A DECADÊNCIA DE UM SENHOR DE ENGENHO
Era senhor de
engenho, assoldadava cabroeira, dispunha de crédito e se deixava esfolar
regularmente pelos fornecedores, porque tinha alma simples e acreditava demais
na palavra alheia. Em consequência a propriedade encolheu, mas ainda ficou
terra bastante para conservar-se a tradição da família, com honra integral,
enquanto o patriarca viveu nos canaviais e na cidade. Quando entrou no sertão,
veio o desmoronamento. A Divina Providência teve compaixão dele: fechou-lhe os
olhos antes que a desgraça completa se realizasse.
Foi no começo
do século. Joaquim Pereira, dono do Ingá, e por isso chamado Pereira do Ingá,
dedicava-se à política, desinteressado e por teimosia. Confiou nas promessas
dum bacharel, deputado viscoso que transigiu com o governo e se juntou à
cadeira, fixou residência no Rio, largando os amigos municipais em situação
difícil.
Pereira do
Ingá figurava entre os amigos mais notáveis. Permaneceu na fidelidade porque
seu pai e seu avô tinham sido fiéis ao pai e ao avô do bacharel na monarquia.
Petrificado nessa posição hereditária, teve capangas presos e capangas
assassinados na tocaia, gemeu sob o imposto — e repeliu, digno, várias
tentativas de conciliação com o partido dominante. Debalde lhe mostraram que a
firmeza era sacrifício inútil, pois o chefe se acomodava perfeitamente na
capital, indiferente aos eleitores, repousando no acordo que lhe garantia os
votos necessários para manter-se na oposição.
— Não se trata
disso, replicava Joaquim Pereira do Ingá, estremecendo como se uma broca de dentista
lhe tocasse nervo exposto. O que há é que me meti num caminho e vou andando,
vou andando, até bater com a cabeça na parede e fazer um calombo na testa. Não
me viro. Quanto ao procedimento do doutor, isso é lá com ele. Cada qual como
Deus o fez, que a gente não é rapadura, para sair tudo igual. Enfim são coisas
da república.
Nesse desabafo
meio intempestivo encerrava a pendenga, deixando os circunstantes confusos. E
era conveniente a mudança de assunto. Se algum funcionário, por dever do
ofício, tomava o pião na unha, Pereira se exaltava. Porque se haviam operado no
lugar numerosas transformações depois de 89 e ele abominava as transformações.
Torcera o nariz à propaganda: os objetos e as ideias não se tornariam melhores
que os existentes, pois isto era impossível. Nem o madeiramento da casa-grande
iria fortalecer-se nem a paga dos moradores se atenuaria. Na verdade receava
exigências do pessoal miúdo e cupim nos caibros.
Ora, no regime
novo, a casa, onde algumas gerações tinham vivido e morrido, apresentou
sintomas de desagregação. Embora isto não pudesse razoavelmente ser atribuído à
república, os temores supersticiosos de Pereira se confirmaram, enegreceram
mais. E, tendo o câmbio vindo abaixo, as mercadorias simularam valor desmedido,
o salário no eito subiu a duas patacas. Tudo se desconchavou. Produtos
considerados inúteis surgiram com etiqueta e preço: mamona, caroço de algodão,
o mulato claro feito promotor, na democracia. Nessa trapalhada, Pereira
resmungava, sufocando a indignação, estragando o respeito que a autoridade e o
saber lhe impunham:
— Ah, negro!,
Ah, chicote! Não foi para isso que a princesa derrubou as senzalas.
O nobre furor
passava despercebido, como se fosse expresso em língua estranha. Em compensação
Pereira não entendia muitas das palavras que agora circulavam, fórmulas que se
transformavam em chavões relativamente insensatos.
— Ah, negro!
Assim resumia
por fim, rangendo os dentes, o seu imenso desgosto.
A princípio
depositara alguma esperança em Antônio Conselheiro. Desiludido, alimentara-se
de recordações, achando que em redor tudo se deslocava com demasiada pressa.
Que razão tinha aquela infeliz cambada para assanhar-se tanto?
Pereira
conservava religiosamente a sua velha sobrecasaca, a sisudez, o orgulho, as
barbas enormes, preciosas, semelhantes às do Imperador. De fato não eram
preciosas, mas o dono as cultivava, falava com tristeza do tempo em que um
homem dava ao credor alguns cabelos — e isto equivalia a extensos compromissos
cheios de formalidades, na lei e no selo. Pereira não gostava de assinar letras
miseráveis, invenção de judeus gananciosos e desconfiados. Não gostava de
assinar coisa nenhuma, porque a sua palavra tinha mais importância que as
garatujas e porque os seus dedos emperrados seguravam a custa a caneta,
rasgavam e borravam o papel.
Entendia-se
com os amigos distantes por meio de recados. Nas eleições, gastava cinco
minutos desenhando o nome em grossas curvas que ocupavam três linhas.
Desprezava a habilidade dos tabeliães, gente inferior e maliciosa. E conservava
as filhas prudentemente analfabetas, para não mandarem bilhetes aos namorados.
Esse vivente rijo e imóvel, tão rijo e tão imóvel como os esteios da casa-grande, que principiavam a bichar, teve um fim lastimável. Precisou mexer-se, desejou transplantar-se, mas estava seco e não criou raízes. Acabou mal, como se verá, talvez, depois. E os seus descendentes acabaram também no caruncho e na miséria.
Rio de Janeiro, setembro de
1942.
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.
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