12/27/2023

A prisão de J. Carmo Gomes (Conto), de Graciliano Ramos -


A PRISÃO DE J. CARMO GOMES

Na pequena casa do Meyer, à rua Castro Alves, d. Aurora Gomes, filha do major Carmo Gomes, hoje defunto, soltou o jornal desanimada, com um aperto na garganta, procurando ar, o diafragma contraído. Os intestinos remexeram-se, d. Aurora deu uns passos no corredor e dirigiu-se à sala de jantar. Aí, debelado o tumulto das tripas, normalizada a respiração, encostou os cotovelos à janela, enxergou à direita o fundo da igreja, à esquerda o telhado baixo do núcleo integralista e a ponta de um mastro onde às vezes se balançava a bandeira nacional. Era domingo. A igreja devia estar aberta àquela hora, mas a bandeira não se agitava em frente dela.

D. Aurora pensou no jornal abandonado minutos antes, uma angústia apertou-lhe novamente o coração e outras vísceras. Encaminhou-se ao banheiro, fechou-se. E a casa do Meyer, a casa que o major Gomes adquirira em longos anos pacientes e arrastados, ficou deserta, para bem dizer ficou deserta, apenas com duas criaturas: o canário e o gato. O canário molhava-se no bebedouro da gaiola, o gato cochilava em cima de uma cadeira — e as talas que os separavam permitiam entre eles uma espécie de cordialidade.

Entre d. Aurora e o irmão é que não havia cordialidade. Por isso um tinha sido comido.

Repiques de sinos, o pregão de um vendedor ambulante, a asma do gato, o banho ruidoso do canário, conversas indistintas na vizinhança, som de líquido a ferver na cozinha. Depois água a derramar-se e a porta do banheiro a abrir-se.

D. Aurora entrou na sala de jantar, enxugando as mãos nos cabelos, pisando macio, movendo os beiços pálidos. Sentou-se à mesa, friorenta, tentou aquecer-se na faixa de sol que vinha da janela. Meteu os dedos úmidos no pelo do gato, espiou a folhagem da roseira e o muro do quintal. Ergueu-se cambaleando, quis ver o que havia lá fora, recuou temerosa. A igreja era velha e firme, naturalmente, mas o edifício fronteiro começava a arruinar-se, com certeza começava a arruinar-se, e os frequentadores dele viviam por à toa, escondidos, como ratos em tocas.

O badalar dos sinos animou-a debilmente. Outras pessoas iam agora à missa, rezar por ela: as filhas do sargento, a professora vesga, a mulher do funcionário da polícia, o caixeiro míope, os dois estudantes de cabelos escorridos, o instrutor do tiro. Consideradas em conjunto, de longe, essas figuras lhe pareciam capazes de sacrifício e heroísmo; isoladas, surgiam mesquinhas e egoístas. O caixeiro e as moças do sargento só se ocupavam com os seus negócios. Teriam os estudantes de cabelos escorridos aquele horrível costume que lhes atribuíam? D. Aurora sacudiu a cabeça e afastou o juízo temerário. Para que estar catando defeitos no próximo? Eram todos irmãos. Irmãos. Estremeceu com uma recordação desagradável, que logo se apagou, olhou a igreja, refugiou-se ali um instante. Virou-se para o outro lado, avistou o mastro sem bandeira, as portas fechadas do núcleo integralista. A vaga sensação de segurança que tinha experimentado vendo a igreja esmoreceu.

— Ai, ai.

Suspirou, achou-se abandonada, sozinha, miúda como um rato, exposta a inimigos numerosos. As notícias do jornal voltaram-lhe ao espírito: gente oculta, casas varejadas, documentos apreendidos, fugas, uma trapalhada, santo Deus. Listas, listas que enchiam colunas. Torceu as mãos, recolheu-se precipitadamente, com a ideia de que a espionavam dos quintais vizinhos.

Acariciou o gato, consolou-se um pouco afirmando interiormente que tinha muitos amigos, uma legião de amigos. Ignorava o sentido exato de legião, mas, depois de escutar o discurso de um chefe, guardara a palavra, que parecia significar número e força. Legião de amigos. Confiava nas coisas indeterminadas. A confiança pouco a pouco minguou, a fortaleza e a quantidade reduziram-se, a legião distante se desagregou — e em lugar dela ficaram os dois rapazes de cabelos escorridos, o míope, o instrutor, as filhas do sargento, a professora vesga e a mulher do funcionário da polícia. Achou-se perto dessas pessoas e enfraqueceu: evidentemente nenhuma delas poderia ajudá-la. A suposição de que a companhia boa na véspera se tornara inconveniente andou-lhe na cabeça, localizou-se, permaneceu ali, esgaravatando-lhe os miolos.

Foi procurar um objeto no quarto, parou irresoluta diante do guarda-vestidos, viu-se no espelho, branca e agitada. Se alguém a descobrisse, perceber-lhe-ia facilmente a consternação. Deu umas passadas trêmulas, cerrou a porta, encostou-se à cabeceira da cama, enxugou na coberta os dedos suados. Aproximou-se novamente do guarda-vestidos, estacou indecisa:

—  Onde estou com a cabeça?

Coçou a testa, o queixo, atenta aos rumores da rua. Provavelmente discutiam na cidade o enorme desastre. E, cedo ou tarde, viriam chamá-la, arrastá-la, deixá-la muitos dias sentada numa cadeira, malcomida e maldormida, ouvindo provocações. Engulhou, as pernas fraquejaram. Venceu a tonteira, esfregou as pálpebras e respirou profundamente.

Com um sobressalto, recordou-se do que tinha ido fazer. Abriu o móvel, retirou de um gancho o uniforme. O coração engrossou, os olhos encheram-se de lágrimas. Numa espessa névoa, a saia branca tornou-se quase invisível, a blusa verde apareceu desbotada, o sigma negro da manga deformou-se. Engoliu o choro, reprimiu a comoção, estendeu a roupa em cima da cama, afagou-a com os dedos e com a vista. De repente alarmou-se: cometia uma falta. Se entrassem na casa sem pedir licença e empurrassem a porta do quarto, surpreendê-la-iam tocando naqueles despojos comprometedores. Arrumou-os, empacotou-os numa toalha, escondeu-os na gaveta inferior da cômoda, sob colchas e fronhas. Em seguida trancou a gaveta e guardou a chave no seio.

Momentaneamente liberta da opressão, retirou-se do quarto, esgueirou-se pelo corredor, entrou na sala, acercou-se da janela, descerrou devagarinho a rótula.

              Tudo bem escondido.

Perturbada como estava, não poderia dizer se se referia aos chefes da insurreição ou à blusa e à saia que enrolara na toalha e metera na gaveta da cômoda.

Avistou os estudantes lisos, assustou-se. Ia recuar, mas deteve-se envergonhada: renegar os companheiros assim era covardia. Virou-se e desejou não ser vista. Um minuto depois, mordida pela curiosidade, envesgou um rabo de olho, percebeu os rapazes ali perto, de costas para ela, dobrando a esquina. Indignou-se. Aqueles descarados pretendiam evitá-la. Indecência. Onde estava a solidariedade? Velhacos. Fingindo-se inocentes, receando cumprimentá-la, como se ela tivesse uma doença contagiosa. Pois não eram inocentes não. Tremeu pensando nos interrogatórios. Medonhos, não havia meio de se guardar um segredo. Se a inquirissem brutalmente, se a atormentassem, como havia de ser? Na verdade sabia pouco, mas teria força para conservar-se calada?

O funcionário da polícia, amigo, passou na calçada fronteira, proporcionou-lhe um choque, um sorriso vexado, uma inclinação de cabeça. Caso o funcionário tocasse no chapéu e viesse prosar com ela, d. Aurora se tranquilizaria completamente, exibiria firmeza, daria uma lição aos cretinos que lhe tinham virado o focinho e até poderia colher algumas novas da encrenca. Uma conversinha mole às vezes serve. Falaria ao sujeito naturalmente, como se não tivesse interesse, e recomendaria uns conhecidos que o jornal mencionava. Não, não recomendaria ninguém, seria imprudência.

Esses pedaços de resoluções contraditórias desfizeram-se num instante: o funcionário afastou-se coberto de sombras, e d. Aurora caiu na realidade, com um arrepio no espinhaço. Pegou-se à Virgem Maria, tentou justificar-se. Não entendia aquela trapalhada: assalto ao palácio presidencial, a quartéis, a residências particulares, tiros, brigas, mortes, um fim de mundo. Condenou os indivíduos responsáveis pela bagunça, uns criminosos. Tinha alguma coisa com eles? Não tinha. Queria uma revolução, ou antes quisera uma revolução. Agora não queria nada, mas na semana anterior ainda sonhava com um barulho diferente dos outros, um barulho dentro da ordem, sem risco. Certamente era preciso sangue. Em passeatas e em meetings algumas vezes se assanhara. Sangue, perfeitamente, sangue dos inimigos da pátria.

Aquele terrível desfecho não entrara nos planos de d. Aurora. Sentia-se traída: pelos desordeiros, que tinham espalhado nas ruas confusão e terror, e pelo governo, que teimava em conservar-se, não se demitia, ranzinza. E também se considerava um pouco traída pelos seus chefes, por não haverem previsto a desgraça e, em discursos, martelando o peito, berrarem com tanta energia que era difícil a gente não acreditar neles.

Fechou o postigo, entrou, mergulhou no sofá, desorientada. As molas da peça antiga protestaram rangendo levemente. Assustou-se. Não devia confiar em ninguém. Referia-se aos chefes, mas confundiu-os com os autores da subversão. Sacudiu- se, afirmou que estes últimos eram comunistas disfarçados em membros do partido, agentes de Moscou pagos para criar dissidência dentro.

O funcionário da polícia tinha passado sem fazer a saudação do costume. Certamente a mulher estava encalacrada e ele precisava salvá-la: ia tornar-se rigoroso, rigoroso em demasia com os outros. Assim, desviaria suspeitas. D. Aurora refletiu com mágoa nessas intransigências repentinas, na malícia e na fraqueza de amigos que desertam em horas de aperto. Mas o pesar misturou-se com admiração e temor. Um estranho respeito amolecia-a, jogava-a, perplexa, aos sujeitos hábeis que escolhem a posição conveniente, a palavra exata, a hora de bater palmas. Ela, coitada, entregara-se antes do tempo. E lamentava não poder explicar-se, gritar que reprovava aquele desconchavo e respeitava a autoridade.

Pôs-se a fazer um longo exame de consciência, mergulhou no passado, lembrou-se do major Carmo Gomes, gordinho, baixinho, terrivelmente conservador, desgostoso do filho, que não arranjava profissão decente e lia brochuras subversivas. Para consertar esse filho degenerado, o major esgotara todas as razões conhecidas, e, incapaz de levá-lo ao bom caminho, recorrera às ameaças:

— Tu acabas na cadeia, José.

O rapaz ouvia sem discutir e continuava agarrado aos folhetos. Não encontrando resistência, o velho excitava-se, monologava, soprava, afinal explodia:

—  Tu acabas na cadeia, José.

Tanto repetira a frase que d. Aurora se convencera de que o fim do irmão seria realmente a cadeia.

O major sucumbira em poucos minutos. Estivera a desatinar sobre um romance de foice e martelo, atacara rijamente essa literatura execranda, sentira-se mal, recolhera-se — e o aneurisma rebentara de chofre. D. Aurora, nos chiliques do enterro, juntara soluços, fragmentos de orações e objurgatórias incongruentes ao irmão, quase um parricida.

— Que será de mim, santo Deus? choramigava sem cessar.

Esse brado egoísta não tinha cabimento: d. Aurora ficava com algumas economias, a casa do Meyer, o soldo e o montepio do finado. José começava a ganhar dinheiro nos jornais, de ordinário comia fora, não dava incômodo. E quando aparecia na rua Castro Alves, passava semanas batendo na máquina, folheando os livros excomungados e rasgando papéis.

D. Aurora desconfiava desse trabalho misterioso e aborrecia o irmão por ele ser pálido e encolhido, falar baixo e pouco, ou largar tiradas incompreensíveis que a deixavam de boca aberta. Nesses instantes de comunicabilidade a fraqueza do rapaz se desvanecia, e d. Aurora tinha a impressão de que ele a enganava fingindo-se amarelo e achacado.

De repente estalara a revolução de 30. E, mal recomposta, de luto ainda, a moça quase endoidecera. Imaginava bombardeios aéreos, tremia como um pinto molhado, não sossegava, não dormia. Desgraças nasciam-lhe no espírito, obscuras, terríveis, tomavam formas esquisitas e concentravam-se no Meyer. O grito de um carroceiro avisara-a de que iam derrubar as igrejas. D. Aurora entrava em igrejas por hábito, como noutros lugares, mas estava apavorada — e as igrejas pareceram-lhe de supetão asilos sagrados. A professora vesga cochichara uns boatos concernentes a roubos e violações. D. Aurora procurava debalde um canto para se esconder. Admitia que lhe arrebatassem os haveres, mas o atentado contra a sua pureza resistente era demais.

Lembrava-se da história do Brasil. A professora não era vesga, era fanhosa. — “Quem foi o primeiro governador-geral?” Quantas mudanças depois desse primeiro governador-geral! As estampas representavam índios monstruosos, nus, de beiços furados. Os revolucionários não se distinguiam bem deles: saqueavam, queimavam, destruíam. E d. Aurora passava noites horríveis. Num jejum prolongado, sentia a cabeça rodar, rodar, o pescoço transformar-se num parafuso. As paredes do quarto desmoronavam-se lentamente, selvagens nus iam dançar e fazer caretas em torno da sua cama. Caíam-lhe depois em cima do corpo, machucavam-na, arranhavam-na, rasgavam-na. Ela soltava gritos em vão e no dia seguinte erguia-se a custo, os olhos arregalados cheios das visões do pesadelo. As mãos trêmulas comprimiam a barriga, os beiços lívidos mexiam-se balbuciando.

               “Quem foi o primeiro governador-geral?” Tentava encher o espaço que a separava desse primeiro governador-geral, mas havia uma escuridão, uma amálgama de fatos nunca percebidos convenientemente e agora obliterados. Esforçava-se por se recordar de outras revoluções. O medo não lhe permitia relacionar as ideias. Precisava fugir, não sabia para onde. Um dia trancara a porta, largara-se à toa, em busca de um refúgio. O irmão fora encontrá-la muito longe de casa, quase a chorar. E ela se deixara conduzir passivamente. Ouvia conselhos, sentia uns dedos lhe sacudirem o braço, e não escutava nada nem opunha resistência.

Desde esse momento, enervada, ficava horas quieta, os cabelos em desalinho, os dentes sujos, indiferente a tudo, como se já não fosse deste mundo, esperando resignada o martírio, desejando até que ele viesse logo e aquilo findasse. Na sua alma acabrunhada operava-se uma reviravolta: agora xingava o governo. Se se entregasse o poder aos revolucionários, eles não teriam motivo para zanga e talvez usassem generosidade.

No abandono e na inconsciência, enrugada e envelhecida, percebera a vitória da sublevação. Dificilmente emergira do torpor, readquirira pouco a pouco a integridade, mas conservara uma inquietação, o receio de que novas tempestades se armavam, raiva a inimigos invisíveis que lhe haviam causado tanto susto.

Tempo depois a professora vesga lhe fizera uma visita e estivera duas horas a admirar-lhe a casa, o quintal, a mobília, o retrato do major Gomes, exposto na sala, junto ao Coração de Jesus. D. Aurora recebera o inventário dessas vantagens com um sorriso modesto e a alegria de quem se considera invejado. Tinha onde encostar os ossos, não importunava ninguém.

— Pois não é? tornara a professora. Independência.

Ela não gozava independência. Humilhava-se ao ponto e ao senhorio, mas respeitava a independência alheia. Afinal a casa não caíra do céu por descuido: fora construída pelo major. D. Aurora escutava assombrada e a outra continuava a embaraçá- la:

— Cá para mim acho isso um roubo. Eles prometem farmácia, médico e a educação dos meninos. Mas a senhora não está doente nem tem filhos. É razoável que lhe tomem a casa? Não é.

D. Aurora, atrapalhadamente, defendera os seus direitos mais ou menos assim:

— D. Júlia, penso que a senhora está equivocada. Não temos questão com pessoa nenhuma, graças a Deus. Os nossos papéis estão em regra, todos os impostos pagos na prefeitura. A casa é nossa, minha e de meu irmão José.

              Seu irmão...

D. Júlia franzira um sorriso azedo. E d. Aurora, com a pulga atrás da orelha:

— Diga, d. Júlia...

A professora vesga batera nos beiços e eximira-se de avançar qualquer palavra que originasse discórdia na família.

  Estamos numa época terrível, d. Aurora.

— É exato. A senhora sabe alguma coisa? Essa história da casa? Como é isso?

D. Júlia generalizara a dificuldade: não se tratava especialmente da casa do Meyer, mas de todas as casas que eles pretendiam invadir.

— Eles quem, d. Júlia?

— Os comunistas. Se essa cambada subisse, a senhora iria trabalhar numa fábrica e calçar tamancos.

              Ora essa! murmurara a filha do major, desanuviada. Quando a senhora me falou daquele jeito, assustei-me. Não sobe não. Deus é grande.

— Está bem, está bem.

E a visita se despedira com frases vagas, entre elas algumas que o major costumava empregar nas suas investidas aos hábitos perniciosos do filho.

— É isso mesmo, d. Júlia. O mundo está virado.

Suicídios, fome, devastação. D. Aurora, esquecida de que esses horrores lhe haviam sido agourados inutilmente em 1930, voltara a receá-los — e caíra na sacristia, encomendara-se aos santos, pedira a Nossa Senhora que estabelecesse um cordão sanitário em redor do Brasil. Tornara-se amiga íntima da professora e, conversa vai, conversa vem, tivera a notícia de que o cordão sanitário existia. O que era preciso era engrossá-lo.

— A senhora acredita que eles salvem a gente? exclamara meio incrédula. Não sei não. Até agora eu julgava isso uma brincadeira, uma espécie de carnaval.

— É o seu erro, d. Aurora. Abra os olhos. A senhora vive tão retirada... O futuro do Brasil é verde. Verde, a cor das nossas esperanças, a cor das nossas florestas.

— Como disse, d. Júlia?

A pregação inicial continha um trecho referente à concepção totalitária do universo — e d. Aurora se espantara, querendo saber se a vesga ficava naquilo ou ia expor coisas mais fáceis de entender. Inteirando-se de que havia creches, escolas, armas, dinheiro, tipos graúdos interessados no negócio, balançara a cabeça, concordando:

— Bem, isso é outra cantiga.

Vieram a encrenca do Rio Grande do Norte e o levante do 3º regimento. A imprensa derramara abundantes minúcias. E d. Aurora de repente se convertera. Pensando pouco, vendo inimigos em toda a parte e desejando ardentemente eliminá-los, aderira ao Sigma com fervor e intransigência. As notícias de prisões davam-lhe um sombrio contentamento.

— Vão-se os anéis, fiquem os dedos.

Seria bom que as cadeias se enchessem e abarrotassem, até não haver cá fora nenhuma semente ruim. E como as sementes ruins eram as que germinavam longe da plantação verde, d. Aurora achava natural o despovoamento do país. Antes isso que aceitar misturas perigosas e corrutoras. Apesar de muito corte e muito estrago, ainda sobrariam elementos sãos, que se multiplicariam. D. Aurora desejava uma nova humanidade, pensava nela com ternura, enquanto odiava furiosa adversários e neutros. Inadmissível qualquer neutralidade quando as forças do mal se desencadeavam, ameaçavam subverter noções de pedra e cal.

As ideias morais de d. Aurora se alteravam profundamente. Eram bons os indivíduos que se achavam perto dela, eram maus os que passavam de largo. Se alguém despia a camisa verde, perdia numerosas virtudes, e o que a vestia, embora fosse um malandro, purificava-se. Fora do Sigma não havia salvação. Duas espécies de homens: amigos e inimigos.

Na ânsia do proselitismo, esquecia os deveres domésticos; só lia as publicações de propaganda; gestos desrespeitosos, sorriso irônico ou erguer de ombros, davam-lhe fúrias tremendas.

Numa parada ouvira esta observação: “Quanta gente feia!” Examinando os companheiros mais próximos, notara sujeitos de cabeças miúdas, corcundas, moças amarelas de rostos inexpressivos, um aborto cabeludo que devia ter bem oitenta anos. Como supor que daquela carne fraca sairiam gerações fortes e belas? A instituição perfeita apresentava falhas a quem a via sem entusiasmo. E d. Aurora arrefecera, murchara, receara que a concepção totalitária e outras fórmulas não bastassem para debelar o anarquismo, o comunismo, a democracia, iniquidades indecisas que ela atrapalhava. Sentia esses malefícios imponderáveis em toda a parte: nos jornais, nas sessões de espiritismo, nas lojas maçônicas, nas fábricas, nas repartições, nas escolas, nos sambas dos morros, nas macumbas, em pedaços de conversas na rua. Para que lutar? Seria necessário suprimir todos os meios de contágio, e isto não era empreitada para uma d. Aurora da rua Castro Alves.

Passara dias incapaz de ação, imaginando a onda vermelha a crescer, a afogar tudo, a sujar tudo. Ia ser poluída por brutos. Fechava-se no quarto, deitava-se, estrangulando o choro. Bamba, a respiração curta, as asas do nariz palpitando, deixava-se ultrajar em pensamento. Coitadinha. Não ficaria na rua Castro Alves. Iam apoderar-se da casa, destruir a mobília, o Coração de Jesus, o retrato do major. E a filha do major rolaria à toa pela cidade, arriaria num canto de muro ou num vão de porta, rasgada e faminta, quase maluca, sufocada pela fumaça dos incêndios. Libertava-se com esforço desses desânimos, confessava-se culpada.

— Qualquer desfalecimento é uma traição, d. Aurora. Não acha?

—  É o que eu digo, d. Júlia. Se nós fraquejarmos, eles tomam fôlego e avançam. É não largar, eu sempre disse.

E d. Aurora cobrava alento, mergulhava nos telegramas, tentava perceber o que havia no mundo. Enrugava a testa, enjoada: negava qualquer relação entre os acontecimentos exteriores e os do Brasil.

— Estamos longe disso, graças a Deus.

Confiava na repressão, mas por fim o número de acusados chegara a inquietá-la.

— Ora vejam que miséria. Quem havia de supor? Tudo bichado.

Nesse ponto uma aflição lhe roera a alma: vivia ali com ela, respirando o mesmo ar e consumindo o montepio, um Carmo corrompido. Realmente não se comunicavam, quase se desconheciam, mas, quisessem ou não quisessem, eram Carmos, filhos do major e proprietários da casa do Meyer.

— Isto é a vergonha da família, segredava ao canário.

A família, remota e esfarelada, perdida no interior, servia para desabafos. José manchava os cabelos brancos dos avós. Que diabo escrevia ele, trancado no quarto? Ultimamente os jornais lhe pagavam as bobagens. A ideia de que aquilo se vendia aperreava a mulher. Habituara-se a julgar o irmão uma coisa inútil. A inutilidade começava a mexer-se, os papéis datilografados significavam dinheiro — e o julgamento se modificava. José dividia-se em duas partes: uma, encolhida e caseira, merecia desprezo; a outra, que se manifestava nas folhas, tornava-se perigosa. D. Aurora precisava combater uma delas. Lembrava-se da reticência de d. Júlia: — “Seu irmão...” E da profecia do major: — “Tu acabas na cadeia, José.” Tentava comover-se, achar a sentença demasiado severa, absolver o desgraçado. Talvez o pobre se corrigisse.

Esses bons propósitos esmoreciam. Impossível deixar criminosos em paz, até eles resolverem emendar-se. D. Aurora exprobrava-se, remoía sem descanso o valor dos que tinham recalcado sentimentos e largado em público a afirmação cruel e indispensável. Se cada um determinasse conservar em casa um foco de infecção, a que se reduziria o movimento?

Em casa. Lá vinha de novo a casa. Que interesse tinha José em entregá-la aos agentes de Moscou? Hem? Que interesse tinha? Se fosse toda dele, seria loucura, sem dúvida, mas enfim ninguém podia reclamar; oferecer, porém, de mão beijada, a parte dela, isto não: era safadeza, era ladroeira.

Na ausência do irmão, entrava-lhe no quarto, farejava-lhe os panos, revistava-lhe os bolsos e as gavetas. Barbaridades: livros em língua estrangeira, correspondência equívoca, uma resma de papel em branco.

— Ora vejam. Que patifarias não vão ser escritas neste papel!

Então lá fora não compreendiam que J. Carmo Gomes era um desordeiro? J. Carmo Gomes. Aquele idiota ganhava importância: J. Carmo Gomes parecia nome de gente. Dez anos atrás era apenas Zezinho. Em criança, tinha aguentado muito repelão, ouvido muito grito do pai e da irmã. Depois se refugiara no estudo. D. Aurora tentava lembrar-se com simpatia do Zezinho — e via em pensamento um boneco mal-amanhado e triste. Era mais velha que ele, nunca haviam brincado juntos. Agora Zezinho estava feito J. Carmo Gomes.

— “Tu acabas na cadeia, José.” Que rigor do major! Se ele não tivesse rogado essa praga ao filho, talvez o infeliz seguisse os bons exemplos.

O capitão França tinha gravados na cabeça, como num disco, todos os feitos do Paraguai; o capitão Barros admirava excessivamente Napoleão. Uma noite os dois se haviam pegado num debate violento sobre tática e estratégia, e o major, para acalmá-los, inculcara uma partida de xadrez. Movendo as peças, o capitão Barros soprava, teimando ainda, querendo que o França definisse estratégia.

Zezinho fechava o paletó, encolhia-se dentro dele como um cágado, fumava guardando o cigarro na mão em concha. Parecia um menino que fuma escondido. E se alguém lhe falava, estremecia, sorria vexado e dava respostas absurdas. O capitão Barros impacientava-se:

— Endireite o espinhaço, criatura. Meta-se na ginástica, aprume-se.

Zezinho não se aprumava e o major perdia as esperanças. “Tu acabas na cadeia, José.”

D. Aurora suspirava, esfregando as mãos. Nunca um pai devia dizer semelhante coisa. O resultado era que o rapaz se perdera. Provavelmente não fabricava bombas nem entrava em conflitos: ignorava química e faltava-lhe coragem. Na hora do barulho do 3º regimento estava em casa, dormindo. Não era, pois, combatente: era um desses indivíduos encarregados de semear mentiras e ferir costumes respeitáveis.

Por que seria que Zezinho se bandeava? Que a canalha mostrasse os dentes, vá lá; mas era bem duro ver um filho do major Carmo obedecer a ateus vagabundos. D. Aurora desejava explicar-lhe que ele estava demente, que não valia a pena sacrificar- se, perder a casa. Se os trabalhadores conquistassem o poder, Zezinho e idiotas como ele morreriam de fome ou seriam fuzilados. Agarrara essa opinião num comício e estava certa de sempre ter pensado assim.

D. Aurora se compadecia do irmão. Se ele tivesse escutado os conselhos do capitão Barros, seria um homem. Não atendera aos amigos, fora entregar-se a impostores que lhe exploravam a vaidade. Tirassem-lhe a vaidade, e J. Carmo Gomes se tornaria Zezinho, um menino tolo que não sabia servir-se das mãos, pisava nos buracos e necessitava castigo. Sem dúvida, necessitava castigo para se comportar direito, não se cortar nas facas que pegava, não correr para baixo dos automóveis.

Agora estava crescido — e conservava-se desazado e imprudente, buscando infelicidades. Com certeza o fuzilariam, se o comunismo levantasse a cabeça. Coitado. Grande, senhor do seu nariz, não tinha quem o defendesse, um pai que lhe puxasse as orelhas e lhe desse cascudos: — “Senta aí, cria juízo.” Trabalhava demais — e seria fuzilado quando não precisassem dele. J. Carmo Gomes, a irmã, o capitão França e o capitão Barros seriam fuzilados. E d. Aurora se condoía de todos. Então era regular deixar-se um louco em liberdade, queimando, matando? J. Carmo Gomes não queimava nem matava, mas vivia a elogiar incendiários e assassinos. Elogiava de boa-fé. Isto não lhe diminuía a culpa. Se ele tivesse má intenção, talvez uns restos de bondade lhe iluminassem a alma; certo de que procedia bem, não recuaria.

E d. Aurora se convencera de que o único meio de proteger o irmão seria guardá-lo a ferrolho e chave. Longos dias essa ideia lhe rondara o espírito. As razões de ordem econômica foram afastadas com indignação: intolerável pensar em dinheiro.

Era também verdade que ela gostava de Zezinho. Não tinham tido origem no mesmo ventre? Restava, pois, aquele motivo, a que d. Aurora se pegava com força, receosa de que ele se desfizesse. O moço ficaria bem na cadeia. Ausente do mundo e das publicações abomináveis, afugentaria pensamentos maus.

José devia ser preso. E deixavam-no solto, envenenando e envenenando-se. Por quê? Talvez o poupassem por ele ter uma irmã no Sigma. D. Aurora arreliava-se, queria gritar que recusava essa condescendência, envergonhava-se quando lhe falavam em pessoas de consideração detidas por suspeitas.

— Por que não de ser assim? balbuciava com entusiasmo frouxo. Por que encanar os pequenos?

Atrapalhava-se. Alguns olhares ambíguos pareciam-lhe censuras. — “Seu irmão...” D. Júlia deixara a frase incompleta, mas via-se perfeitamente que tinha o rapaz em má conta. Provavelmente andavam por aí a cochichar que d. Aurora, uma oportunista, vestira a camisa verde por manha, acendia uma vela a Deus e outra ao diabo. Ninguém acreditava na sinceridade dela. Uma oportunista. Quando a gangorra virasse e a gente da esquerda serrasse de cima, J. Carmo Gomes a defenderia. Era o que pensavam, certamente. E d. Aurora não tinha sossego. Dedicava-se ao partido, recebia tarefas pesadas, mas não estava satisfeita. Em todas as conversas percebia remoques. Badalava que não conhecia parentes, que não se responsabilizava por ninguém. Perturbada, os olhos baixos, procedia como quem se desculpa. Abria-se às vezes com d. Júlia, chegava quase a pedir-lhe que fizesse a delação. A professora ouvia-a com reserva, atenta, o nariz longo, os beiços finos apertados, as pálpebras caídas. D. Aurora notava-lhe nos modos uma reprovação contínua. E afastava-se, impelida para várias direções.

Levantara-se um dia branca, machucada, zonza, olheiras enormes, um embrulho no estômago. Vestindo-se lenta, esquecendo peças de roupa, temendo qualquer rumor, padecia muito. Necessário salvar o irmão. Saíra de casa e fora denunciá-lo à polícia.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.

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