NATAL
Alguma
piedade, vinho verde e castanhas nas casas dos portugueses, a árvore, um
pinheiro, coberta de presentes, com gelo de algodão nas folhas, Papai Noel,
barbudo, saco ao ombro, devastando os armazéns de brinquedos e levando aos
meninos surpresas velhas — aí temos o Natal na cidade. Depois disso, lidos os
telegramas amáveis e redigidas as necessárias respostas, voltamos às nossas
ocupações e a vida continua, normal.
No interior
tudo é diferente. Nem francês de barbas, nem árvore com frutos enrolados em
papel de seda, poucas mesas fartas, ausência de piedade. O Natal, festa
profana, alcança duas outras: Ano-Bom e Reis. Começa a 23 de dezembro e termina
a 6 de janeiro, representa uma solução de continuidade nas aperreações do
sertanejo.
Em S. João, no
fim de junho, menos importante e menos durável, dão-se tiros, queimam-se
busca-pés, acendem-se fogueiras, fazem-se adivinhações de várias espécies.
Conservam-se aí reminiscências do culto do fogo, talvez, e das consultas ao
oráculo.
O Natal, uma
grande feira, tem muito do carnaval e dos torneios artísticos. Há desafios de
violeiros e divertimentos populares em que figuram dois grupos rivais: as
cavalhadas, a chegança, os bandos, o reisado, o pastoril, o fandango. As
cerimônias religiosas, com luz forte, nuvens de incenso, as imagens vistosas
nos altares floridos, cantos, que são também um torneio artístico, realizam-se
ao cair da noite. Ao cabo duma hora, satisfeita essa precisão da natureza
humana, fecha-se a igreja, e a massa barulhenta invade o largo próximo. Se há
leilão — misto de altar de sacrifício e mercado — o reverendo preside. Sobre a
mesa de toalha branca expõem-se as oferendas limpas, e entre elas avultam os
frutos da terra, primícias ou não: embaixo da mesa arrumam-se as vítimas, em
geral bacorinhos e aves. Se não há leilão, o padre fiscaliza de longe os fiéis
aglomerados e afasta-se cauteloso: a sua presença torna-se inútil.
A devoção do
camponês, intensa, de ordinário não se exprime em reuniões públicas, como nas
sociedades urbanas: tem formas familiares, reza benditos e ladainhas diante do
oratório doméstico, pede favores a santo Antônio, que, se se mostra
indiferente, é punido — lembrança possível das intimidades que houve entre os
homens e os lares. Nas missões, porém, apertam-se enxames em redor dos
confessionários, casamentos naturais se legalizam, surgem numerosos batizados.
E, ao encerrar-se o ano, a gente das povoações e das fazendas assiste às
novenas, que excitam a vista, o ouvido e o olfato, permitem que, durante
algumas noites, as exigências sociais do matuto, longos meses recalcadas, se
manifestem quase livremente.
Amigos,
parentes e vizinhos juntam-se em magotes pelas ruas, andam segurando-se uns aos
outros, receosos de que um membro se desgarre, admiram as tendas iluminadas, as
lanternas de papel, os capacetes dos mateus, as exposições de miudezas e os
foguetes. Nas lojas, abertas até a madrugada, há gritos, discussões, risos,
compras, furtos de objetos pequenos. Cachaça e vinho branco nas barracas de bebida,
bozó e caipira nas de jogo. Destravam-se as línguas, aparecem rixas. Carteando
o bacará e o sete e meio, em lugares reservados, profissionais da batota
esfolam pexotes. Um candeeiro de acetilene chia, um realejo ofega, os
cavalinhos giram carregados de marmanjos que se agarram, formam cachos.
Mulheres se acocoram nas calçadas, interrompem o trânsito. Estiram-se conversas
nas esquinas, arrastam-se negócios intermináveis, que se desmancham, recomeçam,
falham de novo, tornam a recomeçar, mastigados numa terminologia confusa. Cada uma
das partes quer enganar e teme ser enganada. Daí as voltas lentas, recuos e
avanços, uma luta em que os adversários usam contradições, repetições, elogios
e ameaças. Triunfa quem tiver mais paciência e lábia. O tempo gasto nada vale,
e por uma quantia insignificante perdem-se longas horas. Existe um código
especial, admitem-se trapaças na conta, no preço, na medida, e em vendas e
trocas de animais a fraude valoriza o sujeito hábil, discípulo de ciganos, e
constitui uma vergonha para o pobre-diabo que se deixa embromar. Justificam-se,
pois, a desconfiança, a lentidão, as idas e vindas, o encolhimento, as
sondagens.
Contrastando
com as negaças do mundo econômico, há nas relações sentimentais uma rapidez de
processos notável. Numerosos casais afastam-se da zona povoada e efetuam
combinações a meia-voz, em diálogos curtos, vivos, sem rodeios, sem metáforas.
Apesar de ser bastante reduzido o vocabulário, tudo se expõe claramente: a
palavra enérgica da literatura realista é largada no momento justo, produz
efeito com o auxílio de gestos expressivos e carícias rudes. Nenhum sinal da
alarmada pudicícia, dos rubores que ainda podemos notar nas camadas mais altas
da sociedade sertaneja. Mas aí há uma tradição, a virtude é coisa útil, respeitável,
e não convém estragá-la assim de chofre. Todos se conhecem, a parentela se
julga com o direito de pedir explicações minuciosas e exagerar
insignificâncias, os mexericos fervilham. E uma alusão, no púlpito, domingo,
depois da missa, ocasiona desgostos sérios à cristã. Essa gente, porém, não se
mistura à cambada mesquinha e suarenta que joga bozó, bebe cachaça, trepa nos
cavalinhos e se comprime em torno das barracas, papagueando, trocando
beliscões. Aqui as instâncias do coração não acham obstáculos. A fase
preparatória é rápida. O agente, fungando, ronca em minutos uma declaração de
amor. O elemento conquistável, de olhos baixos, responde com interjeições e
movimentos de cabeça. Se está de acordo, bem, tudo se arranjará depressa; se
não está, salta fora e encosta-se à parede.
Perto do lugar
onde os noivos acidentais revelam as ânsias que têm na alma, dois poetas se
esgoelam, repenicando as primas. Cantam a valentia do cangaceiro, atacam a
força volante, fazem a apologia do heroísmo anônimo, e nas emboladas cada um se
exalta comicamente e insulta o parceiro. Nessa poesia não se encontra
referência aos pudores caboclos explorados em contos regionais de sentido fraco
e observação nula, uniformes, piegas, encharcados na garapa do romantismo. É
possível que os autores das honradas histórias, colaboração edificante de
revistas populares, procedam com relativa honestidade. Muitos vivem no
interior, sabem que o matuto, supersticioso, é meio pagão. Mas isto, verdade
inédita e corriqueira, talvez não sirva para literatura. Outra verdade,
palavrosa e exigente, anda nos escritos, permanece, transmite-se. O literato
cambembe não confia nos seus sentidos e escora-se numa autoridade. Está certo.
Há costumes que, por isto ou por aquilo, se consideram indecentes. Que fazer?
Apresentá-los, explicá-los, tentar corrigi-los? Difícil. Melhor conservá-los em
segredo. É como se não existissem.
Rio de Janeiro, 21 de dezembro 1940.
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.
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