5/06/2023

Sermão da Visitação de Nossa Senhora (Sermão), pelo Padre Antônio Vieira

 

SERMÃO DA VISITAÇÃO DE NOSSA SENHORA 

Pregado no Hospital da Misericórdia da Bahia, na ocasião em que chegou àquela cidade o Marquês de Montalvão, Vice-Rei do Brasil. 

 

Ut facta est vox salutationis tuae in auribus meis, exultavit in gaudio infans in utero meo (Luc. I)

 

 

I 

 

Viu o profeta Malaquias em espírito aquela felicíssima jornada que havia de fazer do céu à terra o Redentor e restaurador do mundo, e dando as boas novas a todos os homens, como a enfermos pelo pecado de Adão, diz assim: Orietur vobis Sol justitiae, et sanitas in pennis ejusAlegra-te, enfermo gênero humano, alegra-te, e começa a esperar melhor de teus males, porque "virá o Sol de justiça, e te trará a saúde nas asas".

 

Cumprida temos hoje esta tão esperada profecia, e cumprida, se eu me não engano, em dois sentidos. Tanto que o divino sol de justiça, Cristo, se vestiu da nuvem branca de nossa humanidade, tanto que tomou carne o Filho de Deus nas entranhas puríssimas da Virgem Maria, como ele era a inteligência soberana que movia aquele céu animado, no mesmo ponto, diz o evangelista São Lucas que se partiu a Senhora para as montanhas de Judeia: Exsurgens Maria abut in montana — e acrescenta — cum festinatione: "com passos mui apressados", porque nem à delicadeza da donzela se lhe fizeram ásperas as montanhas, nem à grandeza da Mãe de Deus lhe pareceram desautorizadas as pressas. Que errado que anda o mundo, e mais o nosso, em julgar e introduzir que os passos vagarosos sejam os mais autorizados! Se por vagares se perde o mundo todo, como pode consistir a autoridade dele nos mesmos meios de sua perdição?

Na fábrica deste universo que vemos criou Deus o sol e a lua ao quarto dia, e não ao primeiro, diz São Severiano, porque, como ainda então não havia criaturas que influir, nem hemisfério que alumiar, estiveram-se os planetas ociosos e parados, em grave descrédito de seus resplendores, que a quem Deus fez para sol, não o fez para estar quieto. Foram formadas aquelas duas tochas do céu, para um alternado império governarem o dia e a noite: Luminare majus ut praeesset diei, luminare minus ut praeesset nocti.  E como nasceram para todos, andam sem descansar em perpétua roda, que é gloriosa pensão do bem universal correr e nunca estar parado. Por isso Cristo hoje, assim como sol material, tanto que recebeu a investidura dos raios, no mesmo instante partiu de carreira, e começou a fazer velocissimamente seu curso, assim o divino Sol de justiça, tanto que se vestiu de nossa humanidade nas entranhas da Virgem Mãe, no mesmo ponto arrebatou aquela celestial esfera, e a levou às montanhas com tanta pressa, com tão arrebatado curso, cum festinatione, que para o explicar Malaquias na terra houve de fingir um monstro no céu: Orieturvobis Sol justitiae, et sanitas in pennis ejus. Sol com asas! Quem negará que é uma resplandecente monstruosidade? E acrescenta com muita propriedade o profeta que levará o sol nas asas a saúde, porque a dar saúde, e não a outro fim, parte hoje o Redentor com tanta pressa.

 

Estava a casa de Zacarias nesta ocasião para que falemos com frase de hospital — feita uma enfermaria de diversos males. O velho Zacarias havia seis meses que emudecera; Santa Isabel, sobre os da velhice, padecia os achaques de pejada; e, mais mortal que todos, o menino Batista jazia enfermo do pecado original, relíquias daquele antigo veneno que, dentro em uma maçã proibida, deu a serpente a nossos primeiros pais. Se por uma maçã tomada contra a vontade de seu dono se perdeu o mundo todo, que muito que se perca tanta parte dele em tempo que se toma tanto! Enfim, chegou a Senhora, que nunca tarda a quem a há mister, e aos primeiros abraços que deu a Santa Isabel, às primeiras palavras de cortesia com que a saudou, ouviu-as o menino enfermo, e logo ficou são: Ut facta est vox salutationis tuae in auribus meís, exultavit in gaudio infans in utero meo. Oh! como quisera que entenderam daqui as pessoas soberanas que com abraços e com boas palavras podem dar vida! Se muitas vezes, pela impossibilidade dos tempos, é força que estejam as mãos fechadas, por que não estarão os braços abertos? E que avareza pode ser mais cruel que negar a vida a um homem quem lha pode dar com palavras? Tão alentado, tão alegre ficou o menino Batista com as da soberana Princesa, que a saltos de prazer começou a inquietar o silêncio das entranhas maternas, e quase a sair de si com alegria: Exultavit infans in gaudio. Montanhesa cortesia parece receber a saltos uma majestade tão sobe­rana, mas acomodou-se o menino à estreiteza do lugar, e não fez pouco, porque fez o que pôde.

 

Este foi o principal efeito que causou a entrada de Cristo em casa de Zacarias, e semelhante a este é, Excelentíssimo Senhor, o estado em que se acha a Bahia, hoje alentada com a boa vinda, e alegre com a tão desejada presença de Vossa Excelência. Solenizou-a esta cidade com menos alegrias suntuosas, com menos festas públicas do que costuma, mas bem desculpa Santa Isabel a falta destes aplausos exteriores, que o prazer de São João todo foi por dentro, e a alegria verdadeira toda é de entranhas: Exultavit infans in utero. Como levantaria arcos triunfais a cabeça de uma província vencida, assolada, queimada, e por tantas vezes, e de tantas maneiras consumida? Prudente se portou em suas alegrias esta cidade, por não desmentir seu estado; acomodou-se, como São João, à estreiteza do tempo, e reservou os triunfos para o dia das vitórias, que espera. Quanto mais, Senhor, que nunca ninguém entrou por arcos triunfais mais gloriosos, que quem foi recebido nos corações de todos.

 

Alegra-se, pois, o enfermo Brasil e será o segundo sentido das palavras porque vê também cumprida em si aquela profecia, que havia de vir um Sol de justiça a restaurá-lo, que traria a saúde nas asas. Que maior alegria para um enfermo aflito que luz e saúde? A nenhum lhe importa mais uma e outra que ao Brasil, porque não sei qual o tem posto sempre em maior perigo, se a enfermidade, se as trevas. As trevas cederão ao sol, a enfermidade obedecerá à saúde, e como todo este bem nos vem com asas, certa será a melhoria. Custará a diligência o que danou a remissão, e recuperará a pressa o que os vagares perderam. Muitas ocasiões há tido o Brasil de se restaurar, muitas vezes tivemos o remédio quase entre as mãos, mas nunca o alcançamos, porque chegamos sempre um dia depois. Como havia de aproveitar ocasião a quem a tomou pela calva sempre? E, como esta­mos tão lastimados das tardanças, o primeiro bom anúncio que temos, Senhor, é sabermos que nos vem a saúde nas asas, e que voando mais que correndo, partiu Vossa Excelência a restaurar este Estado, sem reparar nos novos inconvenientes que da última fortuna sobrevieram, nem em quão descaído está o Brasil das forças e do poder com que Vossa Excelência aceitou a restauração dele. Aconteceu-lhe a Vossa Excelência com o Brasil o que a Cristo com Lázaro. Chamaram-no para curar um enfermo: Ecce quem amas infirmatur; e quando chegou foi-lhe necessário ressuscitar um morto. Morto está o Brasil, e ainda mal, porque tão morto e sepultado; fumeando estão ainda, e cobertas de suas cinzas estas campanhas. E verdade que nunca se viu esta província tão autorizada como agora, mas podem-lhe servir os títulos de epitáfios, que pois a vemos levantada a Vice-Reino entre as mortalhas, bem se pode dizer por ela também que depois de ser morta foi rainha. Mas assim como São João à voz da Senhora, assim como Lázaro à voz de Cristo, assim ressus­citará também o Brasil à voz e ao império de Vossa Excelência, podendo dizer vitorioso dentro em pouco tempo o que disse Paulo Fábio orando no Senado: Macedonian' in potestatem populi Romani redegi, et quod bellum quatuor ante me consu les ita gesserunt, ut semper successori traderent gravius, id ego paucis perfeci: "Restaurei a Macedônia, reduzindo-a à sujeição do Império Romano, diz o grande Fábio, e acabei felizmente em poucos dias aquela guerra que tinham governado quatro cônsules antes de mim, entregando-a sempre cada um a seu sucessor em pior estado". Quatro generais têm governado a guerra do Brasil. depois de ocupado Pernambuco. Grande conjectura de ser a enfermidade mortal mudarmos tantas vezes a cabeceira. Todos foram capitães famosos, todos se por­taram com grande valor e prudência militar: mas é desgraça levar o leme no tempo da tempestade, e quando o castigo é do céu, como o hão de resistir braços huma­nos? Passou-se a fortuna à Holanda, nós a retirar, nós a descair, nós a perder, de sorte que, de quatro generais valorosos, nenhum governou a guerra que a não entregasse a seu sucessor em pior estado do que a recebera. Mas, assim como a restauração de Macedônia estava reservada para o grande Fábio, assim espera a sua o Brasil do valorosíssimo braço de Vossa Excelência, tantas vezes armado e tantas vitorioso contra inimigos da fé.

 

Para que se logrem melhor os felizes auspícios desta tão desejada saú­de, representarei eu hoje a Vossa Excelência neste sermão o estado do nosso enfermo Brasil, as causas de sua enfermidade, e, do modo que souber, o remédio dela. E por que nos não saiamos do Evangelho (ainda que os casos grandes escusam qualquer divertimento) irão as enfermidades do Brasil retratadas na doença de São João, a quem a Virgem Maria hoje foi visitar e dar saúde. Todos sabem que esta saúde foi de graça. Peçamo-la ao divino Espírito por intercessão da mesma Se­nhora. Ave Maria.

 

 

 

 

 II

 

 

Ut facto est vox salutationis tuae in auribus areis, exultavit in gaudio infans.

 

Comecemos por esta última palavra, Bem sabem os que sabem a língua latina que esta palavra infans (infante) — quer dizer o que não fala. Neste estado estava o menino Batista quando a Senhora o visitou, e neste esteve o Brasil muitos anos, que foi a meu ver, a maior ocasião de seus males. Como o doente não pode falar, toda a outra conjectura dificulta muito a medicina. Por isso Cristo nenhum enfermo curou com mais dificuldade, e em nenhum milagre gastou mais tempo que em curar endemoninhado mudo: Erat ejiciens daemonium, et illud erat mutum. O pior acidente que teve o Brasil em sua enfermidade foi o tolher-se-lhe a fala: muitas vezes se quis queixar justamente, muitas vezes quis pedir o remédio de seus males, mas sempre lhe afogou as palavras na garganta ou o respeito, ou a violência, e se alguma vez chegou algum gemido aos ouvidos de quem o devera remediar, chegaram também as vozes do poder, e venceram os clamores da razão. Por esta causa serei eu hoje o intérprete do nosso enfermo, já que a mim me coube em sorte, que também São João não falou por si, senão por boca de Santa Isabel. Na primeira informação da enfermidade consiste o acerto do remédio, e assim procurarei que seja muito verdadeira e muito desinteressada: falaremos, já que nos é lícito, para que se não diga do Brasil o que se disse da cidade de Amidas, que a perdeu o silêncio: Silentium Amidas perdidit.  E como a causa é geral, falarei também geralmente, que não é razão nem condição minha que se procure o bem universal com ofensas particulares.

 

 

 

 III

 

A enfermidade do Brasil, Senhor, é, como a do menino Batista, pecado original.  Santo Tomás e os teólogos definem o pecado original com aquelas palavras tomadas de Santo Anselmo: Est privatio justitiae debitae: que o pecado original é uma privação, urna falta de devida justiça. Bem sei de que justiça falam os teólogos, e o sentido em que entendem as palavras, mas a nós, que só buscamos a semelhança, servem-nos assim como soam. É pois a doença do Brasil —  privatio justitiae debitae (falta da devida justiça) — assim da justiça punitiva, que castiga maus, como da justiça distributiva, que premia bons. Prêmio e castigo são os dois pólos em que se revolve e sustenta a conservação de qualquer monarquia, e porque ambos estes faltaram sempre ao Brasil, por isso se arruinou e caiu. Sem justiça não há reino, nem província nem cidade, nem ainda companhia de ladrões que possa conservar-se. Assim o prova Santo Agostinho, com autoridade de Cipião Africano, e o ensinam conformemente Túlio, Aristóteles, Platão, e todos os que escreveram de república. Enquanto os romanos guardaram igualdade, ainda que neles não era verdadeira virtude, floresceu seu império, e foram senhores do mundo; porém, tanto que a inteireza da justiça se foi corrompendo pouco a pouco, ao mesmo passo enfraqueceram as forças, desmaiaram os brios, e vieram a pagar tributo os que o recebiam de todas as gentes. Isto estão clamando todos os reinos com suas mudanças, todos os impérios com suas ruínas, o dos persas, o dos gre­gos, o dos assírios. Mas, para que é cansar-me eu com repetir exemplos, se prego a auditório católico, e temos autoridade de fé? Regnum de gente in gentem transtertur propter injustitias, diz o Espírito Santo, no capítulo décimo do Eclesiástico: que a causa por que os reinos e as monarquias se não conservam debaixo do mesmo senhor, a causa por que andam passando inconstantemente de umas nações a outras, como vemos, é propter injustitias: por injustiças. As injustiças da terra são as que abrem a parta à justiça do céu. E como as nações estranhas são a vara da ira divina: — Assu; virga furoris mei — com elas nos castiga, com elas nos desterra, com elas nos priva da pátria, que é mui antiga razão de estado da provi­dência de Deus, quando se não guarda justiça na sua vinha, dá-la a outros lavradores: Vineam suam locabit aliis agricolis.  Pois, se por injustiças se perdem os estados do mundo, se por injustiças os entrega Deus a nações estrangeiras, como poderíamos nós conservar o nosso, ou como o poderemos restaurar depois de perdido, senão fazendo justiça? O contrário seria resistir a Deus, e porfiar contra a mesma fé.

 

Sem justiça se começou esta guerra, sem justiça se continuou, e por falta de justiça chegou ao miserável estado em que a vemos. Houve roubos, houve homicídios, houve desobediências, houve outros delitos muitos e enormes, que não sei se chegaram a tocar na religião, mas nunca houve castigo, nunca houve um rigor que fizesse exemplo. Muitos bandos se lançaram muito justos, muitas ordens se deram muito acertadas, mas, como disse Aristóteles, as leis não são boas porque bem se mandam, senão porque bem se guardam. Que importa que fossem justos os bandos, se não se guardavam mais que se se mandara o que se proibia? Que importa que fossem acertadas as ordens, se nunca foi castigado quem as quebrou, e pode ser que nem repreendido? Baste por todo encarecimento nesta matéria que em onze anos de guerra contínua e infeliz, onde houve tantas rotas, tantas retiradas, tantas praças perdidas, nunca vimos um capitão, nem ainda um soldado que com a vida o pagasse. Oh! aprendamos, aprendamos se quer de nossos inimigos, que nesta última fortuna tão grande que tiveram, quando com um poder tão desigual nos derrotaram a maior armada que passou a Linha, a dois capitães sabemos que degolaram no Recife, e a outros inabilitaram com suplícios menos honrosos, só porque andaram remissos em acudir à sua obrigação. Pois, se o inimigo quando ganha dá mortes de barato, se quando consegue o intento, se quando se vê vitorioso sabe cortar cabeças, nós, que sempre perdemos e nem sempre por falta de poder, por que não atalharemos a novas perdas com castigo exemplar de quem for a causa? Por que há de ser consequência na guerra do Brasil: se me renderem passarei à Espanha, e despachar-me-ei? Há resolução mais indigna de espanhóis? Há razão mais indigna de católicos?

 

Toda esta falta de castigo, toda esta remissão de culpas nasceu de uma razão de estado que cá se praticou quase sempre: que se não hão de matar os homens em tempo que os havemos tanto mister; que não é nem que se perca em uma hora um soldado que se não faz senão em muitos anos; que justiçar um homem porque matou outro é curar uma chaga com outra chaga, e que se não remedeiam bem as perdas acrescentando-as, que a primeira máxima do governo é saber permitir, e que se há de dissimular um dano, por não o evitar, com outro maior, como se não fora maior dano a destruição de toda a república que a morte de um particular, como se não fora grande expediente resgatar com uma vida as vidas de todos: Expedit ut unus moriatur honro, ne toca gens pereat. Ah! triste e miserável Brasil, que porque esta razão de estado se praticou em ti, por isso és triste e miserável! Não é miserável a república onde há delitos, senão onde falta o castigo deles, que os reinos e os impérios não os arruínam os pecados por cometidos, senão por dissimulados. Dissimular com os maus é mandar-lhes que o sejam, disse Sêneca, e mais era gentio: Qui non vetat peccare, cum possit jubet. conquistar dilatadíssimas províncias caminhava Moisés, general dos israelitas, e não duvidou degolar de uma vez vinte e quatro mil homens, como se lê na Escritura, porque entendia, como experimentado capitão, que mais importava no seu exército a observân­cia da justiça que o número dos soldados. Quem pelejou nunca no mundo com número mais desigual que Judas Macabeu? E, contudo, nem os exércitos de Apolônio, nem os ardis de Seron, nem os elefantes de Antíoco o puderam jamais vencer, antes ele saiu sempre carregado de despojos e de vitórias. Por quê? — Porque primeiro tirava a espada contra os seus, e depois contra os inimigos. Pelejava com poucos soldados, e mais vencia, porque poucos com justiça é grande exército. Alagou Deus o mundo com o dilúvio universal, e para restauração dele não guardou mais que Noé com três filhos seus em uma arca. Pois, Senhor, parece que pudéramos replicar, quereis restaurar o mundo, quereis-lo restituir a seu antigo estado, e para uma facção tão grande não guardais mais que quatro homens em um navio? —  Sim; que depois de um castigo tão grande, depois de uma justiça tão exemplar, quatro homens e um só navio bastam para restaurar um mundo inteiro. Vede se nos sobejaram sempre soldados para restaurar o Brasil, se não nos faltara a justiça.

 

 

 

 IV

 

E não só é necessária ao nosso enfermo esta, justiça punitiva, que castiga malfeitores, senão a outra parte da justiça distributiva, que premie liberal mente aos beneméritos. Assim como a medicina, diz Filo Hebreu, não só atende a purgar os humores nocivos, senão a alentar e alimentar o sujeito debilitado, assim a um exército ou república não lhe basta aquela parte da justiça que com o rigor do castigo a alimpa dos vícios, como de perniciosos humores, senão que é também necessária a outra parte, que, com prêmios proporcionados ao merecimento, esforce, sustente e anime a esperança dos homens. Por isso os romanos, tão entendidos na paz e na guerra, inventaram para os soldados as coroas cívicas e murais, as ovações, os triunfos, e outros prêmios militares, porque, como o amor da vida é tão natural, quem se atreverá a arriscá-la intrepidamente, senão alentado com a esperança do prêmio?

 

Quando Davi quis sair a pelejar com o gigante, perguntou primeiro: Quid dabitur viro, qui percusserit Philisthaeum hunc? "Que se há de dar ao homem matar este filisteu?" Já naquele tempo se não arrisca­va a vida, senão por seu justo preço; já então não havia no mundo quem quisesse ser valente de graça Necessário é logo que haja prêmios para que haja soldados, e que aos prêmios se entre pela porta do merecimento: dêem-se ao sangue derramado, e não ao herdado somente; dêem-se ao valor, e não à valia, quer depois que no mundo se introduziu venderam-se as honras militares, converteu-se a milícia em latrocínio, e vão os soldados à guerra a tirar dinheiro com que comprar, e não a obrar façanhas com que requerer. Se se guardar esta igualdade, entrará em esperanças o mosqueteiro e soldado de fortuna, que também para ele se fizeram os grandes postos, se os merecer; e, animados com este pensamento os de que hoje se não faz caso, serão leões, e farão maravilhas, que muitas vezes debaixo da espada ferrugenta está escondido o valor, como talvez debaixo dos talis bordados anda dourada a cobardia. Assim que, é necessário que haja Sauis liberais, para que se levantem Davis animosos, e muito mais necessário que os prêmios se dêem a quem disparar a funda e derrubar o gigante, e não a quem ficar olhando desde os arraiais.

 

Nenhuns serviços paga Sua Majestade hoje com mais liberal mão que os do Brasil, e contudo a guerra enfraquece, e a reputação das armas cada vez em pior estado, porque acontece nos despachos o de que ordinariamente se queixa o mundo, que os valorosos levam as feridas e os venturosos os prêmios. Na Filosofia bem ordenada, primeiro é a potência e o ato, depois o hábito; cá, se olharmos para os peitos dos homens, acharemos muitos hábitos, e mui pensionados, onde nunca houve ato, nem ainda potência. Desta desigualdade se segue que o efeito dos prêmios militares vem a ser contrário a si mesmo, porque em vez de com eles se animarem os soldados, antes se desanimam e desalentam. Como se animará o soldado a buscar a honra por meio das bombardas e dos mosquetes, se vê em um peito o sangue das balas, e noutro a púrpura das cruzes? Como se alentará a padecer os trabalhos e perigos de uma campanha, se vê premiado a Jacó, que ficou em casa, e sem prêmio a Esaú, que correu os montes? Se às peles de Jacó se dá o morgado, e às setas de Esaú se nega a bênção, se alcança mais este com o seu engano que o outro com a sua verdade, quem haverá que trabalhe? Quem haverá que se arrisque? Quem haverá que peleje? Não há dúvida que, à vista de seme­lhantes mercês, dirão os valorosos que vão errados, terão contrição do que deveram ter complacência, arrepender-se-ão de seus brios, condenarão suas passadas finezas, e se chegarem a pelejas valentemente, será por desesperação, que não há coisa que assim desespere os beneméritos como ver os indignos premiados.

 

Mas muitas graças sejam dadas a Deus, que, para remédio deste grande mal, não só temos justiça na terra, senão justiça de Sol, como diz Malaquias: Orietur vobis Sol justitiae. Sol para alumiar, para conhecer, para distinguir; justiça para premiar com igualdade. Por isso eu já dizia que não sei qual lhe fez sempre maior mal ao Brasil, se a enfermidade, se as trevas. Muitas vezes prevaleceu o engano contra a verdade nesta guerra, muitas vezes luziu o que não era ouro, e foi tão injusta a fama que trocou os nomes às coisas e às pessoas, e soaram pelo mundo erradamente.

 

O maior escândalo que tenho contra a natureza é um que cada hora experimentamos na artilharia. Por que razão há de fazer tanto estrondo uma peça que perdeu o pelouro, como outra que empregou o tiro? Há maior injustiça, há maior deformidade da natureza? A peça que acertou, soe muito embora, atroe o mundo, estremeça a terra com seu estampido; mas a peça que errou, a peça que não fez nada, a peça que não fez mais que empobrecer os armazéns de el-rei sem proveito, por que há de soar, por que há de ser ouvida? Ainda tenho advertido mais nesta matéria. Quando aqui estivemos sitiados no ano de trinta e oito, tirava o inimigo muitas balas ao baluarte de Santo Antônio: os pelouros que acertavam ficavam enterrados na trincheira os que erravam voavam por cima, vinham rompendo os ares com grande ruído, e os que andavam por estas ruas, aqui se abaixava um, acolá se abaixava outro, e muita gente lhes fazia cortesias demasiadas. De sorte que o pelouro que errou, esse fazia os estrondos, a esse se faziam as reverências, e o outro, que acertou, o outro que fez a sua obrigação, esse fica enterrado. Ah! quantos exemplos destes se acharam na guerra do Brasil! Quantos foram mais venturosos com seus erros que outros com seus acertos? Algum, que sempre errou, que nunca fez coisa boa, nomeado, aplaudido, premiado; e o que acertou, o que trabalhou, o que subiu a trincheira, o que derramou o sangue, enterrado, esquecido, posto a um canto. Importa, pois, que não roube a negociação, o que se deve ao merecimento, que se desenterrem os talentos escondidos que sepultou a fortuna ou a sem-razão, que não haja benemérito que não seja bem-afortunado, que se corte a língua à fama, se for injusta, que se qualifiquem papéis, que se examinem certidões, que nem todas são verdadeiras. Se fo­ram verdadeiras todas as certidões dos soldados do Brasil, se aquelas rumas de façanhas em papel foram conformes a seus originais, que mais queríamos nós? já não houvera Holanda, nem França, nem Turquia: todo o mundo fora nosso.

 

 

 

V

 

Não pretendo dizer com isto que não merecem muito os soldados desta guerra, porque antes tenho para mim, como é opinião de todos, que não há soldados no mundo, nem que mais valentes sejam, nem que mais sirvam, nem que mais trabalhem, nem que mais mereçam.

 

Já outra vez tive este pensamento, e agora me torno a confirmar mais nele, que para se despacharem os soldados do Brasil, principalmente os que anda em campanha, não têm necessidade de mais certidão que tomar o capítulo onze da Segunda Epístola de São Paulo aos Coríntios, firmada e jurada por seus generais, que bem o puderam fazer sem nenhum escrúpulo. Faz ali o apóstolo uma ladainha mui comprida de seus serviços e trabalhos, e diz assim: In laboribus plurimis, in carceribus abundantius, in plagis supra modum, in mortibus frequenter etc. Demo-lo por lido, e vamos aplicando. In laboribus plurimis: que soldados padecem no mundo maiores trabalhos que os do Brasil? In carceribus abundantius: também muitas vezes são prisioneiros, e nas prisões nenhuns mais cruelmente tratados que eles. In plagis supra modum: quantas sejam as feridas que recebem, e quão contínuas, bem o dizem esses hospitais, bem o dizem essas campanhas, e também os peitos vivos o podem dizer, que apenas se achará algum que não ande feito um crivo. In mortibus frequenter: frequentemente mortos, porque não há guerra no mundo onde se morra tão frequentemente como na do Brasil, de dia e de noite, no inverno e no verão, na trincheira e na campanha, nas nossas terras e nas do inimigo, e agora, nesta jornada última e milagrosa, onde se não deu quartel, o mesmo foi ser ferido que morto, deixando os amigos aos amigos, e os irmãos aos irmãos, por mais não poderem, ficando os miseráveis feridos nesses matos, nessas estradas, sem cura, sem remédio, sem companhia, para serem mortos a sangue-frio, e cruelmente despedaçados dos alfanjes holandeses, pelo rei, pela pátria, pela honra, pela religião, pela fé. Ó valoro­sos soldados, que de boa vontade me detivera eu agora convosco, pregando vossas gloriosas exéquias, mas vou depressa seguindo aos que vos deixam; perdoai-me. In itineribus saepe: quem andou nunca, nem ainda correu com a imagina­ção os caminhos que fazem estes soldados? Daqui a Pernambuco, daqui à Paraíba, daqui ao Rio Grande, e mais abaixo, por sertões de trezentas e quatrocentas léguas, levando sempre as munições às costas, e os mantimentos nos ferros dos chuços e nas bocas dos arcabuzes. Periculis fluminum: atravessando rios tantos e tão caudalosos, sem barca, sem ponte, mais que os braços e a indústria para os passar. Periculis latronum: saindo-lhes os ladrões a cada passo. Periculis ex generesendo espanhóis, a quem os holandeses têm mortal ódio. Periculis ex gentibus: arriscadosa mil emboscadas do gentio rebelde. Periculis in civitate: com perigos na cidade, como o que tiveram nesta, quando a preço de tantas vidas a defenderam valorosamente. Periculis in solitudine: com perigos no deserto, porque são vastíssimos os despovoados que passam, sem casa, sem gente, e muitas vezes sem rasto de fera, nem de animal, mais que céu e terra. Periculis in mari: com perigos no mar, que ainda que bem se sabe quão grandes na armada, e ainda não se sabe tudo. Periculis in falsis fratribus: com perigos de falsos irmãos, porque nem com os nossos portugueses estão seguros, na campanha, que o temor da morte os obriga a descobrir muitas vezes o que não deveram. In frigore et nuditate: nus, despidos, descalços, ao sol, ao frio, à chuva, às inclemências dos ares deste clima, que são os mais agudos que se sabem. In fame et siti, in jejunis multis: jejuando e padecendo as mais extraorninárias fomes e sedes que nunca suportaram corpos mortais, sustentando a triste e animosa vida com as ervas do campo, com as raízes das árvores, com os bichos do mato, com as frutas agrestes e venenosas, e tendo-se por mui regalados se chegavam alcançar para comer meia libra de carne de cavalo. Há mais invencível paciência? Há mais dura e pertinaz constância? Se isto sabeis, holandeses, em que fundais vossas esperanças, como não desistis da empresa, como não desmaiais, como não vos ides?

 

Tendo os soldados de Júlio César sitiada a cidade de Dirráquio, chegaram a comer não sei que pão feito de ervas, mas pão enfim, o qual, como visse Pompeu, que era o capitão sitiado, primeiramente disse que ele pelejava com feras, e não com homens, e logo mandou que aquele pão não aparecesse, porque, se o vissem os seus soldados, sem dúvida desmaiariam, e não se atreveriam a resistir a gente de tanta constância e pertinácia. Ne visa patientia et pertinacia hostis, animi suorum frangerentur — diz Suetônio. Bem digo eu logo, holandeses, vedes o pão com que se sustentam os nossos soldados, de cujo veneno morreram em uma noite mais de vinte, se vedes esta paciência, esta constância, esta pertinácia, como vos atreveis a pelejar com tal gente, como se vos não quebram os ânimos, como não desistis da empresa? Mas agora o fareis, agora o veremos, com o favor divino, que já é chegado o tempo.

 

Por tudo isto dizia São Paulo: Plus omnibus laboravi: "Que trabalhou mais que todos os apóstolos"; e pela mesma razão digo eu dos soldados do Brasil: Plus omnibus laboraverunt: "Que trabalharam e trabalham mais que todos os soldados do mundo", e se mais que todos trabalham, bem merecem ser premiados mais que todos. Mas, o fortuna viris invida fortibus!  — dizia Hércules: "Oh fortuna, sempre invejosa aos varões fortes!" Bem experimentam nossos soldados que se ajuntam poucas vezes valor a fortuna, porque, assim como são valentes mais que todos, assim são mais que todos desgraçados. Não há infantaria no mundo nem mais mal paga, nem mais mal assistida: é possível que há de andar descalços e despidos uns corpos tão ricos de valor! Descalços e despidos os soldados do Rei das Espa­nhas, do mais poderoso Monarca do mundo! Bem sabemos a quanta estreiteza está reduzida a fazenda real no tempo presente; mas quando El-Rei neste estado não tivera outra coisa, a camisa (como dizem) havia de tirar para vestir tais soldados. 

 

Nenhum monarca no mundo chegou nunca a tanta pobreza como Cristo, Redentor nosso, na cruz, e contudo, tanto que se viu com o título de rei sobre a cabeça: Rex judaeorum, não só os vestidos exteriores, senão a túnica interior deu aos soldados, e não a soldados que defendiam a fé, senão a soldados que crucificavam a Cristo: Milites ergo cum crucifixissent eum, acceperunt vestimenta ejus, et tunicam.  que fizeram esses soldados logo? — Tomaram os vestidos do Senhor, e puseram-se a jogá-los. Pois, se o verdadeiro Rei se despe para que os soldados tenham que jogar, quanto mais se deve despir para que tenham que vestir? E mais quando eles são tão valentes e tão briosos que, andando rotos e tão despidos, que puderam ter esquecido o vestir, nem por isso se esquecem do investir. É certo, Senhores, para que digamos e confessemos tudo, não haveria muito de que nos espantar quando assim o fizeram. 

 

Quando Deus perguntou a Adão por que se escondera no bosque do paraíso, respondeu ele: Timui, eo quod nudus essem, et abscondi me: "Senhor, olhei para mim, vi-me despido: por isso temi, e me escondi". O mesmo puderam fazer os soldados desta guerra: temerem e esconderem-se na ocasião, e quando lhes perguntassem por que, responder: Timui, eo quod nudus essem, et abscondi me: Escondi-me em um mato, temi a morte, não quis pelejar com os holandeses, porque quando olho para mim, vejo-me despido, e não quero dar o sangue por quem me não dá de vestir. Isto puderam fazer os nossos soldados como filhos de Adão, mas como filhos e descendentes daqueles portugueses famosos, pelejam, trabalham, cansam, morrem, e quando olham para si, como andam despidos, vêem-se a si, e fazem como quem são. Há maior fineza? Há maior constância? Há maior fidelidade? Portuguesa, enfim. Lá Jacó, um dia que se viu mui favorecido de Deus, saiu com um voto, e disse desta maneira: Si dederit mihi panem ad vescendum, et vestimentum ad induendum, erit mihi Dominus in Deum: Se Deus me der pão para comer, e roupa para vestir, eu faço voto à sua divina Majestade de o servir como a meu Senhor. Vós passais pelo descanso da condição, pela valentia da promessa? Pois este era aquele famoso Jacó, a quem se lançavam escadas do céu à terra, a quem o mesmo Deus vigiava o sono. Para que conheça Espanha, para que conheça nosso grande Monarca quanto mais deve aos fidelíssimos soldados desta guerra, pois, com as obras e com o sangue prometeram sempre a vozes que haviam de servir a seu Rei, e morrer por ele, ainda que nunca lhes desse de comer nem de vestir.

 

E se sem vestir e sem comer obraram até aqui tão valorosamente, agora, que a cuidadosa providência do Marquês Vice-Rei, que Deus guarde, de ne­nhuma coisa mais tratou que de trazer com que vestir e sustentar esta infantaria, que farão, ou que não farão? Que não farão agradecidos, se tanto fizeram descon­tentes? Que não merecerão trabalhando os que tanto trabalharam sem merecer? Não há dúvida que, alentados os bons, que serão os mais, com o prêmio, e refrea­dos os maus, que serão os menos, com o castigo, entre as resistências do temor e os impulsos da esperança, tornará o Brasil em si, e debaixo das asas de uma e outra justiça, recobrará a perfeita saúde, que tanto lhe desejamos.

 

 

VI

 

Mas como a experiência ensina que, para a saúde ser segura e firme, não basta sobressarar a enfermidade, se não se arrancam as raízes e se cortam as causas dela, é necessário vermos ultimamente quais são e quais foram as causas desta enfermidade do Brasil. A causa da enfermidade do Brasil, bem examinada, é a mesma que a do pecado original. Pôs Deus no Paraíso Terreal a nosso pai Adão, mandando-lhe que o guardasse e trabalhasse: Ut operaretur; et custodiret:  e ele, parecendo-lhe melhor o guardar que o trabalhar, lançou mão à árvore vedada, tomou o pomo que não era seu, e perdeu a justiça em que vivia, para si e para o gênero humano. Esta foi a origem do pecado original, e esta é a causa original das doenças do Brasil: tomar o alheio, cobiças, interesses, ganhos e conveniências particulares, por onde ajustiça se não guarda, e o Estado se perde. 

 

Perde-se o Brasil, Senhor digamo-lo em uma palavra  porque alguns ministros de Sua Majestade não vêm cá buscar o nosso bem, vêm cá buscar nossos bens. Assim como dissemos que se perdeu o mundo porque Adão fez só a metade do que Deus lhe mandou, em sentido averso, guardar sim, trabalhar não, assim podemos dizer que se perde também o Brasil porque alguns de seus ministros não fazem mais que ametade do que El-Rei lhes manda. El-Rei manda-os tomar Pernambuco, e eles contentam-se com o tomar. Se um só homem que tomou perdeu o mundo, tantos homens a tomar como não hão de perder um estado? Este tomar o alheio, ou seja o do rei ou o dos povos, é a origem da doença; e as várias artes, e modos, e instrumentos de tomar são os sintomas, que, sendo de sua natureza mui perigosa, a fazem por momentos mais mortal. E se não, pergunto para que as causas dos sintomas se conheçam melhor: —Toma nesta terra o Ministro da Justiça? — Sim, toma. Toma o Ministro da Fazenda? — Sim, toma. Toma o ministro da República? — Sim, toma. Toma o Ministro da Milícia? — Sim, toma. Toma o Ministro do Estado? — Sim, toma. E como tantos sintomas lhe sobrevêm ao pobre enfermo, e todos acometem à cabeça e ao coração, que são as partes mais vitais, e todos são atrativos e contrativos do dinheiro, que é o nervo dos exércitos e das repúblicas, fica tomado todo o corpo, e tolhido de pés e mãos, sem haver mão esquerda que castigue, nem mão direita que premie, e, faltando a justiça punitiva para expelir os humores nocivos, e a distributiva para alentar e alimentar o sujeito, sangrando-o por outra parte os tributos em todas as veias, milagre é que não tenha expirado.

 

Como se havia de restaurar o Brasil (não falo de hoje, nem de ontem, que a enfermidade é muito antiga, ainda mal) como se havia de restaurar o Brasil, se ia o capitão levantar uma companhia pelos lugares de fora, e, por lhe não fugirem os soldados, trazia-os na algibeira? E como após este ia logo outro do mesmo humor, que os trazia igualmente arrecadados, houve pobre homem nestes arredores que, sem sair da Bahia, como se quatro vezes fora a Argel, quatro vezes se resgatou com o seu dinheiro. Como se havia de restaurar o Brasil, se os mantimentos se abarcavam com a mão de El-Rei, e talvez os vendiam seus ministros, ou os ministros de seus ministros (que não há Adão que não tenha sua Eva), pondo os preços às coisas a cobiça de quem vendia e a necessidade de quem comprava? Como se havia de restaurar o Brasil, se os navios, que sustentam o comércio e enriquecem a terra, haviam de comprar o descarregar, e o dar querena, e o carregar, e o partir, e não sei se também os ventos? Como se havia de restaurar o Brasil, se o capitão de infantaria, por comer as praças aos soldados, os absolvia das guardas e das outras obrigações militares, envilecendo-se em ofícios mecânicos os ânimos que hão de ser nobres e generosos? Como se havia de restaurar o Brasil, se o capitão-de-mar-e-guerra fazia cruel guerra ao seu navio, vendendo os mantimentos, as munições, as enxárcias, as velas, as antenas, e se não vendeu o casco do galeão, foi porque não achou quem lho comprasse? E como mais ou menos por nossos pecados sempre houve no Brasil ministros destas qualidades, que importava que os generais ilustríssimos fossem tão puros como o sol, e tão incorruptíveis como os orbes celestes? Digo isto porque sei que o vulgo é monstro de muitas cabeças, que não se governa por verdade nem por razão, e se atreve a pôr a boca no mesmo céu, sem perdoar nem guardar decoro ainda ao maior planeta. O certo é que muitas coisas se dizem que não são, e há sucessores de Pilatos no mundo que, por se lavarem as mãos a si, lançam as culpas à cabeça. Que haviam as cabeças de executar, meneando-se com tais mãos e obrando com tais instrumentos? Desfazia-se o povo em tributos e mais tributos, em imposições e mais imposições, em donativos e mais donativos, em esmolas e mais esmolas que até à humildade deste nome se sujeitava a necessidade ou se abatia a cobiça e no cabo nada aproveitava, nada luzia, nada aparecia. Por quê? — Porque o dinheiro não passava das mãos por onde passava. Muito deu em seu tempo Pernambuco, muito deu e dá hoje a Bahia, e nada se logra, porque o que se tira do Brasil tira-se do Brasil: o Brasil dá, Portugal o leva.

 

  

VII

 

Com terem tão pouco do céu os ministros que isto fazem, temo-los retratados nas nuvens. Aparece uma nuvem no meio daquela baía, lança uma manga ao mar, vai sorvendo por oculto segredo da natureza grande quantidade de água, e, depois que está bem cheia, depois que está bem carregada, dá-lhe o vento, e vai chover daqui a trinta, daqui a cinquenta léguas. Pois, nuvem ingrata, nuvem injusta, se na baía tomaste essa água, se na baía te encheste, por que não chaves também na Bahia? Se a tiraste de nós, por que a não despendes conosco? Se a roubaste a nossos mares, por que a não restituis a nossos campos? Tais como isto são muitas vezes os ministros que vêm ao Brasil, e é fortuna geral das partes ultramarinas. Partem de Portugal estas nuvens, passam as calmas da Linha, onde diz que também reservem as consciências, e em chegado verbi gratia a esta Bahia, não fazem mais que chupar, adquirir, ajuntar, encher-se (por meios ocultos, mas sabidos), e ao cabo, de três ou quatro anos, em vez de fertilizarem a nossa terra com a água que era nossa, abrem as asas ao vento, e vão chover a Lisboa, esperdiçar a Madrid. Por isso nada lhe luz ao Brasil por mais que dê, nada lhe monta e nada lhe aproveita por mais que faça, por mais que se desfaça. E o mal mais para sentir de todos é que a água que por lá chovem e esperdiçam as nuvens não é tirada da abundância do mar, como noutro tempo, senão das lágrimas do miserável e dos suores do pobre, que não sei como atura já tanto a constância e fidelidade destes vassalos.

 

Tenho reparado muito que em nenhum tormento da Paixão desceu anjo do céu a confortar a Cristo, senão quando suou no Horto. Pois, por que mais nos suores do Horto, que nos açoites da coluna, nos tormentos da cruz, ou noutro daqueles transes rigorosíssimos? Os porquês de Deus são só a ele manifestos. Mas o que ele nos revelou daquele caso é que suou pela saúde, pela vida e pela glorificação dos homens. E que hajam de viver outros à custa do meu suor! Que haja de suar eu para que outros vivam! Que haja de suar eu para que outros triunfem, é um ponto tão rigoroso, considerado humanamente como Cristo então o considerava é um ponto tão rigoroso, é um transe tão apertado, que até o coração de um homem-Deus parece que há mister que venha um anjo do céu a o confortar, que não há forças na natureza nem cabedal para tanto.

 

Muitos transes destes tens padecido, desgraciado Brasil, muitos te desfizeram para se fazerem, muitos edificam palácios com os pedaços de tuas ruínas, muitos comem o seu pão ou o pão não seu com o suor do teu rosto; eles ricos, tu pobre; eles salvos, tu em perigo; eles por ti vivendo em prosperidade, tu por eles a risco de expirar. Mas agora alegra-te, anima-te, torna em ti, e dá graças a Deus, que já por mercê sua estamos em tempo que se concorrermos com o nosso suor, há de ser para nossa saúde. Pelo que, Senhores, vós, os que governais a República, não atenteis só para a fraqueza do enfermo, que bem vemos quão pouca substância tem e quão debilitado está; mas olhai muito para o bem da saúde e para a importância do remédio. O doente que quer sarar, levado do amor da vida, nada põe por diante, em nada repara: por ásperos que sejam os medicamentos, a tudo fecha os olhos. Bem sei que se hão de ouvir ais, bem sei que se hão de ouvir gemidos, e muito justos; mas compadecer e cortar (como seja com a igualdade e moderação devida); que ser nesta parte cruel é a maior piedade. Anime-se, pois, a fidelidade e liberalidade deste povo a se socorrer e ajudar nesta causa tão justa e tão sua, estando mui certo e seguro que se der o suor, se der o sangue, não há de ser para que outros vivam e triunfem, senão para que nós vivamos e triunfemos de nossos inimigos. Tudo o que der a Bahia, para a Bahia há de ser; tudo o que se tirar do Brasil, com o Brasil se há de gastar.

 

 

 

 VIII

 

E porque sei de certo que assim o havemos de ver, como digo, quero acabar este sermão com uma profecia alegre, fundada na mesma verdade, e é que desta vez se há de restaurar o Brasil. Dêem-me licença para que pondere um lugar, que hoje tudo foram palavras; mas foi necessário dizer muito: outro dia pregaremos pensamentos. 

 

Sacramento Eucharistiae totus mundus subjugatus est diz Santo Elígio na Homilia onze, e é autoridade mui recebida de toda a Igreja, que "com o Santíssimo Sacramento da Eucaristia sujeitou Cristo e restaurou o mundo". Na cruz alcançou a primeira vitória; mas com o Sacramento do seu corpo e sangue foi restaurando e restituindo a seu império quanto o demônio lhe tinha tiranizado. Ora, examinemos e saibamos por que mais com o Sacramento da Eucaristia que com outro mistério. Cristo nascido, Cristo morto, Cristo ressuscitado não pudera restaurar o mundo? Pois, por que mais Cristo sacramentado? Por que se tomou por instrumento desta restauração o mistério sagrado da Eucaristia?

 

Lavremos um diamante com outro diamante, e expliquemos um santo com outro santo. Santo Tomás, falando do Santíssimo Sacramento do Altar, nota uma coisa muito digna de ponderação, e é que neste soberano mistério, "quanto Cristo recebeu de nós, tudo despende conosco": Et hoc insuper quod de nostro assumpsit, totum nobis contulit ad salutem. Que recebeu Cristo de nós na Encarnação? — Recebeu a carne e recebeu o sangue. E que nos dá Cristo na Eucaristia? — Dá-nos essa mesma carne na Hóstia, dá-nos esse mesmo sangue no Cálix. E este soberano príncipe é tão justo e tão desinteressado, que quanto recebe de nós tudo despende conosco, e quanto toma dos homens tudo gasta com os homens, para sita sustentação e proveito: Quod de nostro assumpsit, totum nobis contulit ad salutem. Logo, com muito fundamento, ao mistério em que exercita esta grande ação, mais que a ne­nhum outro, se deve e se atribui a restauração do mundo: Sacramento Eucharistiae lotus mundus subjugatus est que em despendendo com os homens tudo o que se recebe dos homens, em se gastando em benefício do povo tudo o que do povo se tira (como daqui por diante se há de fazer), logo a restauração está certa, e a vitória segura.

 

Tenho provada a minha profecia? Pois ainda a confirmo com outra razão, e vai por conta dos enfermos deste hospital, os quais me pediram desse as graças ao Senhor Marquês da piedade tão cristã e zelo verdadeiramente de pai de soldados, com que a primeira ação que Sua Excelência fez em saltando em terra, foi mandar chamar o provedor e irmãos desta Santa Casa, e, sendo informado do aperto em que estavam os doentes, e as misérias que padeciam, ordenar que se fizesse novo hospital, e que com toda a caridade e liberalidade se acudisse à saúde e regalo destes pobres enfermos. Desta ação infiro eu e confirmo que é chegada a restauração do Brasil, e vede se o provo. Mandou São João Batista uma embaixada a Cristo por dois discípulos de sua escola, em que dizia assim: Tu es, qui venturas es, an alium expectamus? "Sois vós, Senhor, o que haveis de vir restauraremos, ou havemos de esperar ainda por outro?" Não puderam perguntar mais a propósito se nós ditáramos a pergunta. Nenhuma coisa lhes respondeu Cristo de palavra: manda buscar pela terra os cegos, os surdos, os mancos, os leprosos, enfim quantos enfermos se puderam achar, e, depois de os curar a todos, virou-se então para os embaixadores, e disse: Renuntiate Joanni quae audistis et vidistis: "Ide, dizei a João o que ouvistes e vistes". Pois, Senhor, com licença vossa, esta resposta parece que não diz com a pergunta. Perguntam-vos se sois o Messias esperado, perguntam-vos se sois vós o que haveis de restaurar o mundo, e por resposta pondes-vos a curar enfermos? — Sim, com muita razão, diz São Cirilo: Ut congrua ratione sumentes lidem ipsius, ad cum revertantur qui misit eos. — Pôs-se Cristo a curar enfermos diante dos embaixadores do Batista, para que desta ação, que lhe viam fazer, cressem e inferissem por boa razão que ele era o restau­rador do mundo por quem perguntavam. Este Senhor trata de curar enfermos: Caeci vident, claudi ambulant, leprosi mundantur? Logo este é o que há de restaurar o mundo: Tu es qui venturus es; porque não há conjectura mais verdadeira nem consequência mais formal de ser restaurador que ter grande cuidado dos enfermos, e tratar destas obras de misericórdia.

 

E se não, diga-nos o nosso Evangelho qual foi a primeira ação que fez no mundo o Redentor e Restaurador dele? A primeira ação que Cristo fez em pondo o pé em terra foi partir-se para as montanhas de Judeia, a curar, como dissemos, um menino enfermo. Não é frase minha, senão do Cardeal de Toledo, que fecha e confirma todo este discurso: Mira Christi et Matris visitatio attulit Joanni peccati medicinam: "Esta visita de Cristo e sua Mãe Santíssima foi como visita de médico soberano, que curou a enfermidade de São João, e lhe trouxe a medicina do pecado". Tão próprio é de quem há de restaurar mundos consagrar a primeira ação à cura e ao remédio dos enfermos. Mas, como não são menos de Deus os fins que os princípios, e nas profecias e prognósticos humanos nos ensina a Fé a dizer — Deus sobre tudo, peçamos à divina Majestade seja servido prosperar-nos estas tão bem fundadas esperanças, e ouvir os suspiros e gemidos já cansados deste enfermo e aflito Brasil. E para que mais eficazmente alcancemos o desejado despacho desta tão justa petição, tomemos por valedora a Virgem Mãe do mesmo Deus, por quem hoje se começou a dispensar a primeira graça, para que nos alcance esta, oferecendo-lhe três Aves-Marias.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
 

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