12/29/2023

Cabeças (Crítica, 1938), por Graciliano Ramos


CABEÇAS

Quando, há algum tempo, o tenente Bezerra deu cabo de Lampião e se dirigiu triunfante a Maceió, conduzindo uma bela coleção de cabeças, os sertanejos de Sant’ana do Ipanema receberam-no com festas — e o herói fez um discurso. Os jornais não publicaram essa oração noticiada nos telegramas; sabemos, porém, que o bravo oficial declarou o cangaço definitivamente morto, juízo imprudente que não devia ser transmitido.

Temos aí um sinal da trapalhada, da confusão reinante, confusão que a imprensa agrava de maneira insensata.

Um jornalista meu amigo foi há dias entrevistar certa moça que de um momento para outro se havia tornado notável, em consequência de um concurso de beleza, creio eu. Palestrou com ela meia hora e, feitas várias perguntas bastante indiscretas, pediu-lhe que se manifestasse a respeito de literatura. Pegada de surpresa, a mulherzinha falou sem entusiasmo da Escrava Isaura, mas viu numa revista a sua resposta aumentada com uma lista de romances desconhecidos, que naturalmente comprou depois e leu, cochilando e bocejando, para se armar contra novo assalto.

Desse modo se organizam muitas reputações.

Longe de mim a ideia de censurar o meu amigo jornalista e a população de Sant’ana do Ipanema, que aclamou o tenente. O repórter não tinha motivo para julgar a moça do concurso ignorante de letras, embora fosse mais razoável interrogá-la sobre pó de arroz, creme, rouge e outros ingredientes necessários à beleza.

Também não podemos considerar o tenente Bezerra incapaz de improvisar discursos decentes. É possível até que ele seja um ótimo orador: tem boa figura, voz agradável, e sorri mostrando um dente de ouro que lhe enfeita a boca. Com essas qualidades ele pode ter-se exercitado em deitar falações patrióticas aos camaradas nas horas que lhe deixaram os trabalhos da caserna. É lícito, porém, recearmos que o valente oficial não se tenha especializado nisso e que a sua arenga haja falhado. Pelas notícias aqui recebidas, sabemos que o tenente Bezerra maneja com proficiência a metralhadora e é perito na arte de cortar cabeças, coisas na verdade bem difíceis. Em Alagoas, como em outros lugares, há uma quantidade regular de homens loquazes que falam horas sem dizer nada, mas nenhum deles se aventura a mergulhar no sertão e armar emboscadas com o auxílio de coiteiros, negócio perigoso; nenhum aspirou à honra de decapitar o próximo. Por que então o brioso agente da ordem gasta energia numa concorrência desleal, quando melhor seria dedicar-se inteiramente à sua profissão? Talvez o tenente Bezerra ainda precise cortar muitas cabeças, que serão medidas cuidadosamente, como as onze da primeira série. O seu prestígio crescerá, o tenente Bezerra, que já é grande, ficará enorme.

O discurso é que destoa: enxergamos nele uma espécie de justificação, como nos conceitos literários da moça.

Na opinião de alguns leitores exigentes, o concurso de beleza era uma tolice. Mas o jornalista arranja tudo: finge conversar com a mulher e habilmente nos insinua que ela se tornou interessante, não apenas por ter belos olhos e pernas bem-feitas, mas por conhecer os romances do sr. Lins do Rego. É uma satisfação ao público, a uma parte muito reduzida do público.

Por outro lado, existem pessoas demasiado sensíveis que estremecem vendo a fotografia de cabeças fora dos corpos. Essas pessoas necessitam uma explicação Cortar cabeças nem sempre é barbaridade. Cortá-las no interior da África, e sem discurso, é barbaridade, naturalmente; mas na Europa, a machado e com discurso, não é barbaridade. O discurso nos aproxima da Alemanha. Claro que ainda precisamos andar um pouco para chegar lá, mas vamos progredindo, não somos bárbaros, graças a Deus.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.

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