CASAMENTOS
Para a
realização do casamento há solenidades curiosas no interior do Nordeste. O
matuto, conservador, resigna-se às maçadas impostas pela tradição, vê nelas o
meio de tornar-se uma criatura perceptível aos seus próprios olhos e à
sociedade. Apenas, como é prudente, desconfiado, econômico, tenta obtê-las com
despesa módica, se possível a crédito, forma que em geral adota nas suas
transações.
Certamente os
aperreios são necessários: banhos, ajuste com o padre, idas e vindas, conversas
longas, cálculos que estragam o miolo, roupa de cassineta, um guarda-chuva,
botinas, colarinho e gravata, sem falar nas trapalhadas em casa do sogro, o
enxoval e a festa. Isso, porém, consome tempo e esgota as reservas: só se
efetua com rigor entre os indivíduos que possuem um pedaço de terra, algumas
vacas, chiqueiro de bodes. Na miuçalha do campo as exigências são menores.
Dispensa-se o contrato civil, por ausência de propriedade. E se os noivos se
relacionarem intimamente, será possível também suprimir a grinalda e o véu. Surgem
novas concessões, a coisa finda longe das fórmulas autorizadas. Realmente não
finda: o casal tem o intuito de regularizar a situação num futuro incerto,
quando os negócios andarem bem.
É possível que
ela nunca se regularize. Se a seca chegar, se elementos perturbadores
intervierem na vida meio conjugal, o sertanejo, neto de ciganos e neto de
selvagens, abandona o rancho, a mulher, os cacarecos, vai enrascar-se noutra
aventura em lugar distante. Mas em alguns anos de safra, com o paiol cheio, a
vazante próspera, conta na loja, a família consolida-se, precisa confessar-se,
batizar os filhos como legítimos. Nessas condições as formalidades vulgares —
banhos, esclarecimentos na sacristia, apuros no armazém e no alfaiate, muita
comida, muita bebida — são inúteis. Nada de aparato excessivo para legalizar um
arranjo que já se fez; nem comunicações nem convites. Aproveita-se, pois, a
santa missão, a viagem do bispo, que vem, com um séquito de vários frades,
pregar, dar penitência, crismar, diminuir os pecados da freguesia.
Na verdade o
matuto não se julga criminoso por haver contraído matrimônio sumariamente: a
sua religião, ciosa de ladainhas, incenso, imagens, rosários e procissões,
contemporiza em assuntos de ordem moral, transige às vezes com o assassínio.
Não há mal em viverem dois cristãos juntos, trabalhando, criando os meninos.
Durante uma semana, porém, enquanto o bispo está na cidade, há uma fúria devota
pela vizinhança. Enche-se a igreja. Os eclesiásticos dirigem terríveis ameaças
ao público: pinturas medonhas do inferno excitam as imaginações e produzem
arrepios.
Ora, das
culpas denunciadas a mais grave é a amigação. O roceiro, inquieto, livra-se dos
castigos expostos aceitando o casamento que lhe oferecem, o casamento de corda,
medicina de urgência, pois seria difícil, nos poucos dias da visita pontifical,
extinguir os achaques da localidade. Alinha-se grande número de infratores
junto a um barbante estendido e, em dez minutos, numa única operação, todos se
sacramentam. Nessa liquidação o tabaréu impressiona-se mais, chateia-se mais
que nas cerimônias comuns. Em primeiro lugar existem a mitra do bispo e as
tonsuras enormes dos frades, sermões em abundância, a crisma, o confessionário
repleto, batinas, buréis, seminaristas que não se distinguem dos padres
verdadeiros. Tudo isso é raro e atraente. Em segundo lugar o matuto se
sacrifica para assistir à festa: larga o serviço, aboleta-se na rua, come fora
de horas, dorme à toa, nas calçadas, vê e ouve coisas incompreensíveis. E, ao
aprumar-se junto ao cordel, sente-se dignificado.
Outro costume
em voga entre as nossas populações rurais é o rapto da mulher, ato de ordinário
motivado por uma recusa da família dela, superior ao pretendente. Às vezes não
é superior e apenas deseja furtar-se aos incômodos tradicionais da boda. Não se
combina o lance romanesco, mas há quase uma combinação tácita. A heroína deixa
de ser fiscalizada convenientemente e uma noite roubam-na, conforme os
processos clássicos. Um grupo de cavaleiros, amigos do protagonista, vai
buscá-la, com armas e galhardia, encontra-a perto de casa, decidida à fuga.
Leva-a, trata-a com especiais atenções e deposita-a em lugar honesto,
insuspeito. Ninguém a ofende. Convencionou-se, todavia, que ela está poluída, e
daí em diante, até a viuvez, que lhe restitui a pureza comprometida, nenhum
sujeito decente, isto é, nenhum proprietário, desejaria aceitá-la.
Há
negociações, regulares, estatuídas. Executado o simulacro de conquista, o
depositário vai entender-se com o patriarca inimigo, que se declara vítima dum
ultraje e não quer saber de conversa: a filha ingrata perdeu-se, é mão cortada.
Pouco a pouco o homem brabo se amacia: escuta objeções ponderosas, reage,
afinal, ainda carrancudo, permite o casamento, porque o mal está feito e não há
remédio. Submete-se ao desastre, mas conserva-se de fora, escapa às amolações e
à festa. Os gastos, miúdos, ficam a cargo do noivo.
Em seguida
tudo se reorganiza. Um dia os culpados chegam de supetão, exigem a bênção, que
nada custa e se concede, a princípio em voz baixa, mais tarde naturalmente. Tornam-se
todos amigos.
— Um pai nunca
deixa de ser pai, não acham?
Efetivamente
houve apenas uma violência fingida, que indivíduos direitos usam com
frequência. Os cambembes não precisam dela: juntam-se por aí, como brutos. E
casam-se depois no cordão, se se casam.
Rio de Janeiro, junho de
1941.
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...