4/09/2023

O guarda do cemitério (Conto), de Rodrigo Paganino


 

O GUARDA DO CEMITÉRIO 

Era perto da noite. Voltava em companhia do tio Joaquim duma feira, que se fazia a duas léguas da quinta, onde estávamos. Tínhamos metido os cavalos a passo, e depois de muito discorrer e matar tempo, a conversação, que esmorecera gradualmente, parara de todo.

Não o sei ao certo, mas quero o crer; a tristeza que tanto se sente no campo na hora em que o dia desaparece pouco a pouco, influíra para nos calar; e aquela doce melancolia, que acompanha o crepúsculo da tarde, e que tanto nos faz cismar e crer, obrigara-nos a interromper as falas, que perturbavam aquele silêncio geral.

Só quem tem vivido fora das cidades é que pode dar conta daquele tempo de sossego e de mudez, que determina a passagem da noite para o dia, e muito particularmente do dia para a noite.

As aves, os animais, as árvores, as plantas e até a natureza insensível, parece que entristecem naqueles momentos e que suspendem a vida, o movimento e o ruído: como que permanecem por instantes num estado de duvida e de receio, e temem ver desaparecer de todo essa luz, que é a sua vida, e que então se some no horizonte, tinto por amor da sua ausência com cores de tristeza e de dó!

Outras vezes, no meio da geral calada, alguns ruídos se apercebem; mas esses como a susto, como mais para significarem o esmorecer da vida do que a sua animação: — é o breve pio do mocho, é o som afastado dos chocalhos, são os tímidos balidos dos rebanhos, é o ramalhar das árvores com a viração da tarde ou o murmurar longínquo e surdo das ondas do mar.

São essas as horas mais talhadas para a meditação, para a saudade ou para o amor; são as horas das aspirações vagas, dos desejos indefinidos, das fantasias e das expansões; são as horas em que se eleva em nós, um que quer que é estranho e superior a tudo que nos cerca e com que de hábito lidamos; em que o homem sofre e goza, sente e crê, folga e padece; em que o desalento e a esperança se travam em luta; em que o amor nos fala de prazer, a saudade da dor e a imaginação do infinito; em que se vive muito e se deseja morrer; em que se sonha muito e se receia acordar; em que a virgem presente a primeira paixão, o homem o primeiro amor, a criança o primeiro momento de viver, o velho a última hora; em que o passado e o futuro se enlaçam, um descoroçoado e cético, o outro entusiasmado e crente; em que o mundo é pequeno para a alma, e a alma acanhada para o sentimento.

Em tudo isto eu pensava nessa hora, e tão absorto ia, que nem dava pelo caminho que levava: parecera-me até que se me ia fugindo a vida, como me parecia fugir o mundo, se o som compassado das ferraduras dos cavalos sobre as pedras da calçada, me não chamasse à realidade, marcando de continuo com a regularidade duma pendula, a extensão do espaço e o correr do tempo.

De repente, numa volta que fazia a estrada, os cavalos fitaram as orelhas e pararam: sobressaltado, como que acordei, procurando descortinar que causa fora a que os assustara.

Íamos passar pelo cemitério da terra, separado da estrada por um parapeito de pouca altura, e limitado, da banda donde vínhamos, pela casa do guarda; do lado oposto, por uma igreja antiga, abandonada e em ruínas.

Nenhum lugar mais adequado, nem acessórios mais acordes podia a morte escolher. Tudo ali falava do seu poder, tudo concorria para a sua majestosa severidade.

Ruínas, desamparo e tristeza. A casa do guarda, que primeiro se oferecia à vista, enegrecida pelo tempo, com as portas e janelas carunchosas e escavacadas, deixando devassar o interior desguarnecido e miserável: o cemitério sem aninho nem cultura, sem monumentos, nem flores, nem pedras, nem ruas, nem dísticos, nem retábulos; algumas cruzes toscas, por entre matagais de urtigas, algumas árvores esgalhadas de longe a longe, umas e outras roídas pelos vermes, enfraquecidas pelos parasitas, mutiladas pela podridão: e ao longe a igreja, de tempos remotos, com as cantarias de grosso lavor lascadas ou caídas, as paredes esburacadas e musgosas, as grades ferrugentas e quebradas, as janelas sem vidros, as ogivas interrompidas, as arcadas soturnas a perderem-se na escuridão e a adivinharem-se pelos buracos da fachada, frias, nuas, sós e tristes.

Apertava o coração e confrangia a alma; fazia mal aquela vista.

Não havia sido entretanto nem a igreja, nem o cemitério, nem a casa do guarda que tinham feito parar os cavalos, mas o próprio guarda, que estendido sobre um poial, diante da porta se levantou para nos cumprimentar.

Parecia que a influencia sinistra daquelas paragens se estendera também àquele homem: condizia com tudo que o cercava.

Era alto e ainda novo; mas o tempo e os pesares tinham-no curvado e encanecido. As feições eram duras, carregadas e tristes, as faces cavadas e cheias de rugas, a pele tostada e áspera, os cabelos mal tratados e grisalhos, as barbas compridas, em desordem e grisalhas também; o corpo estava coberto de farrapos, a cabeça resguardada por um velho chapéu já sem abas e os pés metidos nuns tamancos muito usados, que quando se levantou repercutiram por um modo estranho batendo nas pedras.

Era como a personificação do desconforto ao pé das ruínas, como a desilusão da vida junto à morte.

O tio Joaquim, ao dar com os olhos nele, resmungou por entre dentes — até os brutos o temem;— correspondeu a um — boas noites,— que nos dirigiu, meteu o cavalo a meio trote, eu imitei-o, e dentro em pouco tínhamos perdido tudo de vista.

Dias depois vim a saber pelo tio Joaquim quem era o guarda do cemitério, e qual a sua história.

***

Manoel começara de pequeno num navio mercante, e em pouco chegara a piloto pelo seu bom porte e bravura. Era um rapaz valente como as armas, destemido como poucos, desembaraçado como ninguém a bordo e que entendia da manobra às direitas.

Não havia tempo nem mar que lhe metessem medo: e por mais duma vez salvara o navio em casos apurados, pela sua presença de espírito.

Sempre alegre, sempre a cantar, parecia que não havia tristezas que com ele entrassem, nem penas que se lhe pusessem diante.

Tinham-lhe nascido os dentes no mar, calhara no navio, e fora dele andava triste como o peixe fora da água; o pobre do rapaz, também, era enjeitado, e vivia cá neste mundo sem ninguém que lhe quisesse.

Chegou lhe entretanto ocasião de deitar ferro em amor e de arranjar amarra de má morte, pois quebrou no primeiro temporal e que deixou abrir-se e naufragar o barco de encontro aos baixios da vida.

Manoel teria dezoito anos se tanto, quando uma tarde, indo em penitencia à igreja de Nossa Senhora da Penha a cumprir uma promessa que fizera em hora aflita, encontrou a um canto da igreja, ajoelhada a rezar também, uma rapariga nova, bonita e toda coberta de luto.

Seguiu-a, soube onde morava, requestou-a e ajustaram casamento, que só dependia duma viagem redonda ao Brasil, em que o rapaz contava apurar os vinténs de que precisava para por a casa. E assim, entre promessas e esperanças, viveram dois anos, que tanto mediou entre o dia em que pela primeira vez se tinham visto e aquele em que ia partir para a mal-venturada viagem.

Foram os melhores da vida de ambos. Ai! quem tem vivido de ilusões e de esperanças, sentindo um coração a afinar pelo seu no pulsar e no tremer, uma alma unir-se à sua cada vez a mais a mais até se confundir de todo; quem tem a registrar esses dias em que o tempo voa nos instantes dos colóquios para descansar, e demorar-se nos séculos que os separam; quem tem encontrado sempre na dor e no prazer companhia e afeição, amor sempre, dedicação e sentimento, como só a mulher sabe ter, e a mulher que ama deve resignar-se para todas as provas, para todos os padecimentos, porque já antecipadamente tem gozado o maior quinhão de felicidade que a terra lhe pode dispensar.

Neste viver do céu tinha passado Manoel dois anos, e tão breves lhe tinham parecido, que na hora da despedida dava a vida inteira por um dia só mais que fosse.

Mas era preciso. O navio partiu e o piloto acompanhou-o em corpo, deixando a alma em terra, e com a alma a esperança e a vida.

Nos primeiros tempos esteve como doido. Por mais duma vez o navio correu perigo sem que ele desse por isso, sem que aquela valentia doutros tempos acordasse nos momentos de aflição; parecia barco sem leme ou alma penada sem sepultura: de nada dava fé nem a coisa alguma atendia. Depois o tempo gastou as mágoas, as rugas ficaram no rosto, a saudade no coração; mas o marinheiro tornou a ser o que era, menos na animação e na alegria, que dessas só Marta podia dizer o que era feito.

Teve má sina a viagem. Avarias, arribadas, empates de vendas, dificuldades de carga demoraram três anos o Corsário em vez dos seis meses, que deviam de ser. Em Lisboa correu voz de que se perdera, e os próprios donos do barco descoroçoaram de o tornar a ver.

Nos primeiros tempos Marta, sempre que podia, chegava ao escritório para saber notícias, depois foi-se demorando mais até que por fim deixou de aparecer. Bem sabia que Manoel, apenas saltasse em terra, correria onde ela morava: para que havia de perder tempo, de que precisava para viver e cuidar do enxoval?

Um dia soube que se perdera o Corsário com toda a tripulação. Ficou por morta. Por dois meses padeceu numa cama do hospital, depois melhorou pouco a pouco, até que saiu tão boa como dantes e mais formosa ainda, porque a palidez lhe aumentava a beleza.

Perto dela morava um rapaz, operário diligente e de bons costumes, novo também, laborioso e honrado: encontraram-se um dia na escada, e cumprimentaram-se. Ela percebeu no vizinho semelhanças do Manoel; chorou muito, mas pensou no operário toda a noite; de manhã, para espairecer saudades, estava na janela ainda de madrugada, e viu o quando ia para o trabalho; depois foi continuando a vê-lo, depois... as recordações de Manoel começaram a sumir-se-lhe pouco a pouco da lembrança, como o navio, em que partira, fora desaparecendo ao longe, pouco a pouco, nas águas do mar.

***

Entretanto o Corsário entrava a barra, de panos largos em tarde de primavera, como cisne nadando em lago de jardim. A marinhagem debruçava-se nas amuradas, e com os olhos namorava a terra, a que a prendia o coração. O sol baixava, e a cidade estirada por esses montes fora recortava-se sobre o fundo azul da serra de Monsanto, onde se refletiam, já muito oblíquos, os raios do poente.

Todos ou quase todos têm visto Lisboa do mar e todos se tem enlevado em suas formosuras; mas nem todos sabem o que é ver a terra onde se nasceu, onde se passou o melhor tempo da vida, onde estão amizades e amores, saudades e memórias, depois de meses passados entre mar e céu, a perderem-se e confundirem-se um no outro: e de vastos, que são, a apertarem-nos, a apertarem-nos a mais a mais o coração e a alma.

Para Manoel nem cidade, nem montes, nem rio, nem sol, nem céu, nem coisa, que neste mundo houvesse, valiam a pena dum olhar; uma casinha somente, uma mulher e um amor, eram tudo, em que pensava, o que unicamente lhe prendia a atenção.

Para que de mais longe pudesse ver, apenas passara as torres, subira a uma gávea e dali esbugalhava os olhos para terra, como quem por eles queria que a alma fosse em procura de Marta. Mal o navio deitara ferro, atirou-se a um escaler, e agarrado aos remos, porque a seu ver ninguém os puxava com tanta ânsia e tanto d'alma, voara, que não correra, até ao cais, onde dum pulo saltou em terra.

Mas dados que foram os primeiros passos com os restos daquele ímpeto que vinha de dentro, Manoel estacou e ficou pregado ao chão. Tremiam-lhe as pernas, esmorecia-lhe a vista, estonteava-lhe a cabeça, e o coração, esse, batia-lhe no peito, como azas de andorinha em horas de temporal.

Que seria de Marta? Morrera talvez: esquecê-lo-ia, o que fora pior; porque nem a poderia chorar. Iria encontrá-la casada, perdida!... Instantes de incerteza como aqueles envelhecem tanto, como anos sem descanso. Fraquejou por um momento, cobrou animo depois, como o navio, que resiste a um furacão: e, quase de corrida, deitou para o sítio em que a deixara noutros tempos.

Tinha-se mudado, era já um mau agouro; as recordações do passado deviam prendê-la àquela casa, se a abandonara fora porque esquecera também essas recordações.

Manoel sentia apertar-se-lhe o coração ao bater à porta e ao dar com a cara duma vizinha antiga que ocupava aquela habitação.

Perguntou por Marta e soube o que sucedera acrescentado ainda em cima pelas coscuvilhices de senhoras vizinhas.

Disseram-lhe que os amores de Marta estavam mais adiantados do que o deviam ser para corresponderem ao seu bom porte de outro tempo, e que se deixara a rua fora porque todos ali a conheciam e todos murmuravam da sua vida; que na nova habitação podia estar mais à vontade, por isso a escolhera; finalmente, e para encurtar razões, tantas coisas que fariam perder a paciência, a quem a tivesse bem calejada, quanto mais a quem tinha sangue na guelra e o ciúme a ferver-lhe lá por dentro.

Ouviu, como se estivera sonhando, parecia-lhe tudo impossível. Marta, a sua Marta ser-lhe infiel, era para dar em doido. Tanto lho afirmaram, todavia, que o quis experimentar, e, como o condenado que vai para a forca, seguiu para a morada nova da sua antiga amante.

Era já noite, ele caminhava encostado às paredes, e como quem receia cair. A dor também embriaga, e o marinheiro, que por tantas vezes resistira ao vinho e à aguardente, fraquejara àquele padecer; era outro homem, as palavras da velha tinham no mudado de todo.

Ao voltar da esquina da rua indicada, viu de longe numa janela um vulto, que o coração conheceu, antes que os olhos o pudessem adivinhar. Era Marta, dizia-lhe o que sentia em si e os estremecimentos do seu amor.

Mas quando, esquecido de tudo, ia soltar um grito e correr para a que tanto amava, um outro vulto que parara debaixo da janela, depois de ter falado para cima e de lhe terem respondido, entrou a porta que lhe franqueavam e que pouco depois se cerrava sobre ele.

Marta desaparecera da janela e em breve aquela casa ficara sepultada nas trevas, como o pobre Manoel no desalento e desconforto.

Já não tinha que duvidar, não era sonho, estava realmente acordado, os seus olhos não o enganavam; esperou entretanto, ora correndo como um perdido, ora parando como quem ia desfalecer, ora soltando palavras sem sentido, ora rugindo como uma fera, espumando como um possesso.

Perto da meia noite abriu se a janela, Marta apareceu de novo, o mesmo vulto saiu e encaminhou-se para onde estava Manoel, este como fora de si, não vendo senão sangue partiu para ele, com a faca de marinheiro aberta: ouviram-se dois gritos, um corpo baquear no chão e uma voz de mulher, que pedia socorro.

***

Momentos depois já Manoel estava prezo: tinham acudido aos gritos de Marta, e tinham-no encontrado com a faca ainda aberta defronte de um corpo caído no chão, e a golfar sangue por duas feridas profundas.

Era mais do que o bastante.

O depoimento da vizinhança, o próprio testemunho de Marta, tudo concorreu para que o condenassem.

Levaram-lhe porém em conta o bom passado, os negociantes respeitáveis, donos do navio a atestarem o seu bom porte, uma tripulação em peso de honrados e velhos marinheiros encanecidos pelo tempo, e crestados pelos soes da linha a dizerem: que ele também fora honrado.

Os jurados, santas criaturas, comoveram-se com aquele espetáculo; o advogado do réu, rapaz de esperanças, vociferou contra as leis de sangue, e discorreu como uma boca de ouro sobre a alienação mental e as circunstâncias atenuantes; o juiz sensibilizou-se também, e todos enternecidos condenaram o réu... a dez anos de grilheta.

Para um homem como Manoel, semelhante afronta seria pior do que a morte, se no estado em que se achava, ele a pudesse apreciar.

Depois que cometera o assassinato tinha ficado como louco, ou pior ainda, porque parecia idiota.

Um golpe daqueles, uma mudança daquela qualidade!

Quando esperava colher o fruto de uma vida trabalhosa e honrada nos braços da sua Marta, ver-se de repente criminoso, assassino e desonrado; toldarem-se-lhe na cerração as estrelas, que o guiavam nesta vida, o astro do amor, e o astro da honra: eram provações de sobra para deitarem por terra castelos mais fortes, e almas ainda mais valentes.

Manoel não morreu, mas fraquejou para sempre. O mesmo doutros tempos nunca mais tornou a ser. Nunca mais o viram rir, cantar não o ouviu mais ninguém: e as rugas, que se lhe cavaram no rosto, também se lhe entalharam no coração.

O amigo da humanidade, que inventou as prisões em comum e a grilheta, foi de certo um grande perverso. Só a um requinte de malvadez se pode atribuir um invento que envolve e reúne no mesmo castigo, na mesma atmosfera de perversão, inocentes e criminosos, pois que assim comparados uns com outros se podem chamar: e que não contente com isso lhe acrescentou a grilheta, exposição ambulante, aperfeiçoamento da que, em tempos de barbaridade, se aplicava as mais das vezes a vitimas do que a réus.

A influencia desmoralizadora daqueles dez anos não alcançou todavia o antigo piloto: quase que nem os percebeu, tudo era para ele estranho, inexplicável, incompreensível; um pesadelo que durava muito, e de que esperava acordar um dia.

Entrara na cadeia de vinte e um anos; saia sexagenário, eis toda a diferença. Aqueles dez anos valiam-lhe por quarenta; e, mocidade, alegria, sentimento, coração, vida, entusiasmos doutro tempo, crenças e aspirações, tudo deixara ao sair, com a grilheta que depusera.

Só não perdera um sonho atroz, que quase todas as noites o perseguia, e que, salvo pequenas mudanças, era sempre o seguinte:

Navegava a bordo do Corsário. De repente o Oceano transformava-se em largo mar de sangue: debruçado na amurada via-se lá em baixo a braços com um homem, que lhe ia roubar a sua Marta, inocente como os anjos, pura como a estrela da manhã, serena como o alvorecer de estio em alto mar, e que dentre nuvens no céu lhe sorria amor. A luta continuava encarniçada, ele fora de si puxava pela faca; mas, por mais diligencia que fazia, só alcançava Marta, o seu contrário escorregava-se dentre os braços escapando-se-lhe aos golpes. Depois o mar de sangue envolvia-o todo, ia já a afogar-se, e a voz de Marta ecoava-lhe aos ouvidos clamando; assassino, assassino. As ondas passavam-lhe por cima da cabeça, o marulho das águas, o sussurro do vento casavam-se com uma voz confusa, que lhe baqueava nos miolos, dizendo-lhe: não matarás.

Nos primeiros tempos, em que saiu, ainda teve esperanças de voltar à vida antiga; mas todos, que procurava, se afastavam dele com terror. Desesperado, momentos houve em que lhe passou pela cabeça vingar-se de uma sociedade, que castigava nele um crime mais dos outros do que seu, e seguir a estrada do mal, já que lha lembravam, e já que lhe tornavam todas as outras impraticáveis; mas o principio do bem e as ideias que recebera com a educação, predominaram sempre.

Custara-lhe muitas noites de insônias e de frenesi, horas de amargura, em que chegou a desejar a vida da cadeia, ocasiões em que a ideia da morte lhe trabalhou muito na cabeça.

Uma noite, pelas onze horas, vagueava pelo cais do Sodré depois dum dia passado em inúteis pesquisas de trabalho, e em repetidas e semelhantes recusas. O céu estava carregado, o vento soprava em lufadas da barra, o rio estava revolto, as águas negras, a escuridão negrejava em tudo. Debruçado sobre o cais, remontou-se pelo pensamento àquela tarde em que, onze anos antes, desembarcara no mesmo sítio. Como tudo tinha mudado. Que alegrias então, que tristezas hoje! A água começou a namorá-lo debaixo, o desalento a convidá-lo em roda, ia a precipitar-se, um braço susteve-o, uma voz exclamou: cobarde! — Era o braço de um antigo companheiro, a voz dum velho amigo, marinheiro como ele; mas muito mais pobre, muito mais velho, e que pedia esmola encostado ao parapeito do cais.

Aquela palavra e aquele exemplo fizeram-no renunciar para sempre ao suicídio. Para não ser cobarde muitas vezes em temporal desfeito se resolvera a morrer, agora, para que lho não chamassem, resignava-se a viver. Era maior o sacrifício, mas para o compensar estava a ideia de que podia ser útil ao velho Estevam: e a companhia dum amigo que lhe aparecia nas proximidades da sepultura.

E... porque não havia de concorrer também?

A esperança, que mesmo sem fundamento algum, ainda lhe dizia que vivesse, e o acompanhava, como sempre, nos mais atormentados lances?

No dia seguinte, com o pecúlio que por seu trabalho juntara na cadeia, comprava um velho barco de pesca, e ambos tomavam posse da propriedade comum não contentes, mas resignados, batizando-a — Desgraça,— pelo muito que ambos haviam padecido.

Se o trabalho faz minorar e esquecer as mágoas, nenhum modo de vida se criou melhor para o esquecimento do que a vida do pescador. A lida continua e a luta permanente com o mar e com o vento, a vigília, o emprego de todos os sentidos, trazem o que nela se emprega sempre voltado para o seu trafego e sempre estranho ao mundo com o qual só de leve trata: e daí para Manoel aquele labutar tão semelhante ao de outros tempos, aquela vida, reflexo da outra, reflexo pálido em que o rio substitui o mar, em que o barco substitui o navio, mas que nos lances e no trato, tanto lha recordava, era um paraíso, depois daquele inferno porque passara.

Estevam, que o infortúnio lhe oferecera por companheiro, serviu-lhe de amigo e de auxílio durante três anos, em que gradualmente se lhe foram esvaecendo da lembrança os desgostos e as desilusões.

Se para Manoel pudesse ainda haver felicidade, quase que aqueles três anos se poderiam dizer felizes.

Desde a tarde em que saltara em terra, entre receios e esperanças, nunca mais encontrara alma onde derramasse as amarguras, que trasbordavam da sua, nunca tivera ninguém que o compreendesse, nem que avaliasse a sua dor. O companheiro de grilheta, que lhe haviam jungido, era um celerado, com tantas mortes e tantos crimes, que horrorizava ouvi-lo, e ainda mais vê-lo rir das mágoas de amor. Ás queixas de Manoel, respondia com imprecações, e se ele insistia, dava-lhe para que o deixasse com semelhantes pieguices.

Depois que o soltaram, nunca nem um só, dos que dantes o tratavam, lhe mostrou boa feição, todos fugiam do grilheta, alcunha que lhe tinham posto e que lhe recordava a antiga condenação.

Porque, clamem embora os filósofos, a reabilitação moral para o criminoso pobre é impossível, para o rico é inútil, ninguém lhe toma contas nem do passado nem do presente: o miserável, porém, traz a corrente presa toda a vida, todos lha notam, todos lhe apontam para ela, e embora ele diga: vejam o que hoje sou; todos lhe tornam: vemos o que foste ontem.

Por isso aquele companheiro, que o compreendia, aquela solidão que o não acusava, aquele mar e aquele céu, que lhe lembravam o perdão e o infinito, foram como um calmante para a sua dor, como uma estação de descanso na sua jornada de padecer.

Estação, que durou pouco e que uma borrasca desfez, numa tarde, em que já recolhiam da pesca, seguindo pelo Tejo acima, a procurar abrigo em alguma daquelas enseadas naturais, que o rio abre, nas proximidades de Sacavam.

Desgraça, apesar do vento à popa, seguia pouco, e arfava muito porque havia força de corrente, e a vazante ia com grande rapidez.

Principiava a escurecer e o vento a carregar com a noite, alguns trovões ouviam-se ao longe, e um temporal rijo se aparelhava para em pouco. O barco já não dava pelo leme, e a cada momento se enchia d'água;— ir para diante era quase impossível, e à primeira onda mais rija, o casco já velho, podia abrir-se de popa à proa. Posto que não conhecessem a praia, em risco de bater em alguma pedra, tentaram atravessar, e encalhar quanto antes, depois de esforços sobre-humanos para lutar com o temporal; mas quando aproavam para terra uma rajada mais forte lhes levou a vela, e uma onda apanhando o bote pelo costado, meteu-lhe a borda debaixo d'água, e virou-o logo.

Só os que têm vivido parte da sua vida no mar é que avaliam bem quanto custa ao marinheiro deixar as taboas, em que tem navegado, sejam elas de bote catraio ou de navio de alto bordo. Para Manoel e para Estevam o barco era a fortuna, a família, o mundo inteiro, que as águas lhes queriam roubar.

Agarrados a ele, mal se via já, trabalharam quanto puderam para ver se o salvavam; mas, baldados esforços, o que conseguiam num quarto de hora, perdia-lho num segundo uma onda mais valente. E as forças a faltarem-lhes, e a respiração a dificultar-se-lhes, e os braços a renderem-se-lhes.

— Já de noite— não podendo mais, tiveram de o largar, e por um instinto de conservação, que nos não deixa nunca, cuidaram de se salvar nadando para terra. Não era cedo: acontecia-lhes o que sucedera ao barco, e quando mais cresciam para a praia, animando-se e clamando um pelo outro, porque não se podiam ver, mais os afastava a corrente, que seguia com uma velocidade de espantar.

Estevam não lutou por muito tempo. Mais velho e mais cansado, uma onda abafou-lhe o último grito, e galgou-lhe por cima da cabeça, entrando-lhe pela boca aberta convulsivamente num extremo resfolegar. Manoel com o desespero de afogado, reuniu todas as forças, e num extremo alento enterrou um braço no lodo da praia, para que a água o não levasse, procurando já por instinto conservar a cabeça ao cimo d'água para gritar, e tomar a respiração.

Suceder-lhe-ia em pouco o mesmo que a Estevam se da terra o não ouvissem; correram em seu socorro com luzes e cabos, nadaram para onde se ouviam os gritos, e agarraram-no pelos cabelos, quando exausto de forças ia mergulhar também.

— Quase que não respirava.

A Providencia velava por ele, era a segunda vez que o salvava.

De manhã quando Manoel deu acordo de si, viu-se deitado numa esteira perto da chaminé, onde ardia um bom fogo, e ao pé dele um rapazito de dez a doze anos a vigiar lhe o sono: já não sentia a fadiga da véspera, e tinha recuperado as forças com o descanso; ia para se levantar e agradecer aos que o tinham salvado, quando a criança, pondo-lhe a mão sobre o ombro lhe disse:

— Não se levante, faz-lhe mal, a mãe não quer; e como ele teimasse, gritou: — mãe, acuda cá, o homem quer levantar-se, quer ir-se embora.

Á voz da criança abriu-se uma porta, e uma mulher, que teria trinta anos, quando muito, e que apesar de cansada pelo trabalho, ainda era formosa, apareceu no limiar.

Manoel apenas a entreviu, com o lusco-fusco da madrugada, que iluminava fracamente a casa, deu um grito, levantou-se cambaleando e enfiou pela porta meia aberta para a estrada.

Ela ao reconhecê-lo também, encostou-se ao umbral da porta para não cair no chão.

Era Marta.

***

O céu tinha limpado de noite, o dia amanhecera sereno, e o sol aquecia bastante, apesar de ser no outono. E aquela estrada, então, que era um descampado!

A meia hora de caminho, andando sabe Deus como, com a cabeça pelos ares e a razão quase transtornada, Manoel teve de parar, ou, para melhor dizer, de cair num poial, que estava à beira da estrada debaixo de uma nogueira velha.

Se não estivesse já experimentado na infelicidade, o pobre homem, que pela sua má sina parecia ter nascido nas horas da desgraça, finava-se ali de todo.

Mas a canseira do corpo venceu a labutação do espírito; as horas, que levara de volta com o mar, o dia que passara e este que ia correndo sem comer; aquela vista e aquele abalo, tudo junto deitaram-no como desmaiado sobre o poial onde ficou a dormir, a pensar, ou a esmorecer, que nem ele mesmo soube nunca o modo porque fora, até que um velho vizinho e que por mais de uma vez chegara ao umbral da porta a encarar com ele, o fez tornar a si batendo-lhe no ombro e perguntando-lhe se tencionava ficar para sempre ali estendido.

Manoel para aquelas bandas não sabia caminho nem carreira, e que o soubesse não tinha alma de o seguir. O velho compadeceu-se dele, porque pelo fato e pelo falar, conheceu logo que era estranho ao lugar; ofereceu-lhe, para passar a noite, um bocado de esteira, para matar a fome um pedaço de pão e uma cabeça de sarda, e para companhia a sua pessoa e conversação.

Aceitou, e seguiu o seu hospedeiro como por demais: e, sem dar fé do que fazia, comeu, deitou-se, e dormiu a noite de um sono.

Só nos romances é que os heróis não dormem depois de fortes abalos; na vida vulgar, na vida de todos e de todos os dias, depois dos grandes padecimentos, vem o cansaço mesmo da dor, e depois o sono, às vezes mais profundo, mais descansado, do que nas ocasiões triviais.

Na manhã do dia seguinte Manoel acordava tranquilo e quase feliz. Ao cabo de tanta luta, de tantos lances, e de tão grandes golpes, aquele remanso, que o velho lhe oferecia, aquele apartamento do mundo, aquele mesquinho oásis, entre um cemitério e um ancião que para ele se inclinava e se debruçava sobre a cova; entre dois túmulos, mas sempre oásis para o seu mundo deserto de afeições e de esperanças, era o sossego, o esquecimento, quase a felicidade, felicidade da morte, mas ainda assim agradável para os que nada esperam da vida.

Diz um aforismo, ditado talvez pela descrença, mas provado pela experiência, que um dia de desgraça estreita mais amizades do que anos de ventura; contaram-se a sua vida, comunicaram-se as suas infelicidades, e deram-se o nome de amigos.

Não eram interesseiros os protestos; e por isso, bem sinceros.

Até à morte do velho, Manoel viveu na sua companhia; enterrou-o, chorou sobre a sua sepultura, herdou-lhe a pobre habitação e o descobiçado emprego, e nessa posse estava quando em companhia do tio Joaquim o encontrei.

***

Haviam decorrido dois anos depois que viera do campo, e, com toda a sinceridade o confesso, nunca mais me lembrou em Lisboa, nem o guarda do cemitério, nem a sua história, que o bom do tio Joaquim me referira.

Tive de voltar àqueles sítios e seguindo o caminho por onde viera da feira, comecei a avivar recordações, a recontar de mim para mim aquelas horas tão felizes, tão descuidadas, tão folgazãs, que me tinham corrido por aqueles descampados, e a ver por entre as moitas dos valados, que a primavera perfumava de aromas e esmaltava de flores, as saudades queridas daqueles encantados tempos.

Ao voltar da estrada quase no mesmo ponto, em que os cavalos se haviam detido dois anos atrás, deteve-se também o que eu montava; obrigando-me a abandonar aquelas regiões do idealismo pela realidade de tempo e de lugar.

Não conhecia os sítios, tive de me orientar, invocando reminiscências antigas, e confrontando paragens, para me certificar onde estava.

A igreja, a casa do guarda, o próprio cemitério, pareciam remoçados pelo influxo de alguma divindade benfazeja. Inspiravam ainda tristeza aqueles lugares, mas uma doce e plácida melancolia sucedia-se agora ao desconforto e desalento, que ao atentar naquelas ruínas, nos arrefeciam a alma.

O musgo estendia por partes o seu luxuriante manto de verdura, contrastando com o negrejar das cantarias, e dando e ganhando esplendores com o realce. Bandos de pombos esvoaçavam em roda das escalavradas paredes, casando os arrulhos, beijando-se, perseguindo-se em revira-voltas graciosas, cortando os ares em todos os sentidos com elegantes curvas, afagando-se e brincando, espalhando sobre aquelas ruínas suaves perfumes de alegria e de amor. Perto a casa, alvejando por entre as latadas de jasmineiros e madressilvas, o velho poial limpo e rebocado sob um caramanchão de heliotrópios, e até a nogueira velha parecia mais viçosa e risonha.

O cemitério, que da pequena elevação, onde parara, se avistava todo, tinha as ruas limpas e orladas de alecrim e alfazema, as lapides mais desafogadas de mato, as cruzinhas mais negras, as árvores mais cuidadas, o chão recamado de flores.

Tudo era novo para mim, mas tudo melhorara com a inovação, e despidas as rugas de uma velhice precoce ou de uma mocidade gasta e devassa, apresentava-se tudo agora com as louçanias de uma virilidade robusta, de uma existência descansada, serena, quase festiva.

Aquele rejuvenescer estendera-se também ao antigo habitante, que havia visto outrora sujo, maltrapilho, alquebrado, velho até; e que via agora assomar à porta tão asseado, tão esbelto, tão remoçado, que foi preciso que me cumprimentasse e que eu o ouvisse falar, para perceber que era o mesmo.

Apeei-me e mais curioso de que uma mulher, ou do que qualquer homem dos que neste vício lhes levam as palmas, procurei indagar o porquê daquelas mudanças.

Talvez pelo respeito, que todos por aqueles lugares me tinham, consegui de Manoel a confissão da sua vida na parte que não conhecia, e em que se operara aquela transformação.

Em resumo foi o seguinte:

Tempos depois da morte do seu antecessor, Manoel acordara uma noite ao bater-lhe à porta o acompanhamento de um enterro, que, como todos sabem, costumam no campo, ser fora de horas.

Atrás do caixão vinham chorando a viúva, o filho do finado, e alguns vizinhos, que os acompanhavam.

E... para que hei de torturar a curiosidade dos meus leitores, se é que a despertei em alguns, a viúva era Marta e o filho, aquela criança que vigiara o sono de Manoel.

Encontravam-se pela terceira vez, mas desta finalmente para não mais se apartarem senão no tempo consagrado ao luto. Marta contou-lhe como o Miguel não morrera das facadas, como se tinham casado depois, e como de Lisboa tinham vindo para aqueles sítios viver na companhia de um tio do marido, dono da fazenda onde foram depositar o nosso naufrago.

Viram ambos naquele inesperado encontro ao pé de um cadáver, a vontade da Providencia que os reunia enfim depois de tantos azares. Esta conclusão, que nem por isso depunha muito a favor da sua lógica, pois que o encontro mais naturalmente provinha da ocupação de Manoel, recebeu sobejo apoio na mutua afeição, que nunca se sumira de todo e que renascia agora mais valente e duradoura.

Marta justificou-se a seu modo, e uma torrente de lágrimas rematou-lhe a peroração talvez artificial, mas de grande efeito para o seu auditório. Manoel enterneceu-se, acreditou-a, e chorou também. E, regada com as lágrimas de ambos, desabrochou rápida a flor do himeneu.

Casaram, não tiveram muitos filhos, não tiveram mesmo nenhum, mas o Miguelzinho, a quem o padrasto estimava como a si próprio, foi cimento mais que bastante para aquele templo modesto de felicidade conjugal.

Quando Manoel acabava a sua história, aparecia Marta à janela chamando-o e lançando uns punhados de milho a um rancho de galinhas, que andavam pela estrada defronte da porta; e por uma azinhaga próxima assomava o Miguel tocando umas vacas e umas ovelhas, que recolhiam do pasto.

— É feliz!... Disse-lhe eu tão senhor de mim e com uns ares tão sentenciosos e profundos como se fizera uma grande descoberta.

— Sou, graças a estes, e (levando-me à porta do cemitério para me indicar uma cruz abraçada por uma coroa de perpetuas), graças também àquele que me perdoou o meu crime.

— Ainda pensa em semelhante coisa?

— Se penso, quis matá-lo!

Uma hora depois voltava para Lisboa, se não contrito ao menos pensativo. Aquele espetáculo tinha-me valido por dúzias de sermões.

É verdade que Manoel dizia o que sabia, por experiência própria: e a maior parte dos nossos padres, não sabem o que dizem.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

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