8/06/2023

A mulher de Lucas (Conto), de Teixeira de Queiroz

A MULHER DE LUCAS 

Diga-nos, então, como foi essa historia do seu casamento; como é que a sua mulher fugiu de casa.

 — Ora... não falemos de coisas tristes. Eu já lho contei e o senhor bem o sabe. Compram-me uma cautela?

 — Mas desejo — insisti — que este meu amigo ouça tudo da sua própria boca...

Sorriu, olhou interrogativo para nós ambos e perguntou:

 — Porque? Este senhor conhece-a? — E mudando para um tom enérgico e quase enfurecido: — Sabe onde ela mora?

Fizemos-lhe sinal negativo, e Lucas retomando a sua expressão habitual de paciência e doçura disse:

— São coisas de que me não quero lembrar. Lá vai, acabou, leve o diabo paixões e mais quem com elas engorda. Aquela mulher andou muito mal comigo... Eu fazia-lhe tudo quanto ela queria, dava-lhe muita liberdade... Foi talvez por isso que recebi o pago que tive...

 — Alguém que a desencaminhou... alguma companheira... — insinuou o meu amigo.

 — Ná... ná... sempre teve aquela queda. Era muito chibante e espirituosa, não era senhora para mim. Foi uma asneira... Passou — resumiu tristemente.

 — Também não é tanto como diz. O Lucas estimava-a, e não se pode dizer um velho — consolei-o.

 — Ainda assim tenho mais vinte anos do que ela. Mas não falo nesse particular. Não era senhora para mim, que sou um bruto. Uma raparigona alta, bonita, bem feita, criada num colégio aqui de Lisboa, sabendo francês e gramática, toda perluxa e bem falante... não era casamento para o Lucas. A minha primeira, que Deus tem, é que estava na conta.

 — Você também foi cair em se casar duas vezes! — disse o meu amigo. Lá numa, tenho ouvido dizer, quem quer cai.

 — Nem sei como isso aconteceu, meu senhor — confessou melancólico. Uma bebedeira que me passou na cabeça. Há dias que melhor fora a gente aparecer morto na cama. Luísa, a minha outra, era uma dona de casa. Quando morreu fez-me falta para o negociosito, que eu tinha lá na terra. O contrato dos gados trazia-me sempre por fora; chegava a ir à Galiza comprar bois. Uma pessoa para me ficar no estabelecimento, era-me bem necessária. Depois o achar-me só, em casa, principiou a dar-me para o fígado, e sem uma companheira vivia triste como uma lesma. Até me lembrei de me afogar. Teria sido melhor — rematou olhando para o chão, a cofiar a barba reles.

***

 — Pelo que vejo gostava muito da sua primeira mulher...

 — Assim... Era muito doente, mas boa criatura. Quando morreu fiz-lhe um enterro de truz. Nunca lhe pude arrancar um filho, por mais dinheiro que com ela gastei em medicinas e promessas. Aquilo era moléstia das entranhas. Morreu esmaleitada como a cera e magra como um guiço. Passei uma ralação, sempre a pôr-lhe cataplasmas e a dar-lhe chás de noite, por causa dos ataques. Dava gritos que acordavam a vizinhança. Arrotos que pareciam tiros de espingarda. O último mês, não preguei olho e já não podia... Veio então a Joana, a irmã dela, que me ajudou a levar aquilo até ao fim. Essa é que era boa mulher para mim: jeitosa, perfeitaça, trabalhadeira e rija como o ferro. Mas tinha tido uma falta, com um rapaz que depois embarcou para o Brasil, e eu nessas coisas sempre fui muito dos diabos.

 — Pois, atendendo ao futuro, tinha sido melhor ter-se casado com essa sua cunhada — disse o meu amigo, presumindo já, que ao bom do Lucas, lhe haviam sucedido coisas da breca.

 — Oh! que se a gente adivinhasse, quantas vezes melhor!... — exclamou como quem se sentia aplaudido num pensamento secreto. E a coisa vinha a fazer-se, mais tarde ou mais cedo; porque eu bebia os ares pela moça. Mas logo a má sorte, me levou lá para a casa fronteira, o major com a sobrinha...

 — Talvez filha — insinuei.

 — Não — respondeu vivamente ofendido — era de gente casada. Até creio que de família muito nobre, cá de Lisboa. Pelo menos ela assim o dizia e acreditem os senhores que tinha jeitos disso. Morreu-lhe o pai, a mãe e não lhe deixaram uma de X. Foi então que o major de quem eram parentes e quando ainda era capitão meteu, à sua custa, a pequena num colégio. Isso lá de educação e sabença, não acredito que haja outra que se lhe ponha adiante. O major depois adotou-a como filha e trazia-a sempre consigo.

 — Nada aí anda historia, ela era filha do major — insistiu o meu amigo.

 — Não era — certificou com rosto circunspeto — não era, sério. Eu vi-lhe a certidão de idade, quando se tirou a licença. Era de gente casada e até fidalga, diziam-no todos. Mas faltava-lhe dinheiro; porque o major para a educar, teve de pedir ajuda aos outros parentes. Mas deu-lhe um saber de truz. Eu nunca vi senhora mais distinta! — repetiu com ostentação.

 — E depois o tal major, sabendo que o Lucas tinha o seu pataco, impingiu-lha.

***

Conservou-se alguns momentos silencioso e ar dubitativo. Em seguida esclareceu:

 — São sortes. Eles vieram morar em frente da minha casa. As filhas de um visconde que havia na terra, iam pra lá aprender o francês, o piano e a gramática. Porque aquilo é uma senhora que sabe tudo — repetiu com vaidade. E bem falante? nunca vi outra! Aqueles janotas iam conversá-la da rua para a janela e ela sota e az a todos. Que regalo de mulher! O delegado que lá estava ao tempo, disse diante de mim que em filosofias, não encontrara senhora como aquela. Vi muitos homens embasbacados a ouvi-la. E que homens! O desembargador João Xavier que era conhecido em toda a parte. Caramba! que mulher tão esperta! — pronunciou batendo uma palmada na coxa. Pena é que tenha a cabeça leve como uma folha seca.

 — E vai, todo cheio de entusiasmo, namorou-se da lisboeta... — presumi.

 — Não senhor — esclareceu — nem tal me passava pela lembrança, se não fosse ela. Eu bem via que não era homem para aquilo. Ela é que principiou comigo de volta, a rir-se para mim, a espreitar pela frincha da janela, a fazer-me tagatés... Não sabia o que tudo isto queria dizer, palavra de honra! Olhava para mim e via que não podia ser. Principiei a andar assim a modo de esquisito, a não saber o que tinha. Um dia diz-me ela, sem tirte nem guarte, que eu era um viúvo ainda muito jeitoso. Fazem lá ideia! Logo que ouvi tal, daquela boca linda como a maçã camoesa, e com a graça e espírito que ela tinha em todas as coisas, senti cá por dentro tais esfregações, que não fazem uma ideia! Caramba! até perdi o comer! Andava assim a modo de tonto, pesava as coisas tão mal na loja, que era uma risota. E então securas? Todo eu era um forno. De noite principalmente passava o tempo a beber água e em vez de dormir vinha-me prantar à janela, com os olhos pregados na casa onde morava aquele demônio tentador, que foi a minha desgraça.

 — Era uma paixão — conclui.

 — E uma paixão furiosa — acrescentou o meu amigo.

 — Sei lá que diabo era! Foi uma grande bebedeira. Parece que me tinham dado alguma bruxaria a comer. Daí por diante nunca mais dei conta de mim. Não era Lucas Baptista que falava, era outro homem. Tinha-a sempre diante dos olhos, quer de dia, quer de noite. As santas da igreja, inclusiva Nossa Senhora — Deus me perdoe! — pareciam-me feias em comparação dela. Um dia tirei-me dos meus cuidados e pilhando-a a jeito na janela disse-lhe: “Uma casa sem uma dona é triste como um campo de milho sem sacho!”

***

 — E ela entendeu-o?

 — Sei lá! Deu uma gargalhada e saiu da janela. Fiquei assim a modo de parvo. Se se tivesse rido de mim, se andasse a fazer chacota, é porque me ia deitar na levada da azenha e nunca mais apareceria. Mas voltou logo depois e com um sério muito sério, pôs o dedo no nariz a dizer-me que lhe não falasse assim da rua, que lhe podia arranjar alguma fama. Eu então tive um baque no coração e disse de só para só: “Ela quer!” Logo que encontrei modo perguntei-lhe em segredo: “Deseja a menina ser a dona desta casa?” Mas quando estas palavras me saíram da boca, vi abrirem-se-me debaixo dos pés as chamas do inferno.

 — Porque! Ela disse que não? — perguntou o meu amigo.

 — Qual! Pois isso é que foi. O demônio da serpente tentadora, com uns olhos de uma maganice que os senhores não fazem ideia, responde assim, para só eu ouvir: “Isso é com meu tio!” E sai da janela, indo tocar no piano uma modinha de que eu gostava tanto que até me fazia arrepios. Caramba! Aquilo fez-me cá por dentro tal arrepanho, deu-me tanta alma e coração, que desejava ter de meu o mundo inteiro, só para lho dar e fazê-la princesa. Podia lá ser! Um velho, um estúpido, que só sabia pesar arroz e bacalhau e contratar em gados, casado com aquela senhora, tão bem falante e tão linda!... Eu só queria que os senhores conversassem com ela! Desembaraçada e literata como aquilo não há. Vá lá o mais poeta dar-lhe mote, sem vir com a cara a um lado! Os pais dela eram gente graúda cá de Lisboa e o tal tio, honra lhe seja, deu-lhe educação de espavento. Ainda hoje lhe quero bem só por isso! A tal viscondessa de quem a D. Rosita do major, (era assim que lhe chamavam lá na terra) ensinava as filhas, era uma criada ao pé dela. Uma senhora de mão cheia, lá isso valha a verdade.

***

 — O amigo Lucas sabe a historia da nossa mãe Eva e a da maçã que Adão comeu? — perguntei.

 — Ouvi bastas vezes explicar isso lá ao abade. Pois a gente não é de pau, é de carne e osso, caramba! Logo nesse dia o major entrou-me na loja a comprar charutos. Era assim um home todo arroganças, sempre a retorcer os bigodes e a dar com o chicote nas calças. Ainda bem conservado, talvez uns dez anos mais velho do que eu. Chamei-o para traz de umas sacas de açúcar, que lhe queria dar duas palavras, em particular. A minha loja era grande como um armazém! Fazia muito negocio e todos os meses tinha pagamentos de duzentos, quatrocentos e mesmo seiscentos mil réis aos caixeiros do Porto, que iam às cobranças. Às vezes havia mais que um pagamento. Bah! nem me quero lembrar! Tudo perdi, por causa daquela má mulher, que foi a minha perdição. Nunca mais a tornei a ver, não sei onde diabo se meteu; mas se um dia a encontro, ainda perco a cabeça e chacino-a, como se faz aos porcos. Para mim hoje tanto se me dá da costa de África, de morrer no Limoeiro, ou de um tiro, como se me dá da primeira camisa que vesti — terminou com desespero.

 — Mas o major. O que disse o famoso major? — perguntou interessado o meu amigo.

 — Ora... uma lengalenga. Principiou macambúzio, a retorcer os bigodes... Eu que nunca fui medroso, nem peco, pois muitas vezes venci a tiro os guardas de alfândega na raia, por causa do contrabando, tremia como varas verdes. Se ele me diz que não, espetava uma faca na minha própria barriga. Porém, não disse. Mastigou em seco... mastigou... que era o diabo; grande diferença de idades; ela sempre tinha vivido com muita decência, mas não tinha nada de seu; que eu precisava de outra mulher... E dava com o chicote pelas sacas do açúcar, e encolhia os ombros e passeava de um lado para o outro, sem atar nem desatar. Este aranzel puxou por mim e disse: “Ó senhor major, eu bem sei que a não mereço; mas se ela, assim mesmo como eu sou, me quiser e se eu tiver meios com que lhe conservar todo o luxo que tem, o senhor não diz que não?”

 — Ora, agarrou-lhe com as duas mãos — entendeu o meu companheiro.

— Não é tanto assim! Que não tinha nada com isso. Tinha-a criado; mas não era sua filha. Demais já tinha passado a idade, podia fazer o que quisesse. O que lhe custava era separar-se dela.

***

 — Ainda é vivo o major? perguntei.

 — Não senhor, morreu de um ataque, era um grande borrachão. Só o vinho do Porto que ele me bebeu lá da loja?! Ficou-me a dever mais de cem mil réis! Adiante. Por último disse que sim; mas pediu-me quase a chorar que a tratasse bem, que ele sempre a educara muito mimosa.

 — Estava tudo resolvido.

 — É verdade, uma infelicidade. A gente não sabe onde as tem armadas. Fomos casar ao Bom Jesus de Braga e gastei mais de vinte moedas em tudo isso. Foi ela que assim o quis. O tio major pilhou uma borracheira que chegou a estar de cama! Ao fim de três dias voltamos para a terra num carro fretado ao Franqueira. Parecíamos uns fidalgos. Foi talvez o luxo que a perdeu, coitada, e a mim também — considerou com tristeza. Porque ela não era má, os senhores podem acreditar; mas o janotismo deu-lhe volta ao miolo, como acontece a quase todas as mulheres, para mal dos maridos — concluiu filosoficamente.

 — Não foi só isso, talvez — repliquei. Ora confesse, amigo Lucas. O outro era aí algum rapaz novo e janota...

 — Que!... Não senhores — interveio com vivacidade — um gebo como eu! Não me troco! Assim um gordo, de cara espapada e barbicha de cabrito. Não me troco. Essa é que é toda a minha matacão. Se Rosa fosse para onde algum rapaz novo e bem parecido... vá. Sou velho e não me tenho por home que a mereça. Mas para esse bruto com quem ela está! Ainda que eu viva cem anos, não me posso consolar! Que posição tem ele?... (interrogou-se). Uma lojita ali para os lados de São Paulo. Ora abobora!... O bicho mulher não há ninguém que o entenda!

 — Realmente não se percebe bem, a loucura de sua mulher — refletiu o meu amigo. O senhor tratava-a mal, batia-lhe?

 — Eu!? Eu bater-lhe?! O senhor está a caçoar comigo! Só o que queria saber é onde ela desejaria passar, para ir beijar o chão onde pusesse os seus pés. Fazem lá ideia! Aquilo para mim não era uma mulher, era uma santa.

E as lágrimas caindo-lhe a quatro, Lucas acrescentou:

 — Até é uma vergonha, o chorar ainda por aquela ingrata! Não está mais na minha mão.

***

 — Então não compreendo — insistiu o meu amigo — como depois de o querer para marido, o rejeitou.

 — Pois eu compreendo muito bem, com sua licença. A questão é que ela casou comigo, para vir para Lisboa. Depois da boda não nos demoramos quatro meses lá na terra. Principiou aquele demônio a atanazar-me, que não podia viver ali, que o negocio não prestava e como o tal tio já tinha morrido, meteu-me na cabeça, que aqui em Lisboa, eu podia ganhar mais dinheiro. Isto lá me custou, porque eu bem via ser uma asneira. Mas ela tanto fez e eu com este meu fraco por aquela sereia, não tive remédio. Viemos e os primeiros quatro meses foi uma pândega. Engoliu-se um conto de reis, em carros, em teatros e com amigos que logo arranjei no hotel da rua da Prata, onde estávamos. Muitos desses, hoje, nem me compram uma cautela, só para me não falarem. No fim disto eu que via sumir-se o dinheiro disse-lhe: “Mulher, as libras acabam-se, é preciso arranjar algumas.” Ela então teve a ideia de pormos uma loja de capelista, onde ela estivesse a vender, para chamar freguesia. Para chamar freguesia! — exclamou indignado e irônico. — O que eu merecia era com uma moca no toutiço! A freguesia de que ela precisava sei eu! Era com um marmeleiro!

***

 — Então foi aí que ela...

 — Não senhor. O tal gebo conhecemo-lo à mesa do hotel e no teatro da rua dos Condes. À mesa estava o machacaz em frente de nós, sempre a oferecer genebra ou vinho do Porto. Por isso, quando a gente arranjou a loja, que foi ali para a Sé, o janota lampana, não me saía de lá e era dos melhores fregueses de charutos que a gente tinha. Fazia-se muito amigo e eu que sempre fui um simples, contei-lhe a minha vida e confessei que o negocio não dava para os gastos. No fim de um ano pouco havia dos cinco contos que trouxera da terra! Pois ele, com um estadão como eu tinha, sempre de grande e à francesa, passeios aos domingos, carros, bailes de mascaras!... E querem os senhores saber?... Foi a desavergonhada (eu a este tempo, sou capaz de jurar sobre umas Horas, como ela ainda não era má mulher!) que me lembrou falar com o Gonçalves (era o tal!) para ele me aconselhar alguma coisa, em que se ganhasse dinheiro. Falei nisso ao cara de demônio e logo muito pronto me disse que metesse o que me restava em negocio de vinhos de Torres, que dava muito. Foi até ele que me arranjou conhecimentos. Por este motivo principiei a andar dias e dias por forra de casa, por um lado e pelo outro, sempre numa fona.

 — aí é que bate o ponto. O que ele quis foi afastá-lo para longe.

 — Pois!... Eu nunca pequei por esperto. Penso que toda a gente é de boa fé, como eu!... Nesta coisa de cauteleiro em que ando, tenho aprendido muito. Hoje nem o mais pintado.

 — O negocio de vinho fê-lo perder a mulher e o dinheiro — raciocinou o meu amigo.

 — Como diz; porque logo que, por uma carta anônima, vim a desconfiar daquela ingrata peguei de vigiá-la e para melhor o fazer vendi todo o vinho de repente e com perca grossa. Um dia disse-lhe: “Mulher, tem juízo, porta-te bem, olha que a honra não há dinheiro que a pague!” Respondeu-me que não fosse tolo e voltou-me as costas. Com o fim de estar perto dela, arranjei coisa para ficar em Lisboa. Uns amigos afiançaram-me em algumas casas de comercio, para eu andar a receber dinheiro. Ela ralhou-me por isso e disse que havia de ser grande o meu ganho. Eu respondi: ”Para o que tu precisares nunca te há de faltar. Ainda que eu venda o meu corpo ao diabo, terás sempre para os teus alfinetes.” Sabem com o que me veio?: “Eu quero continuar a ir aos teatros e dar os meus passeios. Não hei de estar toda a minha vida metida num buraco.”

 — Tinha aspirações, vê-se.

 — Tinha o diabo no corpo, é o que ela tinha. Eu não lhe merecia o pago que me deu. Trabalhava como um mouro, só para que ela tivesse tudo. Não havia chuva, não havia vento, não havia calor para mim. Sempre a correr por essas ruas e então que estafas! Às duas por três, caia-lhe na loja como quem vinha de passagem e sabe Deus se não tinha dado uma carreira de Alcântara até à Sé, só para ver se havia alguma novidade. Os senhores riem-se? É porque não sabem o que isto é. Chegava todo esbaforido, o coração aos pulos no peito, e sempre com aquela mulher diante dos olhos a enganar-me. Não comia, não dormia descansado, um verdadeiro inferno!

***

 — Afinal vê-se que gostava muito dela — insinuei.

Respondeu com vivacidade:

 — Isso, mesmo cá de dentro. Tinha-me por força dado alguma bruxaria. E que mal me pagou! Já não lhe pedia que me tivesse amor. Bem sei que não podia ser, que sou um velho e um ninguém; mas não devia fazer o que fez. Na noite em que, morto de fome e de frio, entrei em casa depois de ter andado todo o dia numa roda viva, e não a encontrei, caí no chão como uma pedra. Tornei a mim, quando a vela do castiçal estava gasta. A casa em desordem, os baús e gavetas abertas, como se tivessem andado ladrões! Aquela mulher perdida não se contentou em me deixar, levou tudo quanto havia de bom, e fiquei com a triste camisa do corpo. Chorei mais do que quando morreu minha mãe! Durante três dias, quase sem comer, nem beber, corri toda a cidade pelos botequins, pelas casas de pasto e restaurantes, pelos teatros com um revolve carregado a ver se os encontrava. Havíamos de morrer todos três. A ela tinha vontade de lhe beber o sangue por uma tigela e a ele de lhe fazer a cabeça num bolo. Se os encontro havia de me vingar até ao fundo da alma!

 — E ainda gosta dela?

 — Gosto sim senhor, gosto. Para que hei de dizer que não? É o meu pecado.

Teve novas lágrimas nos olhos, que desejou esconder de nós, voltando-se para a parede.

 — Se ela o tornasse a procurar?

 — Não me fale nisso! Ferve-me o sangue! Se um dia a vejo...

 — Ah! nunca mais a encontrou? — pergunta o meu amigo.

 — Já disse que não senhor. Sei onde mora, porque conheço a casa desse excomungado que ma furtou; mas a ela nunca mais lhe pus os olhos em cima. Pois é admiração! Com este meu modo de vida das cautelas e dos jornais corro toda a cidade. Nem nos teatros, nem nos dias de procissão, nem no Passeio. Aquilo é que só vai à missa cedo e não torna a sair — considerou melancólico.

 — E se um dia a encontra?

 — Mato-a! mato-a, com toda a certeza! — disse exaltado.

Depois mudando rapidamente de tom concluiu:

 — Não mato, não mato... Adeus meus senhores, não me apoquentem.

E distanciou-se quase sufocado pela dor.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023. 

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