12/29/2023

Carnaval (Crônica), por Graciliano Ramos


CARNAVAL

A cidade tem uns cinco mil habitantes. Contando bem, talvez achássemos seis mil, número que os naturais, bairristas em excesso, duplicam. Há um cinema silencioso, onde as fitas se quebram durante longas horas, sem risco para os frequentadores, atentos aos dramas em série, e há um semanário, adstringente, espinhoso, que divulga boatos cochichados nas esquinas, na farmácia e na barbearia, em redor dos tabuleiros de gamão. Tudo se realiza às claras, no cinema ou na rua, e as casas estão fiscalizadas rigorosamente. Qualquer derrapagem medíocre, sorriso considerado impróprio, suspiro ou afoiteza de opinião, determina comentários, zangas, críticas acerbas, equívocos.

Faz trinta anos que S. Revma. profere no púlpito, com ligeiras variantes, o mesmo sermão, ataque feroz ao mundo, à carne e ao diabo, férteis em tentações não especificadas. Prudente, S. Revma. impugna o exterior do mal. Acusou as primeiras mulheres que vestiram calças e montaram a cavalo de frente, escanchadas, como os homens, mas este indício de perdição vulgarizou-se rapidamente, os silhões e o costume de cavalgar de banda caíram em desprestígio — e o vigário passou a denunciar outras manhas dos inimigos da alma. Agrediu as saias curtas das moças e os braços descobertos. Ante a resistência foi inexorável: esbaforiu-se e enrouqueceu depois da missa, usou argumentos rijos e, no batismo, afastou da pia as madrinhas não inteiramente agasalhadas. Recusou desculpas, triunfou. Idoso e de óculos, enxerga sem dificuldade os colos expostos. E julga que alguns centímetros de pele nua ocasionam prejuízo sério à cristã.

Na campanha mais enérgica do reverendo, contra o carnaval, um aliado considerável rendeu-se, o hebdomadário noticioso e austero, que entrou na folia para não desgostar os assinantes. O vigário compreendeu que perdia terreno e contemporizou: admitiu a festa pagã, limitando-se a condenar exageros, que nunca existiram.

O lugar é morigerado. Os homens nascem oportunamente, casam oportunamente, morrem oportunamente. E entre essas ocorrências comportam-se direito, mais ou menos direito, e examinam as vidas alheias, achando sempre nelas motivo para desagrado, o que muito influi na purificação do ambiente.

Efetua-se o carnaval, com decência, com ordem. Famílias reúnem-se na praça, em magotes limpos de misturas perniciosas. Notam-se várias categorias. A senhora do prefeito e a senhora do médico presidem: sentam-se à porta do bar e oferecem cadeiras à representação feminina dos engenheiros da estrada de ferro. Será verdade que, depois de tantos estudos, a estrada de ferro vai chegar? Juntam-se ao grupo a gente do promotor e a do juiz. Conversas, amabilidades, escolha rigorosa de palavras, para que as engenheiras, hóspedas, não formem conceito mau da terra. Provavelmente não formam.

Tudo no largo está bonito e animado. Andam ali negociantes, funcionários, artífices, indivíduos que não pertencem a nenhuma corporação, outros que se ingerem sub-repticiamente em diversas. Pilhérias velhas se repetem, provocam hilaridade. O escrivão da coletoria tem uma graça! É apenas escrivão da coletoria, no serviço ninguém dá nada por ele, mas de domingo a terça-feira gorda cai na farra e não há quem o vença. Por isso tem prerrogativas: é geralmente aceito.

Desfilam cordões, aproximam-se bandeiras em cumprimentos, e as cantigas do ano passado aperfeiçoaram-se. Abrem-se garrafas de cerveja. Em coretos enfeitados com bandeirinhas duas charangas tocam em desafio, capricham nos sambas e nas marchas. A iluminação pública melhorou: as lâmpadas mortiças cochilam, mas estão numerosas. Se se apagassem de repente, como às vezes acontece, haveria uma confusão.

A prefeita, alarmada, suspende a conversa, olha os rapazes do comércio, que gingam e dançam misturando-se aos cordões, alguns caixeiros-viajantes, tipos viciados, com certeza, mulheres duvidosas. Que diriam as engenheiras se as luzes se extinguissem? Felizmente a usina elétrica se esforça: vê-se, através das grades, o maquinista mexendo zeloso naqueles ferrinhos.

— Parece que o motor aguenta.

A cidade não tem razão para se envergonhar. O largo vai-se enchendo. Na vizinhança crescem os rumores dum frevo honesto.

Antigamente não era assim. Marmanjos, de saco a tiracolo, armados de enormes bisnagas, molhavam as pessoas, jogavam-lhes punhados de ocre e vermelhão.

Agora estamos civilizados, bastante civilizados. Concertaram-se todos os automóveis. Meia dúzia deles, arrastando serpentinas, buzinando pelas ruas, transporta risos, a alegria indispensável. Não é só meia dúzia. Passam três ou quatro desconhecidos: vieram carros de outros municípios, sinal de que temos um carnaval excelente, o melhor destas redondezas.

— Desperdício de gasolina.

Os negociantes resmungam. Papel cortado, rasgado, pisado, roupas desnecessárias. O ano vindouro, muitos daqueles trajes coloridos estarão imprestáveis. Ora sim senhores. O ajudante da farmácia despejou cinco lança-perfumes na filha do telegrafista. Onde foi ele buscar dinheiro para dar banho de éter numa sirigaita? Hem? Na gaveta do patrão, é claro. O instrutor do tiro bebe cerveja e namora uma professora do grupo escolar. Bem, bem, esse pode consumir lança-perfumes e cerveja. Não manipula em botica nem compra fiado. Está certo.

A prefeita se aborrece também. Aquela agarração da menina do telegrafista com o ajudante da farmácia é um escândalo. A sonsa, que vive na igreja, confessando-se, comungando, perde os estribos e dá amostra péssima da localidade. Bom que o vigário amanhã se inteire do fato: haverá no domingo um sermão terrível. A professorinha avança, mas com jeito. E essa é de fora, educada em princípios diferentes.

A cidade, tradicionalista, acomoda-se aos hábitos modernos. Acomoda-se, pois não. É o que diz muitas vezes o promotor, homem de leitura e poesia. Acomoda-se devagar. Nada de choques, perturbações. A prefeita admira e teme certas liberdades, ora boas, ora ruins. Quer explicar-se, usa circunlóquios e atrapalha-se.

— A senhora não acha?

— Perfeitamente, concorda a engenheira, sem adivinhar a intenção da outra.

— Pois é.

Esse caso da filha do telegrafista, por exemplo, destoa. Uma sujeitinha nascida na roça, criada na fé, sem emprego, tola como peru novo, pode tomar o freio nos dentes, desembestar? Com franqueza, não pode.

— Sim senhora, destoa.

O fonfonar dos automóveis une-se aos roncos do trombone e aos gritos da flauta. A prefeita cerra os ouvidos, olha um rancho de maracatus, retira do pensamento a mocinha do grupo escolar e a filha do telegrafista:

— Estamos longe disso, graças a Deus.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.

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