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8/06/2023

A vista do salgueiro (Conto), de Teixeira de Queiroz


A VISTA DO SALGUEIRO
(CONTO PARA CREANÇAS)
 

Ambrósio era velho e vivia numa casa muito pobre, toda esburacada e de telha vã. Lá dentro, os ratos eram tantos como as formigas num carreiro; e ele, sentado ao lume, via-os ir e vir, sem mesmo ter medo deles. Por traz da casa havia um pequeno quintal, ao fundo corria o rio, e pegado estava o moinho, habitado pelo moleiro, homem que ele odiava mais do que a morte.

Na tarde serena de um dia de agosto, Ambrósio, foi visto na margem, sentado numa pedra, o queixo pousado nos joelhos, a olhar fixamente e pasmado para uma árvore do outro lado. O céu era dum azul pálido; as águas passavam silenciosamente, até entrarem na goela de azenha, onde produziam um sussurro; a roda movia-se de vagar; porque a força do rio era pouca... O pensamento de Ambrósio voava, num mundo de independência e maldade, planeando vinganças contra o moleiro seu inimigo. Era um ódio velho, nascido de conflitos diários, agravado por muitos nadas de que, o do moinho, nem tinha consciência. No corpo de Ambrósio, magro como de feiticeira, passava-se no momento em que o viram a olhar para o triste salgueiro, uma luta violenta e feroz.

Nesse dia, aparecera-lhe em casa, um bácoro de perna quebrada. Sem mais refletir atribuiu logo o malefício ao danado vizinho e foi para ali ruminar uma vingança, que o deixasse consolado. Tinha um coração de pedra este demônio de velho! Se não fora assim, como poderia gozar, inventando martírios, numa tarde serena de verão, toda silêncio e bondade!

Mas não se desprendia do terrível desejo de matar o moleiro, com os maiores sofrimentos e castigos, que no mundo tivesse havido! Seria capaz de se vender ao diabo, só para conseguir o seu fim.

***

Veio-lhe esta ideia audaciosa e encarou-a resolutamente. Tão firme foi o seu pensar, que logo o diabo em pessoa ali lhe apareceu diante dos olhos, oferecendo-se-lhe para tudo, em troca da alma se ele realmente lha queria vender. Era figura bem conhecida, a que estava diante de Ambrósio: — meio homem, meio cabra; um comprido pelo cobrindo-lhe o corpo; um rabo a dar para um lado e para o outro, como o de um lobo; os cornos arrebitados na cabeça; e os olhos a coriscarem como dois carvões acesos. O velho não se atemorizou, e como desejava vingar-se do moleiro, sentiu o peito cheio de gozo, quando o diabo lhe disse:

 — Ouvi a tua voz. Aqui me tens. Aceito o teu contrato. Pede o que quiseres.

 — Então tu é que és o diabo? — perguntou.

 — Eu mesmo. Sou o que tudo posso depois lá do Outro (apontou desdenhosamente para o céu). No meu reino posso mesmo mais do que Ele.

 — Fazes-me tudo quanto eu quiser para matar o moleiro?

 — Tudo, com tanto que me entregues a tua alma.

 — E para que queres tu a minha alma?

 — Para a guardar junta com outras.

Ambrósio observou escarnecendo:

 — Não acredito que faças bom negocio. Pelo que dizem os padres, a minha alma não presta. Dou-ta, mas hás de trazer-me aqui o moleiro pelo cachaço, e depois de bem amarrado e preso, deixares-me fazer o que eu quiser. Mas quero-o bem amarrado e preso, porque tenho medo, entendes?

 — Se entendo!... E só queres isso?

 — Se perguntas é porque estás em maré de fraqueza. Então vá lá: Quero ser rei; ter muito dinheiro, muitos palácios, muitas cidades, muitos cavalos, coisas ricas para comer.

 — Só isso?

 — Com a breca! Muito boa deve ser a minha alma para ti. Olha, já que ofereces, quero uma sanfona, para tocar aos ouvidos de minha mulher, quando ela estiver a resmungar... Tu sabes; às vezes leva noites inteiras ... ron-ron-ron... ron-ron-ron...

 — E por quanto tempo desejas tudo isso?

 — Essa agora é que nem parece sua, seu diabo! Isso por muito tempo.

 — Não posso dar-te tudo por mais de cinco minutos.

 — Cá me parece sovinice. Cinco minutos não é nada.

 — É tempo bastante de gozares todas as coisas que pedes e de te aborreceres de todas elas.

Ambrósio deu uma estrondosa gargalhada, que encheu todo o vale, repercutindo-se nos recôncavos vizinhos. O diabo acrescentou:

 — É como te digo. Nesse ponto te mostrarei o meu grande poder. Um minuto basta para eu fazer passar na tua vida, todas as grandezas da terra. Outro minuto para percorreres todas as grandes cidades do mundo. O terceiro minuto para tocares sanfona a tua mulher e ela morrerá de desespero. O quarto para matares com toda a pachorra o moleiro.

 — E o quinto? — perguntou Ambrósio.

 — Esse é para te aborreceres.

 — Como tu és grande, diabo! — disse o velho entusiasmado. Aceito.

 — Deixa tirar uma gota de sangue das tuas veias. Com esta pena de mocho, molhada no teu sangue, hás de por o teu nome neste livro.

O inimigo do moleiro sentiu uma picada no sangradouro e logo o seu nome apareceu brilhante como o fogo, na pagina onde o escrevera, obrigado por uma força irresistível.

***

Depois um vento infernal levou-o pelo espaço. Tudo quanto via e gozava eram deslumbramentos e delicias. Corria-lhe o corpo um calor de mocidade. Ricos manjares eram servidos em pratos de ouro; as festas mais divertidas e luxuosas, passavam-se em palácios de marfim e cristal. Camas formadas de fofas nuvens, apareciam dispostas para um momento de cansaço. Levado milagrosamente, passou sobre os mares onde ruem tempestades, viu a seus pés cidades cheias de bulício e riqueza, os reis da terra ofereciam-lhe homenagem! Os montes de perolas, ouro e diamantes já eram para Ambrósio coisas sem valor. Por causa de um mosquito que lhe passou no nariz, teve uma rajada de cólera, que fez tremer toda a terra!

Logo em seguida viu humilde e suplicante o moleiro, que já estava preparado para o sacrifício.

 — Quero matá-lo cá à minha moda — disse para o diabo. Há de ser num banco, escochinado, como um porco.

No momento seguinte estava junto de sua mulher tocando-lhe sanfona aos ouvidos. A pobre velha, entrevada na cama, havia muitos anos, suplicava com olhares, que lhe não atormentassem as últimas horas de vida. Porém o marido, homem de coração duro, foi implacável até ao fim e viu-a morrer no meio de sofrimentos horríveis. Depois é que deu começo à tarefa mais importante, que era dar morte aflitiva ao moleiro.

***

Espatifá-lo como um porco fora sempre a sua ideia fixa. Ia realizá-la. A cena passa-se no quintalito junto do rio. A vítima, com a sua grande estatura sai do moinho. Vem manietado e humilde, ao pé do algoz, apresentar-se para o sacrifício. Ainda que não ousava levantar os olhos, o seu porte era digno.

 — Ah! — disse Ambrósio com grande satisfação. Vamos lá a isto?

O próprio carrasco, é que foi buscar um banco. Apontando para ele, mostrou-o à vítima, com riso de mau:

 — Há de ser aqui.

O pobre moleiro conservava-se calado e triste. Não ousava ter olhares coléricos, talvez, para o suplicio lhe ser menos bárbaro. Não pedia; pois era um homem valente, digno, bondoso e reconhecia a crueldade do inimigo.

Ambrósio continuou:

 — Só para chegar a isto dei a minha alma ao diabo. Se mil almas tivera, todas daria, só para te cravar mil vezes uma faca no coração e tirar-te mil vidas que tu possuísses. Quem foi que me quebrou a perna do bácoro? quem me fez secar a laranjeira? quem me roubou a panela velha, com que eu tirava água do rio? quem me estragou o manjericão?

E como a vítima dos seus ódios, continuava a olhar para a terra, sem responder, escarneceu:

 — Ah! não foi ninguém!... Estas coisas fazem-se por si. Alem de seres o grande ladrão, que me roubou os feijões, és mentiroso. Pois vais pagá-las todas juntas, meu rico amiguinho. Ora deite-se nesta cama.

E com uma força que não era a do seu braço enfezado e velho, pegou no moleiro que era um gigante, e estendeu-o como uma arveola sobre o banco, atando-o fortemente com cordas.

 — Agora espere que vou aqui buscar uma coisa.

Logo apareceu com um alguidar e uma comprida faca de matador. Mostrando estes objetos, acrescentou:

— Isto é um alguidar para receber o teu sangue vermelho e quente. Isto, uma coisa a que se chama faca para te fazer cócegas no coração. Talvez ainda tenha tempo para arranjar um serrabulho desse sangue e coração. Vamos à obra que se faz tarde.

Com placidez, gozando à vontade o martírio do paciente, principiou a arregaçar os punhos da camisa de estopa. Mostrou a faca reluzente à vítima que estava deitada. E voltando-se para o diabo disse:

 — Você muito pode, seu amigo. Como eu tenho aqui este fanfarrão, sem se mexer? Tenho pena que meu pai me não tivesse feito duas almas, para lhe dar a você!

O demônio austero e grave não respondeu à lisonja. Ambrósio entrou de novo no seu pardieiro e trouxe um púcaro d’água quente. Tinha de molhar a pele da vítima, para a ponta da faca entrar mais firmemente. E chapinhando na garganta com a mão molhada, tinha uma respiração de homem feroz.

Apontou a faca ao lugar apropriado, principiou a enterrá-la lentamente, para a dor ser mais prolongada, o sangue já saía em borbotões do peito arquejante do moleiro.

 — Não berra como os porcos, este maldito! — considerou Ambrósio.

Ia-lhe remexendo cruelmente com o ferro nas entranhas! Gozava a sua vitória, fazendo sofrer a vítima.

Foi prolongando este gozo até aos últimos momentos do moleiro. E quando reconheceu que ali estava definitivamente um morto respirou:

 — Ahhh!... Isto valia bem uma dúzia de almas! Quanto falta senhor diabo?

 — Vai acabar o tempo. Já lá te esperam. Olha!

Apontou para a boca de um enorme forno, onde entre as labaredas infernais estavam homens e mulheres dando gritos. Todas as velhas ideias de Ambrósio sobre penas eternas, se condensaram naquela realidade. Afrontou heroicamente um tal espetáculo, diante do qual o seu coração desumano, ainda teve coragem para beber do sangue do inimigo! Porém o mundo infernal das chamas e gritos, crescia rápida e formidavelmente. O diabo sereno e majestoso estendia-lhe a mão para o agarrar, com as suas unhas de macaco! O aspecto do demônio era tão medonho e terrível, que o velho Ambrósio teve subitamente um grande medo, todo o seu corpo estremeceu como se oscilasse o mundo, amedrontado e covarde ia a dar um passo para fugir...

Nesse instante escorregou e caiu ao rio. Começou a berrar por socorro como um possesso. O seu choro era mais infeliz do que o de uma criança sem mãe.

A água escaldava-o e sentia-se atrasado como no meio de labaredas infernais! Quem lhe havia de acudir naquele instante de aflição? Foi o vizinho, o moleiro, a sua vítima que saindo forra do seu moinho o viu debater-se covardemente, como se estivesse assoberbado, por ondas de um mar tormentoso!

 — Eh!... diabo de gato! — disse o colosso metendo-se ao rio e agarrando-o pela gola da vestia. Como diabo te aconteceu isto?

Levou-o para sua própria casa, meteu-o na cama agasalhado, deu-lhe um caldo quente para o revigorar. O velho Ambrósio, olhando-o receoso, batia o queixo de medo e dizia com a cabeça debaixo da roupa:

 — Nada, não quero; ele pode deitar ressalgar no caldo!

 

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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

Um corvo e um papagaio (Conto), de Teixeira de Queiroz


UM CORVO E UM PAPAGAIO
(CONTO PARA CREANÇAS, OFFERECIDO AOS MEUS FILHOS)

 

Isto passou-se no tempo dos animais falantes:

Um velho corvo, tendo de idade perto de um século, num dia de muita chuva e vento, veio, já sem forças, pousar na beira de um telhado. Este valente da amplidão dos ares, tinha perdido toda a arrogância do seu porte; encolhido e a tremer não se podia já ter nas pernas. A extremidade amarelada das suas penas, outrora tão negras, mostrava que padecia de velhice e de fome. Ao habitante eterno dos penhascos sombrios, ao motejador das tempestades que assustam os homens, coube-lhe o vir dar o último suspiro da sua longa vida, perto do comedouro farto e luxuoso de um vulgarismo papagaio real. Este, de papo cheio, e aquecido pelo ar tépido da cozinha, ao sentir a queda do corpo enfraquecido do corvo, perguntou de um modo gracejador:

 — Que é lá!? Quem passa?

Uma voz quase soluçante, conservando a meiguice dum peito corajoso, e o vigor do suspiro de um general moribundo nos campos de batalha, respondeu:

 — Gente de paz, amigo. Descanso um momento.

 — Olha um corvo! — gritou o papagaio cheio de medo. Aqui del-rei que me come! Antônio, acode!

Mas o corvo, com uma voz tranquila e cheia de bondade, serenou-o:

 — Não te assustes... Não tenhas a meu respeito a opinião do povo, que é errada. Sou meigo e infeliz. Tive filhos, casa, uma companheira de muitos anos e tudo isto me roubaram os homens. Durante a minha vida de um século, tenho visto mais barbaridades praticadas pelos corações piedosos, do que todas as que atribuem à minha raça maldita.

O papagaio, ainda receoso, mas cheio de curiosidade perguntou:

 — Então não és feroz e cruel como dizem?

 — Não. Tenho afetos; no alto dos meus queridos rochedos, muita vez escutei com prazer o canto dos pássaros nossos irmãos e a alguns quis imitar. Amigos meus e meus irmãos viveram entre homens, tornaram-se familiares, chegando a compreender a linguagem que se fala. Eu sempre gostei do ar forte e da liberdade das montanhas. Hoje enfraquecido e cheio de fome fui arrumado para este telhado, pelo vento que toda a vida escarneci. Há muitos dias que não como, dás-me alguma coisa d’isso que aí tens?

 — Não posso — respondeu o egoísta. — O meu arroz mal chega para mim... Tu também o não comias. Do que mais gostas, segundo dizem, é de carne podre.

 — Que remédio tenho eu, à falta de melhor? É o único alimento dos infelizes que vivem nas solidões. Comemos tudo... a fome é negra. O teu arroz cheira tão bem... Dá-me um bocadinho? Poucos minutos me restam de vida. Deixa-me ao menos aproveitar da tua comida, isso que tu deitas forra e desprezas.

***

Fez um esforço para voar; mas não podia. No entretanto esse mesmo movimento de asas atemorizou o papagaio que bradou:

— Não te chegues, não te chegues! Tu o que desejas é comer o meu arroz e talvez engolir-me a mim mesmo. Nada de brincadeiras. Essa tua fraqueza pode muito bem ser fingida, para me enganares. Não te chegues, senão chamo o Antônio, o meu amigo cozinheiro, que arranja coisinhas boas para o meu papinho, e se ele vem, olha que dá cabo de ti.

O corvo, quase agonizante, soluçava tremendo de frio e de fome:

 — Não me odeies, lá por eu ter má opinião em toda a gente. No tempo em que era forte, quantas vezes não cobri com o meu corpo, muitos passarinhos que não podiam resistir à tempestade?! Fiz o bem que pude. Socorre-me hoje, que estou para morrer.

O papagaio, desconfiado e vaidoso, temendo que o rústico habitante dos píncaros lhe sujasse a plumagem vistosa, ordenou:

 — Então deixa-te estar aí. Vou pedir ao Antônio que te deite um pedaço de carne, da que não presta. Talvez a não mereças; mas devemos ser caridosos — concluiu espanejando-se.

O velho corvo, já sem altivez, agradeceu com ternura na voz:

 — Obrigado. Nosso Senhor to pague.

No telhado porém, não podia resistir aos impulsos do vento. Confiado, ou talvez contra vontade, deu um voo, do beiral onde estava, para o poleiro, desculpando-se:

 — Tem paciência. Não posso estar ali. Comerei neste cantinho a esmola que me fazes.

Mas a proximidade daquele corpo sujo, volumoso, de aspecto selvagem, assustou o tímido papagaio real, que logo gritou forra de si:

 — Ó Antônio. Traz o pau!...

E esvoaçava sem querer pousar. Agarrava-se à corrente que o prendia ao comedouro. Tremia de verdadeiro medo, ele saudável e nédio, diante deste habitante dos rochedos, que estava a dar o último suspiro.

O cozinheiro, ao ver o corpo imundo e repelente, perto do seu estimado papagaio, exclamou irado:

 — Olha o ladrão de um corvo!...

E dando uma pancada no animal desfalecido, atirou-o sobre o lajedo da rua, onde o desgraçado morreu logo. Em seguida, o Antônio com o fim de sossegar o seu querido, passava-lhe com brandura a mão na cabeça dizendo:

 — Cala-te louro, não tenhas medo. Queria-te fazer mal? Levou a sua conta. Coitadinho do louro, coitadinho do louro.

Assim se cumpre, muitas vezes, a justiça na terra. Meus filhos, não se deve acreditar facilmente nas culpas daqueles que são infelizes, principalmente quando precisam de que se lhes faça bem.

 

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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

A truta grande (Conto), deTeixeira de Queiroz

 

A TRUTA GRANDE 

Lá está o padre João, a dormir na sua cadeira de braços, debaixo da fresca lata! Peito ao leu, as abas do amplo casaco de lustrina pendentes, breviário para um lado, lenço para outro, caixa do rapé na mão, o ventre arfando pausadamente... É todos os dias assim, depois de jantar, no tempo dos calores. Para avaliar a tranquilidade de certas almas, é melhor sentir-lhe a respiração suave, do que ler, tudo quanto pensadores e casuístas, tem escrito acerca de moral. E julga-se um homem acordado, o sereno eclesiástico, pois regouga palavras incompreensíveis! Em que belo país de sonhos trabalhará a sua ideia?! Sorri-se, o lábio papeja-lhe de contentamento... É que está à borda do rio, a cana de pesca firme, o olho interessado, a respiração silenciosa. Rabea-lhe em volta da isca e em breve a morderá, o peixe guloso e estúpido. A superfície da água é serena. A transparência deixa ver o fundo limoso e, talvez, a truta grande, com a majestade do seu nadar, passe altiva, a distancia.

Ah! magnífico padre João, como estais evidentemente enganado! Os trêmulos e repetidos puxões que vos agitam o corpo, ébrio de gozo, não são do peixe a depenicar na isca, são as galinhas em cata de moscas. Elas é que vos tiram pelas abas sebentas do casaco de lustrina, querido e obeso, padre João!...

***

O dia era de agosto e bem quente. Atmosfera tremula e translúcida, como se fora de cristal fundido. No rio, as lavadeiras entoavam cânticos religiosos aprendidos com os missionários e modas profanas colhidas dos cegos que passavam. Nos campos em redor, àquela hora, não havia murmúrios do trabalho, pois já tinham acabado as sachas e as mondas. As regas, essas faziam-se de noite. Eram duas da tarde e entram no quinteiro os discípulos do latim. Ao verem o respeitado mestre, tão docemente adormecido, deixam-no em paz e vão gazear para os lados do rio. O porco foi menos condescendente. Tardava-lhe a lavagem e principiou a grunhir em volta do quinteiro, parando com o focinho erguido para a cozinha. Este barulho espertou o excelente eclesiástico. Primeiro abriu um olho, depois outro, conservando-se alguns minutos em contemplação, mãos cruzadas sobre o ventre. Parecia contar detalhadamente os doirados cachos que formavam um dossel sobre a sua cabeça! Por fim ergueu o tronco considerando:

 — Então não me ia deixando dormir?! Pois não é o meu costume. Ó Luísa! — chamou repetindo três vezes.

Uma voz de dentro da casa respondeu:

 — Não posso lá ir. Estou a arranjar a lavagem. Não ouve o porco?

 — Tem piedade de mim, moça — exorou o padre João. Tenho esta boca como um pau velho.

 — Também, está sempre com securas!

***

Mas a rapariga compadeceu-se. Primeiro que tratasse do porco foi à adega, trouxe uma infusa de vinho, colocou-a desceremoniosamente no chão, junto do amo que disse:

— Deus to pague mulher! Deus to pague! Se não fosse isto, nem hoje podia dar lições.

Com sorriso beatifico, pegou na infusa, repimpou-se na cadeira e começou glou, glou, glou... até um final de saciedade, que consistiu num prolongado ahhh!...

A criada, voltando com a lavagem, disse:

 — Já aí vieram os estudantes, mas como vocemecê estava de papo pro ar, lá se foram derriçar com as raparigas pro rio. Não lhe tem respeito nenhum — censurou.

 — Que respeito queres tu que me tenham?! Deixa-os lá, esta vida são dois dias. Gostam das moças? Também eu já gostei... e ainda gosto — concluiu arregalando olhos brejeiros.

 — Um padre velho, sempre fala de um modo...

 — Historias! Velhos são os farrapos. Vai-me chamar esses estudantes. Se não aprendem latim, não serão nada. Latim é a base. Vai-os chamar, anda.

E acabou de emborcar o resto da infusa, com um beber sereno de satisfação. A criada repreendeu-o:

 — Todo ele é vinho. Quando não está, para lá caminha.

 — O que, bêbedo? grandíssima cachorra. É coisa que nunca me viste, mentirosa. Gosto da pinga e de ti; mas não me embebedo com estas coisas.

— De mim! Arreda, que me quero casar.

 — Com esse garotaço que te namorisca? Hás de casar sem banhos, nem benção, eu to afianço. Vai-me ali chamar os estudantes, anda.

 — Vá você, que tenho a massa a aziumar. Se há de tornar a adormecer...

***

Luísa subiu a escada de pedra para a cozinha. O padre João levantou-se sem resistência, saiu o portal e foi pelo carreiro abaixo, com o lenço vermelho a resguardar-lhe a cabeça, do sol. Chegado à margem do rio, lá viu os discípulos brincando com as lavadeiras. Muitas delas levavam a coisa de galhofa; outras enxotavam-nos com pragas. O professor não se encolerizou, apesar de alguns estarem a fumar — o maior de todos os vícios, e que ele odiava do fundo da alma. Toda aquela alegria e mocidade lhe arejou os sessenta anos. Enamorado da juventude, quedou-se a contemplar o quadro cheio de animação. Benévolo e risonho, fatiava consigo mesmo.

 — Não querem ver como se arreitam? Ora, ora, já a formiga tem catarro!...

Levava o lenço ao nariz para enxugar o pingo da distração. Escondido por detrás de um choupo, interessava-se na contemplação deste quadro virgiliano. Absorvia a fundos haustos o ar impregnado de terríveis prazeres, que lhe revolviam os nervos. Recuava quarenta anos, ao tempo das rapaziadas, dos bons acasos, quando apalpava contornos e sentia na aproximação da carne, coisas de mil demônios. Talvez que ainda recuasse mais, à famosa idade em que a imaginação trabalha inquieta, criando gozos, adivinhando êxtases e vive de imperiosos desejos, que intumescem. A fisionomia graciosa do padre João, expandia-se à vista do quadro simples e primitivo — o beiço tremulo revelava o seu interior. A paisagem era encantadora, a corrente da água arrepiava-se nos seixos; na mente do mestre de latim só podia haver quadros pitorescos de antigos faunos, a rirem junto de fontes, em florestas idílicas.

 — Olha o Esteves — comentava — como repara nas pernas da Clementina! Grandíssimo tratante! Talvez não saibas o Sum, és, fui e estás aí com esses olhos. Como já tem malicia! Mas que maliciazinha! mas que maliciazona!

Limpou precipitadamente outro pingo. Umedecia os beiços com a língua, como o guloso de belos manjares. Tudo aquilo o interessava. Sentou-se na relva por traz da árvore. Tomou uma abundante pitada, fungada em três tempos, com todas as precauções para que o não pressentissem.

 — Ahh!!!... — respirou.

Queria ver onde aquilo chegava. Não podia ser grande coisa, estava muita gente, as mulheres velhas são experientes. Alguma apalpadela, um empurrão, talvez cócegas para fazer cair as raparigas. Lá adiante, no meio do salgueiral andava a Victoria a estender a roupa e cantava o Afastajanotaarreda. O padre João via-a pelas costas, o tronco inclinado sobre a relva, as ancas largas, as rijas barrigas das pernas, à mostra. Rapariga saudável, muito alegre, amplo seio destinado a fecunda maternidade. Diziam que namoriscava o filho do sacristão; mas de quem ela parecia gostar verdadeiramente, era do praticante da botica, que lhe dava fartura de banha de cheiro, para o cabelo. Trabalhava distante das outras lavadeiras, no coradouro, e para molhar as teias que lhe estavam confiadas, metia-se no rio até aos joelhos, atirando água às manadas. O sol faiscando sobre a areia do seixal enlanguescia os corpos, estonteava as cabeças. A Victoria desapareceu entre os salgueiros, para os lados onde não havia gente. E pouco depois, o discípulo mais graúdo do Padre João, o Tomás do mercador, para lá se dirigiu, assobiando disfarçadamente.

 — Olhem o moinante! Não querem ver? — rugiu o mestre do latim.

Porém, mais longe, numa clareira, a moça, reapareceu. O padre dali mesmo se pôs a vigiar, que não houvesse qualquer coisa. O estudante encontrou-se com a lavadeira, quis efetivamente agarrá-la, mas a rapariga esquivou-se-lhe, correndo adiante dele, furtando-se por entre troncos de árvores. O eclesiástico para ver melhor, levantou-se, seguia-os com prazer, inclinava-se para um lado e para o outro, punha-se nos bicos dos pés.

A Victoria a dar gargalhadas condescendentes, gritava pelas companheiras, ameaçava com um gougo o perseguidor. “E pilha-a.” “E agarra-a...” “Agora... fugiu...” “Lá caíram ambos...” — ia ele comentando, conforme os cambiantes da luta.

 — O diabo é o Tomás! Não escolheu mal o patifão — considerou, quando os dois, junto um do outro, conversavam sensatamente.

***

Mas o aspecto de conciliação perturbou-se. O estudante perseguiu de novo a rapariga que lhe fugia, gritando. A Lindória ouvindo, correu para o sitio, cheia de fervor beato.

Ralhou, esbracejando descompostamente. A sua gritaria era para denunciar o rapaz, ao longe: “Maroto, meta-se com quem lhe der trela, não ande a desinquietar as almas”. Ameaçou o estudante com o pai, com os missionários, com uma queixa ao professor, com o inferno.

 — Ah! também não é coisa para tanto — desculpava o sacerdote consigo. Ele não fez mal nenhum.

Mas Lindória não era deste modo de pensar. Como Tomás e outros companheiros lhe retorquiram com palavras feias, ela enfurecida e descomposta, subiu pelo carreiro, mesmo direita à casa do padre João. E berrava pelo caminho:

 — Seus tratantes. Hão de dar grandes padres ou doutores. Padres! Abrenúncio! Eram capazes de dar cabo do reino dos céus. Ah! Vossa Senhoria já aí vem? É que ouviu esta pouca vergonha!

Tinha dado de frente com o eclesiástico, que retrocedera no caminho, para fingir que vinha de casa. A Lindória, presumindo-lhe a ideia da procura dos discípulos, indicou-lhos:

 — Estão ali senhor. Tire-lhes a pele das mãos pelo amor de Deus, pelas cinco chagas, senhor padre João. Olhe que não sabe os marotos que tem!

A figura do mestre de latim, quedou-se respeitável no alto da ladeira. Com um gesto largo de comando, apontou aos discípulos o caminho da aula.

Vieram todos juntos, como um cardume de peixes. O sacerdote caminhou adiante, sem os esperar, com o lenço vermelho pela cabeça, as abas do casaco afastadas como dois remos. E susteve-se um momento voltando-se para traz, com o fim de os encrepar:

 — São estas as horas de aula? Eu há um rol de tempo à espera!...

A beata ainda lhe quis contar tudo, mas o padre João nem a quis ouvir:

 — Não me dás novidade. Conheço-os. Deixa-os por minha conta.

Os estudantes seguiram-no, com semblantes de pouco temor. Já tinham experimentado mais vezes aquela farronca. Eram, quase sempre, os dias mais serenos e benévolos.

***

Debaixo da varanda alpendrada, onde o eclesiástico dava lições de verão, que se iria passar?

O padre João fazia um barulho da breca. Movendo-se com uma presteza desusada, foi ao quarto buscar a palmatória, para amedrontar. Não se queria ver entre os dentes de Lindória, que era capaz de lhe inventar a pior fama. Aquelas paredes e aquela figueira, habituadas às objurgatórias titânicas de Tito Lívio, aos versos amplos do melódico Virgílio, às palavras conceituosas do velho Horácio e de Esopo, deviam estar atemorizadas, pela súbita cólera do professor.

Chegou a parecer iracundo — o sobrolho carregado, os beiços estendidos, o rosto afogueado. Os rapazes curvados sobre os livros, já se não riam. O padre, abrindo o Virgílio, disse desabridamente:

 — Traduza as Éclogas, senhor Magalhães. O senhor Tomás emenda. Por cada erro uma palmatoada no primeiro e duas no segundo. Vamos a ver se são tão fortes em analise, como na brejeirice.

Os mais pequenos, com as gramáticas abertas sobre os joelhos, estavam pálidos! Nunca o tinham visto assim! Respirava-se ali uma atmosfera de terror. O mestre tinha baforadas de cólera, batia com a palmatória sobre a mesa, arrumava os livros com ímpeto. O seu fim era criar em volta de si, um ambiente de respeito.

A consciência gritava-lhe que não seria bastante punidor; mas estava resolvido a amedrontar a própria consciência.

Para estabelecer uma intransigência material entre si e aqueles que ia julgar; para se recolher absolutamente no grave papel de juiz, cobriu o rosto com o Virgílio. Não desejava ver os réus. Nenhum aspecto de humildade ou compunção o tocaria!

***

O Tomás era o melhor dos seus estudantes. Traduzia Virgílio com elegância, penetrando-lhe as sutilidades literárias. Foi ele quem principiou a lição e não o Magalhães, como ordenara o professor. O padre João conheceu a manha. Deixou-se enganar, até lhe achou graça. Um ligeiro sorriso (o primeiro na tempestade do seu rosto), abriu-se como uma flor de cato. As paisagens tépidas e enganosas, de uma suavidade extensa, principiaram a desenhar-se-lhe diante dos olhos. Títiro e Melibeu filosofavam na sua linguagem culta e suave, como o murmúrio dos regatos. A pastora das florestas, idilicamente à sombra das árvores, dizia do seu peito coisas ternas ao pegureiro amado, que tangia flauta rude, junto de um ribeiro. O verso saía claro, levantando-se numa cadencia adormecedora. Havia as messes cor de manteiga, enchendo de riqueza o vale; na encosta estendiam-se rebanhos de cordeiros, que balavam por suas mães. Esta completa abstração de materialidade, foi gradualmente enternecendo o mestre encolerizado.

Ao fim de poucos minutos, já respirava uma atmosfera de bondade natural; havia descoberto o rosto incauto. Não dera pela transição. Foi acompanhando em voz alta o discípulo que em breve o deixou só, limitando-se a ouvi-lo. Pouco depois, o professor estava de pé, no meio da varanda, lendo com entusiasmo, elevando-se nas maravilhas da contemplação egoísta do poeta! Desaparecera o mestre iracundo, não havia palmatória. Boquiaberto, diante dos discípulos, exclamava:

 — Como isto é belo! Como isto é belo!

Foi-se à caixa do rapé, tomou farta pitada, fungou-a sem rebuço, de pernas escachadas. Caiu extenuado de prazer, na sua cadeira magistral. O Tomás, que era velhaco, aproveitou o momento para dizer:

 — Não sabe o senhor padre João, o que nós vimos há bocado?

 — Que foi? — perguntou.

 — A truta grande, a serenar, encostada à pedra branca!

Tornou-se pálido e extático! Endireitou-se na cadeira e disse, esforçando-se por se mostrar tranquilo:

 — A truta grande, que anda aí no rio!?

 — Vi-a com estes. — insistiu o discípulo. É assim! —  designou o comprimento de um braço.

***

Estes maliciosos conheciam-lhe o fraco, como toda a gente. Muito mais do que apaixonado amante dos clássicos latinos, era um pescador de cana. Esta paixão soturna é que lhe enchia a existência. Por ela esquecia deveres sacerdotais obrigações escolares e a própria comida. Borracha à cinta, um naco de broa, azeitonas... e lá andava um dia inteiro, pela margem do rio, para baixo e para cima, a cocar. Principalmente se o peixe picava, se enchia o cacifre, o seu gozo era infinito. Só para algum Senhor forra é que tinham ordem de o chamar, com três badaladas no sino da torre. Esta ideia de um moribundo se preparar para ir à presença de Deus, era mais forte. E resmungava ao enrolar a sedela:

 — Como é para coisa destas, não há remédio.

Nestes termos, hábil foi o estratagema dos discípulos, para se lhe apoderarem do espírito benevolente, e conseguirem o sueto que desejavam.

O caso, apontado pelo Tomás, era grave. Havia anos que ele, ao desafio com o morgado da Torre Velha, procuravam a glória de pescar a famosa truta grande! Era um animal matreiro, raramente se mostrava forra de um fundo poço, onde as redes se não arriscavam.

Junto da pedra branca, só a tinham visto, duas ou três vezes. A revelação do discípulo fez com que o padre João desconhecesse imediatamente os encantos bucólicos de Virgílio, as pompas literárias de Tito Lívio. Diante de si, não tinha o criminoso que minutos antes lhe arrancara berros de cólera; só via o individuo, que possuía um conhecimento para ele inestimável.

 — Então era a truta grande! Tu vista-la bem?! Tu conhecê-la?!

 — Se vi! Se conheço! Estava a serenar muito juntinha à pedra. Quando vinha à tona algum bichinho a rabear, ela nadava depressa e, zás, abocava-o, dando um pulo forra d’água.

 — Oh! com mil demônios! — exclamou. — Oh! minha Virgem Santíssima, que lhe vou meter o anzol, mesmo na goela!

E depois um pouco mais sereno, no abatimento produzido por uma onda de gozo considerou:

 — Há quantos anos ando eu atrás dessa ladra! O dia hoje está quente... Sol de trovoada, é bom para coisa! Que dirá o D. Luís, quando souber?...

Mostrava nas palavras verdadeira energia de lutador; o seu campo de batalha era aquele.

***

De entre muitas canas, suspensas ao longo da parede da varanda, escolheu a que tinha ponteira mais flexível e resistente. Da gaveta da sua banca de professor, tirou uma sedela de cor verde-água.

Calculava tudo para ficar vitorioso, nesta peleja que durava anos. Ali não havia mestre, nem discípulos. Os rapazes davam-lhe conselhos, ofereciam-se para ir às minhocas, e o Tomás achou muito grossa a sedela:

 — És tolo — retorquiu o mestre. Não vês que é uma truta do tamanho de um savel! Se a apanho, vocês tem feriado três dias! Como ficará o D. Luís? Ai! que regalo.

O morgado da Torre Velha era o seu competidor na pesca à linha.

Encontravam-se frequentemente neste desafio tácito. A cada peixe que um encacifrasse, o outro fazia um cumprimento espalhafatoso, mas odiento. Ambos se julgavam com iguais direitos, à criação de todo o rio. A truta grande, porém, como um e outro tinham jurado apanhá-la, era motivo de mais grave conflito. Por causa dela tinham feito pesquisas especiais. Iam de noite, de dia, nas ocasiões das cheias para junto da azenha; porque, de vez em quando, o formoso animal vinha-se ali refrescar, nas águas correntes.

***

Estudavam em separado, os estados climatéricos, para calcularem o momento próprio de conseguirem o seu fim. Quando a qualquer deles parecia oportuno, tomava a cana precipitadamente, e ainda que o jantar estivesse na mesa, abalava para o rio. Muitas foram as desilusões, fadigas e contrariedades; mas tudo venciam com tenacidade heroica. A dormir e acordados tinham momentos de súbito terror: cada um via o outro, aparecendo vitorioso, com a truta presa do anzol, usando de mil habilidades para a trazer à margem, sem partir a sedela. Porém nesta ocasião o mestre de latim (talvez ainda resto do espírito de rigorismo com que entrara na varanda) entendeu que devia continuar as lições e disse encostando a cana ao canto:

— Vamos primeiro acabar as lições.

Os discípulos entreolharam-se aterrados! Por esta é que eles não esperavam. A lembrança feliz não sortira efeito. Uma risonha invenção, reduzida a nada. O plano de irem roubar nessa tarde certas uvas doiradas, completamente gorado! Todos os rostos se voltaram para o Tomás, que estava cabisbaixo e confuso. Porém, neste apuro, foi o sonso do Esteves, que falou:

 — A estas horas, já está por lá o senhor D. Luís, com a sua cana...

O padre João, deu um pulo na cadeira e perguntou rapidamente:

 — O senhor viu-o passar!?

 — Não senhor; mas no outro dia pediu ao moleiro que, quando ela por ali aparecesse, o mandasse chamar.

Era quase tão terminante como se o tivessem lá visto. Seria mais acertado partir imediatamente, antes que o da Torre Velha tivesse denuncia. Tornava-se indispensável tomar-lhe a dianteira.

 — Bem, bem... Essas lições na ponta da língua para amanhã. E não me vão para o rio, por causa das lavadeiras. Não gosto da língua da tal Lindória, que vai por aí badalar... badalar...

***

Partiu de cana ao ombro e num passo diligente. Deus nobis heac otia fecit — segredava consigo. Os discípulos fugiam para o outro lado, com medo que ainda lhe desse a tineta, de voltar para traz. Corriam pelos caminhos, davam saltos, guinchos... O Tomás relembrou-lhes o que disse o padre João, porém eles, não se importaram, continuando a correr e a gritar sem fazerem caso.

Na margem do rio, o sacerdote, armou-se de todos os cuidados para não ser pressentido do esperto animal. Ao dirigir-se à pedra branca, os passos eram miúdos, evitando as folhas secas, que gemem debaixo dos pés.

Que enorme prazer de vingança! Iria passar à porta do morgado, com a truta pendente da mão. “Olha lá! rala-te para aí!” — havia de dizer mentalmente. Nunca houve bandido que espreitasse com mais sagacidade a sua vítima.

Já de longe levava a cana prestes, a sedela colhida na mão para a lançar imprevistamente. Estava a pouca distancia, quando estacou, pálido de cólera! O D. Luís, surgira nesse momento da porta da azenha, seguindo rio acima com o anzol também pronto!

 — Olhem o excomungado do barbaças que teve denuncia! — exclamou o eclesiástico. Bem disseram os rapazes!

O fidalgo, homem idoso, corpulento, tez morena das soalheiras, olhar empreendedor, também o viu e, provavelmente, faria idênticas reflexões.

Cumprimentaram-se com sorriso desdenhoso e nesse instante abriu-se entre eles uma luta colossal.

Estavam quase a mesma distancia. Aproximarem-se atabalhoados era inconveniente. Tanto um, como outro compreenderam a gravidade do momento. O peixe era um só e decerto não teria a condescendência de pegar nos dois anzóis ao mesmo tempo. O padre João humildou-se. Fez ao inimigo um sinal em que pedia uma trégua, com o fim de parlamentarem. As circunstâncias exigiam prudência e ambos se afastaram da margem, para virem à fala.

O padre disse primeiro:

 — Assim não pode ser, morgado. Nem para mim, nem para Vossa Senhoria!

— Que quer você que lhe faça? O rio não é grande?

 — Mas a truta é uma, e se vamos à porfia escapule-se. Vossa Senhoria sabe que ela está ali.

 — Palavra que não! Porque diabo não está você a dar aula aos seus rapazes?!

O sacerdote, zangado consigo por lhe ter denunciado a truta, não pôde suportar-lhe a censura:

 — E porque diabo não está o senhor a dormir a sua sesta! Ora é muito

Estavam furiosos um contra o outro; mas a ocasião era inoportuna para se descomporem. Nesse momento, junto da pedra branca, a superfície do rio enrugou-se, a água espadanou e um peixe engoliu um inseto que vinha nadando.

 — Seria ela? — rugiu o D. Luís, com vontade de matar o padre.

 — Ná... — opinou este fazendo-se forte — Ela há de fazer mais mossa.

No fundo ambos acreditaram que podia ser. “Maldito sotaina!” “Maldito barbaças!” — insultaram-se mentalmente.

 — Bem — disse o padre. Dois ao mesmo tempo é que não pode ser. Quer Vossa Senhoria que se tire à sorte quem há de ir?

— Valeu — concordou o fidalgo.

D. Luís tirou um pataco do bolso e perguntou:

 — Cruzes ou cunhos?

 — Cruzes que eu sou padre. Agora trapaceie, se lhe parece.

 — Não tenho os seus costumes, seu bêbedo! — respondeu o fidalgo, mostrando na palma da mão as cruzes da moeda.

E atirando ao ar o pataco com força, viram-no cair a distancia. Os dois pescadores correram cheios de comoção.

 — Cunhos! — gritou o morgado ao ver a papuda efígie do rei D. João VI.

***

O padre João aceitou resignado a sentença. Encostou a um valado a cana, tirou prodiga pitada da caixa de prata e foi-se sentar numa pedra trauteando cantochão, talvez pela mesma razão que tem os condenados à morte, para pedirem que rufem os tambores, junto do cadafalso. D. Luís aumentava-lhe o suplicio, caminhando vagarosamente para a margem. Dois anos de pesquisas e cuidados iriam terminar naquele instante, pela vitória do seu adversário? Desapareceria aquele troféu de glória, que lhe dera tantos sonhos entusiastas? Principiou a cantar alto, desvairado por um sentimento de malevolência. O da Torre Velha advertiu-o:

 — Isso é para espantar, padre João?

Calou-se ficando num abatimento triste.

Ia presenciar a sua vergonha. O dia estava magnífico. Com ar de trovoada o peixe pica, que nem mil diabos! E figurava-se-lhe na imaginação a truta grande de goela aberta, abocando a minhoca do barbaças. Era horrível e desoladora esta possibilidade!

Mas porque é que o cobiçado peixe não havia de fugir? A maior parte das vezes é o que sucede — consolou-se. A ele mesmo não lhe tinha acontecido? Ela a serenar, a serenar, muito quietinha, diante dos seus olhos, nem parecia coisa viva... Procurava o lado de cima, lançava o anzol a distancia para vir nadando pela água a baixo como um bicho inexperto, e afinal, a truta que para ele era o animal mais inteligente da criação, escapulia-se por entre os penedos, que era um regalo! Quantas vezes isto lhe sucedera? Uma infinidade.

***

Ainda outra consideração:

O morgado não era grande pescador de linha. Ignorava muitos segredos da arte sublime e não possuía todos os petrechos. Teria ele escolhido uma sedela bastante verde-água para não ser percebida, e bastante forte para resistir aos repelões do valentíssimo animal?! A truta é o peixe mais valente do rio, tem uma força que poucos apreciam. Talvez o seu antagonista não soubesse calcular essa rijeza — considerou.

Porém a gravidade do caso parecia ter dado ao D. Luís uma inteligência agudíssima. Atirou calculadamente o seu anzol e seguia pela margem, com o olho alerta e pronto a dar a pancada, logo que chegasse o momento. O padre João teve vontade de fingir uma dor, só para o perturbar. A ansiedade do seu peito, crescia tumultuariamente, como oceano em fúria. Aquela alma bondosa, teve a ideia repugnante de desejar uma apoplexia ao fidalgo! Mas reconhecendo-se criminoso, por este mau pensamento, pôs o coração à larga, tornou-se magnânimo e até, mentalmente, pediu a Deus, que deixasse o morgado pescar a truta grande. Mas o da Torre Velha relanceou-lhe um olhar triunfante e o padre João, logo mudou de parecer, rosnando:

 — Ah! ladrão! que se ela te foge muito me hei de rir.

O instante verdadeiramente supremo ia chegar. O anzol já se podia calcular perto da pedra branca.

Que infernal chama abrasava o peito do eclesiástico!? Pôs-se de pé, só para seguir nas minudencias toda a peripécia. O fidalgo, atento e sutil, empregava o Máximo da sua inteligência.

Afinal, sente a pancada! Curva-se a ponteira! O peixe estava preso!

 — Ah! grande maroto, que ma roubaste — exclamou o eclesiástico.

O instinto obrigou-o a ser generoso. Gritou ao D. Luís:

 — Agora é não a deixar fugir.

 — Ele é o deixa — respondeu com orgulho, o da Torre Velha.

***

Começou a luta heroica entre o fidalgo e o peixe. O animal era valente, podia quebrar a sedela, se o quisesse tirar sofregamente do rio. Também podia acontecer rasgar-se-lhe o beiço ou meter-se debaixo de alguma lapa, se não tomasse precauções. Para obstar aos inconvenientes era indispensável cansá-lo, com paciência e perspicácia. Por isso D. Luís atraiu-o a um lugar conhecido, e ali o deixou rabear, defendendo-lhe o misterioso poço, onde a truta se podia enredar nalguma raiz. Puxava-a vagaroso e com delicadeza, consentia-lhe prudentes guinadas para o largo, dava-lhe linha calculadamente.

Ao fim de cinco minutos, tanto o fidalgo como o padre João, reconheceram que o peixe estava pronto. Condescendia, deixava-se ir para onde o levassem, mostrava-se fatigado e manso.

O sacerdote, já resignado, seguia todas as manobras sem rancor.

— Ande que apanhou — disse. Puxe-a para perto e deite-lhe a mão debaixo d’água, se não, ainda a vê por um óculo.

***

O D. Luís aproveitou o conselho.

Atraiu manhosamente o peixe ao sopé do muro, para que lhe ficasse debaixo de um terrouço. Depois desceu; deitou-se de barriga, tão baixo que as barbas lhe tocavam na água; introduziu um braço, guiando-se pela sedela; e, quando conheceu que lhe tinha um dedo na guelra, disse vitorioso:

 — Esta já não foge, padre! Que bruta que ela é!

Retirou o braço da água, ergueu-se, ficando com o peixe pendente.

 — Olhem o que é! Um barbo!... um peixe reles! — exclamou o sacerdote.

D. Luís da Torre Velha, assim ludibriado pelo acaso, teve a ideia de atirar com o barbo à cara do padre! Porém era uma injustiça — considerou. Que culpa tinha de tudo isto o mestre de latim?! O seu abatimento, gerado na fatal desilusão era patente. Pegou na cana, na sedela, no cacifre, no peixe e... zás!... atirou tudo ao meio do rio.

 — Nunca mais! Pode ter a certeza de que nunca mais volto a isto — afirmou retirando-se.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.