4/09/2023

Os domingos de fora da terra (Conto), de Rodrigo Paganino



 
OS DOMINGOS DE FORA DA TERRA

Era num domingo de novembro. A água tinha caído a cântaros todo o santo dia, e a chuva fora tanta, que diziam pelos sítios: já os cães a bebem em pé.

Grande parte dos trabalhadores da quinta, em que eu vivia, tinha saído depois do jantar, embrulhados uns em mantas, outros em gabões e gabinardos em direção à quinta do tio Joaquim de Matos, acreditado pelo bom vinho que vendia, e pelos bons pítios que lá, de quando em quando, arranjava a Sra. Josefa, sua respeitável sobrinha, desenxovalhada moça e uma das mulheres com menos papas na língua daqueles arredores.

De tempos a tempos aparecia pela adega do Sr. Matos, Deus lhe fale n'alma, pois era um honrado homem, um ensebado baralho, que cortava a monotonia de um sempiterno jogo de bola, e entretinha quando o tempo estava de pior catadura, os afreguesados frequentadores. Outras vezes também um ou outro especulador lisboeta arribava àquelas paragens com esperanças de armar trapaças e jogatinas, e esse então premunia-se antecipadamente com uns dados, de lisura problemática, ou com algumas cartas de igualdade controversa, que manejadas habilmente lhe serviam de traiçoeira isca para os agourentados vinténs dos pobres malteses.

Mas, verdade verdade, era uma exceção da regra. O dono da casa obstava quanto podia a estes desvios: e já experimentado nas consequências, tratava de por cobro a semelhantes armadilhas.

O domingo, porém, a que nos referimos era um dos tais dias aziagos. Os lisboetas, as cartas e os dados tinham trabalhado muito, acompanhados, já se vê, de um número infinito de quartilhos de vinho, que numa roda viva passavam do balcão para a mesa do jogo, e desta para o poder da tia Josefa, que já não tinha mãos a medir.

Em medidas efetivamente passara ela o tempo todo; mas nem todas iguais, porque, por amor do próximo já se entende, quando os via mais carregados aliviava-lhes a mão, e esvaziava-lhes os copos; até que por fim de contas, quase que, em vista da exiguidade da dese, mal se poderia reconhecer quanto tinham pedido.

Mas decretos da Providencia, que sempre são de imenso alcance, disfarçados mesmo nas tibórnias da tia Josefa! Se não se compadecesse tanto dos míseros bebedores, em que estado não ficariam eles, que mesmo assim, quase sempre, ao sair, não sabiam quem era o cura da sua freguesia!

Os nossos amigos trabalhadores, que não queriam passar por homens de ficar atrás em coisas daquelas, entraram na quinta, à volta da adega do tio Matos, que era uma lastima vê-los. Uns a cair, outros cheios de escalavradelas, e todos eles sem real da feria da semana.

Começaram bebericando para não fazer desfeita aos lá da cidade que os tinham convidado; pouco a pouco foram chegando-se para o jogo, ao principio somente para ver, depois para jogar. Enfim quando não cabiam em si de contentes, porque iam de cima e tinham alguns vinténs diante de si, viram num relance de fortuna varrer-se-lhes tudo da frente, à maneira de cômoro de valado feito de terra solta, e que uma cheia leva no enxurro.

Daqui os ralhos e as desordens; após as descomposturas, as vias de fato, e quem sabe, se não lhe acudissem, onde a coisa iria parar.

Fazer-lhes pregações naquelas alturas era o mesmo que chover no molhado. O tio Joaquim, que não era de hoje nem de ontem, conheceu logo que perdia o seu tempo; deu-lhes de mão naquela noite, e no dia seguinte às horas do costume contou-lhes pouco mais ou menos o que se segue:

Poucas coisas há que tanto custem, para nós, que toda a semana andamos agarrados ao cabo da enxada ou rabiça do arado, como é entreter os domingos e dias santos, que o Senhor nos manda para descanso do corpo e recobro de forças.

Depois da missa fica um por aí além de horas, que é preciso matar sem quebra do temor de Deus, nem ofensa do próximo; mas como nem todos sabem o que hão de fazer, acontece quase sempre, que as perdem, e as perdem muito para mal.

As velhas onzeneiras, que almejam pelos domingos para bisbilhotarem as vidas alheias e darem cresta às colmeias dos outros, dizem que se deve descansar do trabalho, e passam-nos na ociosidade, que de todos os vícios é o pior; os mal comportados destinam-nos para as tabernas, do que conseguem, além de ficar moídos e ralados, sem poder fazer obra que se veja nos dias mais próximos, fazerem-se brutos de todo ao cabo de pouco tempo.

E dizem que descansam! Qual descanso nem meio descanso! Como se o homem não fosse como a terra, e como esta precisasse estar em pousio para melhor produzir!

Muda-se a sementeira como se deve variar o trabalho, e o melhor descanso não é aquele que consiste em não fazer nada; ou então, o que é pior ainda, em armar distúrbios e levantar rixas.

Três rapazes conheci eu, não há muitos anos, cada um dos quais tinha o seu modo particular de entreter os dias de festa, cada um dos quais também escolheu frutos correspondentes ao grão que lançara à terra.

Variavam tanto nos costumes e sistemas, como se apartavam nas feições, e como se vieram a diferençar também no destino que levaram.

Tinham nascido na mesma terra, e, bem moços ainda, tinham vindo procurar trabalho à mesma fazenda; porque, acostumados a viverem juntos desde pequenos, não se podiam separar nem à mão de Deus Padre.

Roberto, o mais velho de todos, era feio de cara e de pior catadura. Zangava-se por dez réis de coisa nenhuma, e quando estava zangado dava por paus e por pedras. Tinha tanto de robusto, como de mau, e só respeitava, de toda a gente, os seus dois companheiros, Pedro e Anastácio. O primeiro destes fazia tanta diferença de Roberto, como o dia da noite. Franzino e delgado, parecia que o menor sopro o deitava a terra, e lembrava mais um alfinete de toucar do que um trabalhador de enxada. Comedido e de bons termos para todos, em pouco tempo ficou sendo o ai Jesus da fazenda, onde morriam por ele.

Anastácio, o último em que lhes falei, era, por assim dizer, como uma ponte entre os dois. Fazia lembrar o outono entre o verão e o inverno. Se era desembaraçado e lesto como Roberto, era bom como Pedro, estimava um e outro deveras: mas se não podia levar a bem os arremessos e maus modos de Roberto, não gostava também muito de tanto de não presta, de que estava cheio o outro seu companheiro. Não lho deitava à cara para não o envergonhar; mas muitas vezes lho ouvi dizer:

— Não se há de fazer nunca dali coisa que tenha jeito, parece um Santo Antoninho onde te porei; nasceu mais para fiar numa roca do que para puxar ao trabalho com substancia. Não é culpa sua, isso é verdade, mas por mais que me digam, aquilo foi erro da natureza.

Em pouco tempo teve cada um uma ocupação adequada às suas posses. Pedro, que mais não podia, foi encarregado de guardar um rebanho de ovelhas e cabras, que tinha mais de duzentas cabeças; Roberto tomou conta da abegoaria e das cocheiras; Anastácio ficou de rancho na malta, entre os trabalhadores de enxada.

Como é bem de ver, o pior dos três começou a fazer das suas: trabalhava de má vontade, embebedava-se, e tratava do gado à moda de mil demônios.

O mais fraquito, bem ao contrário, começou a fazer as vontades aos patrões e a cair lhes em graça.

Tanto fez, tanto fez, que o filho da casa pegou a ensinar-lhe a ler, coisa porque ele morria havia muito tempo, e em que entretinha os domingos, passando os dias de semana, em quanto o gado pastava, a estudar as lições e a puxar por si; o Anastácio que não podia aturar a letra de imprensa, nem, segundo dizia, tinha cabeça para aprender, começou a fazer economias para, logo que pudesse, tratar de casar com uma rapariga da sua terra, com quem estava justo desde pequeno.

Enquanto uns iam para as tabernas e Pedro dava lição, ele, que não queria gastar o dinheiro em extravagâncias, nem atormentar a cabeça com aquelas tontices dos livros, procurou ver se aprendia algum ofício ou arte, em que se entretivesse, e em que passasse o tempo com toda a economia.

— Por que não estudas tu aos domingos também? perguntava eu muitas vezes a Roberto.

— Ora, porque não nasci para sacristão, nem para besta de carga. Enfados bastam os da obrigação, que já não são poucos, quanto mais i-los eu buscar agora por minhas mãos. Sempre ouvi dizer que era preceito guardar os domingos e festas de guarda, e que trabalhar nestes dias era pecado.

Estavam as coisas nestas alturas, quando tive de ir à minha terra, recolher uma herançasita que houvera, e demorar-me por lá algum tempo para por as minhas coisas a direito; quando voltei nenhum deles já estava na mesma quinta.

Seis anos depois em dia de festa de Corpo de Deus, fui a Lisboa ver a procissão e visitar de caminho uns parentes, que ali tinha,— já lá estão na terra da verdade, pobre gente! — Deus os tenha à sua vista.

Passava pela rua dos Bacalhoeiros quando ouvi que de uma tenda me chamavam pelo meu nome. Vejam qual não seria a minha admiração, quando dei com duas caras conhecidas, que me faziam muita festa, e que eram nem mais nem menos do que os nossos amigos Pedro e Anastácio.

Nem pareciam os mesmos, nos termos e nos trajes lembravam pessoas da cidade, mas no coração eram sempre os pobres e bons trabalhadores.

— Ora o tio Joaquim por estes sítios, me disseram, e sem nos conhecer!

— É verdade, rapazes, quem era capaz de pensar, que havia agora de vir topar com vocês, assim tão enfeitados e garridos. Com mil demônios, se me não chamassem, não era eu que os descobria.

— Mas nós não esquecemos os amigos velhos, e logo que o vimos, não quisemos passar sem o abraçar.

— Bem apertado e do coração. Mas pelo que vejo a fortuna fez das suas, e lembrou-se de vocês.

— É como diz; alguma felicidade tivemos. Mas não há de ficar à porta da rua, entra e vem conversar um poucochinho conosco, não é assim?

Fiz-lhes a vontade, e pelo que me contaram vim a saber o que lhes tinha acontecido, e que foi o seguinte:

Cada um deles tinha seguido o seu modo de vida, conforme se ajeitava melhor. Pedro estudando nos livros, Anastácio trabalhando nas horas de descanso, para juntar algum dinheiro.

Meteu-se-lhe na cabeça aprender um ofício e a troco de alguns serviços feitos ao mestre Antunes, tanoeiro, alcançou que lhe ensinasse o seu modo de vida, em que, com a vontade que tinha, chegou a ser um bom oficial.

Já avezava um par de vinténs, quando se descobriram essas terras lá da Califórnia, onde segundo diziam os papeis, havia mais ouro em pó, do que milho em celeiro rico nos anos de fartura.

Os homens de ganhar começaram a mudar de rumo e a procurar fortuna por essas terras. Desinquietaram-no; mas ele, desprezando o ditado: "muda de terra, mudarás de fortuna" como se ia dando bem por onde estava, resolveu-se a ficar.

Ora, não sei se sabem, que apesar de haver dinheiro a rodo pela tal Califórnia, não havia de comer, nem de beber, e qualquer coisa, que por lá se precisava, era comprada a peso de ouro. Fazia frio de cair o nariz, a aguardente e o figo, era — de mais a mim, mais a mim — e os tanoeiros por conseguinte não tinham ocasião de dobrar canela.

Anastácio, que já sabia do ofício às direitas, deitou-se à obra, empatou em madeira os pintos que juntara, e conseguiu montar uma tanoaria em grande, que em pouco tempo se afreguesou pelos bons modos do dono e bom preço das obras.

Quando o encontrei em Lisboa, acabava de casar com a prometida desposada, que trouxera da terra. A sua loja, que era uma das melhores da cidade, gozava de excelentes créditos: e o negócio corria o melhor possível.

Pedro também tinha caminhado e muito; mas por estrada diversa. Pouco a pouco fora lendo cada vez melhor, e escrevendo de forma que levava as lampas ao mestre-escola do lugar; parecia um traslado a letra do rapaz.

O dono da quinta, a quem ele caíra em graça pelos seus termos comedidos e vontade de saber, tirou-o daquele labutar e mandou-o para uma mercearia sua em Lisboa, a servir de caixeiro. Era o que ele queria e em que melhor calhava, tanto que em pouco tempo se fez um merceeiro de enche-mão.

O patrão trazia-o nas palminhas, e dizia à boca cheia: que não tivera nunca outro, que lhe chegasse tanto às medidas.

Nem só o Sr. José Esteves era desta opinião: a senhora sua filha, que se derretia para o rapasito, achava ao pai carradas de razão e fazia-se com terra de lhe chamar seu marido. Atrever-se a pedi-la, não era o Pedro capaz disso; mas o pai da rapariga, que deu na ferida, e que não era de soberbas, antes pelo contrário muito dado e maneiro, reconheceu que lhe convinha para genro um bom rapaz sossegado e amigo de dar ordem à sua vida, e em poucos tempos tratou de os por a caminho do sétimo sacramento.

Também vivia de grande quando lhe falei, e a loja onde estávamos era do sogro; ou dele, que vinha a dar na mesma coisa.

Tinham acabado de me contar as suas histórias, e ia-lhes perguntar, que norte tinha tomado Roberto, quando ao chegarmos à porta para ver a gente que passava para a procissão, desembocaram de uma daquelas ruas uns poucos de grilhetas, que de barril às costas, desciam lá das bandas do Castelo e iam para o chafariz de Dentro. Não tive que perguntar, porque reconheci-o logo entre eles quando passaram diante da porta.

Vim depois a saber por que fora ali parar. O vinho, e as patuscadas dos domingos, tinham sido a causa daquela desgraça.

Não deitava Nosso Senhor um dia santo a esta terra, que ele não fosse para a taberna, e que não saísse de lá a não ser em miserável estado. Em breve puseram-no fora do trabalho, porque não dava conta de si, nem se podia olhar para ele, de desmazelado que andava. Vendo-se sem trabalho, e sem ninguém o querer, ajuntou-se a uns poucos de vadios da terra, que passavam pelas piores firmas do lugar.

Ao principio eram comezainas e bebedices: depois como não havia dinheiro, nem gente que lhes fiasse, nem vontade de trabalhar, começaram a pregar calotes, a cometer roubos, e quem sabe se mortes também.

Ao menos assim por lá se rosnava, e bem se diz: que nestas coisas: "voz do povo, é voz de Deus."

Um dia a justiça, que andava com os olhos neles, deitou-lhes a unha. Um dos que resistiu foi Roberto, e ao fugir à prisão, feriu de morte um dos cabos, que o queriam prender.

Foi condenado às galés por toda a vida: e a cumprir esta sentença o vi eu em Lisboa, no tal dia de festa do Corpo de Deus.

Agora vocês lá rapazes, que perceberam aonde eu ia dar na minha: pensem na história que lhes contei, e vejam de que modo deverão passar melhor os domingos e dias santos.

Os bons dos malteses não deram resposta ao narrador nessa ocasião; os resultados futuros deixaram ver, porém, que as palavras do conto do tio Joaquim, não tinham sido deitadas ao vento.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

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