12/29/2023

Cannes, 31 de Maio de 1952 (Crônica), por Graciliano Ramos


CANNES,  31 DE MAIO DE 1952

Em abril de 1952 embrenhei-me numa aventura singular: fui a Moscou e a outros lugares medonhos situados além da cortina de ferro exposta com vigor pela civilização cristã e ocidental. Nunca imaginei que tal coisa pudesse acontecer a um homem sedentário, resignado ao ônibus e ao bonde quando o movimento era indispensável. Absurda semelhante viagem — e quando me trataram dela, quase me zanguei. Faltavam-me recursos para realizá--la; a experiência me afirmava que não me deixariam sair do Brasil; e, para falar com franqueza, não me sentia disposto a mexer-me, abandonar a toca onde vivo. Recusei, pois, o convite, divagação insensata, julguei. Tudo aquilo era impossível. Mas uma série de acasos transformou a impossibilidade em dificuldade; esta se aplainou sem que eu tivesse feito o mínimo esforço, e achei-me em condições de percorrer terras estranhas, as malas arrumadas, os papéis em ordem, com todos os selos e carimbos.

Depois de andar por cima de vários estados do meu país, tinha-me resolvido a não entrar em aviões: a morte horrível de um amigo levara-me a odiar esses aparelhos assassinos. Meses atrás, para ir a um congresso em Porto Alegre, rolara nove dias em automóvel. Tenho horror às casas desconhecidas. E falo pessimamente duas línguas estrangeiras. Estava decidido a não viajar; e, em consequência da firme decisão, encontrei-me um dia metido na encrenca voadora, o cinto amarrado, os cigarros inúteis, em obediência ao letreiro exigente aceso à porta da cabina.

Andei como um gafanhoto, a dar saltos consideráveis por este mundo, sempre dizendo a mim mesmo que não me arriscaria a nova empresa. Um pulo sobre o Atlântico, pedaços da África, a Europa, a Ásia. O Báltico e o mar Negro. O Cáucaso e a planície pantanosa que vai de Moscou a Leningrado. Repouso de alguns dias, outra vez a corrida louca pelos ares. Em terra, a convivência obrigatória com pessoas de raças diferentes da minha, de hábitos diferentes dos meus, e a necessidade forte de entendê-las, às vezes recorrendo a três intérpretes. Na passagem de uma língua para outra, o pensamento se modificava — e era-me preciso examinar as fisionomias, buscar saber o que se encerrava em almas exóticas. A palavra não raro nos enganava, e um gesto, um olhar, um sorriso, de repente nos surgiam como clarão na sombra. O discurso pausado e conveniente, a amabilidade hospitaleira dos banquetes, a informação precisa e a estatística podem passar por nós sem deixar mossa. Não conseguiremos, porém, esquecer o transeunte disposto a ser-nos útil de qualquer modo, a criança gulosa de beijos num jardim de infância, o camponês curioso do Brasil, a polícia que, em vez de nos levar para a cadeia, como é natural, tenta auxiliar-nos se cometemos uma infração inadvertidamente.

Após tantos abalos, a andar para um lado e para outro como barata doida, necessitamos espalhar as nossas recordações, livrar-nos de um peso, voltar enfim à normalidade. E procuramos lançar no papel cenas, fatos, indivíduos, articular notas colhidas à pressa, num mês, tornar o sonho realidade. Realmente aquilo tinha jeito de sonho: as figuras passavam rápidas, em debandada, e era difícil fixar algumas. Como poderei movê-las, dar-lhes vida? Arrisco-me, entretanto, a escrever isto. Ninguém me encomendou a tarefa. Os homens com quem me entendi apenas revelaram o desejo de que as minhas observações ali fossem narradas honestamente, em conversas. Infelizmente não sei conversar, e na verdade observei pouco, em tempo escasso. Guardo impressões, algumas nítidas, que pretendo juntar, fazendo o possível para não cair em exageros. O que me obrigou a iniciar este livro foram as despedidas singulares de Kamchugov, antigo operário da usina Kirov, em Leningrado, e do ótimo Leonidze, presidente da União dos Escritores Georgianos. Essas duas criaturas, de meios diversos e naturezas diversas, mostraram depositar em mim uma confiança que muito me sensibilizou. E há também a moça da rua Petrowka, as linhas escritas por Neberidze Tamara, a alegria ruidosa de Keto, Assia, Liúba e Nadiajda, no Teatro Paliachvili, em Tbilissi. Esses viventes entraram-me na alma, e necessito apresentá-los, embora tenham sido uma visão ligeira. Outros relacionaram-se comigo, quiseram entender-me, fazer-se entender. Mostraram- me o que me interessava — museus, institutos, igrejas, escolas, fábricas, armazéns, a cultura da terra e a cultura dos espíritos. Fui impertinente com frequência, exigi motivos com minúcia, e não percebi um sinal de enfado, nenhuma das minhas perguntas ficou sem resposta. Se não investiguei mais, foi porque, ao fim de longas visitas, passeios intermináveis, a fadiga me deixou arrasado. Para conhecermos uma estação de repouso, um sanatório, uma plantação de tabaco, dias e noites a rodar em automóveis, em ônibus, em magníficos vagões enormes.

Seria estúpido afirmar que a minha presença houvesse determinado a singular condescendência. Havia em Moscou delegações de sessenta países. A da China tinha duzentos e vinte membros. A brasileira, de trinta e poucos, dividiu-se em dois grupos, e com a nossa, de dezoito pessoas, trabalharam de rijo seis intérpretes. Não estávamos em relação com os representantes de outros lugares; percebíamos somente, em salas e corredores de hotéis, a grulhada expansiva dos italianos, roupas exóticas da Índia, filas mongólicas pausadas e silenciosas. As amabilidades excessivas, os gastos enormes, a paciência constante, que nos perturbava, foram dispensados, portanto, a dúzia e meia de indivíduos. Um guia solícito para três visitantes, com franqueza, é muito. Quatro homens e duas mulheres entregues à ocupação mortificadora, absorvente, a acordar cedo, a recolher-se tarde, resistentes ao sono.

A extrema dedicação abriu-me portas que, entre nós, tipos bem-intencionados, obedientes ao jornal e ao sermão, consideram de ferro. Sinto-me no dever de narrar a possíveis leitores o que vi além dessas portas, sem pretender de nenhum modo cantar loas ao governo soviético. Pretendo ser objetivo, não derramar-me em elogios, não insinuar que, em trinta e cinco anos, a revolução de outubro haja criado um paraíso, com as melhores navalhas de barba, as melhores fechaduras e o melhor mata-borrão. Essas miudezas orientais são talvez inferiores às ocidentais e cristãs. Não me causaram nenhum transtorno, e, se as menciono, é que tenho o intuito de não revelar-me parcial em demasia. Vi efetivamente o grande país com bons olhos. Se assim não fosse, como poderia senti-lo?

Desejaria poder fazer o mesmo com todas as terras por onde passei. Estive em Paris duas vezes; e enquanto lá vivi, habituei-me a extensas caminhadas no cais, nas avenidas e nas ruelas, como um basbaque, interrogando sem cerimônia a gente da rua:

— Que árvore é aquela?

O carregador suspendia o trabalho e informava sorrindo, bonachão:

— Mas é um castanheiro, senhor.

— Qual é o caminho para a praça Vendôme?

— Muito longe. Tome um táxi.

Exatamente o que eu não queria: precisava ter noção da cidade andando a pé, vagaroso, examinando as caixas dos alfarrabistas, estátuas de heróis, frontarias de monumentos. O educado transeunte perdia alguns minutos dando-me a indicação necessária. Depois de experiências largas, presumo conhecer ao menos a delicadeza do parisiense. E conheço igualmente o Arco do Triunfo, o Obelisco, Notre-Dame, a Madeleine, a Ópera. Mas ignoro o que existe além dessa delicadeza; ignoro o que existe no interior das igrejas, nos bastidores do teatro; ignoro como o arco foi feito, quanto custou, e resta-me do obelisco um vago conhecimento apanhado na história antiga. Não me seria possível rabiscar uma página sobre todas as grandezas vistas de fora. A União Soviética é para mim completamente diversa. Alguns amigos, desconhecidos há pouco tempo, quiseram expor-me o trabalho intenso, a vida intensa que há na terra fria de alma ardente.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.

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