12/29/2023

Natal (Crônica), por Graciliano Ramos


NATAL

Alguma piedade, vinho verde e castanhas nas casas dos portugueses, a árvore, um pinheiro, coberta de presentes, com gelo de algodão nas folhas, Papai Noel, barbudo, saco ao ombro, devastando os armazéns de brinquedos e levando aos meninos surpresas velhas — aí temos o Natal na cidade. Depois disso, lidos os telegramas amáveis e redigidas as necessárias respostas, voltamos às nossas ocupações e a vida continua, normal.

No interior tudo é diferente. Nem francês de barbas, nem árvore com frutos enrolados em papel de seda, poucas mesas fartas, ausência de piedade. O Natal, festa profana, alcança duas outras: Ano-Bom e Reis. Começa a 23 de dezembro e termina a 6 de janeiro, representa uma solução de continuidade nas aperreações do sertanejo.

Em S. João, no fim de junho, menos importante e menos durável, dão-se tiros, queimam-se busca-pés, acendem-se fogueiras, fazem-se adivinhações de várias espécies. Conservam-se aí reminiscências do culto do fogo, talvez, e das consultas ao oráculo.

O Natal, uma grande feira, tem muito do carnaval e dos torneios artísticos. Há desafios de violeiros e divertimentos populares em que figuram dois grupos rivais: as cavalhadas, a chegança, os bandos, o reisado, o pastoril, o fandango. As cerimônias religiosas, com luz forte, nuvens de incenso, as imagens vistosas nos altares floridos, cantos, que são também um torneio artístico, realizam-se ao cair da noite. Ao cabo duma hora, satisfeita essa precisão da natureza humana, fecha-se a igreja, e a massa barulhenta invade o largo próximo. Se há leilão — misto de altar de sacrifício e mercado — o reverendo preside. Sobre a mesa de toalha branca expõem-se as oferendas limpas, e entre elas avultam os frutos da terra, primícias ou não: embaixo da mesa arrumam-se as vítimas, em geral bacorinhos e aves. Se não há leilão, o padre fiscaliza de longe os fiéis aglomerados e afasta-se cauteloso: a sua presença torna-se inútil.

A devoção do camponês, intensa, de ordinário não se exprime em reuniões públicas, como nas sociedades urbanas: tem formas familiares, reza benditos e ladainhas diante do oratório doméstico, pede favores a santo Antônio, que, se se mostra indiferente, é punido — lembrança possível das intimidades que houve entre os homens e os lares. Nas missões, porém, apertam-se enxames em redor dos confessionários, casamentos naturais se legalizam, surgem numerosos batizados. E, ao encerrar-se o ano, a gente das povoações e das fazendas assiste às novenas, que excitam a vista, o ouvido e o olfato, permitem que, durante algumas noites, as exigências sociais do matuto, longos meses recalcadas, se manifestem quase livremente.

Amigos, parentes e vizinhos juntam-se em magotes pelas ruas, andam segurando-se uns aos outros, receosos de que um membro se desgarre, admiram as tendas iluminadas, as lanternas de papel, os capacetes dos mateus, as exposições de miudezas e os foguetes. Nas lojas, abertas até a madrugada, há gritos, discussões, risos, compras, furtos de objetos pequenos. Cachaça e vinho branco nas barracas de bebida, bozó e caipira nas de jogo. Destravam-se as línguas, aparecem rixas. Carteando o bacará e o sete e meio, em lugares reservados, profissionais da batota esfolam pexotes. Um candeeiro de acetilene chia, um realejo ofega, os cavalinhos giram carregados de marmanjos que se agarram, formam cachos. Mulheres se acocoram nas calçadas, interrompem o trânsito. Estiram-se conversas nas esquinas, arrastam-se negócios intermináveis, que se desmancham, recomeçam, falham de novo, tornam a recomeçar, mastigados numa terminologia confusa. Cada uma das partes quer enganar e teme ser enganada. Daí as voltas lentas, recuos e avanços, uma luta em que os adversários usam contradições, repetições, elogios e ameaças. Triunfa quem tiver mais paciência e lábia. O tempo gasto nada vale, e por uma quantia insignificante perdem-se longas horas. Existe um código especial, admitem-se trapaças na conta, no preço, na medida, e em vendas e trocas de animais a fraude valoriza o sujeito hábil, discípulo de ciganos, e constitui uma vergonha para o pobre-diabo que se deixa embromar. Justificam-se, pois, a desconfiança, a lentidão, as idas e vindas, o encolhimento, as sondagens.

Contrastando com as negaças do mundo econômico, há nas relações sentimentais uma rapidez de processos notável. Numerosos casais afastam-se da zona povoada e efetuam combinações a meia-voz, em diálogos curtos, vivos, sem rodeios, sem metáforas. Apesar de ser bastante reduzido o vocabulário, tudo se expõe claramente: a palavra enérgica da literatura realista é largada no momento justo, produz efeito com o auxílio de gestos expressivos e carícias rudes. Nenhum sinal da alarmada pudicícia, dos rubores que ainda podemos notar nas camadas mais altas da sociedade sertaneja. Mas aí há uma tradição, a virtude é coisa útil, respeitável, e não convém estragá-la assim de chofre. Todos se conhecem, a parentela se julga com o direito de pedir explicações minuciosas e exagerar insignificâncias, os mexericos fervilham. E uma alusão, no púlpito, domingo, depois da missa, ocasiona desgostos sérios à cristã. Essa gente, porém, não se mistura à cambada mesquinha e suarenta que joga bozó, bebe cachaça, trepa nos cavalinhos e se comprime em torno das barracas, papagueando, trocando beliscões. Aqui as instâncias do coração não acham obstáculos. A fase preparatória é rápida. O agente, fungando, ronca em minutos uma declaração de amor. O elemento conquistável, de olhos baixos, responde com interjeições e movimentos de cabeça. Se está de acordo, bem, tudo se arranjará depressa; se não está, salta fora e encosta-se à parede.

 

Perto do lugar onde os noivos acidentais revelam as ânsias que têm na alma, dois poetas se esgoelam, repenicando as primas. Cantam a valentia do cangaceiro, atacam a força volante, fazem a apologia do heroísmo anônimo, e nas emboladas cada um se exalta comicamente e insulta o parceiro. Nessa poesia não se encontra referência aos pudores caboclos explorados em contos regionais de sentido fraco e observação nula, uniformes, piegas, encharcados na garapa do romantismo. É possível que os autores das honradas histórias, colaboração edificante de revistas populares, procedam com relativa honestidade. Muitos vivem no interior, sabem que o matuto, supersticioso, é meio pagão. Mas isto, verdade inédita e corriqueira, talvez não sirva para literatura. Outra verdade, palavrosa e exigente, anda nos escritos, permanece, transmite-se. O literato cambembe não confia nos seus sentidos e escora-se numa autoridade. Está certo. Há costumes que, por isto ou por aquilo, se consideram indecentes. Que fazer? Apresentá-los, explicá-los, tentar corrigi-los? Difícil. Melhor conservá-los em segredo. É como se não existissem.


Rio de Janeiro, 21 de dezembro 1940.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.

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