12/29/2023

A decadência de um senhor de engenho (Crônica), por Graciliano Ramos


A DECADÊNCIA DE UM SENHOR DE ENGENHO

Era senhor de engenho, assoldadava cabroeira, dispunha de crédito e se deixava esfolar regularmente pelos fornecedores, porque tinha alma simples e acreditava demais na palavra alheia. Em consequência a propriedade encolheu, mas ainda ficou terra bastante para conservar-se a tradição da família, com honra integral, enquanto o patriarca viveu nos canaviais e na cidade. Quando entrou no sertão, veio o desmoronamento. A Divina Providência teve compaixão dele: fechou-lhe os olhos antes que a desgraça completa se realizasse.

Foi no começo do século. Joaquim Pereira, dono do Ingá, e por isso chamado Pereira do Ingá, dedicava-se à política, desinteressado e por teimosia. Confiou nas promessas dum bacharel, deputado viscoso que transigiu com o governo e se juntou à cadeira, fixou residência no Rio, largando os amigos municipais em situação difícil.

Pereira do Ingá figurava entre os amigos mais notáveis. Permaneceu na fidelidade porque seu pai e seu avô tinham sido fiéis ao pai e ao avô do bacharel na monarquia. Petrificado nessa posição hereditária, teve capangas presos e capangas assassinados na tocaia, gemeu sob o imposto — e repeliu, digno, várias tentativas de conciliação com o partido dominante. Debalde lhe mostraram que a firmeza era sacrifício inútil, pois o chefe se acomodava perfeitamente na capital, indiferente aos eleitores, repousando no acordo que lhe garantia os votos necessários para manter-se na oposição.

— Não se trata disso, replicava Joaquim Pereira do Ingá, estremecendo como se uma broca de dentista lhe tocasse nervo exposto. O que há é que me meti num caminho e vou andando, vou andando, até bater com a cabeça na parede e fazer um calombo na testa. Não me viro. Quanto ao procedimento do doutor, isso é lá com ele. Cada qual como Deus o fez, que a gente não é rapadura, para sair tudo igual. Enfim são coisas da república.

Nesse desabafo meio intempestivo encerrava a pendenga, deixando os circunstantes confusos. E era conveniente a mudança de assunto. Se algum funcionário, por dever do ofício, tomava o pião na unha, Pereira se exaltava. Porque se haviam operado no lugar numerosas transformações depois de 89 e ele abominava as transformações. Torcera o nariz à propaganda: os objetos e as ideias não se tornariam melhores que os existentes, pois isto era impossível. Nem o madeiramento da casa-grande iria fortalecer-se nem a paga dos moradores se atenuaria. Na verdade receava exigências do pessoal miúdo e cupim nos caibros.

Ora, no regime novo, a casa, onde algumas gerações tinham vivido e morrido, apresentou sintomas de desagregação. Embora isto não pudesse razoavelmente ser atribuído à república, os temores supersticiosos de Pereira se confirmaram, enegreceram mais. E, tendo o câmbio vindo abaixo, as mercadorias simularam valor desmedido, o salário no eito subiu a duas patacas. Tudo se desconchavou. Produtos considerados inúteis surgiram com etiqueta e preço: mamona, caroço de algodão, o mulato claro feito promotor, na democracia. Nessa trapalhada, Pereira resmungava, sufocando a indignação, estragando o respeito que a autoridade e o saber lhe impunham:

— Ah, negro!, Ah, chicote! Não foi para isso que a princesa derrubou as senzalas.

O nobre furor passava despercebido, como se fosse expresso em língua estranha. Em compensação Pereira não entendia muitas das palavras que agora circulavam, fórmulas que se transformavam em chavões relativamente insensatos.

— Ah, negro!

Assim resumia por fim, rangendo os dentes, o seu imenso desgosto.

A princípio depositara alguma esperança em Antônio Conselheiro. Desiludido, alimentara-se de recordações, achando que em redor tudo se deslocava com demasiada pressa. Que razão tinha aquela infeliz cambada para assanhar-se tanto?

Pereira conservava religiosamente a sua velha sobrecasaca, a sisudez, o orgulho, as barbas enormes, preciosas, semelhantes às do Imperador. De fato não eram preciosas, mas o dono as cultivava, falava com tristeza do tempo em que um homem dava ao credor alguns cabelos — e isto equivalia a extensos compromissos cheios de formalidades, na lei e no selo. Pereira não gostava de assinar letras miseráveis, invenção de judeus gananciosos e desconfiados. Não gostava de assinar coisa nenhuma, porque a sua palavra tinha mais importância que as garatujas e porque os seus dedos emperrados seguravam a custa a caneta, rasgavam e borravam o papel.

Entendia-se com os amigos distantes por meio de recados. Nas eleições, gastava cinco minutos desenhando o nome em grossas curvas que ocupavam três linhas. Desprezava a habilidade dos tabeliães, gente inferior e maliciosa. E conservava as filhas prudentemente analfabetas, para não mandarem bilhetes aos namorados.

Esse vivente rijo e imóvel, tão rijo e tão imóvel como os esteios da casa-grande, que principiavam a bichar, teve um fim lastimável. Precisou mexer-se, desejou transplantar-se, mas estava seco e não criou raízes. Acabou mal, como se verá, talvez, depois. E os seus descendentes acabaram também no caruncho e na miséria. 


Rio de Janeiro, setembro de 1942.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.

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