12/29/2023

Dois cangaços (Crítica, 1938), por Graciliano Ramos


DOIS CANGAÇOS

Afirmando há dias que as violências praticadas pelas forças volantes contra matutos indefesos levam ao cangaço muitos deles, avancei que as perseguições e as injustiças eram apenas uma das causas do mal, talvez a mais fraca. Realmente, injustiças e perseguições há em toda parte, sem que os ofendidos se resolvam a organizar bandos como os que infestam o Nordeste.

Terão as pessoas dos outros lugares menos vigor que os sertanejos? Pouco provável. Se não realizam essas ações que arrepiam os leitores dos telegramas, é que podem manifestar o seu descontentamento de maneiras diversas, e as monstruosidades são desnecessárias. É possível até que não precisem manifestar descontentamento, caso alguma vantagem neutralize as perseguições e as injustiças: colheita regular, salário mediano, a certeza enfim de poder existir, embora mal. Isso no interior do Nordeste é impossível.

Com a devastação das matas, o deserto cresce; os rios correm durante alguns meses, quando chegam as trovoadas; a célebre fecundidade da terra é uma frase feita, dessas que embalaram, e ainda embalam, o otimismo nacional, teimoso e cego. Na verdade a terra, excetuando-se a faixa do litoral, é bem ruim, alimenta mal a gente numerosa que lá se aperta.

Só o estado de Alagoas, pobre e pequeno, com orçamento de uma dúzia de mil contos, tem mais de um milhão de habitantes, o que lhe dá quase cinquenta indivíduos por quilômetro quadrado. Se no resto do país existisse igual densidade, teríamos no Brasil uma população como a da China.

Nesse meio exausto e repleto o cangaço é hoje muito diferente do que era no fim do século passado ou já no princípio deste século.

Comparem-se os minguados grupos dos bandoleiros antigos às grandes massas que se têm posto em armas ultimamente em certas regiões flageladas.

Casimiro Honório combatia só, os dois irmãos Moraes não tinham companheiros, Jesuíno Brilhante dispunha duma dezena de homens — e os bandidos que atacaram Mossoró, no Rio Grande do Norte, em 1926, eram cerca de duzentos.

Entre aqueles e estes notaremos uma diferença de qualidade. Casimiro Honório, pessoa de consideração, proprietário, tinha imenso orgulho; os dois Moraes eram filhos do padre Moraes, de Palmeira dos Índios; Jesuíno Brilhante ligava-se a uma boa família cearense, donde saiu o capitão José Leite Brasil, que se encrencou em 1935 por causa dessa história de revolução.

Os cangaceiros atuais são de ordinário criaturas vindas de baixo, rebotalho social. Os métodos antigos divergiam dos presentemente adotados. Em geral os malfeitores ocultavam as suas truculências ou apresentavam-nas como fatos necessários e justos: enfeitados, romantizados pela imaginação popular, dedicavam-se a obras de reivindicação e de vingança, eram uns heróis, quase uns apóstolos, na opinião dos matutos. Distribuíam punhados de moedas roubadas, queimavam regularmente as cercas e assolavam as fazendas dos amigos do governo, coisas agradáveis à gente miúda, cobiçosa por necessidade e naturalmente oposicionista.

Antônio Silvino atribuía-se uma autoridade especial em negócios de família, exercia uma curiosa magistratura: prodigalizava conselhos, endireitava relações abaladas, forjava casamentos difíceis e com o dinheiro dos negociantes das vilas postas a saque arranjava dotes para as raparigas pobres avariadas.

Tudo isso mudou, talvez por serem agora os fatos, numerosos e próximos, observados fora daquela penumbra que favorecia as deformações e os exageros.

Antônio Germano e Amaro Mimbura raspavam com faca de ponta as canelas das suas vítimas e assim obtinham a chave do baú ou do cofre; davam nos pacientes um banho de querosene e riscavam um fósforo na roupa molhada. A primeira parte desse programa foi realizada em vários municípios de Alagoas, nas pessoas de alguns senhores de engenho avarentos; a segunda, a do querosene, experimentou-a Olímpio Coelho do Amaral Nogueira, pequeno proprietário queimado vivo em Bom Conselho, Pernambuco.

Lampião era religioso, não por temperamento: por hábito e por influência do padre Cícero do Juazeiro. E, religioso, entrando numa igreja, de povoação conquistada, tirava uma nota de 500 mil-réis da capanga e introduzia-a na rachadura da caixa das almas, a punhal.

Isso não o impedia de violar mulheres na presença dos maridos amarrados.

Lampião era um monstro, tornou-se um monstro, símbolo de todas as monstruosidades possíveis.

Resta, porém, saber se os outros, os antigos, não praticavam ações como as dele e se não havia qualquer interesse em escondê-las. Talvez houvesse. Casimiro Honório, os Moraes, Jesuíno Brilhante e Antônio Silvino tinham alguma coisa que perder, terra ou fazenda, pelo menos um nome, valor tradicional. Não podiam mostrar-se de repente demolidores de instituições respeitadas: precisavam mantê-las, apesar de réprobos, eram de alguma forma elementos de ordem, amigos da propriedade, de todos os atributos da propriedade. O que eles combatiam era, não a propriedade em si, mas a propriedade dos seus inimigos. Daí talvez surgirem conservadores, poetizados e aumentados na literatura bronca do Nordeste.

Os bandoleiros de hoje nasceram num mundo seco e populoso, no meio duma devastação. Nada podem perder, nada os liga ao passado e provavelmente não deixarão descendência: sumir-se-ão numa volta de caminho, sob uma chuva de balas, serão decapitados, mutilados.

Em falta de bens, arriscam as suas vidas inúteis. E se essas vidas são inúteis, que podem eles poupar fora delas?

O proprietário ameaçado pela polícia, foragido, embrenhado, sentia apoio onde andava, amparavam-no amigos seguros, companheiros de classe receosos de perder o prestígio e chegar à situação deles. Não lhes faltavam os intermediários necessários na compra de víveres, armas e munições, os avisos que os livravam das ciladas.

O cangaceiro de hoje, infinitamente distante do coronel, não conta com ele, nenhuma razão tem para confiar nele. E se o utiliza algumas vezes, é porque o aterroriza, ameaça o que ele mais preza. Não se contenta com incêndios e matança de gado: invade a casa do fazendeiro, rouba-lhe a mulher e as filhas, leva-as para a capoeira e entrega-as meses depois, estragadas, mediante resgate.

É verdade que também estraga moças da camada baixa, mas essas não se aviltam por isso: recebem com satisfação frascos de perfume, cordões de ouro, cortes de seda — e casam-se naturalmente, como se nenhum dano tivessem sofrido.

As moças brancas é que ficam irreparavelmente prejudicadas, inutilizam- se para sempre. 

O cangaceiro tipo Lampião aniquila o inimigo: devasta-lhe os bens e, se não o mata, faz coisa pior — castra-o. Às vezes castra-o literalmente, o que é horrível; e se lhe desonra as filhas, castra-o de maneira pior: mata-lhe a descendência, pois nenhum sertanejo de família vai ligar-se a uma pessoa ultrajada.

Não afirmo que o bandido proceda assim conscientemente. A verdade, porém, é que ele molesta, não apenas o adversário, mas o meio social em que este vive, as instituições que o amparam.

Salva-se a religião, uns restos da religião, patente no ato de meter cédulas no cofre das almas, a ponta de punhal. O resto desapareceu. E a família, essa coisa sagrada, é o que mais se ataca.

Concluo daí que o cangaço no Nordeste se apresenta sob dois aspectos, ou antes que podemos observar lá dois cangaços: um de origem social, outro, mais sério, criado por dificuldades econômicas.

Por isso afirmei que as perseguições e as injustiças apenas contribuíam para o mal-estar geral. Determinaram o aparecimento de homens como Casimiro Honório, Jesuíno Brilhante, Moraes e Antônio Silvino.

Alguns desses realizaram sozinhos as suas façanhas, outros necessitaram instrumentos para defender-se e foram buscá-los na classe baixa.

Os instrumentos libertaram-se, entraram a mover-se por conta própria, adotaram processos diferentes dos que usavam os antigos patrões. Tornaram-se chefes, como Lampião, engrossaram as suas fileiras.

Foi a miséria que engrossou as suas fileiras, a miséria causada pelo aumento de população numa terra pobre e cansada.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.

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