5/06/2023

Sermão décimo quarto do Rosário (Sermão), pelo Padre Antônio Vieira


 SERMÃO DÉCIMO QUARTO DO ROSÁRIO

PREGADO NA BAHIA, À IRMANDADE DOS PRETOS DE UM ENGENHO EM DIA DE SÃO JOÃO EVANGELISTA, NO ANO DE 1633.

Maria de qua natus est Jesus, qui vocatur Christus.

 

I

Não é cousa nova, posto que grande e singular, que o evangelista São João receba em sua casa a Virgem Mãe de Deus, e Mãe sua. Nem é cousa nova que às festas do mesmo São João as honre e autorize a Virgem Santíssima com a majestade e favores de sua presença. Nem é cousa nova, finalmente, que o que havia de ser panegírico do Evangelista, seja sermão do Rosário. Tudo isto que foi em diferentes dias, temos junto e concordado hoje no concurso da presente solenidade. Não é cousa nova que o evangelista São João receba em sua casa a que é Mãe de Deus e sua; porque naquele grande dia em que lhe coube por legado no testamento do Redentor do mundo, não com menor título que de Mãe, a que era Mãe do mesmo Cristo: Ecce Mater tua; logo então e desde a mesma hora recebeu São João a Senhora em sua casa, para nela assistir e servir, como fez por toda a vida: et ex illa hora accepit eam discipulus in sua. E isto é o que torna a fazer hoje o mesmo Evangelista; porque chamando-se em frase dos sagrados ritos casa própria de cada um dos santos aquele dia que a Igreja dedicou à sua celebridade; neste dia e nesta casa recebe hoje São João a Senhora, dando-lhe nela o lugar devido, que é o primeiro e principal. Nem é cousa nova que as festas de São João as honre e autorize a Virgem Santíssima com a majestade e favores de sua presença; porque nas bodas de Cana de Galileia o ser São João o Esposo, foi a razão de se achar ali a Senhora: et erat Mater Jesu ibi. E se foi favor da sua piedade e assistência a conversão de água em vinho, não foi menor graça, ou milagre da Virgem das Virgens, que São João, por imitar sua virginal pureza, renunciasse então o matrimônio, e o convertesse em celibato. Finalmente, não é cousa nova que o que havia de ser panegírico do Evangelista, seja sermão do Rosário; porque como se refere nas Histórias dominicanas, indo o patriarca São Domingos para pregar de São João em tal dia como hoje, ao tempo que recolhido a uma capela da mesma igreja se estava encomendando a Deus, lhe apareceu a Virgem Maria, e lhe mandou que deixasse o sermão que tinha meditado de São João, e pregasse do seu Rosário. Fê-lo assim o grande patriarca dos pregadores, e o fruto do sermão que pelo zelo e eficácia do pregador sempre costumava ser grande, pela graça e virtude de quem o mandou pregar, foi naquela ocasião muito maior e mais patente com igual proveito e admiração dos ouvintes.

Mas que fará cercado das mesmas obrigações, tantas e tão grandes, quem não falto de semelhante espírito, mas novo, ou noviço, no exercício e na arte, é esta a primeira vez que subido indignamente a tão sagrado lugar, de falar dele em público? Vós, soberana Rainha dos anjos e dos homens, e Mãe da sabedoria incriada (a quem humildemente dedico as primícias daquelas ignorâncias que ainda se não podem chamar estudos, como única protetora deles) pois o dia e assunto é, Senhora, de vossos maiores mistérios, Vos dignai de me assistir com a luz ou sombra da graça com que a virtude do Altíssimo no primeiro de todos Vos fez fecunda: Ave Maria.


II

Temos hoje (por outro modo do que o disse) três dias em um dia, e três festas em uma festa: o dia e a festa de São João, o dia e a festa da Senhora do Rosário, e o dia e a festa dos pretos seus devotos. E quando fora necessário termos também três evangelhos; um evangelho que nos propõe a Igreja, qual é? Posto que largo em nomes e gerações, é tão breve e resumido no que finalmente vem a dizer, que todo se encerra na cláusula que tomei por tema: Maria de qua natus est Jesus, qui vocatur Christus. Se o sermão houvera de ser do Nascimento de Cristo, que é a solenidade do Oitavário corrente, não podia haver outro texto, nem mais próprio do tempo, nem mais acomodado ao mistério: mas havendo de pregar, não sobre este, se não sobre outros assuntos, e esses não livres, se não forçados: e sendo os mesmos assuntos não menos que três, e todos três tão diversos; como os poderei eu fundar sobre a estreiteza de umas palavras, que nos dizem que Jesus Cristo nasceu de Maria: Maria de qua natus est Jesus? Suposto pois que nem é lícito ao pregador (se quer ser pregador) apartar-se do tema, nem o tema nos oferece outra cousa mais que um Filho nascido de Maria; multiplicando este nascimento em três nascimentos, este nascido em três nascidos, e este Filho em três filhos, todos três nascidos de Maria Santíssima; esta mesma será a matéria do sermão, dividido também em três partes. Na primeira veremos com novo nascimento nascido de Maria a Jesus: na segunda com outro novo nascimento nascido de Maria a São João: e na terceira, também com novo nascimento nascido de Maria aos pretos seus devotos. Deem-me eles principalmente a atenção que devem, e destes três nascimentos nascerão outros tantos motivos, com que reconheçam a obrigação que têm de amar, venerar, e servir a Virgem Senhora nossa, como Mãe de Jesus, como Mãe de São João, e como Mãe sua.

 

III

Primeiramente digo que temos hoje nascido de Maria a Cristo Senhor nosso, não como nasceu três dias, mas com outro nascimento novo. E que novo nascimento é este! É o nascimento com que nasceu da mesma Mãe daqui a trinta e três anos, não em Belém, se não em Jerusalém. Isto é o que diz o nosso texto: e provo: Maria de qua natus est Jesus, qui vocatur Christus: Maria da qual nasceu Jesus, que se chama Cristo. Cristo quer dizer ungido, Jesus quer dizer salvador. E quando foi Cristo salvador, e quando foi ungido? Foi ungido na encarnação, quando unindo Deus a si a humanidade de Cristo, a exaltou sobre todas as criaturas, como diz Davi: Unxit te Deus, Deus tuus oleo laetitiae prae consortibus tuis. E foi salvador na cruz, quando por meio da morte, e pelo preço de seu sangue salvou o gênero humano, como diz São Paulo. Factus obediens usque ad mortem, mortem autem crucis: propter quod et Deus exaltavit illum, et donavit illi nomen, quod est super omne nomen, ut in nomine Jesu omne genuflectatur. Logo quando Cristo Senhor nosso nasceu em Belém, propriamente nasceu Cristo, mas não nasceu Jesus, nem salvador: nasceu Cristo porque estava ungido pela união hipostática, com que a Pessoa do Verbo se uniu à humanidade: e não nasceu Jesus, salvador, porque ainda não tinha remido o mundo, o havia de remir e salvar senão em Jerusalém daí a trinta e três anos.

Fala o profeta Isaías do parto virginal de Maria Santíssima (como notaram São Gregório Nisseno, e São João Damasceno) e diz assim: Antequam parturiret, peperit: antequam veniret partus ejus, peperit masculum. Na primeira cláusula diz que pariu a Senhora antes das dores do parto; que isso quer dizer: Antequam parturiret: e na segunda diz que pariu antes do parto: Antequam veniret partus ejus, peperit. Não é necessário que nós dificultemos o passo, porque o mesmo profeta confessa que disse uma cousa inaudita, e que nunca se viu semelhante: Qui audivit unquam tale, et quis vidit huic simile? Que a bendita entre todas as mulheres saísse à luz com o fruto bendito de seu ventre sem padecer dores, privilégio era devido à pureza virginal, com que o concebeu, e assim o confessa a nossa fé. Mas que parisse antes do parto: Antequam veniret partus ejus: como se pode entender, senão supondo na mesma hora dous partos do mesmo Filho, e supondo também que o primeiro parto foi sem dores, e o segundo com dores? Assim foi, e assim o diz: quem? O nosso português Santo Antônio, que é bem preceda agora a todos os outros Doutores da Igreja, pois falamos na sua: Beatae Mariae duplex fuit partus, unus in carne, alius in spiritu. Partus carnis fuit virgineus, et omni gaudio plenus, quia peperit sine dolore gaudium angelorum. Secundus partus fuit dolorosus, et omni amaritudine plenus, in Fillii ejus passione, cujus animam pertransivit gladius. Sabeis por que faz menção Isaías de dous partos da Virgem Beatíssima, e no primeiro nega as dores, e no segundo não? A razão é (diz o mestre seráfico) porque este foi o modo e a diferença com que a Senhora pariu a seu bendito Filho não uma, senão duas vezes: a primeira vez sem dores, antes com júbilos de alegria, quando entre cantares de anjos O pariu no presépio: a segunda vez com dores, e cheia de amarguras, quando trespassada da espada de Simeão O tornou a parir ao da cruz. Uma vez nascido Cristo em Belém, e outra vez nascido em Jerusalém: uma vez nascido no princípio da vida, e outra vez nascido no fim dela: uma vez trinta e três anos antes, e outra vez trinta e três anos depois: que por isso o profeta, falando deste segundo parto, disse advertidamente: Antequam veniret partus ejus: porque um parto depois do outro havia de tardar em vir tantos anos.

E posto que bastava por prova da minha proposta a autoridade de tão grande intérprete das Escrituras como Santo Antônio, a quem por essa causa chamaram os oráculos de Roma Arca do Testamento; diga-nos o mesmo o evangelista São João com texto mais claro que o de Isaías. No capítulo 12 do seu Apocalipse viu São João aquela mulher tão prodigiosa como sabida, a quem vestia o Sol, calçava a Lua, e coroavam as estrelas: e diz que chegada a hora do parto, foram não grandes, mas terríveis as dores com que pariu um Filho varão, o qual havia de ser senhor do mundo, e governador de todas as gentes: Cruciabatur ut pariat; et peperit filium masculum, qui recturus erat omnes gentes. Esta mulher prodigiosa, em cujo ornato se empenharam e despenderam todas as luzes do céu, era a Virgem Santíssima: o Filho senhor do mundo, e que havia de governar todas as gentes, era Cristo governador do Universo, e senhor dele. Mas se o parto da mesma Virgem foi isento de toda a dor e moléstia; que dores e que tormentos são estes com que agora São João A viu parir não outro, senão o mesmo Filho? A palavra cruciabatur que é derivada da cruz, basta por comento de todo o texto. O Filho era o mesmo, e a Mãe a mesma, mas o parto da Mãe e o nascimento do Filho não eram os mesmos, senão muito diversos. Era o segundo nascimento do Filho, em que por modo superior a toda a natureza havia de nascer morrendo. E porque este segundo nascimento foi entre dores, tormentos, e afrontas, e com os braços pregados nos de uma cruz; por isso a mesma cruz do nascimento do Filho foi também a cruz do parto da Mãe: Et cruciabatur ut pariat.

Nasceu o Filho crucificado na sua cruz, e pariu-o a Mãe crucificada na cruz do Filho: e se perguntarmos (que é o que nos resta) por que o Filho no segundo nascimento nasceu assim, e a Mãe O pariu do mesmo modo? A razão, como dizia ao princípio, não foi outra senão porque Cristo no primeiro parto nasceu propriamente Cristo, e neste segundo nasceu propriamente Jesus. Esta foi a diferença com que o anjo anteontem anunciou aos pastores o nascimento do mesmo Cristo: Quia natus est vobis hodie Salvator, qui est Christus: Alegrai-vos, porque hoje nasceu o Salvador, que é Cristo. Notai que não disse: Qui est Salvator, assim como disse: Qui est Christus: porque o Menino nascido era Cristo, mas ainda não era salvador. Havia de ser salvador, e para ser salvador, nascia, mas ainda o não era. Cristo sim, qui est Christus; porque estava ungido na dignidade de Filho de Deus, mas na de Jesus, e de salvador ainda não; porque essa não a havia de receber no presépio, senão na cruz: Factus obediens usque ad mortem crucis, ut in nomine Jesu omne genuflectatur. E aqui é que propriamente nasceu Jesus, e não de outra Mãe, senão da mesma Virgem Maria: Maria de qua natus est Jesus.

 

IV

O segundo Filho da mesma Virgem Maria, e nascido também no Calvário, e com novo e segundo nascimento, foi São João. E que seria se disséssemos que também deste nascimento se verifica o nosso texto? O em que agora reparo nas palavras de qua natus est Jesus, qui vocatur Christus; é que este vocatur parece impróprio, e este Christus supérfluo. O nome próprio do Filho de Deus, e Filho de Maria, é Jesus: este nome lhe foi posto no dia da circuncisão, e assim o tinha revelado o anjo antes de ser concebido: Vocatum est nomen ejus Jesus, quod vocatum est ab angelo priusquam in utero conciperetur. Logo o vocatur aplicado não ao nome Jesus se não ao sobrenome Christus, parece impróprio: e o mesmo sobrenome Christus também parece supérfluo, porque seria necessário para distinguir um Jesus de outro Jesus. Porventura outro Jesus, e nascido de Maria, que se não chame Cristo? Digo que sim. um Jesus Filho de Maria, que se chama Cristo; e outro Jesus também Filho de Maria, que se chama João. E por isso o Evangelista para distinguir um Jesus de outro Jesus, e um Filho de Maria de outro Filho de Maria, não supérflua, senão necessariamente acrescentou ao nome o sobrenome, e não disse: Maria, da qual nasceu Jesus, senão: Maria, da qual nasceu Jesus, que se chama Cristo.

Quando o mesmo Cristo estava na cruz, disse a sua Santíssima Mãe: Ecce filius tuus: estas palavras eram equívocas, e mais naturalmente se podiam entender do mesmo Cristo que as dizia, do que de outro por quem as dissesse. E como tirou o Senhor esta equivocação? Tirou-a com os olhos, e com a inclinação da cabeça, que tinha livre, apontando para João. Bem. Mas por que não disse, este é outro filho que Vos deixo em meu lugar, senão este é o Vosso filho: Ecce filius tuus? Não dúvida, responde Orígenes, que falando o Senhor por estes termos, quis significar declaradamente que Ele e João não se distinguiam, e que João não era outro filho da Senhora, senão o mesmo Jesus, que Ela gerara, e d’Ela nascera. Notai as palavras, que não podem ser mais próprias, e a razão, que não pode ser mais subida: Nam si nullus est Mariae filius praeterquam Jesus, dixitque: Jesus: Ecce filius tuus: perinde est, ac si dixisset: hic est Jesus quem genuisti. Pois se Jesus e João eram dous, e tão infinitamente diversos: Jesus o Senhor, e João o servo: Jesus o Mestre, e João o discípulo: Jesus o Criador, e João a criatura: Jesus o filho de Deus, e João o filho de Zebedeu: como era, ou como podia ser João não outro filho, senão o mesmo filho, nem outro Jesus, senão o mesmo Jesus que a Senhora gerara: Hic est Jesus quem genuisti? São Pedro Damião reconhece aqui um mistério semelhante ao do Sacramento; mas eu, sem recorrer a milagre, entendo que tudo isto se decifra e verifica com ser João o amado: Discipulus, quem diligebat. Era o amado! Logo era outro, e era o mesmo Jesus. Enquanto Jesus e João eram o mesmo por amor, eram um Jesus: e enquanto João por realidade era outro, eram dous Jesus.

Os filósofos antigos, definindo a verdadeira amizade, qual naquele tempo era, ou qual devia ser, disseram: Amicus est alter ego: O amigo é outro eu. Logo enquanto o amigo é eu, ego; eu e ele somos um: e enquanto ele é outro, alter: ele e eu somos dous, mas ambos os mesmos, e isto é o que obrou sem milagre, por transformação recíproca, o amor de Jesus em João. A mesma antiguidade nos dará o exemplo. Depois da famosa vitória de Alexandre Magno contra el-rei Dario, foi trazida a rainha mãe diante do mesmo Alexandre, a cujo lado assistia seu grande privado Efestião. E como a rainha fizesse a reverência a Efestião, cuidando que ele era o Magno, por ser mais avultado de estatura, e avisada do seu erro, o quisesse desculpar, acudiu Alexandre, como refere Cúrcio, com estas palavras: Non errasti mater, namque; et hic Alexander est: não errastes, senhora, porque este também é Alexandre. Assim o disse o grande monarca, mais como discípulo de Aristóteles, que como filho de Filipe. E se o amor (que eu aqui tenho por político e falso) ou fazia ou fingia que Alexandre e Efestião fossem dous Alexandres: Namque; et hic Alexander est; o amor verdadeiro e sobrenatural da parte de Cristo divino, e da parte de João mais que humano, por que não fariam que Jesus e João fossem dous Jesus? Não dúvida que naquele passo estavam dous Jesus no Calvário, um na cruz, outro ao dela.

Quando Eliseu disse a Elias: Fiat in me duplex spiritus tuus:6 não me posso persuadir que lhe pedisse dobrado espírito do que era o seu; porque seria demasiada presunção de discípulo para mestre: o que quis dizer, foi que o espírito de Elias se dobrasse e multiplicasse em ambos, e que Elias o levasse, pois se ia, e o deixasse a Eliseu, pois ficava. E neste caso, se o espírito de Elias fosse com Elias, e ficasse com Eliseu, Elias porventura seria um Elias? De nenhum modo, diz São João Crisóstomo. Dobrou-se o espírito de Elias, e multiplicou-se em Eliseu como ele tinha pedido: mas então não houve um Elias, senão dous Elias: Erat duplex Elias ille: et sursum Elias, et deorsum Elias. Arrebatou o carro de fogo a Elias, e no mesmo tempo e no mesmo lugar, diz Crisóstomo, se viram então dous Elias, um em cima, outro embaixo; um no ar, outro na terra; um no carro, outro ao dele: Et sursum Elias, et deorsum Elias. O mesmo se viu no nosso caso. O carro triunfal, em que o Redentor do mundo triunfou da morte, do pecado, e do Inferno, foi a cruz: levantado nela, o Senhor, partia-se o Mestre, e ficava, o discípulo: mas como? Como Elias e Eliseu. E assim como Elias e Eliseu eram dous Elias; Duplex Elias; assim Jesus e João eram dous Jesus; e assim como lá, um Elias se via em cima, outro embaixo, Et sursum Elias, et deorsum Elias; assim também um Jesus estava em cima, outro Jesus embaixo; um no ar, outro na terra; um na cruz, outro ao da cruz. E para que ninguém duvidasse que o milagre com que Jesus se tinha dobrado e multiplicado em João, era por virtude e transformação do amor, o mesmo João advertidamente não se chamou aqui João, senão o amado: Cum vidisset Jesus Matrem, et discipulum stantem quem diligebat. Sendo pois João, por transformação do amor, outro Jesus, e Jesus e João dous Jesus; com razão acrescentou o Evangelista ao nome de Jesus o sobrenome de Cristo: Jesus qui vocatur Christus; para distinguir um Jesus de outro Jesus.

Nem basta por distinção o declarar que era Filho de Maria e de Maria nascera: Maria, de qua natus est: porque no mesmo lugar do Calvário, onde Cristo enquanto Jesus nasceu segunda vez de sua Santíssima Mãe (como dissemos) também São João com segundo nascimento nasceu da mesma Senhora, sendo João desde aquele ponto filho de Maria: Ecce filius tuus: e Maria Mãe de João: Ecce Mater tua: e por isso no mesmo tempo e no mesmo lugar Mãe de dous Jesus: um Jesus que se chama João, e outro Jesus que se chama Cristo: De qua natus est Jesus, qui vocatur Christus.


V

O terceiro nascimento de que também se verificam as mesmas palavras, é o dos pretos, devotos da mesma Senhora, os quais também são seus filhos, e também nascidos entre as dores da cruz. O profeta rei, falando da Virgem Maria, debaixo da metáfora de Jerusalém (a que muitas vezes é comparada, porque ambas foram morada de Deus) diz assim: Homo, et homo natus est in ea, et ipse fundavit eam Altissimus: Nasceu nela o homem, e mais o homem: e quem a fundou, foi esse mesmo Altíssimo. Estas segundas palavras declaram o sentido das primeiras, e de umas e outras se convence que o mesmo Deus que criou a Maria é o homem que nasceu de Maria. Enquanto homem nasceu d’Ela: Homo natus est in ea: e esse mesmo enquanto Deus A criou a Ela: Et ipse fundavit eam Altissimus. Assim o diz e prova com evidência Santo Agostinho. Mas o profeta ainda diz mais: porque não diz que nasceu da Senhora esse homem, que enquanto Deus A criou, senão que nasceu d’Ela o homem, e mais o homem: Homo, et homo natus est in ea. Se um destes homens nascidos de Maria é Deus: o outro homem também nascido de Maria, quem é? É todo o homem que tem a e conhecimento de Cristo, de qualquer qualidade, de qualquer nação, e de qualquer cor que seja, ainda que a cor seja tão diferente da dos outros homens, como é a dos pretos. Assim o diz o mesmo texto tão claramente, que nomeia os mesmos pretos por sua própria nação, e por seu próprio nome: Memor ero Rahab, et Babylonis scientium me: Ecce alienigenae, et Tyrus, et populus Aethiopum hi fuerunt illic. Nasceram da Mãe do Altíssimo não os da sua nação, e naturais de Jerusalém, a que é comparada, senão também os estranhos e os gentios, Alienigenae. E que gentios são estes? Rahab; os cananeus que eram brancos: Babylonis: os babilônios que também eram brancos: Tyrus: os tírios que eram mais brancos ainda: e sobre todos, e em maior número que todos: Populus Aethiopum: o povo dos etíopes, que são os pretos. De maneira que vós os pretos, que tão humilde figura fazeis no mundo, e na estimação dos homens; por vosso próprio nome, e por vossa própria nação, estais escritos e matriculados nos livros de Deus, e nas Sagradas Escrituras: e não com menos título, nem com menos foro, que de Filhos da Mãe do mesmo Deus: Et populus Aethiopum hi fuerunt illic.

E posto que o texto é tão claro e literal que não admite dúvida; ouçamos o comento de São Tomás, arcebispo de Valença: Aethiopes non abiicit virgo decora, sed amplectitur ut parvulos, diligit ut filios. Sciant ergo ipsam matrem etenim quia Altissimi mater est, Aethiopis matrem nominari non dedignatur. O profeta pôs no último lugar os etíopes e os pretos; porque este é o lugar que lhes o mundo, e a baixa estimação com que são tratados dos outros homens, filhos de Adão como eles. Porém a Virgem Senhora, sendo Mãe do Altíssimo, não os despreza, nem se despreza de os ter por filhos; antes porque é mãe do Altíssimo, por isso mesmo se preza de ser também sua Mãe: Etenim quia Altissimi mater est, Aethiopis matrem nominari non dedignatur. Saibam pois os pretos, e não duvidem que a mesma Mãe de Deus é Mãe sua: Sciant ergo ipsam matrem: e saibam que com ser uma Senhora tão soberana, é Mãe tão amorosa, que assim pequenos como são, os ama, e tem por filhos: Amplectitur ut parrulos, diligit ut filios. Até aqui São Tomás.

E se me perguntarem os curiosos quando alcançaram os pretos esta dignidade de filhos da Mãe de Deus; respondo que no monte Calvário, e ao da cruz no mesmo dia, e no mesmo lugar em que o mesmo Cristo enquanto Jesus, e enquanto salvador nasceu com segundo nascimento da Virgem Maria: Maria de qua natus est Jesus, qui vocatur Christus. Este parece o ponto mais dificultoso desta terceira proposta. Mas assim o diz com propriedade e circunstância admirável o mesmo texto de Davi. Porque os etíopes que no corpo do salmo se chamam nomeadamente filhos da Senhora, no título do mesmo salmo se chamam filhos de Coré: In finem filiis Core pro arcanis. Esta palavra pro arcanis, nota e manda advertir que se encerra aqui um grande mistério. E que mistério tem chamarem-se estes filhos da Virgem Maria filhos também de Coré? Santo Agostinho, na exposição do mesmo salmo: Magni Sacramenti est, ut dicantur filii Core, quia Core interpretatur Calvaria. Ergo filii passionis illius, filii redempti sanguine illius, filii crucis illius. Coré, na língua hebreia, quer dizer Calvário, e chamam-se filhos do Calvário, e filhos da paixão de Cristo, e filhos da sua cruz os mesmos que neste texto se chamam nomeadamente filhos da Virgem Maria: porque quando no Calvário e ao da cruz nasceu da Virgem Maria com segundo nascimento seu benditíssimo Filho enquanto Jesus e salvador do mundo, então nasceram também com segundo nascimento da mesma Senhora todos os outros filhos das outras nações que o profeta nomeia, e entre eles com tão especial menção os etíopes, que são os pretos: Et populus Aethiopum hi fuerunt illic. De sorte que assim como no Calvário e ao da cruz nasceu de Maria com segundo nascimento Cristo; e assim como no Calvário e ao da cruz nasceu de Maria com segundo nascimento São João; assim ao da cruz nasceram também com segundo nascimento da mesma Virgem Maria os pretos, verificando-se de todos os três nascimentos, por diferente modo, o texto no nosso tema: Maria, de qua natus est Jesus, qui vocatur Christus.

Estou vendo que cuidam alguns que são isto encarecimentos e lisonjas daquelas com que os pregadores costumam louvar os devotos nos dias da sua festa. Mas é tanto pelo contrário, que tudo o que tenho dito, é verdade certa e infalível, e não com menor certeza que de católica. Os etíopes de que fala o texto de Davi, não são todos os pretos universalmente, porque muitos deles são gentios nas suas terras; mas fala somente daqueles de que eu também falo, que são os que por mercê de Deus, e de sua Santíssima Mãe, por meio da e conhecimento de Cristo, e por virtude do batismo são cristãos. Assim o notou o mesmo profeta no mesmo texto: Memor ero Rahab et Babylonis scientium me, et populus Aethiopum, hi fuerunt illic. Naquele scientium me está a diferença de uns a outros. E por quê, ou como? Porque todos os que têm a e conhecimento de Cristo, e são cristãos, são membros de Cristo: e os que são membros de Cristo não podem deixar de ser filhos da mesma Mãe, de que nasceu Cristo: De qua natus est Jesus, qui vocatur Christus.

Que sejam verdadeiramente membros de Cristo, é proposição expressa de São Paulo não menos que em três lugares. Deixo os dous, e repito do capítulo doze aos Coríntios: Sicut enim corpus unum est, et membra habet multa: omnia autem membra corporis, cum sint multa, unum tamem corpus sunt; ita et Christus. Etenim in uno spiritu omnes nos in unum corpus baptizati sumus. Assim como o corpo tem muitos membros, e sendo os membros muitos o corpo é um só; assim (diz São Paulo) sendo Cristo um, e os cristãos muitos, de Cristo e dos cristãos se compõe um corpo: porque todos os cristãos, por virtude da e do batismo, são membros de Cristo. E porque não cuidassem os que são fiéis e senhores, que os pretos, por terem sido gentios e serem cativos, são de inferior condição, acrescenta o mesmo São Paulo, que isto tanto se entende dos hebreus, que eram os fiéis, como dos gentios; e tanto dos cativos e dos escravos, como dos livres e dos senhores: Etenim omnes in unum corpus baptizati sumus sive judaei, sive Gentiles, sive servi, sive liberi. E como todos os cristãos, posto que fossem gentios, e sejam escravos, pela e batismo estão incorporados em Cristo, e são membros de Cristo; por isso a Virgem Maria, Mãe de Cristo, é também Mãe sua; porque não seria Mãe de todo Cristo, senão fosse Mãe de todos seus membros. Excelentemente Guilhelmo abade: In uno salvatore omnium Jesu, plurimos Maria peperit ad salutem. Eo ipso quod mater est capitis, multorum membrorum mater est. Mater Christi Mater est membrorum Christi, quia caput et corpus unus est Christus.

Não se poderá dizer com melhores palavras, nem mais próprias; mas eu quero que no-lo diga com as suas, e nos feche todo este discurso a Escritura Sagrada. Quando Nicodemo de mestre da Lei se fez Discípulo de Cristo, disse-lhe o Senhor três cousas notáveis. A primeira, que para ele Nicodemo, e qualquer outro se salvar, era necessário nascer de novo: Nisi quis renatus fuerit denuo, non potest videre Regnum Dei. A segunda, que ninguém sobe ao Céu, senão quem desceu do Céu: Nemo ascendit in Coelum, nisi qui descendit de Coelo. A terceira, que para isto se conseguir, havia de morrer em uma cruz o mesmo Cristo: Oportet exaltari Filium hominis. Se o texto se fizera para o nosso caso, não pudera vir mais medido com todas suas circunstâncias. Quanto à primeira, replicou Nicodemo, dizendo: Quomodo potest homo nasci, cum sit senex? Nunquid potest in ventrem matris suae iterato introire, et renasci? Como é possível que um homem velho como eu sou, haja de nascer de novo? Porventura de tornar a entrar no ventre de sua mãe para nascer outra vez? Pareceu-lhe ao Doutor que esta instância era muito forte; mas o Divino Mestre lhe ensinou que este segundo e novo nascimento era por virtude do batismo, sem o qual ninguém se pode salvar: Nisi quis renatus fuerit ex aqua et Spiritu Sancto, non potest introire in regnum Dei. E quanto à mãe de que haviam de tornar a nascer os que assim fossem regenerados, acrescentou o mesmo Senhor que essa mãe era a mesma Virgem Maria Mãe sua. Isto querem dizer as segundas palavras de Cristo, posto que o não pareça, nem até agora se tenha reparado nelas. Quando o Senhor disse, que ninguém sobe ao Céu, senão quem desceu do Céu, juntamente declarou que este que desceu do Céu era o mesmo Cristo Filho da Virgem: Nemo ascendit in Coelum, nisi qui descendit de Coelo Filius hominis qui est in Coelo. Pois porque Cristo desceu do Céu, por isso todos os que sobem ao Céu desceram também do Céu? Sim. Porque ninguém pode subir ao Céu, senão incorporando-se com Cristo, como todos nos incorporamos com Ele, e nos fazemos membros do mesmo Cristo, por meio da e do batismo; donde se seguem duas cousas: a primeira, que assim como Ele desceu do Céu, assim nós, por sermos membros seus, também descemos n’Ele, e com Ele: Nemo ascendit in Coelum nisi qui descendit de Coelo. A segunda, que assim como Ele desceu do Céu fazendo-se Filho da Virgem Maria: Filius hominis qui est in Coelo; assim nós também ficamos sendo filhos da mesma Virgem, porque somos membros verdadeiros do verdadeiro Filho que d’Ela nasceu; e finalmente, porque este segundo e novo nascimento não foi o de Belém, senão o de Jerusalém; nem o do presépio, senão o do Calvário; por isso conclui o Senhor, que para este segundo nascimento se conseguir, era necessário que Ele morresse na cruz: Oportet exaltari Filium hominis. Vejam agora os pretos se por todos os títulos ou circunstâncias de etíopes, de batizados, de nascidos com segundo nascimento, de nascidos no Calvário, e nascidos não de outra Mãe, senão da mesma Mãe de Jesus, se verifica também deles como membros de Cristo, o nascimento com que o mesmo Cristo segunda vez nasceu de Maria: Maria, de qua natus est Jesus, qui vocatur Christus.


VI

Parece-me que tenho provado os três nascimentos que prometi. E posto que todos três sejam mui conformes às circunstâncias do tempo: o de Cristo, porque continuamos a oitava do seu nascimento: o de São João, porque estamos no seu próprio dia; e o dos pretos, porque celebramos com eles a devoção da Virgem Santíssima Mãe de Cristo, Mãe de São João, e Mãe sua: sobre estas três grandes propriedades temos ainda outras três muito mais próprias: e quais são? Que unidos estes três nascimentos em um mesmo intento, todos e cada um deles se ordenam a declarar e  persuadir a devoção do Rosário; e do Rosário particularmente dos pretos; e dos pretos em particular que trabalham neste e nos outros engenhos. Não são estas as circunstâncias mais individuais do lugar, das pessoas, e da festa e devoção que celebramos? Pois todas elas nascem daqueles três nascimentos. O novo nascimento dos mesmos pretos, como filhos da Mãe de Deus, lhes mostra a obrigação que têm de servir, venerar, e invocar a mesma Senhora  com o seu Rosário. O novo nascimento de Cristo os persuade a que sem embargo do contínuo e grande trabalho em que estão ocupados, nem por isso se esqueçam da soberana Mãe sua, e de lhe rezar o Rosário, ao menos parte, quando não possam todo. E finalmente, o novo nascimento de São João lhes ensina quais são, entre os mistérios do Rosário, os que mais pertencem ao seu estado, e com que devem aliviar, santificar, e oferecer à Senhora o seu mesmo trabalho. Este é o fim de quanto tenho dito, e me resta dizer: e este também o fruto de que mais se serve, e agrada a Virgem do Rosário, e com que haverá por bem festejado o seu dia. E porque agora falo mais particularmente com os pretos, agora lhe peço mais particular atenção.

Começando pois pelas obrigações que nascem do vosso novo e tão alto nascimento, a primeira e maior de todas é que deveis dar infinitas graças a Deus por vos ter dado conhecimento de si, e por vos ter tirado de vossas terras, onde vossos pais e vós vivíeis como gentios; e vos ter trazido a esta, onde instruídos na fé, vivais como cristãos, e vos salveis. Fez Deus tanto caso de vós, e disto mesmo que vos digo, que mil anos antes de vir ao mundo, o mandou escrever nos seus livros, que são as Escrituras Sagradas. Virá tempo, diz Davi, em que os etíopes (que sois vós) deixadas a gentilidade e idolatria, se hão de ajoelhar diante do verdadeiro Deus: Coram illo procident Aethiopes: e que farão assim ajoelhados? Não baterão as palmas como costumam, mas fazendo oração, levantarão as mãos ao mesmo Deus: Aethiopia praeveniet manus ejus Deo. E quando se cumpriram estas duas profecias, uma do Salmo 71, e outra do Salmo 67? Cumpriram-se principalmente depois que os portugueses conquistaram a Etiópia ocidental, e estão-se cumprindo hoje mais e melhor que em nenhuma outra parte do mundo nesta da América, aonde trazidos os mesmos etíopes em tão inumerável número, todos com os joelhos em terra, e com as mãos levantadas ao Céu, creem, confessam, e adoram no Rosário da Senhora todos os mistérios da encarnação, morte e ressurreição do Criador e Redentor do mundo, como verdadeiro Filho de Deus e da Virgem Maria. Assim como Deus na lei da natureza escolheu a Abraão, e na escrita a Moisés, e na da Graça a Saulo, não pelos serviços que lhe tivessem feito, mas pelos que depois lhe haviam de fazer; assim a Mãe de Deus antevendo esta vossa fé, esta vossa piedade, e esta vossa devoção, vos escolheu de entre tantos outros de tantas e tão diferentes nações, e vos trouxe ao grêmio da Igreja, para que lá, como vossos pais, vos não perdêsseis, e cá, como filhos seus, vos salvásseis. Este é o maior e mais universal milagre de quantos faz cada dia, e tem feito por seus devotos a Senhora do Rosário.

Falando o texto sagrado dos filhos de Coré, que, como dissemos, são os filhos da Senhora nascidos no Calvário, diz que perecendo seu pai, eles não pereceram, e que isto foi um grande milagre: Factum est grande miraculum, ut Core pereunte, filii illius non perirent. Não perecerem, nem morrerem os filhos quando perecem, e morrem os pais, é cousa muito natural, antes é lei ordinária da mesma natureza, porque se com os pais morreram juntamente os filhos, acabar-se-ia o mundo. Como diz logo o texto sagrado, que não morrerem e perecerem os filhos de Coré, quando morreu e pereceu seu pai, não foi milagre, senão um grande milagre: Factum est grande miraculum? Ouvi o caso todo, e logo vereis em que consistiu o milagre e sua grandeza. Caminhando os filhos de Israel pelo deserto em demanda da Terra de Promissão, rebelaram-se contra Deus três cabeças de grandes famílias, Datã, Abirão, e Coré: e querendo a divina justiça castigar exemplarmente a atrocidade deste delito, abriu-se subitamente a terra, tragou vivos aos três delinquentes, e em um momento todos três, com portento nunca visto, foram sepultados no Inferno. Houve porém neste caso uma diferença ou exceção muito notável, e foi que com Datã e Abirão pereceram juntamente, e foram também tragados da terra, e sepultados no Inferno seus filhos; mas os de Coré não: e este é o que a Escritura chama grande milagre: Factum est grande miraculum, ut Core pereunte. filii illius non perirent. Abrir-se a terra não foi milagre? Sim, foi: serem tragados vivos os três delinquentes, não foi outro milagre? Também: irem todos em corpo e alma ao Inferno antes do Dia do Juízo, não foi terceiro milagre? Sim, e muito mais estupendo. E contudo o milagre que a Escritura Sagrada pondera e chama grande milagre, não foi nenhum destes, senão o perecer Coré, e não perecerem seus filhos; porque o maior milagre e a mais extraordinária mercê que Deus pode fazer aos filhos de pais rebeldes ao mesmo Deus, é que quando os pais se condenam, e vão ao Inferno, eles não pereçam, e se salvem.

Oh se a gente preta tirada das brenhas da sua Etiópia, e passada ao Brasil, conhecera bem quanto deve a Deus, e a sua Santíssima Mãe por este que pode parecer desterro, cativeiro, e desgraça, e não é senão milagre, e grande milagre! Dizei-me: vossos pais, que nasceram nas trevas da gentilidade, e nela vivem e acabam a vida sem lume da fé, nem conhecimento de Deus, aonde vão depois da morte? Todos, como credes e confessais, vão ao Inferno, e estão ardendo e arderão por toda a eternidade. E que perecendo todos eles, e sendo sepultados no Inferno como Coré, vós, que sois seus filhos, vos salveis, e vades ao Céu? Vede se é grande milagre da providência e misericórdia divina: Factum est grande miraculum, ut Core pereunte filii ilius non perirent. Os filhos de Datã e Abirão pereceram com seus pais, porque seguiram com eles a mesma rebelião e cegueira; e outro tanto vos poderá suceder a vós. Pelo contrário os filhos de Coré, perecendo ele, salvaram-se, porque reconheceram, veneraram, e obedeceram a Deus: e esta é a singular felicidade do vosso estado, verdadeiramente milagroso.

resta mostrar-vos que este grande milagre, como dizia, é milagre do Rosário, e que esta eleição e diferença tão notável a deveis à Virgem Santíssima vossa Mãe, e por ser Mãe vossa. Isaque, filho de Abraão (de quem vossos antepassados tomaram por honra a divisa da circuncisão, que ainda conservam, e do qual muitos de vós descendeis por via de Ismael meio-irmão do mesmo Isaque); este Isaque, digo, tinha dous filhos, um chamado Jacó, que levou a bênção do Céu; e outro chamado Esaú, que perdeu a mesma bênção. Tudo isto sucedeu em um mesmo dia, em que Esaú andava pelos matos armado de arco e flechas, como andam vossos pais por essas brenhas da Etiópia: e, pelo contrário Jacó estava em casa de seu pai, e de sua mãe, como vós hoje estais na casa de Deus, e da Virgem Maria. E por que levou a bênção Jacó, e a perdeu Esaú? Porque concorreram para a felicidade de Jacó duas cousas, ou duas causas que a Esaú faltaram ambas. A primeira foi porque Rebeca (que era o nome da mãe) não amava a Esaú, senão a Jacó, e fez grandes diligências, e empregou toda a sua indústria em que ele levasse a bênção. A segunda, porque estando duvidoso o pai se lhe daria a bênção ou não, sentiu que os vestidos de Jacó lhe cheiravam a rosas e flores, e tanto que sentiu este cheiro e esta fragrância, logo lhe deitou a bênção.

Assim o nota expressamente o texto: Statimque; ut sensit vestimentorum illius fragrantiam, benedicens illi, ait: Ecce odor filii mei, sicut odor agri pleni, cui benedixit Dominus: det tibi Deus de rore Coeli, etc. Uma e outra circunstância, assim da parte da mãe como do pai, foram admiráveis, e por isso misteriosas. Da parte da mãe, que sendo Jacó e Esaú irmãos, amasse com tanta diferença a Jacó: e da parte do pai, que um acidente que parecia tão leve, como o cheiro das flores, lhe tirasse toda a dúvida, e fosse o último motivo de lhe dar a bênção. Mas assim havia de ser, para que o mistério se cumprisse com toda a propriedade nas figuras e ações que o representavam. Isaque significava a Deus, Rebeca a Virgem Mãe, Jacó os seus filhos escolhidos, que sois vós; e Esaú os reprovados, que são os que sendo do vosso mesmo sangue, e da vossa mesma cor, não alcançaram a bênção que vós alcançastes. Para que entendais que toda esta graça do Céu a deveis referir a duas causas: a primeira ao amor e piedade da Virgem Santíssima vossa Mãe: a segunda à devoção do seu Rosário, que é o cheiro das rosas e flores que tanto enlevam e agradam a Deus.

Dos sacrifícios antigos, quando Deus os aceitava, diz a Sagrada Escritura que lhe agradava muito o cheiro, e suavidade deles: Odoratus est Dominus odorem suavitatis. E a razão era porque naqueles sacrifícios se representavam os mistérios da vida e morte de seu benditíssimo Filho. E como na devoção do Rosário se contêm a memória e consideração dos mesmos mistérios; este é o cheiro e fragrância que tanto nele agrada, e tão aceito é a Deus. Em vós, antes de serdes cristãos, somente era futuro este cheiro das flores do Rosário, que hoje é presente, como também eram futuros naquele tempo os mistérios de Cristo: mas assim como o merecimento destes mistérios antes de serem, somente porque haviam de ser, davam eficácia àqueles sacrifícios; assim a vossa devoção do Rosário futura, e quando ainda não era, porque Deus e sua Mãe a anteviram com a aceitação e agrado que dela recebem, vos preferiram e antepuseram aos demais das vossas nações, e vos tiveram por dignos da bênção que hoje gozais, tanto maior e melhor que a de Jacó, quanto vai da Terra ao Céu. Para que todos conheçais o motivo principal da vossa felicidade, e a obrigação em que ela vos tem posto de não faltar a Deus, e a sua Santíssima Mãe com este quotidiano tributo da vossa devoção.

 

VII

Estou vendo porém que o vosso contínuo trabalho e exercício pode parecer ou servir de escusa ao descuido dos menos devotos. Direis que estais trabalhando de dia e de noite em um engenho, e que as tarefas multiplicadas umas sobre outras (que talvez entrem e se penetrem com os dias santos) vos não deixam tempo nem lugar para rezar o Rosário. Mas aqui entra o novo nascimento de Cristo segunda vez nascido no Calvário, para com seu divino exemplo e imitação refutar a fraqueza desta vossa desculpa, e vos ensinar como no meio do maior trabalho vos não haveis de esquecer da devoção de sua Mãe, pois o é também vossa, oferecendo-lhe ao menos alguma parte, quando comodamente não possa ser toda. Davi (aquele santo rei, que também teve netos na Etiópia, filhos de seu filho Salomão, e da rainha Sabá) entre os salmos que compôs, foram três particulares, aos quais deu por título Pro torcularibus: que em frase do Brasil quer dizer, para os engenhos. Este nome torcularia, universalmente tomado, significa todos aqueles lugares e instrumentos em que se espreme e tira o sumo dos frutos, como em Europa o vinho e o azeite, que se chamam lagares: e porque estes, em que no Brasil se faz o mesmo às canas doces, e se espreme, coze e endurece o sumo delas, têm maior e mais engenhosa fábrica, se chamaram vulgarmente engenhos. Se perguntarmos pois qual foi o fim e intento de Davi em compor e intitular aqueles salmos nomeadamente para estas oficinas? Respondem os doutores hebreus, e com eles Paulo Burgense, que o intento que teve o santo rei, e fez se praticasse em todo o povo de Israel, foi que os trabalhadores das mesmas oficinas ajuntassem o trabalho com a oração, e em lugar de outros cantares com que se costumavam aliviar, cantassem hinos e salmos: e pois recolhiam e aproveitavam os frutos da terra, não fossem eles estéreis, e louvassem ao Criador que os dá. Notável exemplo por certo, e de suma edificação, que entre os grandes negócios e governo da Monarquia tivesse um rei estes cuidados! E que confusão pelo contrário será para os que se chamam senhores de engenho, se atentos somente aos interesses temporais, que se adquirem com este desumano trabalho, dos trabalhadores seus escravos, e das almas daqueles miseráveis corpos, tiverem tão pouco cuidado, que não tratem de que louvem e sirvam a Deus, mas nem ainda de que O conheçam?

Tornando aos salmos compostos para os engenhos (que depois veremos, porque foram três) declara Davi no título do último quem sejam os operários destas trabalhosas oficinas, e diz que são os filhos de Coré: Pro torcularibus filiis Core. Segundo a propriedade da história, dissemos que os filhos de Coré são os pretos filhos da Virgem Santíssima, e devotos do seu Rosário. Segundo a significação do nome, porque Coré na língua hebraica significa Calvário, diz Hugo cardeal que são os imitadores da cruz e paixão de Cristo crucificado: Filiis Core, id est, imitatoribus Christi in loco Calvariae crucifixi. Não se pudera, nem melhor nem mais altamente, descrever que cousa é ser escravo em um engenho do Brasil. Não trabalho, nem gênero de vida no mundo mais parecido à cruz e paixão de Cristo, que o vosso em um destes engenhos. O fortunati nimium sua si bona norint! Bem-aventurados vós se soubéreis conhecer a fortuna do vosso estado, e com a conformidade e imitação de tão alta e divina semelhança aproveitar e santificar o trabalho!

 

Em um engenho sois imitadores de Cristo crucificado: Imitatoribus Christi  crucifixi, porque padeceis em um modo muito semelhante o que o mesmo Senhor padeceu na sua cruz, e em toda a sua paixão. A sua cruz foi composta de dous madeiros, e a vossa em um engenho é de três. Também ali não faltaram as canas, porque duas vezes entraram na Paixão: uma vez servindo para o cetro de escárnio, e outra vez para a esponja em que lhe deram o fel.

A paixão de Cristo parte foi de noite sem dormir, parte foi de dia sem descansar, e tais são as vossas noites e os vossos dias. Cristo despido, e vós despidos: Cristo sem comer, e vós famintos: Cristo em tudo maltratado, e vós maltratados em tudo. Os ferros, as prisões, os açoutes, as chagas, os nomes afrontosos, de tudo isto se compõe a vossa imitação, que se for acompanhada de paciência, também terá merecimento de martírio. lhe faltava a cruz para a inteira e perfeita semelhança o nome de engenho; mas este mesmo lhe deu Cristo não com outro, senão com o próprio vocábulo. Torcular se chama o vosso engenho, ou a vossa cruz, e a de Cristo, por boca do mesmo Cristo, se chamou também torcular: Torcular calcavi solus. Em todas as intenções e instrumentos de trabalho parece que não achou o Senhor outro que mais parecido fosse com o seu, que o vosso. A propriedade e energia desta comparação é porque no instrumento da cruz, e na oficina de toda a paixão, assim como nas outras em que se espreme o sumo dos frutos, assim foi espremido todo o sangue da humanidade sagrada: Eo quod sanguis ejus ibi fuit expressus, sicut sanguis uvae in torculari, diz Lirano: Et hoc in spineae coronae impositione, in flagellatione, in pedum, et manuum confixione, et in lateris apertione. E se então se queixava o Senhor de padecer só, torcular calcavi solus; e de não haver nenhum dos gentios que O acompanhasse em suas penas, et de gentibus non est vir mecum, vede vós quanto estimará agora que os que ontem foram gentios, conformando-se com a vontade de Deus na sua sorte, lhe façam por imitação tão boa companhia!

Mas para que esta primeira parte da imitação dos trabalhos da cruz o seja também nos afetos (que é a segunda e principal); assim como no meio dos seus trabalhos e tormentos se não esqueceu o Senhor de sua piedosíssima Mãe, encomendando-A ao discípulo amado assim vos não haveis vós de esquecer da mesma Senhora, encomendando-vos muito particularmente na sua memória, e oferecendo-lhe a vossa. Depois de Cristo na cruz dar o reino do Céu ao bom ladrão, então falou com sua Mãe; e parece que este, e não aquele, havia de ser o seu primeiro cuidado: mas seguiu o Senhor esta ordem, diz Santo Ambrósio, para mostrar, segundo as mesmas leis da natureza, que mais fazia em ter da própria Mãe esta lembrança, que em dar a um estranho o reino: Pluris putans quod pietatis officia dividebat, quam quod regnum coeleste donabat. Ao ladrão deu Cristo menos do que lhe pediu, e à Mãe deu muito mais do que tinha dado ao ladrão; porque o ladrão pediu-lhe a memória, e deu-lhe o reino, e à Mãe deu-lhe muito mais que o reino, porque lhe deu a memória. Esta memória haveis de oferecer à Senhora em meio dos vossos trabalhos, à imitação de seu Filho, e não duvideis ou cuideis que lhe seja menos aceita a vossa, antes em certo modo mais: por quê? Porque nas ave-marias do vosso Rosário a fazeis com palavras de maior consolação, do que as que lhe disse o mesmo Filho, conformando-se com o estado presente. O Filho chamou-lhe Mulher, e vós chamar-lhe-eis a bendita entre todas as mulheres: o Filho não lhe deu o nome de Mãe, e vós A invocareis cento e cinquenta vezes com o nome de Santa Maria Mãe de Deus. Oh quão adoçada ficará a dureza, e quão enobrecida a vileza dos vossos trabalhos na harmonia destas vozes do Céu; e quão preciosas seriam, diante de Deus, as vossas penas e aflições, se juntamente lhas oferecerdes em união das que a Virgem Mãe sua padeceu ao da cruz!

E porque a continuação do vosso mesmo trabalho vos não pareça bastante escusa para faltardes com vossas orações a esta pensão de cada dia; adverti que se o vosso Rosário consta de três partes, estando Cristo vivo na cruz somente três horas, nessas três horas orou três vezes. Pois se Cristo ora três vezes em três horas, sendo tão insofríveis os trabalhos da sua cruz; vós, por grandes que sejam os vossos, por que não orareis três vezes em vinte e quatro horas? Dir-me-eis que as orações que fez Cristo na cruz, foram muito breves. Mas nisso mesmo vos quis dar exemplo, e vos deixou uma grande consolação, para que quando, ou apertados do tempo, ou oprimidos do trabalho, não puderdes rezar o Rosário inteiro, não falteis ao menos em rezar parte: consolando-vos com saber que nem por isso as vossas orações abreviadas serão menos aceitas a Deus, e a sua Mãe, assim como o foram as de Cristo a seu Eterno Pai.

Agora acabareis de entender por que razão os salmos que Davi compôs para os que trabalham nos engenhos, foram somente três. Lede-os ou leiam-nos por vós os que os entendem, e acharão que três se intitulam: Pro torcularibus. E por que três, nem mais, nem menos? Porque em três partes, nem mais, nem menos, dividiu Davi o seu Saltério, e a Senhora o seu Rosário. O que hoje chamamos Rosário, antes que as ave-marias se convertessem milagrosamente em rosas, chamava-se o Saltério da Virgem, porque assim como o Saltério era composto de cento e cinquenta salmos, assim o Rosário se compõe de cento e cinquenta saudações angélicas. Que fez pois Davi, como rei pio, e como profeta? Como rei pio, que atendia ao bem presente do seu reino, vendo que os trabalhadores dos lagares não podiam rezar o Saltério inteiro, e tão comprido como é, recopilou e abreviou o mesmo Saltério, e reduziu as três partes, de que é composto, aos três salmos que intitulou: Pro torcularibus. E como profeta que via os tempos futuros, e o Rosário que havia de compor a mãe do que se havia de chamar Filho de Davi, à imitação do seu Saltério, introduziu no mesmo Saltério, já abreviado e reduzido a três salmos, os três mistérios gozosos, dolorosos, e gloriosos, em que está repartido o Rosário. Assim foi, e assim se claramente nos mesmos três salmos. Porque o primeiro (que é o salmo 8) tendo por expositor a São Paulo, contém os mistérios da encarnação e infância do Salvador: Ex ore infantium, et lactentium perfecisti laudem. O segundo (que é o salmo 80) contém os mistérios da cruz e da redenção, representados na do Egito: Ego sum Dominus Deus tuus, qui eduxi te de terra Aegypti. E o terceiro (que é o salmo 83) contém os mistérios da glória e da ascensão: Beatus vir, cujus est auxilium abs te, ascensiones in corde suo disposuit in valle lachrimarum.

Assim pois, como os trabalhadores hebreus (que eram os fiéis daquele tempo) no exercício dos seus lagares meditavam e cantavam o Saltério de Davi recopilado naqueles três salmos, porque não podiam todo; ao mesmo modo vós, quando não possais rezar todo o Rosário da Senhora, ao menos com partes das três partes em que ele se divide, haveis de aliviar e santificar o peso do vosso trabalho na memória, e louvores dos seus mistérios. E este foi finalmente o exemplo e exemplar que vos deixou Cristo nas três breves orações da sua cruz. Porque, se bem advertirdes, em todas três, pela mesma ordem do Rosário, se contêm os mistérios gozosos, dolorosos e gloriosos. Os gloriosos na terceira, em que encomendou sua alma nas mãos do Padre, partindo-se deste mundo para a Glória: Pater in manus tuas commendo spiritum meum. Os dolorosos na segunda, em que amorosamente queixoso publicou a altas vozes o excesso das suas dores: Deus meus, Deus meus, ut quid dereliquisti me? E os gozosos, rogando pelos mesmos que O estavam pregando na cruz, e alegando que não sabiam o que faziam: Non enim sciunt quid faciunt: porque eles O crucificavam para O atormentarem, e Ele se gozava muito de que O crucificassem, como declarou São Paulo: Proposito sibi gaudio, sustinuit crucem.

 

VIII

Resta o último e excelente documento de São João, também nova e segunda vez nascido ao da cruz: e qual é este documento? Que entre todos os mistérios do Rosário, haveis de ser mais particularmente devotos dos que são mais próprios do vosso estado, da vossa vida, e da vossa fortuna, que são os mistérios dolorosos. A todos os mistérios dolorosos (e não assim aos outros) se achou presente São João. Assistiu ao do Horto com os dous discípulos: assistiu ao dos açoutes com a Virgem Santíssima no Pretório de Pilatos: assistiu do mesmo modo, e no mesmo lugar à coroação de espinhos: seguiu ao Senhor com a cruz às costas até o monte Calvário, e no mesmo Calvário se não apartou do seu lado até expirar, e ser levado à sepultura. Estes foram os mistérios próprios do discípulo amado, que como a dor se mede pelo amor, a ele competiam mais os dolorosos. Estes foram os seus, e estes devem ser os vossos, e não por devoção ou eleição, nem por condição e semelhança da vossa cruz, mas por direito hereditário desde o primeiro etíope, ou preto que conheceu a Cristo, e se batizou. É caso muito digno de que o saibais.

 

Apareceu um anjo a São Filipe diácono, e disse-lhe que se fosse pôr na estrada de Gaza. Posto na estrada tornou-lhe a aparecer, e disse-lhe que se chegasse a uma carroça que por ali passava. Chegou, e viu que ia na carroça um homem preto (que era criado da rainha de Etiópia) e ouviu que ia lendo pelo profeta Isaías. O lugar em que estava era aquele famoso texto do capítulo 53, em que o profeta descreve mais claramente que nenhum outro, a morte, paixão e paciência de Cristo: Tanquam ovis ad occisionem ductus est, et sicut agnus coram tondente se, sine voce, sic non aperuit os suum, etc. Perguntou-lhe o diácono se entendia o que estava lendo, e como respondesse que não, e lhe pedisse que lho declarasse, foi tal a declaração, que chegando depois ambos a um rio, o etíope pediu ao santo que o batizasse. E este foi o primeiro gentio depois de Cornélio romano, e o primeiro preto cristão que houve no mundo. Tudo nesta história, que é dos Atos dos Apóstolos, referida por São Lucas, são mistérios. Mistério foi o primeiro aviso do anjo ao santo diácono, e mistério o segundo: mistério que um gentio fosse lendo pela Sagrada Escritura, e mistério que caminhando a fosse lendo: mistério que o profeta que lia fosse Isaías, e mistério sobre todos misterioso, que o lugar fosse da Paixão e paciência de Cristo; porque para dar ocasião ao diácono de pregar a a um gentio, bastava que fosse qualquer outro. Pois por que ordenou Deus que fosse sinaladamente aquele lugar, em que se descrevia a sua paixão, e os tormentos com que havia de ser maltratado, e a paciência, sujeição e silêncio com que os havia de suportar? Sem dúvida, porque neste primeiro etíope tão antecipadamente convertido se representavam todos os homens da sua cor, e da sua nação, que depois se converteram. Assim o dizem São Jerônimo e Santo Agostinho, e o provam com o texto de Davi: Aethiopia praeveniet manus ejus Deo. E como a natureza gerou os pretos da mesma cor da sua fortuna, Infelix genus hominum, et ad servitutem natum; quis Deus que nascessem à debaixo do signo da sua paixão, e que ela, assim como lhe havia de ser o exemplo para a paciência, lhe fosse também o alívio para o trabalho. Enfim, que de todos os mistérios da vida, morte e ressurreição de Cristo, os que pertencem por condição aos pretos, e como por herança, são os dolorosos.

Destes devem ser mais devotos, e nestes se devem mais exercitar, acompanhando a Cristo neles, como fez São João na sua cruz. Mas assim como entre todos os mistérios do Rosário estes são os que mais propriamente pertencem aos pretos; assim entre todos os pretos, os que mais particularmente os devem imitar e meditar, são os que servem e trabalham nos engenhos, pela semelhança e rigor do mesmo trabalho. Encarecendo o mesmo Redentor o muito que padeceu em sua sagrada Paixão, que são os mistérios dolorosos, compara as suas dores às penas do Inferno: Dolores Inferni circundederunt me. E que cousa na confusão deste mundo mais semelhante ao Inferno, que qualquer destes vossos engenhos, e tanto mais, quanto de maior fábrica? Por isso foi tão bem recebida aquela breve e discreta definição de quem chamou a um engenho de açúcar doce inferno. E verdadeiramente quem vir na escuridade da noite aquelas fornalhas tremendas perpetuamente ardentes: as labaredas que estão saindo a borbotões de cada uma pelas duas bocas, ou ventas, por onde respiram o incêndio: os etíopes, ou ciclopes banhados em suor tão negros como robustos que subministram a grossa e dura matéria ao fogo, e os forcados com que o revolvem e atiçam; as caldeiras ou lagos ferventes com os cachões sempre batidos e rebatidos, vomitando escumas, exalando nuvens de vapores mais de calor, que de fumo, e tornando-os a chover para outra vez os exalar: o ruído das rodas, das cadeias, da gente toda da cor da mesma noite, trabalhando vivamente, e gemendo tudo ao mesmo tempo sem momento de tréguas, nem de descanso: quem vir enfim toda a máquina e aparato confuso e estrondoso daquela babilônia, não poderá duvidar, ainda que tenha visto Etnas e Vesúvios, que é uma semelhança de Inferno. Mas se entre todo esse ruído, as vozes que se ouvirem, forem as do Rosário, orando e meditando os mistérios dolorosos, todo esse inferno se converterá em paraíso; o ruído em harmonia celestial; e os homens, posto que pretos, em anjos.

Grande texto de Davi. Estava vendo Davi essas mesmas fornalhas do Inferno, e essas mesmas caldeiras ferventes: e profetizando literalmente dos que viu atados a elas, escreveu aquelas dificultosas palavras: Si dormiatis inter medios cleros pennae columbae deargentatae, et posteriora dorsi ejus in pallore auri. Cleros quer dizer lebetes, ou, como verte com maior propriedade Vatablo: Si dormiatis inter medias caldarias, vasaque; plena fulligine. Diz pois o profeta: se passardes as noites entre as caldeiras, e entre grandes vasos fuliginosos e tisnados com o fumo e labaredas das fornalhas; que haveis de fazer, ou que vos de suceder? Agora entra o dificultoso das palavras Pennae columbae deargentatae, et posteriora dorsi ejus in pallore auri. Penas e asas de pomba prateadas por uma parte, e douradas por outra. E que tem que ver a pomba com o triste escravo e negro etíope, que entre todas as aves é parecido ao corvo? Que tem que ver a prata e o ouro com o cobre da caldeira, e o ferro da corrente a que está atado? Que tem que ver a liberdade de uma ave com penas e asas para voar com a prisão do que se não pode bulir dali por meses e anos, e talvez por toda a vida? Aqui vereis quais são os poderes e transformações que obra o Rosário nos que oram e meditam os mistérios dolorosos.

A pomba na Sagrada Escritura, como consta de infinitos lugares, não é símbolo da oração e meditação absolutamente, senão dos que oram e meditam em casos dolorosos: por isso el-rei Ezequias nas suas dores dizia: Meditabor ut columba. E a razão desta propriedade e semelhança, é porque a pomba com os seus arrulhos, não canta como as outras aves, mas geme. Quer dizer pois o profeta, e diz admiravelmente falando convosco na mais miserável circunstância desse inferno da Terra: Si dormiatis inter medias caldarias, vasaque; plena fulligine: se não de dia, mas de noite vos virdes atados a essas caldeiras com uma forte cadeia, que vos deixe livres as mãos para o trabalho, e não os pés para dar um passo; nem por isso vos desconsoleis e desanimeis; orai e meditai os mistérios dolorosos, acompanhando a Cristo neles, como São João; e nessa triste servidão de miserável escravo tereis o que eu desejava, sendo rei, quando dizia: Quis dabit mihi pennas sicut columbae, et volabo, et requiescam: Oh quem me dera asas como de pomba para voar e descansar! E estas são as mesmas que eu vos prometo no meio dessa miséria: Pennae columbae deargentatae, et posteriora ejus in pallore auri; porque é tal a virtude dos mistérios dolorosos da paixão de Cristo para os que orando os meditam, gemendo como pomba, que o ferro se lhes converte em prata, o cobre em ouro, a prisão em liberdade, o trabalho em descanso, o inferno em paraíso, e os mesmos homens, posto que pretos, em anjos.

Dizei-me que cousa é um anjo? Os anjos não são outra cousa senão homens com asas; e esta figura não lha deram os pintores, senão o mesmo Deus, que assim os mostrou a Isaías, e assim os mandou esculpir no Templo. Pois essas são as asas prateadas e douradas com que desse vosso inferno vos viu Davi voar ao Céu para cantar o Rosário no mesmo coro com os anjos. Nem vos meta em desconfiança a vossa cor, nem as vossas fornalhas, porque na fornalha, de Babilônia, onde o mestre da capela era o Filho de Deus, no mesmo coro meteu as noites com os dias: Benedicite noctes, et dies Domino. Antes vos digo (e notai muito isto para vossa consolação) que se no Céu não entraram as vossas vozes com as dos anjos, o Rosário que se canta não seria perfeito. Consta de muitas revelações e visões de santos, que os anjos no Céu também rezam ou cantam o Rosário: por sinal que ao nome de Maria fazem uma profunda inclinação, e ao nome de Jesus se ajoelham todos: e digo que entrando vós no mesmo coro, será o Rosário dos anjos mais perfeito do que é sem vós; porque a perfeição do Rosário consiste em se conformar quem o reza com os mistérios que nele se meditam, gozando-se com os gozosos, doendo-se com os dolorosos, e gloriando-se com os gloriosos. E posto que os anjos nos gozosos se podem gozar, e nos gloriosos se podem gloriar, nos dolorosos não se podem doer, porque o seu estado é incapaz de dor. Isto porém que eles não podem fazer no Céu, fazeis vós na Terra; se no meio dos trabalhos que padeceis, vos doeis mais das penas de Cristo, que das vossas. Assim que do Rosário dos anjos, e do vosso, ou repartidos em dous coros, ou unidos em um só, se inteira a perfeição, ou se aperfeiçoa a, harmonia dos mistérios do Rosário.

Os dolorosos (ouçam-me agora todos), os dolorosos são os que vos pertencem a vós, como os gozosos aos que devendo-vos tratar como irmãos, se chamam vossos senhores. Eles mandam, e vós servis: eles dormem, e vós velais: eles descansam, e vós trabalhais: eles gozam o fruto de vossos trabalhos, e o que vós colheis deles é um trabalho sobre outro. Não trabalhos mais doces que os das vossas oficinas; mas toda essa doçura para quem é? Sois como as abelhas, de quem disse o poeta: Sic vos non vobis mellificatis apes. O mesmo passa nas vossas colmeias. As abelhas fabricam o mel, sim; mas não para si. E posto que os que o logram é com tão diferente fortuna da vossa; se vós porém vos souberdes aproveitar dela, e conformá-la com o exemplo e paciência de Cristo, eu vos prometo primeiramente que esses mesmos trabalhos vos sejam muito doces, como foram ao mesmo Senhor: Dulce lignum, dulces clavos, dulcia ferens pondera: e que depois (que é o que importa) assim como agora imitando a São João, sois companheiros de Cristo nos mistérios dolorosos de sua cruz; assim o sereis nos gloriosos de sua ressurreição e ascensão. Não é promessa minha, senão de São Paulo, e texto expresso de fé: Hearedes quidem Dei, cohaeredes autem Christi: si tamen compatimur, ut et conglorificemur. Assim como Deus vos fez herdeiros de suas penas, assim o sereis também de suas glórias: com condição porém que não padeçais o que padeceis, senão que padeçais com o mesmo Senhor, que isso quer dizer compatimur. Não basta padecer com Cristo, como São João.

Oh como quisera e fora justo que também vossos senhores consideraram bem aquela consequência: Si tamen compatimur, ut et conglorificemur. Todos querem ir à Glória, e ser glorificados com Cristo; mas não querem padecer, nem ter parte na cruz com Cristo. Não é isto o que nos ensinou a Senhora do Rosário na ordem e disposição do mesmo Rosário. Depois dos mistérios gozosos pôs os dolorosos, e depois dos dolorosos os gloriosos. Por quê? Porque os gostos desta vida têm por consequência as penas, e as penas pelo contrário as glórias. E se esta é a ordem que Deus guardou com seu Filho, e com sua Mãe, vejam os demais o que fará com eles. Mais inveja devem ter vossos senhores às vossas penas, do que vós aos seus gostos, a que servis com tanto trabalho. Imitai pois ao Filho e à Mãe de Deus, e acompanhai-Os com São João nos seus mistérios dolorosos, como próprios da vossa condição, e da vossa fortuna, baixa e penosa nesta vida, mas alta e gloriosa na outra. No Céu cantareis os mistérios gozosos e gloriosos com os anjos, e vos gloriareis de ter suprido, com grande merecimento, o que eles não podem no contínuo exercício dos dolorosos.

 

IX

Estes são, devotos do Rosário, os três motivos que nascem dos três nascimentos que vistes, os quais se forem tão bem exercitados como são bem-nascidos, nem podeis desejar maior honra nos vossos desprezos, nem maior alívio nos vossos trabalhos, nem maior dita e ventura na vossa fortuna. A mesma Mãe do Filho de Deus e de São João é Mãe vossa. E pois estes três filhos nascidos lhe nasceram segunda vez ao da cruz, não falteis na vossa, posto que tão pesada, nem à imitação de tão honrados irmãos, nem às obrigações de tão soberana Mãe.

Para que assim como a Senhora se gloria de ser Mãe de Cristo, e depois d’Ele de ser Mãe de São João, assim tenha também muito de que se gloriar em ser Mãe de todos os pretos tão particularmente seus devotos. Desta maneira se multiplicou por vários modos o segundo nascimento de seu unigênito Filho; e desta maneira se verifica em eterno louvor de seu santíssimo nome, que o mesmo Jesus que se chama Cristo, não uma senão três vezes nasceu de Maria: Maria de qua natus est Jesus, qui vocatur Christus.

 
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

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