A MULHER DE LUCAS
Diga-nos, então, como foi essa historia do seu casamento; como é que a sua mulher fugiu de casa. — Ora... não falemos de coisas tristes. Eu já lho
contei e o senhor bem o sabe. Compram-me uma cautela?
— Mas desejo — insisti — que este meu amigo ouça
tudo da sua própria boca...
Sorriu,
olhou interrogativo para nós ambos e perguntou:
— Porque? Este senhor conhece-a? — E mudando
para um tom enérgico e quase enfurecido: — Sabe onde ela mora?
Fizemos-lhe
sinal negativo, e Lucas retomando a sua expressão habitual de paciência e
doçura disse:
—
São coisas de que me não quero lembrar. Lá vai, acabou, leve o diabo paixões e
mais quem com elas engorda. Aquela mulher andou muito mal comigo... Eu fazia-lhe
tudo quanto ela queria, dava-lhe muita liberdade... Foi talvez por isso que
recebi o pago que tive...
— Alguém que a desencaminhou... alguma
companheira... — insinuou o meu amigo.
— Ná... ná... sempre teve aquela queda. Era
muito chibante e espirituosa, não era senhora para mim. Foi uma asneira...
Passou — resumiu tristemente.
— Também não é tanto como diz. O Lucas
estimava-a, e não se pode dizer um velho — consolei-o.
— Ainda assim tenho mais vinte anos do que ela.
Mas não falo nesse particular. Não era senhora para mim, que sou um bruto. Uma
raparigona alta, bonita, bem feita, criada num colégio aqui de Lisboa, sabendo francês
e gramática, toda perluxa e bem falante... não era casamento para o Lucas. A
minha primeira, que Deus tem, é que estava na conta.
— Você também foi cair em se casar duas vezes!
— disse o meu amigo. Lá numa, tenho ouvido dizer, quem quer cai.
— Nem sei como isso aconteceu, meu senhor — confessou
melancólico. Uma bebedeira que me passou na cabeça. Há dias que melhor fora
a gente aparecer morto na cama. Luísa, a minha outra, era uma dona de casa.
Quando morreu fez-me falta para o negociosito, que eu tinha lá na terra. O
contrato dos gados trazia-me sempre por fora; chegava a ir à Galiza comprar
bois. Uma pessoa para me ficar no estabelecimento, era-me bem necessária.
Depois o achar-me só, em casa, principiou a dar-me para o fígado, e sem uma
companheira vivia triste como uma lesma. Até me lembrei de me afogar. Teria
sido melhor — rematou olhando para o chão, a cofiar a barba reles.
***
— Pelo que vejo gostava muito da sua primeira
mulher...
— Assim... Era muito doente, mas boa criatura.
Quando morreu fiz-lhe um enterro de truz. Nunca lhe pude arrancar um filho, por
mais dinheiro que com ela gastei em medicinas e promessas. Aquilo era moléstia
das entranhas. Morreu esmaleitada como a cera e magra como um guiço. Passei uma
ralação, sempre a pôr-lhe cataplasmas e a dar-lhe chás de noite, por causa dos
ataques. Dava gritos que acordavam a vizinhança. Arrotos que pareciam tiros
de espingarda. O último mês, não preguei olho e já não podia... Veio então a
Joana, a irmã dela, que me ajudou a levar aquilo até ao fim. Essa é que era boa
mulher para mim: jeitosa, perfeitaça, trabalhadeira e rija como o ferro. Mas
tinha tido uma falta, com um rapaz que depois embarcou para o Brasil, e eu nessas
coisas sempre fui muito dos diabos.
— Pois, atendendo ao futuro, tinha sido melhor
ter-se casado com essa sua cunhada — disse o meu amigo, presumindo já, que ao
bom do Lucas, lhe haviam sucedido coisas da breca.
— Oh! que se a gente adivinhasse, quantas
vezes melhor!... — exclamou como quem se sentia aplaudido num pensamento
secreto. E a coisa vinha a fazer-se, mais tarde ou mais cedo; porque eu bebia
os ares pela moça. Mas logo a má sorte, me levou lá para a casa fronteira, o
major com a sobrinha...
— Talvez filha — insinuei.
— Não — respondeu vivamente ofendido — era de
gente casada. Até creio que de família muito nobre, cá de Lisboa. Pelo menos ela
assim o dizia e acreditem os senhores que tinha jeitos disso. Morreu-lhe o pai,
a mãe e não lhe deixaram uma de X. Foi então que o major de quem eram parentes
e quando ainda era capitão meteu, à sua custa, a pequena num colégio. Isso
lá de educação e sabença, não acredito que haja outra que se lhe ponha adiante.
O major depois adotou-a como filha e trazia-a sempre consigo.
— Nada aí anda historia, ela era filha do
major — insistiu o meu amigo.
— Não era — certificou com rosto circunspeto —
não era, sério. Eu vi-lhe a certidão de idade, quando se tirou a licença. Era
de gente casada e até fidalga, diziam-no todos. Mas faltava-lhe dinheiro;
porque o major para a educar, teve de pedir ajuda aos outros parentes. Mas
deu-lhe um saber de truz. Eu nunca vi senhora mais distinta! — repetiu com ostentação.
— E depois o tal major, sabendo que o Lucas
tinha o seu pataco, impingiu-lha.
***
Conservou-se
alguns momentos silencioso e ar dubitativo. Em seguida esclareceu:
— São sortes. Eles vieram morar em frente da
minha casa. As filhas de um visconde que havia na terra, iam pra lá aprender o francês,
o piano e a gramática. Porque aquilo é uma senhora que sabe tudo — repetiu com
vaidade. E bem falante? nunca vi outra! Aqueles janotas iam conversá-la da rua
para a janela e ela sota e az a todos. Que regalo de mulher! O delegado que lá
estava ao tempo, disse diante de mim que em filosofias, não encontrara senhora
como aquela. Vi muitos homens embasbacados a ouvi-la. E que homens! O
desembargador João Xavier que era conhecido em toda a parte. Caramba! que mulher
tão esperta! — pronunciou batendo uma palmada na coxa. Pena é que tenha a
cabeça leve como uma folha seca.
— E vai, todo cheio de entusiasmo, namorou-se
da lisboeta... — presumi.
— Não senhor — esclareceu — nem tal me passava
pela lembrança, se não fosse ela. Eu bem via que não era homem para aquilo. Ela
é que principiou comigo de volta, a rir-se para mim, a espreitar pela frincha
da janela, a fazer-me tagatés... Não sabia o que tudo isto queria dizer,
palavra de honra! Olhava para mim e via que não podia ser. Principiei a andar
assim a modo de esquisito, a não saber o que tinha. Um dia diz-me ela,
sem tirte nem guarte, que eu era um viúvo ainda
muito jeitoso. Fazem lá ideia! Logo que ouvi tal, daquela boca linda como a maçã
camoesa, e com a graça e espírito que ela tinha em todas as coisas, senti cá
por dentro tais esfregações, que não fazem uma ideia! Caramba! até perdi o
comer! Andava assim a modo de tonto, pesava as coisas tão mal na loja, que era
uma risota. E então securas? Todo eu era um forno. De noite principalmente
passava o tempo a beber água e em vez de dormir vinha-me prantar à janela, com
os olhos pregados na casa onde morava aquele demônio tentador, que foi a minha
desgraça.
— Era uma paixão — conclui.
— E uma paixão furiosa — acrescentou o meu
amigo.
— Sei lá que diabo era! Foi uma grande
bebedeira. Parece que me tinham dado alguma bruxaria a comer. Daí por diante
nunca mais dei conta de mim. Não era Lucas Baptista que falava, era outro
homem. Tinha-a sempre diante dos olhos, quer de dia, quer de noite. As santas
da igreja, inclusiva Nossa Senhora — Deus me perdoe! — pareciam-me feias em
comparação dela. Um dia tirei-me dos meus cuidados e pilhando-a a jeito na janela
disse-lhe: “Uma casa sem uma dona é triste como um campo de milho sem sacho!”
***
— E ela entendeu-o?
— Sei lá! Deu uma gargalhada e saiu da janela. Fiquei
assim a modo de parvo. Se se tivesse rido de mim, se andasse a fazer chacota, é
porque me ia deitar na levada da azenha e nunca mais apareceria. Mas voltou logo
depois e com um sério muito sério, pôs o dedo no nariz a dizer-me que lhe não
falasse assim da rua, que lhe podia arranjar alguma fama. Eu então tive um
baque no coração e disse de só para só: “Ela quer!” Logo que encontrei modo
perguntei-lhe em segredo: “Deseja a menina ser a dona desta casa?” Mas quando
estas palavras me saíram da boca, vi abrirem-se-me debaixo dos pés as chamas do
inferno.
— Porque! Ela disse que não? — perguntou o meu
amigo.
— Qual! Pois isso é que foi. O demônio da
serpente tentadora, com uns olhos de uma maganice que os senhores não fazem
ideia, responde assim, para só eu ouvir: “Isso é com meu tio!” E sai da janela,
indo tocar no piano uma modinha de que eu gostava tanto que até me fazia
arrepios. Caramba! Aquilo fez-me cá por dentro tal arrepanho, deu-me tanta alma
e coração, que desejava ter de meu o mundo inteiro, só para lho dar e fazê-la princesa.
Podia lá ser! Um velho, um estúpido, que só sabia pesar arroz e bacalhau e
contratar em gados, casado com aquela senhora, tão bem falante e tão linda!...
Eu só queria que os senhores conversassem com ela! Desembaraçada e literata
como aquilo não há. Vá lá o mais poeta dar-lhe mote, sem vir com a cara a um
lado! Os pais dela eram gente graúda cá de Lisboa e o tal tio, honra lhe seja,
deu-lhe educação de espavento. Ainda hoje lhe quero bem só por isso! A tal
viscondessa de quem a D. Rosita do major, (era assim que lhe chamavam lá na
terra) ensinava as filhas, era uma criada ao pé dela. Uma senhora de mão cheia,
lá isso valha a verdade.
***
— O amigo Lucas sabe a historia da nossa mãe
Eva e a da maçã que Adão comeu? — perguntei.
— Ouvi bastas vezes explicar isso lá ao abade.
Pois a gente não é de pau, é de carne e osso, caramba! Logo nesse dia o major
entrou-me na loja a comprar charutos. Era assim um home todo arroganças, sempre
a retorcer os bigodes e a dar com o chicote nas calças. Ainda bem conservado,
talvez uns dez anos mais velho do que eu. Chamei-o para traz de umas sacas de açúcar,
que lhe queria dar duas palavras, em particular. A minha loja era grande como
um armazém! Fazia muito negocio e todos os meses tinha pagamentos de duzentos,
quatrocentos e mesmo seiscentos mil réis aos caixeiros do Porto, que iam às cobranças.
Às vezes havia mais que um pagamento. Bah! nem me quero lembrar! Tudo perdi,
por causa daquela má mulher, que foi a minha perdição. Nunca mais a tornei a
ver, não sei onde diabo se meteu; mas se um dia a encontro, ainda perco a
cabeça e chacino-a, como se faz aos porcos. Para mim hoje tanto se me dá
da costa de África, de morrer no Limoeiro, ou de um tiro, como se me dá da
primeira camisa que vesti — terminou com desespero.
— Mas o major. O que disse o famoso major? — perguntou
interessado o meu amigo.
— Ora... uma lengalenga. Principiou macambúzio,
a retorcer os bigodes... Eu que nunca fui medroso, nem peco, pois muitas vezes
venci a tiro os guardas de alfândega na raia, por causa do contrabando, tremia
como varas verdes. Se ele me diz que não, espetava uma faca na minha própria
barriga. Porém, não disse. Mastigou em seco... mastigou... que era o diabo;
grande diferença de idades; ela sempre tinha vivido com muita decência, mas não
tinha nada de seu; que eu precisava de outra mulher... E dava com o chicote
pelas sacas do açúcar, e encolhia os ombros e passeava de um lado para o outro,
sem atar nem desatar. Este aranzel puxou por mim e disse: “Ó senhor major, eu
bem sei que a não mereço; mas se ela, assim mesmo como eu sou, me quiser e se
eu tiver meios com que lhe conservar todo o luxo que tem, o senhor não diz que
não?”
— Ora, agarrou-lhe com as duas mãos — entendeu
o meu companheiro.
—
Não é tanto assim! Que não tinha nada com isso. Tinha-a criado; mas não era sua
filha. Demais já tinha passado a idade, podia fazer o que quisesse. O que lhe
custava era separar-se dela.
***
— Ainda é vivo o major? perguntei.
— Não senhor, morreu de um ataque, era um
grande borrachão. Só o vinho do Porto que ele me bebeu lá da loja?! Ficou-me a
dever mais de cem mil réis! Adiante. Por último disse que sim; mas pediu-me quase
a chorar que a tratasse bem, que ele sempre a educara muito mimosa.
— Estava tudo resolvido.
— É verdade, uma infelicidade. A gente não
sabe onde as tem armadas. Fomos casar ao Bom Jesus de Braga e gastei mais de
vinte moedas em tudo isso. Foi ela que assim o quis. O tio major pilhou uma
borracheira que chegou a estar de cama! Ao fim de três dias voltamos para a
terra num carro fretado ao Franqueira. Parecíamos uns fidalgos. Foi talvez o
luxo que a perdeu, coitada, e a mim também — considerou com tristeza. Porque ela
não era má, os senhores podem acreditar; mas o janotismo deu-lhe volta
ao miolo, como acontece a quase todas as mulheres, para mal dos maridos — concluiu
filosoficamente.
— Não foi só isso, talvez — repliquei. Ora
confesse, amigo Lucas. O outro era aí algum rapaz novo e janota...
— Que!... Não senhores — interveio com
vivacidade — um gebo como eu! Não me troco! Assim um gordo, de cara espapada e
barbicha de cabrito. Não me troco. Essa é que é toda a minha matacão. Se Rosa
fosse para onde algum rapaz novo e bem parecido... vá. Sou velho e não me tenho
por home que a mereça. Mas para esse bruto com quem ela está! Ainda que eu viva
cem anos, não me posso consolar! Que posição tem ele?... (interrogou-se). Uma lojita
ali para os lados de São Paulo. Ora abobora!... O bicho mulher não há ninguém
que o entenda!
— Realmente não se percebe bem, a loucura de
sua mulher — refletiu o meu amigo. O senhor tratava-a mal, batia-lhe?
— Eu!? Eu bater-lhe?! O senhor está a caçoar
comigo! Só o que queria saber é onde ela desejaria passar, para ir beijar o
chão onde pusesse os seus pés. Fazem lá ideia! Aquilo para mim não era uma
mulher, era uma santa.
E
as lágrimas caindo-lhe a quatro, Lucas acrescentou:
— Até é uma vergonha, o chorar ainda por aquela
ingrata! Não está mais na minha mão.
***
— Então não compreendo — insistiu o meu amigo
— como depois de o querer para marido, o rejeitou.
— Pois eu compreendo muito bem, com sua
licença. A questão é que ela casou comigo, para vir para Lisboa. Depois da boda
não nos demoramos quatro meses lá na terra. Principiou aquele demônio a
atanazar-me, que não podia viver ali, que o negocio não prestava e como o tal
tio já tinha morrido, meteu-me na cabeça, que aqui em Lisboa, eu podia ganhar
mais dinheiro. Isto lá me custou, porque eu bem via ser uma asneira. Mas ela
tanto fez e eu com este meu fraco por aquela sereia, não tive remédio. Viemos e
os primeiros quatro meses foi uma pândega. Engoliu-se um conto de reis, em
carros, em teatros e com amigos que logo arranjei no hotel da rua da Prata,
onde estávamos. Muitos desses, hoje, nem me compram uma cautela, só para me não
falarem. No fim disto eu que via sumir-se o dinheiro disse-lhe: “Mulher,
as libras acabam-se, é preciso arranjar algumas.” Ela então teve a ideia de pormos
uma loja de capelista, onde ela estivesse a vender, para chamar freguesia. Para
chamar freguesia! — exclamou indignado e irônico. — O que eu merecia era com
uma moca no toutiço! A freguesia de que ela precisava sei eu! Era com um
marmeleiro!
***
— Então foi aí que ela...
— Não senhor. O tal gebo conhecemo-lo à mesa
do hotel e no teatro da rua dos Condes. À mesa estava o machacaz em frente de
nós, sempre a oferecer genebra ou vinho do Porto. Por isso, quando a gente
arranjou a loja, que foi ali para a Sé, o janota lampana, não me saía de lá e
era dos melhores fregueses de charutos que a gente tinha. Fazia-se muito amigo
e eu que sempre fui um simples, contei-lhe a minha vida e confessei que o
negocio não dava para os gastos. No fim de um ano pouco havia dos cinco contos
que trouxera da terra! Pois ele, com um estadão como eu tinha, sempre de grande
e à francesa, passeios aos domingos, carros, bailes de mascaras!... E querem os
senhores saber?... Foi a desavergonhada (eu a este tempo, sou capaz de jurar
sobre umas Horas, como ela ainda não era má mulher!) que me lembrou
falar com o Gonçalves (era o tal!) para ele me aconselhar alguma coisa, em que
se ganhasse dinheiro. Falei nisso ao cara de demônio e logo muito pronto
me disse que metesse o que me restava em negocio de vinhos de Torres, que dava
muito. Foi até ele que me arranjou conhecimentos. Por este motivo principiei a
andar dias e dias por forra de casa, por um lado e pelo outro, sempre numa
fona.
— aí é que bate o ponto. O que ele quis foi
afastá-lo para longe.
— Pois!... Eu nunca pequei por esperto. Penso
que toda a gente é de boa fé, como eu!... Nesta coisa de cauteleiro em que
ando, tenho aprendido muito. Hoje nem o mais pintado.
— O negocio de vinho fê-lo perder a mulher e o
dinheiro — raciocinou o meu amigo.
— Como diz; porque logo que, por uma carta anônima,
vim a desconfiar daquela ingrata peguei de vigiá-la e para melhor o fazer vendi
todo o vinho de repente e com perca grossa. Um dia disse-lhe: “Mulher, tem juízo,
porta-te bem, olha que a honra não há dinheiro que a pague!” Respondeu-me que
não fosse tolo e voltou-me as costas. Com o fim de estar perto dela, arranjei
coisa para ficar em Lisboa. Uns amigos afiançaram-me em algumas casas de comercio,
para eu andar a receber dinheiro. Ela ralhou-me por isso e disse que havia de
ser grande o meu ganho. Eu respondi: ”Para o que tu precisares nunca
te há de faltar. Ainda que eu venda o meu corpo ao diabo, terás sempre para os
teus alfinetes.” Sabem com o que me veio?: “Eu quero continuar a ir aos teatros
e dar os meus passeios. Não hei de estar toda a minha vida metida num buraco.”
— Tinha aspirações, vê-se.
— Tinha o diabo no corpo, é o que ela tinha.
Eu não lhe merecia o pago que me deu. Trabalhava como um mouro, só para que ela
tivesse tudo. Não havia chuva, não havia vento, não havia calor para mim.
Sempre a correr por essas ruas e então que estafas! Às duas por três, caia-lhe
na loja como quem vinha de passagem e sabe Deus se não tinha dado uma carreira
de Alcântara até à Sé, só para ver se havia alguma novidade. Os senhores
riem-se? É porque não sabem o que isto é. Chegava todo esbaforido, o coração
aos pulos no peito, e sempre com aquela mulher diante dos olhos a enganar-me.
Não comia, não dormia descansado, um verdadeiro inferno!
***
— Afinal vê-se que gostava muito dela — insinuei.
Respondeu
com vivacidade:
— Isso, mesmo cá de dentro. Tinha-me por força
dado alguma bruxaria. E que mal me pagou! Já não lhe pedia que me tivesse amor.
Bem sei que não podia ser, que sou um velho e um ninguém; mas não devia fazer o
que fez. Na noite em que, morto de fome e de frio, entrei em casa depois de ter
andado todo o dia numa roda viva, e não a encontrei, caí no chão como uma
pedra. Tornei a mim, quando a vela do castiçal estava gasta. A casa em
desordem, os baús e gavetas abertas, como se tivessem andado ladrões! Aquela
mulher perdida não se contentou em me deixar, levou tudo quanto havia de bom, e
fiquei com a triste camisa do corpo. Chorei mais do que quando morreu minha
mãe! Durante três dias, quase sem comer, nem beber, corri toda a cidade pelos
botequins, pelas casas de pasto e restaurantes, pelos teatros com um revolve
carregado a ver se os encontrava. Havíamos de morrer todos três. A ela
tinha vontade de lhe beber o sangue por uma tigela e a ele de lhe fazer a
cabeça num bolo. Se os encontro havia de me vingar até ao fundo da alma!
— E ainda gosta dela?
— Gosto sim senhor, gosto. Para que hei de
dizer que não? É o meu pecado.
Teve
novas lágrimas nos olhos, que desejou esconder de nós, voltando-se para a
parede.
— Se ela o tornasse a procurar?
— Não me fale nisso! Ferve-me o sangue! Se um
dia a vejo...
— Ah! nunca mais a encontrou? — pergunta o meu
amigo.
— Já disse que não senhor. Sei onde mora,
porque conheço a casa desse excomungado que ma furtou; mas a ela nunca mais lhe
pus os olhos em cima. Pois é admiração! Com este meu modo de vida das cautelas
e dos jornais corro toda a cidade. Nem nos teatros, nem nos dias de procissão,
nem no Passeio. Aquilo é que só vai à missa cedo e não torna a sair — considerou
melancólico.
— E se um dia a encontra?
— Mato-a! mato-a, com toda a certeza! — disse
exaltado.
Depois
mudando rapidamente de tom concluiu:
— Não mato, não mato... Adeus meus senhores,
não me apoquentem.
E
distanciou-se quase sufocado pela dor.
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
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