12/29/2023

“Está aberta a sessão do júri” (Crônica), de Graciliano Ramos


“ESTÁ ABERTA A SESSÃO DO JÚRI”

O dr. França, juiz de Direito numa cidadezinha sertaneja, andava em meio século, tinha gravidade imensa, verbo escasso, bigodes, colarinhos, sapatos e ideias de pontas muito finas. Vestia-se ordinariamente de preto, exigia que todos na justiça procedessem da mesma forma — e chegou a mandar retirar-se do Tribunal um jurado inconveniente, de roupa clara, ordenar-lhe que voltasse razoável e fúnebre, para não prejudicar a decência do veredicto.

Não via, não sorria. Quando parava numa esquina, as cavaqueiras dos vadios gelavam. Ao afastar-se, mexia as pernas matematicamente, os passos mediam setenta centímetros, exatos, apesar de barrocas e degraus. A espinha não se curvava, embora descesse ladeiras, as mãos e os braços executavam os movimentos indispensáveis, as duas rugas horizontais da testa não se aprofundavam nem se desfaziam.

Na sua biblioteca digna e sábia, volumes bojudos, tratados majestosos, severos na encadernação negra semelhante à do proprietário, empertigavam-se — e nenhum ousava deitar-se, inclinar-se, quebrar o alinhamento rigoroso.

Dr. França levantava-se às sete horas e recolhia-se à meia-noite, fizesse frio ou calor, almoçava ao meio-dia e jantava às cinco, ouvia missa aos domingos, comungava de seis em seis meses, pagava o aluguel da casa no dia 30 ou no dia 31, entendia-se com a mulher, parcimonioso, na linguagem usada nas sentenças, linguagem arrevesada e arcaica das ordenações. Nunca julgou oportuno modificar esses hábitos salutares.

Não amou nem odiou. Contudo exaltou a virtude, emanação das existências calmas, e condenou o crime, infeliz consequência da paixão.

Se atentássemos nas palavras emitidas por via oral, poderíamos afirmar que o dr. França não pensava. Vistos os autos etc., perceberíamos entretanto que ele pensava com alguma frequência. Apenas o pensamento de dr. França não seguia a marcha dos pensamentos comuns. Operava, se não nos enganamos, deste modo: “considerando isto, considerando isso, considerando aquilo, considerando ainda mais isto, considerando porém aquilo, concluo”. Tudo se formulava em obediência às regras — e era impossível qualquer desvio.

Dr. França possuía um espírito, sem dúvida, espírito redigido com circunlóquios, dividido em capítulos, títulos, artigos e parágrafos. E o que se distanciava desses parágrafos, artigos, títulos e capítulos não o comovia, porque dr. França estava livre dos tormentos da imaginação.

* * * 

Pé-de-Molambo, oficial de justiça, era uma criatura arrasada. Tinham-lhe posto no batismo outra designação, que se juntara ao nome da família e emprestara ao homem um pouco de valia. Mas com o correr do tempo isso foi esmorecendo. O pequeno funcionário adoeceu, arriou, amarelou — e no fim da vida nasceram-lhe nas patas copiosas perebas que se estenderam e avultaram, abriram sulcos na pele, corromperam a carne, supuraram, sangraram, impossibilitaram o uso do calçado. Entraparam-se as duas chagas, dos dedos aos tornozelos. Pé-de-Molambo.

Se o velho tivesse guardado silêncio, a alcunha escorregaria nele sem deixar mossa. Ofendeu-se, respondeu com desaforos e, em consequência, as pilhérias tomaram feição agressiva, saíram do bilhar, da farmácia e da barbearia, desceram à rua, transmitiram-se à molecoreba.

— Pé-de-Molambo!

A condição econômica do oficial da justiça era ruim, os filhos pesavam-lhe demais no orçamento, as camisas esfiapavam-se, a comida minguava — e isto o reduzia muito no conceito público.

— Pé-de-Molambo!

O latido contrafeito se esganiçava por detrás de uma janela. O desgraçado examinava os arredores, tentava inutilmente localizar a injúria, xingava com desespero os ascendentes de um sujeito invisível e desconhecido.

— Pé-de-Molambo!

Outras vozes se erguiam. A vítima aturdida virava-se para a direita, para a esquerda, não achava no vocabulário canalha expressões suficientemente obscenas para desafrontar-se. Foi declinando e perdeu os últimos vestígios de compostura. Afinal já não tinham a precaução de ocultar-se para molestá-la: os garotos berravam-lhe o insulto e safavam-se, iam gozar de longe a zanga excessiva.

— Pé-de-Molambo!

Os olhos biliosos enchiam-se de raiva e lágrimas, o rosto enxofrado coloria-se de manchas vermelhas, a boca mole e desguarnecida espumava, o corpo alquebrado inchava como um peru, ameaçava rebentar as costuras da roupa suja e esgarçada, arrastava, bambo e trôpego, os dois chumaços escuros e sanguinolentos. Tremores agitavam aquela ruína, sacudiam as bambinelas do pescoço magro, os cabelos grisalhos que enfeitavam a pobre velhice desmoralizada. 

* * *

Um dia, à porta da prefeitura, Pé-de-Molambo, no exercício das suas funções, repenicando a sineta, esbaforia-se num pregão fanhoso:

— Está aberta a sessão do júri.

A sala se povoava. Agentes da lei perfilavam-se, armados. O réu sucumbia no tamborete. Dr. França fiscalizava o promotor, o advogado, o escrivão, os juízes de Fato.

Está aberta a sessão do júri, gemia o oficial de justiça na calçada, movendo a sineta. Quando se manifestava pela terceira vez, o desastre se deu.

— Está aberta a sessão...

— Pé-de-Molambo! gritou perto um moleque sem-vergonha. Pé-de-Molambo despiu-se de responsabilidades, retirou do

anúncio o nome da instituição admirável, substituiu-o pelo de uma pessoa ausente, do sexo feminino, que foi rudemente insultada:

— A sessão da...

Uma praga horrível estragou a cerimônia.

 

Rio de Janeiro, março de 1943.

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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.

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