Na pequena
casa do Meyer, à rua Castro Alves, d. Aurora Gomes, filha do major Carmo Gomes, hoje
defunto, soltou o jornal desanimada, com um aperto na garganta, procurando ar, o diafragma
contraído. Os intestinos remexeram-se, d. Aurora deu uns passos
no corredor e dirigiu-se à sala de jantar. Aí, debelado o tumulto das tripas,
normalizada a respiração, encostou os cotovelos
à janela, enxergou à direita o fundo da igreja, à esquerda o telhado baixo do
núcleo integralista e a ponta de um mastro
onde às vezes se balançava a bandeira nacional. Era domingo. A igreja devia
estar aberta àquela hora, mas a bandeira não se agitava em frente
dela.
D. Aurora pensou no jornal
abandonado minutos antes, uma angústia apertou-lhe novamente o coração e outras
vísceras. Encaminhou-se ao banheiro,
fechou-se. E a casa do Meyer, a casa que o major Gomes adquirira em longos anos
pacientes e arrastados, ficou
deserta, para bem dizer ficou deserta, apenas com duas criaturas: o canário e o
gato. O canário molhava-se no
bebedouro da gaiola, o gato cochilava em cima de uma cadeira — e as talas que
os separavam permitiam entre eles uma espécie de cordialidade.
Entre d. Aurora e o irmão
é que não havia cordialidade.
Por
isso um tinha sido comido.
Repiques de sinos, o pregão de um vendedor ambulante, a asma do gato, o
banho ruidoso do canário, conversas indistintas na vizinhança,
som
de líquido a ferver na cozinha. Depois água a derramar-se e a porta do banheiro
a
abrir-se.
D. Aurora
entrou na sala de jantar, enxugando as mãos nos cabelos, pisando macio, movendo
os beiços pálidos. Sentou-se à mesa, friorenta, tentou aquecer-se na
faixa de sol que vinha da janela. Meteu os dedos úmidos no pelo do gato, espiou
a folhagem da roseira e o muro do
quintal. Ergueu-se cambaleando, quis ver o que havia lá fora, recuou temerosa.
A igreja era velha e firme,
naturalmente, mas o edifício fronteiro começava a arruinar-se, com certeza
começava a arruinar-se, e os frequentadores dele viviam por aí à toa, escondidos, como ratos em tocas.
O badalar dos sinos animou-a
debilmente. Outras pessoas iam agora à missa, rezar por ela: as filhas do
sargento, a professora vesga, a
mulher do funcionário da polícia, o caixeiro míope, os dois estudantes de
cabelos escorridos, o instrutor do
tiro. Consideradas em conjunto, de longe, essas figuras lhe pareciam capazes de
sacrifício e heroísmo; isoladas, surgiam mesquinhas
e egoístas. O caixeiro e as moças do sargento só se ocupavam com os seus
negócios. Teriam os estudantes de cabelos
escorridos aquele horrível costume que lhes atribuíam? D. Aurora sacudiu a cabeça
e afastou o juízo temerário. Para que
estar catando defeitos no próximo? Eram todos irmãos. Irmãos. Estremeceu com
uma recordação desagradável, que logo se
apagou, olhou a igreja, refugiou-se ali um instante. Virou-se para o outro
lado, avistou o mastro sem bandeira, as portas
fechadas do núcleo
integralista. A vaga sensação de segurança que tinha experimentado vendo a igreja esmoreceu.
— Ai, ai.
Suspirou, achou-se abandonada,
sozinha, miúda como um rato, exposta a inimigos numerosos. As notícias do jornal voltaram-lhe ao espírito: gente oculta,
casas varejadas, documentos apreendidos, fugas, uma trapalhada, santo Deus.
Listas, listas que enchiam colunas.
Torceu as mãos, recolheu-se precipitadamente, com a ideia de que a espionavam
dos quintais vizinhos.
Acariciou o
gato, consolou-se um pouco afirmando interiormente que tinha muitos amigos, uma legião de amigos. Ignorava o sentido
exato de legião, mas, depois de
escutar o discurso de um chefe, guardara a palavra, que parecia significar
número e força. Legião de amigos. Confiava nas coisas indeterminadas. A confiança pouco a pouco
minguou, a fortaleza e a quantidade reduziram-se, a legião distante se
desagregou — e em lugar dela ficaram os dois rapazes de cabelos escorridos, o
míope, o instrutor, as filhas do
sargento, a professora vesga e a mulher do funcionário da polícia. Achou-se
perto dessas pessoas e enfraqueceu:
evidentemente nenhuma delas poderia ajudá-la. A suposição de que a companhia
boa na véspera se tornara inconveniente andou-lhe na cabeça, localizou-se, permaneceu ali, esgaravatando-lhe os miolos.
Foi procurar um objeto no quarto,
parou irresoluta diante do guarda-vestidos, viu-se no espelho, branca e
agitada. Se alguém a descobrisse,
perceber-lhe-ia facilmente a consternação. Deu umas passadas trêmulas, cerrou a
porta, encostou-se à cabeceira
da cama, enxugou na coberta
os dedos suados. Aproximou-se novamente
do guarda-vestidos, estacou
indecisa:
— Onde estou com a cabeça?
Coçou a
testa, o queixo, atenta aos rumores da rua. Provavelmente discutiam na cidade o enorme
desastre. E, cedo ou tarde,
viriam chamá-la, arrastá-la, deixá-la muitos dias sentada numa cadeira,
malcomida e maldormida, ouvindo provocações.
Engulhou, as pernas
fraquejaram. Venceu a tonteira, esfregou
as pálpebras e respirou profundamente.
Com um sobressalto, recordou-se do que tinha ido fazer. Abriu o móvel, retirou de um gancho o uniforme. O coração engrossou, os olhos encheram-se de lágrimas. Numa espessa névoa, a saia branca tornou-se quase invisível, a blusa verde apareceu desbotada, o sigma negro da manga deformou-se. Engoliu o choro, reprimiu a comoção, estendeu a roupa em cima da cama, afagou-a com os dedos e com a vista. De repente alarmou-se: cometia uma falta. Se entrassem na casa sem pedir licença e empurrassem a porta do quarto, surpreendê-la-iam tocando naqueles despojos comprometedores. Arrumou-os, empacotou-os numa toalha, escondeu-os na gaveta inferior da cômoda, sob colchas e fronhas. Em seguida trancou a gaveta e guardou a chave no seio.
Momentaneamente liberta da opressão,
retirou-se do quarto, esgueirou-se pelo corredor, entrou na sala, acercou-se da janela,
descerrou devagarinho a rótula.
—
Tudo bem escondido.
Perturbada como estava, não
poderia dizer se se referia aos chefes da insurreição ou à blusa e à saia que enrolara
na toalha e metera na gaveta
da cômoda.
Avistou os estudantes lisos,
assustou-se. Ia recuar, mas deteve-se envergonhada: renegar os companheiros
assim era covardia. Virou-se e desejou não ser vista. Um minuto depois, mordida
pela curiosidade, envesgou um rabo de olho, percebeu os
rapazes ali perto, de costas para ela, dobrando a esquina. Indignou-se. Aqueles
descarados pretendiam evitá-la. Indecência. Onde estava a solidariedade? Velhacos. Fingindo-se inocentes,
receando cumprimentá-la, como se ela tivesse uma doença contagiosa. Pois não eram inocentes não. Tremeu pensando nos
interrogatórios. Medonhos, não havia meio de se guardar um segredo.
Se a inquirissem brutalmente, se a atormentassem, como havia de ser? Na
verdade sabia pouco, mas teria força para conservar-se calada?
O funcionário da polícia, amigo,
passou na calçada fronteira, proporcionou-lhe um choque, um sorriso vexado, uma inclinação de cabeça. Caso o funcionário tocasse no chapéu e viesse prosar com ela, d. Aurora se tranquilizaria completamente, exibiria firmeza, daria uma
lição aos cretinos que lhe tinham virado o focinho e até poderia colher algumas novas da encrenca. Uma conversinha mole às
vezes serve. Falaria ao sujeito naturalmente, como se não tivesse interesse, e recomendaria uns conhecidos que o jornal mencionava. Não, não recomendaria ninguém, seria imprudência.
Esses pedaços de resoluções
contraditórias desfizeram-se num instante: o funcionário afastou-se coberto de
sombras, e d. Aurora caiu na
realidade, com um arrepio no espinhaço. Pegou-se à Virgem Maria, tentou
justificar-se. Não entendia aquela trapalhada:
assalto ao palácio presidencial, a quartéis, a residências particulares, tiros,
brigas, mortes, um fim de mundo. Condenou
os indivíduos responsáveis pela bagunça, uns criminosos. Tinha alguma coisa com
eles? Não tinha. Queria uma revolução,
ou antes quisera uma revolução. Agora não queria nada, mas na semana anterior
ainda sonhava com um barulho diferente dos outros, um barulho dentro da ordem, sem risco. Certamente
era preciso sangue. Em passeatas e em meetings algumas vezes se assanhara. Sangue,
perfeitamente, sangue dos inimigos da pátria.
Aquele
terrível desfecho não entrara nos planos de d. Aurora. Sentia-se traída: pelos
desordeiros, que tinham espalhado
nas ruas confusão e terror, e pelo
governo, que teimava em conservar-se, não se demitia, ranzinza. E também se
considerava um pouco traída pelos
seus chefes, por não haverem previsto a desgraça e, em discursos, martelando o
peito, berrarem com tanta energia que era difícil a gente não acreditar neles.
Fechou o postigo, entrou,
mergulhou no sofá, desorientada. As molas da peça antiga protestaram rangendo
levemente. Assustou-se. Não devia confiar em ninguém. Referia-se aos
chefes, mas confundiu-os com os autores da subversão. Sacudiu- se, afirmou que estes últimos eram
comunistas disfarçados em membros do partido, agentes de Moscou pagos para
criar dissidência lá dentro.
O funcionário da polícia tinha
passado sem fazer a saudação do costume. Certamente a mulher estava encalacrada
e ele precisava salvá-la: ia
tornar-se rigoroso, rigoroso em demasia com os outros. Assim, desviaria
suspeitas. D. Aurora refletiu com
mágoa nessas intransigências repentinas, na malícia e na fraqueza de amigos que
desertam em horas de aperto. Mas o pesar
misturou-se com admiração e temor. Um estranho respeito amolecia-a, jogava-a,
perplexa, aos sujeitos hábeis que escolhem
a posição conveniente, a palavra exata, a hora de bater palmas. Ela, coitada,
entregara-se antes do tempo. E lamentava não poder explicar-se, gritar que reprovava aquele desconchavo e respeitava a autoridade.
Pôs-se a fazer um longo exame de
consciência, mergulhou no passado, lembrou-se do major Carmo Gomes, gordinho, baixinho, terrivelmente conservador,
desgostoso do filho, que não arranjava profissão decente e lia brochuras
subversivas. Para consertar esse
filho degenerado, o major esgotara todas as razões conhecidas, e, incapaz de
levá-lo ao bom caminho, recorrera às ameaças:
— Tu acabas na cadeia, José.
O
rapaz ouvia sem discutir e continuava agarrado
aos folhetos. Não encontrando resistência, o velho excitava-se, monologava, soprava,
afinal explodia:
— Tu acabas na cadeia, José.
Tanto repetira a frase que d.
Aurora se convencera de que o
fim
do irmão seria realmente a cadeia.
O major sucumbira em poucos
minutos. Estivera a desatinar sobre um romance de foice e martelo, atacara
rijamente essa literatura execranda,
sentira-se mal, recolhera-se — e o aneurisma rebentara de chofre. D. Aurora,
nos chiliques do enterro, juntara soluços, fragmentos de orações e objurgatórias incongruentes ao
irmão, quase um parricida.
— Que será de mim, santo Deus? choramigava sem cessar.
Esse brado egoísta não tinha
cabimento: d. Aurora ficava com algumas economias, a casa do Meyer, o soldo e o
montepio do finado. José começava a
ganhar dinheiro nos jornais, de ordinário comia fora, não dava incômodo. E
quando aparecia na rua Castro Alves, passava
semanas batendo na máquina, folheando
os livros excomungados e rasgando papéis.
D. Aurora desconfiava desse trabalho
misterioso e aborrecia o irmão por ele ser pálido e encolhido, falar baixo e
pouco, ou largar tiradas
incompreensíveis que a deixavam de boca aberta. Nesses instantes de
comunicabilidade a fraqueza do rapaz se desvanecia, e d. Aurora
tinha a impressão de que ele a enganava
fingindo-se amarelo e achacado.
De repente estalara a revolução de 30. E, mal recomposta, de luto ainda, a moça quase endoidecera. Imaginava bombardeios aéreos, tremia como um pinto molhado,
não sossegava, não dormia. Desgraças
nasciam-lhe no espírito, obscuras, terríveis, tomavam formas esquisitas e
concentravam-se no Meyer. O grito de um carroceiro avisara-a de que iam
derrubar as igrejas. D. Aurora
entrava em igrejas por hábito, como noutros lugares, mas estava apavorada — e
as igrejas pareceram-lhe de supetão
asilos sagrados. A professora vesga cochichara uns boatos concernentes a roubos e violações. D. Aurora
procurava debalde um canto para se esconder. Admitia que lhe
arrebatassem os haveres, mas o atentado contra a sua pureza resistente era demais.
Lembrava-se da história do Brasil.
A professora não era vesga, era fanhosa. — “Quem foi o primeiro
governador-geral?” Quantas mudanças
depois desse primeiro governador-geral! As estampas representavam índios
monstruosos, nus, de beiços furados.
Os revolucionários não se distinguiam bem deles: saqueavam, queimavam,
destruíam. E d. Aurora passava noites horríveis. Num jejum prolongado, sentia a cabeça
rodar, rodar, o pescoço transformar-se num parafuso. As paredes do
quarto desmoronavam-se lentamente,
selvagens nus iam dançar e fazer caretas em torno da sua cama. Caíam-lhe depois
em cima do corpo, machucavam-na,
arranhavam-na, rasgavam-na. Ela soltava gritos em vão e no dia seguinte
erguia-se a custo, os olhos arregalados cheios das visões do pesadelo.
As mãos trêmulas comprimiam a barriga, os beiços lívidos
mexiam-se balbuciando.
—
“Quem
foi o primeiro governador-geral?” Tentava encher o espaço que a separava desse
primeiro governador-geral, mas aí havia uma escuridão, uma amálgama de fatos nunca
percebidos convenientemente e agora obliterados. Esforçava-se por se recordar de outras revoluções. O medo
não lhe permitia relacionar as ideias. Precisava fugir, não sabia para onde. Um
dia trancara
a porta, largara-se à toa, em busca
de um refúgio. O irmão fora encontrá-la muito longe de casa, quase a chorar. E
ela se deixara conduzir passivamente. Ouvia conselhos, sentia uns dedos
lhe sacudirem o braço, e não escutava nada nem opunha resistência.
Desde esse
momento, enervada, ficava horas quieta, os cabelos em desalinho, os dentes sujos,
indiferente a tudo, como se já
não fosse deste mundo, esperando resignada o martírio, desejando até que ele
viesse logo e aquilo findasse. Na sua alma acabrunhada
operava-se uma reviravolta: agora xingava o governo. Se se entregasse o poder
aos revolucionários, eles não teriam motivo para zanga e talvez usassem generosidade.
No abandono e na inconsciência,
enrugada e envelhecida, percebera a vitória da sublevação. Dificilmente
emergira do torpor, readquirira pouco
a pouco a integridade, mas conservara uma inquietação, o receio de que novas
tempestades se armavam, raiva a inimigos invisíveis que lhe haviam
causado tanto susto.
Tempo depois a professora vesga
lhe fizera uma visita e estivera duas horas a admirar-lhe a casa, o quintal, a
mobília, o retrato do major Gomes,
exposto na sala, junto ao Coração de Jesus. D. Aurora recebera o inventário
dessas vantagens com um sorriso modesto
e a alegria de quem se considera
invejado. Tinha onde encostar os ossos, não
importunava ninguém.
— Pois não é? tornara
a professora. Independência.
Ela não gozava independência.
Humilhava-se ao ponto e ao senhorio, mas respeitava a independência alheia.
Afinal a casa não caíra do céu por
descuido: fora construída pelo major. D. Aurora escutava assombrada e a outra
continuava a embaraçá- la:
— Cá
para mim acho isso um roubo. Eles prometem farmácia, médico e a educação dos
meninos. Mas a senhora não está doente
nem tem filhos. É razoável
que lhe tomem a casa? Não é.
D. Aurora, atrapalhadamente, defendera os seus direitos mais ou menos assim:
— D.
Júlia, penso que a senhora está equivocada. Não temos questão com pessoa
nenhuma, graças a Deus. Os nossos papéis estão em regra,
todos os impostos pagos na prefeitura.
A
casa é nossa,
minha e de meu irmão
José.
—
Seu irmão...
D. Júlia franzira um sorriso
azedo. E d. Aurora,
com
a pulga atrás da orelha:
— Diga,
d. Júlia...
A professora vesga batera nos beiços e eximira-se de avançar qualquer
palavra que originasse discórdia na família.
— Estamos numa época terrível, d. Aurora.
— É exato.
A senhora sabe alguma coisa? Essa história
da casa? Como é isso?
D. Júlia generalizara a dificuldade: não se tratava
especialmente da casa do Meyer,
mas de todas as casas
que eles pretendiam invadir.
— Eles quem, d. Júlia?
— Os comunistas. Se essa cambada
subisse, a senhora
iria trabalhar numa fábrica e calçar tamancos.
—
Ora
essa! murmurara a filha do major, desanuviada. Quando a senhora me falou
daquele jeito, assustei-me. Não sobe não. Deus é grande.
— Está bem, está bem.
E a visita se despedira com frases
vagas, entre elas algumas que o major costumava empregar nas suas investidas
aos hábitos perniciosos do filho.
— É isso mesmo, d. Júlia. O mundo está virado.
Suicídios, fome, devastação. D.
Aurora, esquecida de que esses horrores lhe haviam sido agourados inutilmente
em 1930, voltara a receá-los — e
caíra na sacristia, encomendara-se aos santos, pedira a Nossa Senhora que
estabelecesse um cordão sanitário em
redor do Brasil. Tornara-se amiga íntima da professora e, conversa vai,
conversa vem, tivera a notícia de que o cordão
sanitário existia. O que era preciso
era engrossá-lo.
— A
senhora acredita que eles salvem a gente? exclamara meio incrédula. Não sei
não. Até agora eu julgava isso uma brincadeira, uma espécie de carnaval.
— É o seu erro, d. Aurora. Abra os olhos. A senhora vive
tão retirada... O futuro do Brasil é verde.
Verde, a cor das nossas esperanças, a cor das nossas florestas.
— Como disse, d. Júlia?
A pregação inicial continha um
trecho referente à concepção totalitária do universo — e d. Aurora se
espantara, querendo saber se a vesga ficava naquilo
ou ia expor coisas mais fáceis de entender. Inteirando-se de que havia creches,
escolas, armas, dinheiro, tipos graúdos interessados no negócio, balançara
a cabeça, concordando:
— Bem, isso é outra cantiga.
Vieram a encrenca do Rio Grande do
Norte e o levante do 3º regimento. A imprensa derramara abundantes minúcias. E
d. Aurora de repente se convertera.
Pensando pouco, vendo inimigos em toda a parte e desejando ardentemente
eliminá-los, aderira ao Sigma com fervor e intransigência.
As notícias de prisões davam-lhe
um sombrio contentamento.
— Vão-se os anéis, fiquem os dedos.
Seria bom que as cadeias se
enchessem e abarrotassem, até não haver cá fora nenhuma semente ruim. E como as
sementes ruins eram as que
germinavam longe da plantação verde, d. Aurora achava natural o despovoamento
do país. Antes isso que aceitar
misturas perigosas e corrutoras. Apesar de muito corte e muito estrago, ainda
sobrariam elementos sãos, que se multiplicariam.
D. Aurora desejava uma nova humanidade, pensava nela com ternura, enquanto
odiava furiosa adversários e neutros.
Inadmissível qualquer neutralidade quando as forças do mal se desencadeavam,
ameaçavam subverter noções de pedra e cal.
As ideias
morais de d. Aurora se alteravam profundamente. Eram bons os indivíduos que se achavam
perto dela, eram maus os que
passavam de largo. Se alguém despia a camisa verde, perdia numerosas virtudes,
e o que a vestia, embora fosse um malandro, purificava-se. Fora do Sigma não havia salvação. Duas espécies de homens: amigos e inimigos.
Na ânsia do proselitismo, esquecia
os deveres domésticos; só lia as publicações de propaganda; gestos
desrespeitosos, sorriso irônico
ou erguer de ombros, davam-lhe fúrias tremendas.
Numa parada ouvira esta observação: — “Quanta gente feia!” Examinando os companheiros mais próximos, notara sujeitos de cabeças miúdas, corcundas, moças
amarelas de rostos inexpressivos, um aborto cabeludo que devia ter bem oitenta
anos. Como supor que daquela carne
fraca sairiam gerações fortes e belas? A instituição perfeita apresentava
falhas a quem a via sem entusiasmo. E
d. Aurora arrefecera, murchara, receara que a concepção totalitária e outras
fórmulas não bastassem para debelar o
anarquismo, o comunismo, a democracia, iniquidades indecisas que ela
atrapalhava. Sentia esses malefícios imponderáveis em toda a parte: nos jornais, nas
sessões de espiritismo, nas lojas maçônicas, nas fábricas, nas
repartições, nas escolas, nos sambas
dos morros, nas macumbas, em pedaços de conversas na rua. Para que lutar? Seria
necessário suprimir todos os meios de contágio, e isto não era empreitada para uma
d. Aurora da rua
Castro Alves.
Passara dias incapaz de ação,
imaginando a onda vermelha a crescer, a afogar tudo, a sujar tudo. Ia ser
poluída por brutos. Fechava-se no
quarto, deitava-se, estrangulando o choro. Bamba, a respiração curta, as asas
do nariz palpitando, deixava-se ultrajar
em pensamento. Coitadinha. Não ficaria na rua Castro Alves. Iam apoderar-se da
casa, destruir a mobília, o Coração de
Jesus, o retrato do major. E a filha do major rolaria à toa pela cidade,
arriaria num canto de muro ou num vão de porta, rasgada e faminta,
quase maluca, sufocada
pela fumaça dos incêndios. Libertava-se com esforço desses desânimos, confessava-se culpada.
— Qualquer desfalecimento é uma traição,
d. Aurora. Não acha?
— É o que eu digo,
d. Júlia.
Se
nós fraquejarmos, eles tomam fôlego e avançam.
É
não largar, eu sempre disse.
E d. Aurora cobrava alento, mergulhava nos
telegramas, tentava perceber o que havia no mundo. Enrugava a testa, enjoada:
negava qualquer relação entre os
acontecimentos exteriores e os do Brasil.
— Estamos longe disso, graças
a Deus.
Confiava na repressão, mas por fim o número
de
acusados chegara a inquietá-la.
— Ora vejam que miséria. Quem havia de supor? Tudo bichado.
Nesse ponto uma aflição lhe roera a alma: vivia ali com ela, respirando o mesmo ar e consumindo
o montepio, um Carmo
corrompido. Realmente não se comunicavam, quase se desconheciam, mas,
quisessem ou não quisessem, eram Carmos, filhos do major e proprietários da casa do Meyer.
— Isto é a vergonha
da família, segredava
ao canário.
A
família, remota e esfarelada, perdida
no interior, servia
para desabafos. José manchava os cabelos brancos
dos avós. Que diabo
escrevia ele, trancado no quarto? Ultimamente os jornais lhe pagavam as
bobagens. A ideia de que aquilo se vendia aperreava a mulher. Habituara-se a julgar o irmão uma coisa inútil. A inutilidade começava
a mexer-se, os papéis datilografados significavam dinheiro — e o
julgamento se modificava. José dividia-se em duas partes: uma, encolhida e caseira, merecia desprezo; a outra, que se
manifestava nas folhas, tornava-se perigosa. D. Aurora precisava combater uma delas. Lembrava-se da reticência de d.
Júlia: — “Seu irmão...” E da profecia do major: — “Tu acabas na cadeia, José.” Tentava comover-se, achar a sentença demasiado severa, absolver o desgraçado. Talvez
o pobre se corrigisse.
Esses bons propósitos esmoreciam.
Impossível deixar criminosos em paz, até eles resolverem emendar-se. D. Aurora exprobrava-se, remoía sem descanso o valor
dos que tinham recalcado sentimentos e largado em público a afirmação cruel e indispensável.
Se
cada um determinasse conservar em casa um foco
de
infecção, a que se reduziria
o movimento?
Em casa. Lá vinha de novo a casa.
Que interesse tinha José em entregá-la aos agentes de Moscou? Hem? Que
interesse tinha? Se fosse toda dele,
seria loucura, sem dúvida, mas enfim ninguém podia reclamar; oferecer, porém,
de mão beijada, a parte dela, isto não: era safadeza, era ladroeira.
Na ausência do irmão, entrava-lhe
no quarto, farejava-lhe os panos, revistava-lhe os bolsos e as gavetas.
Barbaridades: livros em língua estrangeira, correspondência equívoca, uma resma de papel em branco.
— Ora vejam.
Que patifarias não vão ser escritas neste papel!
Então lá fora não compreendiam que
J. Carmo Gomes era um desordeiro? J. Carmo Gomes. Aquele idiota ganhava importância: J. Carmo Gomes parecia nome
de gente. Dez anos atrás era apenas Zezinho. Em criança, tinha aguentado muito repelão, ouvido muito grito do pai e da
irmã. Depois se refugiara no estudo. D. Aurora tentava lembrar-se com simpatia
do Zezinho — e via em pensamento um
boneco mal-amanhado e triste. Era mais velha que ele, nunca haviam brincado
juntos. Agora Zezinho estava feito J. Carmo Gomes.
— “Tu
acabas na cadeia, José.” Que rigor do major! Se ele não tivesse rogado essa
praga ao filho, talvez o infeliz seguisse os bons exemplos.
O capitão França tinha gravados na
cabeça, como num disco, todos os feitos do Paraguai; o capitão Barros admirava excessivamente
Napoleão. Uma noite os dois se haviam pegado num debate violento sobre
tática e estratégia, e o major, para acalmá-los,
inculcara uma partida de xadrez. Movendo as peças, o capitão Barros soprava, teimando
ainda, querendo que o França
definisse estratégia.
Zezinho
fechava o paletó,
encolhia-se dentro dele como um cágado, fumava guardando o cigarro na mão em
concha. Parecia um menino que fuma escondido. E se
alguém lhe falava, estremecia, sorria vexado e dava respostas absurdas. O
capitão Barros impacientava-se:
— Endireite o espinhaço, criatura. Meta-se na ginástica, aprume-se.
Zezinho não se aprumava e o major
perdia as esperanças. — “Tu acabas na cadeia, José.”
D. Aurora suspirava, esfregando as
mãos. Nunca um pai devia dizer semelhante coisa. O resultado era que o rapaz se perdera.
Provavelmente não fabricava bombas nem entrava em conflitos: ignorava química e
faltava-lhe coragem. Na hora do barulho
do 3º regimento estava em casa, dormindo. Não era, pois, combatente: era um
desses indivíduos encarregados de semear mentiras
e ferir costumes respeitáveis.
Por que seria
que Zezinho se
bandeava? Que a canalha mostrasse os dentes, vá lá; mas era bem duro ver um
filho do major Carmo obedecer a ateus vagabundos. D.
Aurora desejava explicar-lhe que ele estava demente, que não valia a pena
sacrificar- se, perder a casa. Se
os trabalhadores conquistassem o poder, Zezinho e idiotas como ele morreriam de
fome ou seriam fuzilados. Agarrara essa opinião num comício e estava
certa de sempre ter pensado assim.
D. Aurora se
compadecia do irmão. Se ele tivesse escutado os conselhos do capitão Barros, seria
um homem. Não atendera aos amigos,
fora entregar-se a impostores que lhe exploravam a vaidade. Tirassem-lhe a
vaidade, e J. Carmo Gomes se tornaria
Zezinho, um menino tolo que não sabia servir-se das mãos, pisava nos buracos e
necessitava castigo. Sem dúvida, necessitava castigo
para se comportar direito, não se cortar
nas facas que pegava, não correr
para baixo dos automóveis.
Agora estava crescido — e
conservava-se desazado e imprudente, buscando infelicidades. Com certeza o
fuzilariam, se o comunismo levantasse a cabeça. Coitado. Grande, senhor do seu nariz, não tinha
quem o defendesse, um pai que lhe puxasse as orelhas e lhe desse
cascudos: — “Senta aí, cria juízo.” Trabalhava demais — e seria fuzilado
quando não precisassem dele. J. Carmo
Gomes, a irmã, o capitão França e o capitão Barros seriam fuzilados. E d.
Aurora se condoía de todos. Então era regular
deixar-se um louco em liberdade, queimando, matando? J. Carmo Gomes não
queimava nem matava, mas vivia a elogiar
incendiários e assassinos. Elogiava de boa-fé. Isto não lhe diminuía a culpa.
Se ele tivesse má intenção, talvez uns restos de bondade lhe iluminassem a alma;
certo de que procedia bem,
não recuaria.
E d. Aurora se convencera de que o
único meio de proteger o irmão seria guardá-lo a ferrolho e chave. Longos dias
essa ideia lhe rondara o espírito. As razões de ordem econômica
foram afastadas com indignação: intolerável pensar em dinheiro.
Era também verdade que ela gostava
de Zezinho. Não tinham tido origem no mesmo ventre? Restava, pois, aquele
motivo, a que d. Aurora se pegava com força, receosa de que ele se
desfizesse. O moço ficaria bem na cadeia. Ausente do mundo e das publicações abomináveis, afugentaria pensamentos maus.
José devia ser preso. E
deixavam-no solto, envenenando e envenenando-se. Por quê? Talvez o poupassem
por ele ter uma irmã no Sigma. D. Aurora arreliava-se, queria
gritar que recusava essa condescendência, envergonhava-se quando lhe
falavam em pessoas de consideração detidas por suspeitas.
— Por que não há de ser assim? balbuciava
com entusiasmo frouxo.
Por
que só encanar os pequenos?
Atrapalhava-se.
Alguns olhares ambíguos pareciam-lhe censuras. — “Seu irmão...” D. Júlia deixara a
frase incompleta, mas via-se perfeitamente que tinha o
rapaz em má conta. Provavelmente andavam por aí a cochichar que d. Aurora, uma oportunista,
vestira a camisa verde por manha, acendia uma vela a Deus e outra ao
diabo. Ninguém acreditava na sinceridade dela. Uma oportunista. Quando a gangorra
virasse e a gente da esquerda serrasse
de cima, J. Carmo Gomes a defenderia. Era o que pensavam, certamente. E d. Aurora não
tinha sossego. Dedicava-se ao partido, recebia tarefas pesadas, mas não estava satisfeita. Em todas as conversas percebia
remoques. Badalava que não conhecia parentes, que não se responsabilizava por ninguém. Perturbada, os olhos baixos,
procedia como quem se desculpa. Abria-se às vezes com d. Júlia, chegava quase a pedir-lhe que fizesse a delação. A
professora ouvia-a com reserva, atenta, o nariz longo, os beiços finos
apertados, as pálpebras caídas.
D. Aurora notava-lhe nos modos uma reprovação contínua. E afastava-se, impelida
para várias direções.
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.
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