CANNES, 2 DE JUNHO DE 1952
Propriamente, a viagem começou em Praga — e foi uma decepção. Cheguei às quatro horas da tarde, cego, mudo, sem dinheiro. Havia algumas notas na carteira, mas eram do Brasil e da França, mais ou menos inúteis; não me seria possível dizer uma palavra na língua da terra; e, para integral caiporismo, o diabo zombara de mim na véspera quebrando-me os óculos, em Paris: tinha sido uma dificuldade pagar a conta do hotel.
Ninguém para receber-me; em redor, caras indiferentes. Arriei num banco, a vista presa nos letreiros que havia nas paredes do aeródromo. Os mais vultosos eram perceptíveis aos meus desgraçados olhos, mas que significariam? Imaginei-me vítima de um logro: supus o convite inexistente e condenei-me por ter sido ingênuo: arrojara-me estupidamente à empresa insensata — e ali estava em profundo abatimento, sem saber para onde ir. Minha mulher, ao lado, achava tudo muito natural: o desarranjo estava previsto e numa hora as coisas se arrumariam da melhor forma. O descabido otimismo irritava-me; em voz baixa, expandia--me em duros impropérios.
A sala pouco a pouco se esvaziava. Fui o último dos passageiros chamados, e na apresentação do passaporte um funcionário se revelou exigente e ranzinza: faltava uma formalidade. Exibi um pedaço de papel: o homem tomou novo aspecto, quis saber se me dirigia a Moscou. A resposta afirmativa originou o aparecimento de um sujeito magro que falava francês. Em seguida veio outro, que me surgiu mais tarde com o nome de Ivan Riabov e era representante da Voks em Praga. A Voks, abreviatura, significa Sociedade para as relações culturais da URSS com os países estrangeiros. Riabov exprime-se em russo; fora daí não diz nada.
— Pertence a alguma associação de classe? — perguntou-me pela boca do sujeito magro.
— Coisa nenhuma — declarei atarantado.
Minha mulher lembrou que eu era presidente da Associação Brasileira de Escritores — e este exíguo título produziu bom efeito. Tinha-me esquecido inteiramente dele, e não me passava a ideia de que servisse para alguma coisa: o essencial era haver alguém a esperar-me na cidade, afirmei. Os dois homens afastaram--se, regressaram modificados, chamaram-me ao telefone. Conversa rápida, explicações, um telegrama não recebido. Agora me achava mais ou menos tranquilo: as apoquentações da chegada evaporavam-se.
— O senhor pode esperar dez minutos ou quer seguir logo?
— inquiriu o indivíduo magro.
— Espero. Não há pressa.
Um ônibus partiu conduzindo os passageiros do avião de Bruxelas. Sentei-me à porta. A tarde se alargava sobre as árvores de folhagem nova que principiavam a florir. E a noite não vinha. Na latitude elevada estendia-se uma luz triste e imóvel. Procurei um relógio, mas não seria possível ver as horas. Tive a impressão de que os ponteiros e o sol estavam parados.
Examinada a bagagem, trouxeram-me um automóvel. Os dois homens se despediram e dirigi-me à cidade em companhia de um rapaz silencioso, que nos deixou no hotel Alcron, onde estavam alojados vários brasileiros: Jorge Amado, Chermont, Rui, Costa Neto, alguns operários, entre eles Augusto, meu hóspede no Rio. Entrara-me em casa anos atrás, sem dar o nome, ficara uma semana, pesado, macambúzio, o olho duro, uma ruga na testa. Sumira-se, reaparecera com frequência. Não se metia nas conversas, parecia um roceiro tosco, isento de opiniões. Uma noite em que minhas filhas se atarefavam no inglês e no francês para exames no dia seguinte, o homem soturno mexera-se, elevando um pouco a voz grossa, baixa, sacudida: “Posso ajudar vocês?” A áspera amabilidade me surpreendera. No salão do Alcron, bebendo com Jorge Amado cálices de ótima aguardente de ameixa, notei que Augusto se fazia entender com facilidade em russo e espanhol. Ivan Riabov apareceu, levou os nossos documentos, iniciando os exames demorados que em breve se tornariam a dança dos passaportes.
— Senhor Fulano, o senhor aqui?
Voltei-me. Era Zdenka, minha excelente amiga, conhecida anos atrás na Legação da Checoslováquia, no Rio. A figurinha encantadora, mocidade forte, envolveu-me numa onda de recordações amáveis. Lembrei-me de um telegrama de felicitações que ela me enviara pelo Natal: como tinha um nome de pronúncia terrível, assinara-se Zdenka da Legação. Pedi notícias de Pitha, de Consuelo e de Blasta. Blasta andava ali perto e já havia descoberto minha mulher.
Depois de
longas hesitações, o sol tinha resolvido sumir-se. As minhas amigas saíram,
prometendo voltar. Marchamos para o restaurante. De volta, fumando cigarros
péssimos, numa conversa interminável com Jorge Amado, examinei o ambiente e
informei-me. O Alcron, talvez o melhor hotel de Praga, caiu em poder do governo
e é administrado por um sindicato. Mas isso não afastou dele os antigos
capitalistas. O salão estava cheio de operários, homens de pensamento,
estrangeiros que se dirigiam a Moscou, às festas de 1º de Maio, ou vinham de
lá, finda a conferência econômica. Na mesa vizinha à nossa, a delegação
italiana fazia um barulho dos diabos. Adiante, olhos oblíquos e rijos malares
de asiáticos. Rostos escuros revelavam-nos gente da Índia ou da Oceania. A
orquestra lançava músicas de todos os lugares. Ao fundo, alguns pares dançavam.
Sujeitos bem-vestidos, arredios, mulheres elegantes, criaturas ali bem
visíveis, a alguns metros, e afastadas, afastadas em excesso dos operários, dos
artistas, das pessoas que iam a Moscou, voltavam de Moscou. Eram restos da
classe velha, tipos que já não podiam ter escravos e se arruinavam em loucura
furiosa, agarrados a prostitutas.
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.
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