8/06/2023

Nosso Senhor Jesus Cristo (Conto), de Teixeira de Queiroz

NOSSO SENHOR JESUS CRISTO

(A Valentina de Lucena)


Entardecia. Como o brilho do sol desaparecera, uma iluminação igual ameigava a paisagem. Os últimos soutos de castanheiros transmontanos, pareciam nodoas de relva nas encostas dos montes. A escuridade caía lentamente sobre os povoados, como um tênue orvalho. A fisionomia das terras, em especial dos arvoredos, principiava a ser minhota. Havia mais de uma hora que a carruagem rodava por uma estrada em declive. Disse-me o cocheiro, que algumas casas e uma igreja aglomeradas num vale, na margem direita do Tâmega, formavam a povoação de Ribeira de Pena. Montanhas severas e apocalípticas emolduravam este bocadinho de campo, no qual eu principiava a reconhecer a paisagem querida dos meus primeiros anos.

Vinha só e sentia-me triste sem motivo. O continuado e monótono barulho da carruagem, o assobio dolente e vago do cocheiro, a amortecedora luz do crepúsculo infiltrando-se por entre as penedias das encostas, os renques de árvores do vale tinham-me lançado num estado de inconsciente melancolia. Já cansado da jornada, ainda me faltavam muitas horas para chegar ao Arco, lugar onde ficaria essa noite. Num estado intermédio ao sono e à vigília, as ideias perpassavam-me no cérebro, umas vezes, como nuvens transparentes e macias recordando momentos degradável convivência; outras vezes, encasteladas e escuras, como são as ideias próprias daqueles que vão perdendo o contente palpitar da mocidade!... Oh! minha encantadora e modesta infância, eu que sou um dos homens que mais tem rido, dize-me tu se já algum dia fui alegre, despreocupadamente alegre!...

***

À ponta da noite, no momento em que à luz indecisa, os objetos tem adquirido um esfumado que os avoluma, a carruagem parou à porta de uma taberna para se desaguarem os cavalos. Os meus nervos foram chamados à realidade com energia. Num banco de pedra, desses toscos e muito usuais que se encontram junto das habitações dos camponeses minhotos, estava sentado um velhinho magro, tendo ao lado um saquito enfiado num pau e uma pequena almotolia de azeite presa à cintura por uma correia. O seu rosto sumido era gracioso e terno como o de uma criança; o sorriso natural, que lhe ressaltava da expressão, parecia sair de um berço.

Havia o quer que fosse de inconsciente e etéreo, de amorável e bondoso, no rosto desse pobrezinho. Ali ninguém o conhecia; mas ele olhava para todos com uma atenção familiar e íntima. Um porco atrevido roçava-se-lhe pelas calças, roncava-lhe junto à cara e ele afastava-o com humildade e carinho, dizendo-lhe até palavras de conselho. De certo os seus nervos delicados se incomodaram com aquele grunhir insolente; mas nem por isso se mostrava menos atencioso, para com o bruto. Falava a todos tão suave e brandamente que a sua voz semelhava um murmúrio e uma consolação à cabeceira de um enfermo. O seu olhar, de uma tranquilidade de justo, prolongava-se pelo espaço infinito, quando olhava para o céu. Os cabelos brancos, enquadrando-lhe o rosto pacifico, eram limpos, finos e flutuantes como flocos de neve, tinham a transparência do nimbo dos santos. Tocou-me aquela bondade, aquele ar compadecido e altivo. Pareceu-me um pedinte e olhei-o com atenção antes de o interrogar. Ele sorria-se para mim, com a expressão de uma pessoa que conversa junto de uma lareira aldeã, quando a fogueira crepita e o vento uiva vitoriosamente sobre o telhado. Sentia-me atraído para ele e então perguntei-lhe mesmo de dentro da carruagem:

 — Vocemecê vem de longe?

Parecera-me que sim. Os pés tinha-os doridos, talvez de uma longa caminhada. Estava ali a descansar. A dona da taberna disse que o não conhecia e que não era das redondezas. O velhito, como eu lhe falei, levantou-se sorrindo e aproximou-se. E num tom de mistério, para que mais ninguém o ouvisse, segredou-me:

 — Se venho de longe? De muito longe. Nem eu mesmo o sei.

Tomei estas palavras como de sofrimento resignado e tive piedade.

Não sabia de onde vinha, estava alquebrado pelo cansaço e não encarecia as suas dores para me pedir esmola! Conheci-lhe pela expressão dolorida do semblante, quando pôs os pés no chão para me vir falar, que andara muitas léguas a pé. Talvez para ir ver uma filha enferma! talvez para exprimir outro grande afeto que lhe restasse no coração! Tantas terras percorrera, que até a sua memória enfraquecida pela idade não retivera os nomes! Ter-se-ia perdido no caminho?...

Insisti com modos de incrédulo:

 — Essa é boa! Então não sabe de onde vem?

Olhou-me com ar sereno e firme como de quem tinha dito uma coisa perfeitamente exata.

 — Não senhor. Ninguém sabe!... — segredou-me com extrema reserva.

E acrescentou sorrindo inteligentemente:

 — A mim ninguém me conhece; mas eu conheço todo o mundo. Bem sei quem o senhor é... É o senhor conde. Ah! cuidava que não sabia?...

No rosto do pobresito apareceu uma aurora de triunfo. Para lha sustentar perguntei muito baixo:

 — Mas como adivinhou? Quem foi que lho disse?

A enormidade do seu poder reconheci-a no desdém superior com que me olhou. Continha lá dentro infinitos tesouros de sabedoria e perspicácia, à qual não resistiam os insondáveis mistérios do amplo céu. Quem era eu, um misero conde, diante daquela onipotência que considerava o globo terráqueo como uma insignificante bolinha de pão?! Na minha tristeza e confusão devia-se reconhecer que o compreendi; pois que o velhinho, para me consolar acrescentou:

— Eu sei tudo, adivinho tudo. Se não digo de onde venho é porque ando por todo o mundo. Agora aí vou eu para Espanha ver se componho aquilo e se acabo com todas essas questões que por lá vejo. Levo aqui — designou o saquito — os papeis e livros necessários para dar luz e felicidade a todos — sublinhou.

***

Entristeceu-me ver tamanho valor e convicção reunidos num corpo assim frágil. Pedi-lhe com interesse e bons modos que me deixasse examinar os seus tesouros. Acedeu da melhor vontade abrindo primeiro o saco de estopa, dentro do qual estava um de pano preto, contendo ainda outro de chita de ramagens. O cocheiro e a dona da taberna aproximaram-se ironicamente para desfrutarem o pobre; mas ele, com um verdadeiro olhar altivo e nobre, afastou-os significando, que tais segredos não eram para espíritos grosseiros e motejadores. A meu pedido os indiscretos retiraram-se e por fim o pobresito mostrou-me envolvidos em farrapos e bem ligados com fitas de cores e cordéis, três velhos alfarrábios em língua espanhola e algumas folhas manuscritas, de uma letra amarela e ininteligível. Pelo meio havia folhas secas de castanheiro, algumas flores mirradas e pequeninos ramos de alecrim. Examinei com escrupulosa atenção estas preciosidades, dando-lhes grande valor! Ele seguiu todos os meus gestos e movimentos faciais com olho sagaz e aspecto orgulhoso. Quando lhe entreguei as suas preciosas relíquias, encarecendo-lhas ele concluiu:

 — Já o senhor conde vê que não é ninguém ao pé de mim.

 — Oh! de certo!...

E depois que já tinha guardado os seus livros e papeis inestimáveis perguntei-lhe:

 — Mas como vem de muito longe deve trazer fome. Quer que lhe dê alguma coisa?

Sem altivez respondeu:

 — É da lei aceitar sempre a esmola. Fome não tenho. Ando por aqui há um rol de séculos e nunca senti fome.

E com um sorriso delicioso, como quem faz uma revelação:

 — Isso é para vocês que são deste mundo. Para mim não, que não sou de cá.

 — Ah! vocemecê não é de cá?

 — Eu sim!...

E sorriu-se da minha estupidez, da minha falta de compreensão, abrangendo num infinito olhar toda a amplitude da terra ao céu! Habitava essas regiões ideais e intermináveis do azul, suspenso na serena ondulação do ar, e bafejado da poeira brilhante da luz. A expressão humilde e conformada do seu rosto, a grandeza e compaixão que lhe ressaltava da voz fraca e singela, o seu triunfante sorriso de tranquilidade... convenceram-me de que este velhinho resumia em si uma entidade poderosa. Quem julgará ele representar neste mundo? — perguntei a mim mesmo. Talvez algum santo milagroso, algum lobisomem das lendas, algum bruxo afamado entre o povo!... A convicção da sua imaterialidade e do seu imenso poder reconhecia-se que a tinha, pelo tom desdenhoso e superior com que se referia a tudo que o cercava. Dele só veriam sair proteção e bondade: — os benefícios que um ato rudimentar do seu querer podia espalhar sobre a terra eram incalculáveis. Um simples desígnio da sua vontade tornaria os homens eternamente felizes ou desgraçados. Não comia, não se cansava, não havia ponto na terra de onde tivesse partido ou que devesse ocupar... — o mundo, o céu, os espaços inconcebíveis eram a sede da sua ubiquidade. Nem a dor, nem o falível o tocava. A misera fraqueza humana não a sentia, a contingência do globo merecia-lhe um pensamento compadecido. Sereno e grande vivia no seu reino especial!...

Qual seria pois, o personagem imaginário que este velho magro, de rosto sumido, alegre, bondoso, expressão de soberba e de compadecido, julgava representar? Perguntei-lho com a premeditada cautela que ele empregava nas suas palavras:

 — Então quem é vocemecê?

 — Pois ainda não adivinhou?! Olha bem para mim criatura!... Nosso Senhor Jesus Cristo!

E fixando-me com tremenda piedade concluiu:

 — Ando aqui para os salvar a todos.

Dei-lhe uma esmola. O pobresito retirou-se serenamente, depois de me recomendar:

 — Agora caluda, por causa desta gente. São hereges, não acreditam.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
 

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