6/29/2023

O dia de Ano Bom (Conto), de Inês Sabino


O DIA DE ANO BOM
(À MARINITA PINHO)

Dez!... onze!... doze!...

A esta última badalada subiu ao ar uma enorme girândola de foguetes, casada ao repique atroador de uma infinidade de sinos.

Os cafés, regurgitavam de frequentadores; os grupos cruzavam-se nas ruas. Tudo era festa.

Para os bairros desertos porém um silêncio profundo lá pairava; e, não é raridade isso, porque, além da monotonia dos seus habitantes, lá para o de São José, onde os pobres moram de preferência, nessa noite, no Recife, o povo provinciano arraigado a velhos costumes, percorre as estradas contentes e tocando violão, indo depois banhar-se em algum rio, não sentindo a estirada do caminho que muitas vezes é rude até.

Ainda na província há tendência para a continuação de costumes herdados dos nossos avós, não obstante o arrefecimento que nota-se na metamorfose social para abandonai-os de vez; mas o povo, que é sempre povo, por conta própria os vai prorrogando, até sumirem -se para sempre na mesma recordação do próprio povo, que conforme o meio, adotará um outro modo de dar pasto ao espírito necessitado de distrações.

E a lua, a casta Déa das alturas, silenciosa, retratava-se no matiz da criação, espalhando seu facho sereno e prateado, ao percorrer as planícies verdejantes da Veneza brasileira.

A pêndula do universo ao tocar uma, duas, três, e quatro horas da manhã do novo dia de rios e de luz, veio por um ponto final nos acordes das musicas dos salões, onde dançavam pares no vertiginoso gozo da recreação, despertando para ver nascer o sol, velho mas reluzente nesse dia novo, aqueles que no leito morno da paz dormiam o sono bom que lhes deu o trabalho, a honra e o dever.

***

O dia de ano bom é um dia sagrado; é um dia u til; tornando-se também um dia onde a alegria é-nos por instinto comunicativa.

O campo, com o verde alegre das colinas, a relva, entrelaçando-se de florinhas o ar, impregnado das suaves emanações de balsâmicos odores, convida a ir-se gozar dos esplendores da natureza, rejuvenescendo até mesmo o espírito ante a ideia de se haver passado incólume doze longos meses, tristes, monótonos, doentios talvez, mas salvos, sem vir um tumulo fechar esse longo Calvário de esperanças, pondo um ponto negro no fio tênue da vida.

Ao campo, pois!

Vamos, caríssima leitora fluminense; tomemos lugar em um dos trens dos subúrbios.

Olhemos em roda. A edificação é pesada; sem gosto, e moldada à portuguesa. Os estabelecimentos comerciais com movimento nos dias úteis, onde o comercio é o sultão que abre as portas de seu harém a umas odaliscas louras, mas não raras, as libras esterlinas, estão agora fechados. Tudo repousa das lides quotidianas neste dia de descanso.

Deixemos a cidade; levadas pela vertiginosa máquina do trem, podereis ver mesmo de relance toda essa beleza topográfica da aquática e antiga pátria de históricos antepassados.

Os bairros, são divididos por pontes; tudo é plano; os edifícios, destacam-se nobres e elegantes; em um a eminência, à direita, vê-se Olinda no musgo das suas ruínas, no farol adormecido das suas tradições; além, muito além, os Guararapes, com toda a página brilhante do seu passado de gloria; e, junto a vós, um obscuro e frágil feminino ser pensante, que nesta folha relembra um a por uma todas as doces recordações da terra amada.

Sete, oito e nove horas da manhã!...

O sol, já bem alto, ainda não cresta-nos a epiderme; desçamos; e em um delicioso arrabalde banhado pelo caudaloso Beberibe, entremos com vagar em uma bonita casa de campo com visos de ser habitada por gente rica. Felizmente, como vedes, foi curta a minha digressão intelectual; obrigada, pelo incomodo por mim dado, mil graças pela diferença cortês da companhia que me fizestes.

***

Com o direito da minha fraquíssima pena, que traça, risca, emoldura quadros, pinta a opulência, descreve a miséria, desseca, ajudado do escalpelo da razão, o cadáver pestilento do vicio, retalha a maledicência, faz jus à virtude, censura ou aplaude o esforço da ideia, entro convosco em uma sala de visitas preparada com todo o confortable do indispensável a uma vida à inglesa.

Por toda a parte luxo, gosto, mas severidade.

Ergam os um reposteiro grenat com as iniciais W R, entremos com precaução, vamos de vagar, sem bulha... assim... aguça-nos uma pontinha de curiosidade; olhai que é preciso não desmentir o sexo... pchut.. afinemos o ouvido... fala-se o inglês... finalmente!... porém..., espreitemos por uma gretinha da porta aberta que do boudoir dá para a saleta e vejamos tudo, tudo.

Bem no meio do aposento vê-se numa grande tina simulando um montículo, enorme pitangueira, que neste momento está sendo ornada de velinhas de cores e de muitos brinquedos mais ou menos ricos, por uma senhora alta, bonita, que falia por monossílabos com uma jovem fresca e loura.

Duas crianças vestidas de branco com laços azuis sobre os ombros tagarelavam apresentando os objetos, e um menino louro igualmente, mas forte e alto, com as mãos nas costas, arregalava os olhos repletos de cobiça ante tanta quinquilharia, conversando animadamente com as duas pequeninas, que a uma ordem da mãe, saem correndo. O menino, imita-as; e a jovem Miss, abrindo a porta que dava para a sala de visitas, desapareceu como uma sombra, ficando a inglesa só. Um rumor surdo, partido do exterior, ferio os ouvidos da loura senhora, que chegando a uma janela olhou em frente.

***

Em um cercado limpo e bem tratado com uma casinha de barro coberta de telhas, estavam sentados à vontade em bancos rústicos alguns homens e mulheres do povo, uns conversando, outros olhando, tudo envolvido em densos espirais do fumo dos cachimbos ou cigarros atirando-se cm a fumaça à cara das graças fuscas e negras que ali se achavam.

De repente, um dos rapagões que sustentava a conversa entre as faceiras mulatinhas levantou-se e foi ao interior donde trouxe uma botija e um violão que ergueu ao ar.

— Quem toca? perguntou ele?

— Eu, respondeu um velho que fumava num cachimbo de barro.

— Qual de vocês quer beijar a sinhá Aninha, exclamou o rapaz pondo a botija à altura da cabeça. Quem quer um gole?

— Ninguém! respondeu uma voz. O que nós querem os é sambar.

Ao samba, pois!

As cordas do instrumento vibravam sonoramente tocadas por mão de mestre, principiando o velho a um lundu saltitante e repenicado, que pôs tudo em movimento.

A botija, arranhada vertiginosamente por uma moeda de cobre sobre o barro cozido e lustroso, produzia um som, seco, e rijo, formando uma estranha harmonia com o acorde mavioso do violão.

Um homem escuro, com ares de Adônis, principiou então a sapatear sobre o chão socado, dando trejeitos ao corpo e tocando com os dedos castanholas estridentes.

— Chega tudo! dizia ele com visos de tentação, virando-se para a direita e para a esquerda com olhar abrejeirado.

— Ah! seu Manezinho, replicou uma mulher indo-lhe ao encontro, e dando trejeitos desordenados aos quadris, você mesmo quer então desafiar a gente, hein?

— Ande, ande, sinhá Maroca, e... toca a divertir que o dia é nosso.

— Vamos; vamos, exclamou uma mulatinha com cravos roxos presos na trança, olhem para mim... eu sou a chibante da roda; vejam se vou assanhar tudo ou não.

— E eu, também, respondeu uma outra com os olhos meio cerrados de prazer.

— E nós?... nós então o que somos? perguntaram mais duas moreninhas sacudindo as saias. Eia, rapaziada, cansemos tudo.

Pequenas nuvens de pó envolviam já os sambistas que loucos dançavam, ora com as mãos nas cadeiras, ora com elas arqueadas; ora dando estalos nos dedos e na língua, todos satisfeitos, alguns demonstrando uma certa lascívia nos ademanes, quando de repente uma voz masculina fez-se ouvir cantando esta quadrinha:

Minha gente vamos todos,
Neste samba divertir.
Mais um dia conta a vida,
E mais vida, no porvir.
 

— Ah! mestre André, retorquiu uma das que dançavam, você mesmo quer bulir com a gente, pois não é?... Olhe que eu sei dizer verso como um homem... Quem quer responder?

— Eu!... quem o duvida? perguntou, intervindo, uma segunda.

— Não, deixe isso agora a mim, tornou a que primeiro falara, temperando a garganta. Escutem que lá vai obra:

Quanto é belo ter-se em paz
E bem calmo o coração,
Este amigo da verdade
Não pode fingir, ai não!...”

O samba sempre animado, tomava já proporções gigantescas, prometendo estafar tudo, ficando os dançantes ainda assim satisfeitos, por ser essa a forma pela qual diverte-se a gente baixa da nossa sociedade.

***

O comendador Joseph Raleigh, cônsul de Sua Majestade a rainha Vitoria em Pernambuco, era o chefe de uma excelente família, onde Mistress Raleigh, inglesa genuína, só falava o português com os criados, não consentindo mesmo que os filhos o falasse senão em idênticas condições.

Para as duas meninas e o rapaz, haviam mandado vir uma governante religiosa a tal ponto que, inda mesmo que chovessem pedras não perdia o “Holi Service”, rebocando além dos seus pupilos, a Emma Raleigh, que vimos há pouco, inglesinha bonita e corada, de belos olhos azuis profundamente cismadores, vestindo como sua mãe os trajos que lhe mandava a sua modista do Regent Street, mas calçando botinas com salto a Luiz XV, que dava-lhe uma certa forma afrancesada a aos pés, que, não obstante serem grandes, não destoavam com a simplicidade elegante da sua graciosa dona.

Tinha grande fama a voz da jovem Miss quando cantava o Home, sweet home, ou outra qualquer canção no seu ingrato idioma.

Anualmente, Mrs. Raleigh aproveitava o aniversário de Luci, uma das já nossas conhecidazinhas, e oferecia uma árvore no dia de Ano Bom, terminando por um baile infantil, onde a festejada, perfeito tipo da criança inglesa, concorria com o seu sorriso para o aumento dos sorrisos da festa.

Emmanuel Digbie, sócio de uma boa casa bancaria, era o noivo escolhido pelo coração da filha mais velha do cônsul britânico, que seria nessa festa apresentada noiva à fina sociedade que reunia-se no luxuoso salão do diplomata.

***

À noite, enquanto a criançada entre palmas, recebia as prendas que lhe coubera em sorte, eles, os noivos, sob uma latada de rosas, juravam amor eterno por entre os beijos dados sem cerimônia e sem muito menos maldade, como é uso na Inglaterra, para selar contratos lavrados pelo coração.

O amor, embora londrino, portanto excêntrico, meio frio, sem grandes ardências de pomposas frases de subjetivismo, há de ser o eterno poema celeste cantado em todas as línguas, em todos os tempos, com toda a emocionabilidade do ideal, que, se abraçando ao coração, afina a nota de um suspiro ou a chama de um olhar divino, manifestando por meio da ternura fisiológica, o que os lábios recusam pronunciar.

Depois dos prêmios, houve essa agitação resultante do prazer que sentem os pequeninos ao receber um brinquedo novo e bonito, mostrando-os uns aos outros, entre interjeições de satisfação contagiosa até as pessoas adultas que os observa.

As danças foram animadas, findo o que, lá se foram todos para a mesa, onde o bolo-rei, desafiava o apetite com a lembrança de se obter a amêndoa, que disputava o prêmio último, rico, e original.

Sentados em ordem, quase sérios, os comensais, ao verem partir o bolo, olhavam-no ambiciosos.

A quem... a quem caberia o grande prêmio?...

A cada fatia que punha-se no prato de qualquer vizinho, os que ainda não haviam sido servidos, respiravam... Se lhes coubesse!... Emma, levada pelo noivo, aproximou-se igualmente. Mrs. Raleigh quase risonha, deu-lhe também um pedaço daquela gostosa com ­ posição de pastelaria; ela, ao cortá-lo, deu uma interjeição de gozo: a amêndoa coubera-lhe por sorte.

Al-right, disse-lhe a mãe beijando-a. Em falta de brinquedos vais ter prenda melhor.

Os pequenos donos da festa concertarão as feições em um sorriso angélico, e os noivos foram para a sala onde em um bonito estojo de veludo estavam as joias de noivado, oferecidas pelo futuro esposo.

Very wel, murmurou Mr. Raleigh dirigindo-se para a sala de jantar agora deserta e seguido de graves gentlemen casacalmente vestidos, os quais com o dono da casa fizeram honras aos doces, fiambres e gelados, e mais ainda aos vinhos finos do Porto, ao Bitter, à Champagne, ao Whisky e a um monumental “Coktail” que os tornou mais alegres pelas continuas misturas alcoólicas a provocarem lhes a sisudez habitual.

Findou a festa pelo hino cantado de pé, respeitosamente, retirando-se todos no último trem das dez e três quartos, cabendo todavia aos meninos o melhor quinhão dessa festa, por respirarem ainda eles o santo aroma da inocência.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023. 

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