara enlevada nos gostosos sonhos de uma felicidade, que lhe era defesa.

— Ai, Estevam, estamos perdidos, exclamou a misera acordando de todo, quase nos braços do amante.

— Perdidos, Rosa!... Que dizes!

— Meu pai... quer que eu case com o Januário.

— E tu!

— Eu, Estevam!... meu pai amaldiçoa-me.

Foi então, que ele ia desmaiando também. Cambaleou, encostou-se à parede para não vergar, e foi-lhe preciso grande força de vontade para resistir.

Resistiu porém, e como se lhe arrancassem esta exclamação do fundo da alma:

— Pensei, que me tinhas mais amor!...

— Deus te perdoe, Estevam, por duvidares de mim.

— Duvidar! queres talvez que te agradeça, que te bendiga, porque às primeiras palavras de teu pai, me atiras a monte, como erva ruim, ou foice partida. Eu é que tenho a culpa, não é assim?

Dize, anda, eu é que tenho a culpa: e tenho, porque te queria mais do que à própria vida, porque te queria, como homem nenhum poderia querer a uma mulher. Anda, não duvides, acusa-me, Rosa, que bem o mereço. E entretanto Deus sabe, que tesouros de amor, se guardavam cá dentro, Deus sabe quanto eu te estremecia!... Pensei que não houvesse forças no mundo que nos separassem, pensei que nem Deus mesmo tivesse poder para tanto! Enganei-me. Foi bem feito. — Se tu és mulher!... E não arrebentar eu, quando me assomou este amor! — Não ter havido um raio que me partisse!... Casa, casa e sê feliz!

Depois, entre soluços, soltou um adeus, e deitou a correr como doido, fugindo à tentação, que lhe afogueava o pensamento.

Rosa ficou prostrada sobre o marco, até que a água inundando lhe o rosto, a reanimou por um pouco; seguiu, mais por instinto do que por vontade, para casa e deitou-se, já com os primeiros sintomas de uma febre cerebral agudíssima.

Feliciano não soube nunca a razão da doença de sua filha, Januário acompanhou o compadre em algumas noites perdidas, e Rosa costumou-se a vê-lo e a agradecer-lhe o cuidado e a afeição, que lhe mostrara. Afeição rude, brutal mesmo; mas por isso tanto mais para apreciar uma ou outra delicadeza, que surdia como enfezadinho rebento de tronco cascudo e rugoso.

Convalescente ainda, aparecera Rosa no bailarico, e ali encontrara Estevam, que durante a doença não se afastou nunca das proximidades da casa, empregando astucias incríveis, recorrendo a subtilezas quase inacreditáveis, para a ver sem que o visse, ou para se informar, ao menos, do estado em que se achava.

Os nossos leitores já assistiram ao dialogo que travaram. No dia seguinte Estevam, partia a bordo da— Joaquina Primeira— para a Costa de África, e um mês depois Rosa casava com Januário, quase sem perceber, que mudava de estado.

***

Tinha decorrido um ano depois do encontro de Rosa com Estevam, que ultimamente relatamos. Não haviam chegado notícias deste último e corria pela terra, que morrera das febres de África. Rosa nunca mais proferira o nome do seu antigo apaixonado; mas quem lhe devassasse o íntimo d'alma reconheceria, que a imagem querida não lhe saíra nunca do pensamento.

Aparecia-lhe nas horas suaves de melancolia, quando espraiava a vista pelos descampados, descansando depois os olhos no filhinho de mês, que se lhe pendurava do seio.

Depois que desaparecera, Estevam convertera-se para a imaginação apaixonada de Rosa numa triste visão, que saudosamente lhe sorria dessas regiões encantadas, que a fantasia povoa de arrobados devaneios.

Aquele amor depurara-se pela ausência, e a noiva entregando-se ao marido, cumprindo religiosamente os seus deveres de mãe e de esposa, persuadia-se que lhe seria licito, ao menos dispor da sua alma.

E, ainda que o não quisesse, esta pertencia a Estevam. A posse que lhe dera, que ele conquistara à força de desvelos, de solicitude e de amor, era inalienável, ganhara-a com o sacrifício da sua vida, com o holocausto da sua existência, nos altares da dedicação. E que importava a Januário, este inocente roubo! Não poderia encontrar mulher que mais cuidasse dele, que mais o cercasse de carinhos, que mais se sacrificasse ao seu bem estar.

Nenhuma seria capaz de dar melhor ordem à vida, de cuidar mais no arranjo da casa, de providenciar mais para que coisa alguma faltasse a seu marido. Delicadezas de sentimento, não eram para Januário; nem as compreendia, nem se dava de semelhante coisa. O mundo, para ele, era uma serie de cômodos, e o conforto da casa e da família a felicidade suprema.

Não pensara nunca em falar ao coração de sua mulher. E andara acertadamente não procurando desferir instrumento, que atormentado por aquelas mãos rudes apenas poderia soltar gemidos; mas harmonias nunca. Onde acabava a materialidade finalizava o mundo. Idealismos, se alguém lhe falara em tal coisa, poderia contar com descompostura certa, em paga de semelhante atrevimento.

Tinha com que viver e vivia do que tinha.

O granjeio das fazendas, o amanho das terras, os cuidados da agricultura, preocupavam-lhe o dia. À noite esperava-o uma boa ceia, uma cama de pau santo luzidia com os lições alvos de neve a estenderem-lhe os braços, a esposa a sorrir-lhe no limiar, sorriso encoberto por um permanente véu de tristeza, mas isso não percebia ele, e o filho a dormir tranquilo no berço com o bracinho curvado sob a cabeça, a boquinha rosada mussitando sonhos de convivência com os anjos, seus irmãos.

E o asseio a aformosear tudo, e a tranquilidade a alegrar o interior da casa, e a arca recheada ao canto, a prometer dilatados dias de descanso e de fartura.

E até para lhe alimentar as rabugices da idade, (Januário já rastejava pelos cinquenta), o birrento do sogro, que sempre tinha que lhe tornar, e que contradizer em todos os trabalhos, que empreendia seu genro.

Que mais quereria pois.

Rosa costumara-se também a esta vida de insensibilidade e sacrifício. A ideia de que fizera a felicidade de seu pai, e de seu esposo, consolara-a da grande perda, que sentira e vivia transfundindo em seu filho todas as delicadezas de sentimento e de amor, de que precisava para poder viver.

Transformação, que facilmente compreendem os que sentirem deveras, o amor de Estevam depurara-se-lhe na alma e fizera-se amor de mãe. Quantas vezes lhe parecia embalando seu filho, que estreitava nos braços a Estevam!... Então conchegava a criança mais a si; apertava-a tremulamente: e duas lágrimas de saudade, ou talvez de amor, deslizavam-lhe pelas faces.

O filhinho, desperto com aquele enlace, abria os olhos, e parecia fitá-los na mãe, como traduzindo uma admirada repreensão: ao menos assim o julgava ela, que se sentia desfalecer e se acusava então daquela inocente infidelidade aos seus deveres de esposa. Beijava ferverosamente o seu pequeno censor, como para o abrandar, e com aquela imagem afugentar a outra que tinha presente sempre.

Nestes rápidos e quase inapreciáveis movimentos se denunciava apenas a intensidade daquela violenta e concentrada paixão. Como nas pavorosas tormentas submarinas a plácida superfície das águas só num ligeiro tremer poderia denotar a força das horrendas lutas, que se travavam nas remotas profundezas.

Uma tarde ficara absorta no seu cismar contemplativo toda embevecida naquelas divagações, que tantas vezes a alheavam do mundo em que vivia. Os olhos parados e fitos pareciam procurar nos afastados horizontes aquele indefinido ponto em que os espaços se perdem de vista e que a fantasia enriquece com suas estranhas criações. Dir-se-ia a estátua do desalento pousada sobre a pedra da sepultura a remirar-se nos céus, na sua almejada pátria.

A imagem de Estevam adejara-lhe na mente, e enlevada naquela paixão, que a não deixava, deixou aproximar-se a noite sem perceber que as trevas baixavam encobrindo os campos.

Já a lua desenhava com os seus pálidos clarões figuras extravagantes, que pareciam dançar por entre o arvoredo à feição do vento, e Rosa ainda estava no mesmo lugar e na mesma posição.

De repente soltou um grito e estendeu diante de si convulsivamente os braços, como se pretendesse afastar um fantasma aterrador. A imagem, que evocara parecera tomar corpo, e num vulto que se escondia por entre as árvores cuidou reconhecer Estevam.

Efetivamente apenas soltara aquele grito o vulto correu para ela, era Estevam.

— Estevam!

— Rosa!

— Tu aqui?!

— Se eu não podia já viver longe de ti! Se morria se te não visse?

— E agora?

— Agora? Vi-te. Disse-te uma vez ainda: amo-te, e posso morrer!

— Sabes, Estevam, que sou mulher de Januário, sabes, que tenho um filho de meu marido?

— Para que mo lembraste? Pensas que não mo tinha dito já o coração?

— Para que voltaste, então, Estevam?

— Não to disse já? Para te ver.

— Ai! quanto me custa que voltasses!

— Bem sei. Deveria ter morrido, não é assim? um homem como eu, que ninguém estima, que não tem afeições neste mundo, que vive, como o espargo no monte, que embora procure lançar raízes na terra lhas arrancam como o escalracho, devia morrer. Não serve de nada, não deve viver, tens razão.

— E quem te diz que assim seja? Quem te diz que não há quem te ame, quem ainda se dedique por ti, quem te não esqueça nunca. Ah! Estevam, os homens não compreendem o coração da mulher!

— Não compreendem, não. A mulher, santa criatura, na verdade! A mulher, que mente ao marido, mente, ao amante, a mulher que se enlaça como a hera no coração do homem, cravando-lhe cada vez mais fundos os espinhos, roubando-lhe cada vez mais a vida. Não te compreendi, Rosa, devia agradecer-te, porque pertences a outro, porque ontem dormiste ao lado doutro, porque daqui a pouco vais deitar-te no seu leito. Devia agradecer-te não é assim? Dize, anda, bem vês, que te vou compreendendo.

— Que mal te fiz para me tratares com esse desdém?

— Que mal me fizeste? Nenhum! Eu é que fui um louco, eu é que errei, quando prendi a minha vida à tua, quando te entreguei a minha sorte, quando em ti pus a minha esperança. Eu é que fiz mal, quando me deitei a amar esse amor, que tantas vezes me juraste, quando depositei fé nas tuas palavras, que pareciam tão sinceras, quando pensei que havias de ser minha, porque assim mo juraras mil vezes, eu é que mereço castigo, porque confiei na sinceridade do teu coração, porque loucamente crédulo não me persuadi nunca de que fingisses tão bem, que houvesse em ti dissimulação tão grande.

— Se soubesses quanto tenho padecido, não me falavas de certo assim!

— E eu! Julgas porventura, que te sumiste um momento sequer da minha ideia? Pensas que te não vi sempre diante de mim, nas tribulações da vida, nas ondas do mar, nos sertões de África, nas extensões do céu... Sempre, sempre! Pensas que não me lembrava sempre, que eras doutro, tu que só poderias ser minha! Pensas, que não me deram por doido; que me não arrojei ao mar, por mais duma vez, para lá ficar para sempre?... Se não fosse terem-me salvo, já hoje te não inquietava!... Pensas...

— Não continues! Estamos a agravar uma ferida que não pode sarar mais! Antes não nos víssemos!

— E assim me despedes! Bem mo dizia o coração! Falsa!...

Rosa levantou a cabeça cheia de indignação; até esse momento, parecia que escutava a sua sentença de morte: quando porém Estevam assim a acusou, quando lhe pareceu, que o seu enorme sacrifício não era compreendido, que o seu amor era tão mal julgado, a voz da consciência, que a defendia dos agravos de seu amante, bradou-lhe lá dentro.

— Ergue-te!...

Elevou os olhos para o céu, como para se inspirar numa resolução suprema, afastou da fronte os cabelos, que a ofuscavam, levantou-se com um movimento de nobre majestade, travou da mão de Estevam, que a olhava surpreso, e exclamando apenas: — Vem! — levou-o consigo para dentro de casa.

Com o sorriso a adejar-lhe sobre a fisionomia, estava o filhinho de Januário deitado no berço dormindo, os braços torneados descansavam fora da roupa abertos e como estendendo-se para a mãe. No fundo da alcova a um canto, que a luz duma lamparina iluminava a custo, adivinhava se o esposo que dormia: o ressonar compassado e sonoro, noutro quarto próximo, deixava perceber, que Feliciano depois de ter largamente discutido com seu genro a conveniência de uma nova semeadura, descansara por fim cansado de rabujar. De resto tudo estava em sossego.

Estevam, sem compreender para que, deixou-se arrastar até junto do berço: aí, Rosa correndo a vista pela casa fitou por último o olhar no seu companheiro.

— Amanhã esta criança acordará, e aqueles dois velhos levantar-se-ão sorrindo para mim como sempre, cheios de confiança, e de... amizade. Como até hoje julgar-me-ão filha honrada, mãe honesta... esposa fiel!... Sacrifico-te, aqui, junto deste berço... e daquele leito, todo o meu passado, todo o meu futuro, tudo!... Aqui me tens, Estevam, vê agora se te amo. Sou tua!...

E resignada, nobre, altiva, caminhou para ele, que recuara, como os mártires deveriam caminhar para a fogueira... serena, tranquila, orgulhosa pelo seu sacrifício, iluminada pela divina aureola do amor.

Estevam parecia fulminado.

Foi mistério o que se passou na sua alma; entretanto compreendeu tudo, e soube elevar-se até às sublimidades daquela mulher.

Avaliou qual era a grandeza dum semelhante amor, e sentiu-se digno dele. Leu de relance todas as paginas dolorosas daquela epopeia íntima, e elevou no santuário de seu coração, purificado de quaisquer resquícios da natureza terrestre e material, um cântico divino de admiração, caiu de joelhos aos pés de Rosa e desatou a soluçar.

As lágrimas queimavam-lhe as faces; mas refrigeravam-lhe a alma: quando se levantou era outro.

Curvou se sobre o berço infantil, depositou um beijo no rosto do inocente, dirigiu-se para Rosa, que ainda o esperava imóvel, mal lhe aproximou da testa os beiços e desviando os olhos do leito, onde Januário dormia, saiu dizendo à sua antiga amante:

— Adeus irmã!

Foi tudo obra dum momento.

Rosa caiu sobre o berço de seu filho cobrindo-o de beijos; Estevam já ia longe.

A criança soltara um vagido lastimoso, acordara ao sentir-se inundar pelas lágrimas de sua mãe, e estendendo para ela os braços, sorrira.

Januário não dera sinal de si.

***

As feridas morais não se semelham às físicas. O coração rasga se com a dor, sofre-se por muito; mas o tempo cicatriza tudo.

O correr dos anos enregela a alma, e acalma os ardores da paixão. Estevam ainda foi feliz.

Rosa, essa, ninguém pôde saber se se esquecera daquela noite. O amor de seu filho consumiu-lhe a vida toda.

Nunca se lhe tingiram as faces de cor, nem o mais leve sorriso lhe entreabriu os lábios: poucos a ouviram falar, raras vezes proferia alguma palavra.

Entretanto foi sempre esposa desvelada e filha extremosa; pouco tempo sobreviveu a seu marido.

Aquela hora fora a última em que conhecera que tinha coração; foi também a última em que se avistou com Estevam.

Feliciano, na manhã seguinte a uma noite, em que mais se exaltara discutindo com seu genro sobre o melhor modo de alqueivar uma terra, foi encontrado morto na cama.

Sucumbira a uma congestão cerebral.

A terra sobre que versara a controvérsia era propriamente a courela, por amor da qual contratara o casamento da filha.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

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