12/29/2023

Casamentos (Crônica), por Graciliano Ramos


CASAMENTOS

Para a realização do casamento há solenidades curiosas no interior do Nordeste. O matuto, conservador, resigna-se às maçadas impostas pela tradição, vê nelas o meio de tornar-se uma criatura perceptível aos seus próprios olhos e à sociedade. Apenas, como é prudente, desconfiado, econômico, tenta obtê-las com despesa módica, se possível a crédito, forma que em geral adota nas suas transações.

Certamente os aperreios são necessários: banhos, ajuste com o padre, idas e vindas, conversas longas, cálculos que estragam o miolo, roupa de cassineta, um guarda-chuva, botinas, colarinho e gravata, sem falar nas trapalhadas em casa do sogro, o enxoval e a festa. Isso, porém, consome tempo e esgota as reservas: só se efetua com rigor entre os indivíduos que possuem um pedaço de terra, algumas vacas, chiqueiro de bodes. Na miuçalha do campo as exigências são menores. Dispensa-se o contrato civil, por ausência de propriedade. E se os noivos se relacionarem intimamente, será possível também suprimir a grinalda e o véu. Surgem novas concessões, a coisa finda longe das fórmulas autorizadas. Realmente não finda: o casal tem o intuito de regularizar a situação num futuro incerto, quando os negócios andarem bem.

É possível que ela nunca se regularize. Se a seca chegar, se elementos perturbadores intervierem na vida meio conjugal, o sertanejo, neto de ciganos e neto de selvagens, abandona o rancho, a mulher, os cacarecos, vai enrascar-se noutra aventura em lugar distante. Mas em alguns anos de safra, com o paiol cheio, a vazante próspera, conta na loja, a família consolida-se, precisa confessar-se, batizar os filhos como legítimos. Nessas condições as formalidades vulgares — banhos, esclarecimentos na sacristia, apuros no armazém e no alfaiate, muita comida, muita bebida — são inúteis. Nada de aparato excessivo para legalizar um arranjo que já se fez; nem comunicações nem convites. Aproveita-se, pois, a santa missão, a viagem do bispo, que vem, com um séquito de vários frades, pregar, dar penitência, crismar, diminuir os pecados da freguesia.

Na verdade o matuto não se julga criminoso por haver contraído matrimônio sumariamente: a sua religião, ciosa de ladainhas, incenso, imagens, rosários e procissões, contemporiza em assuntos de ordem moral, transige às vezes com o assassínio. Não há mal em viverem dois cristãos juntos, trabalhando, criando os meninos. Durante uma semana, porém, enquanto o bispo está na cidade, há uma fúria devota pela vizinhança. Enche-se a igreja. Os eclesiásticos dirigem terríveis ameaças ao público: pinturas medonhas do inferno excitam as imaginações e produzem arrepios.

 

Ora, das culpas denunciadas a mais grave é a amigação. O roceiro, inquieto, livra-se dos castigos expostos aceitando o casamento que lhe oferecem, o casamento de corda, medicina de urgência, pois seria difícil, nos poucos dias da visita pontifical, extinguir os achaques da localidade. Alinha-se grande número de infratores junto a um barbante estendido e, em dez minutos, numa única operação, todos se sacramentam. Nessa liquidação o tabaréu impressiona-se mais, chateia-se mais que nas cerimônias comuns. Em primeiro lugar existem a mitra do bispo e as tonsuras enormes dos frades, sermões em abundância, a crisma, o confessionário repleto, batinas, buréis, seminaristas que não se distinguem dos padres verdadeiros. Tudo isso é raro e atraente. Em segundo lugar o matuto se sacrifica para assistir à festa: larga o serviço, aboleta-se na rua, come fora de horas, dorme à toa, nas calçadas, vê e ouve coisas incompreensíveis. E, ao aprumar-se junto ao cordel, sente-se dignificado.

Outro costume em voga entre as nossas populações rurais é o rapto da mulher, ato de ordinário motivado por uma recusa da família dela, superior ao pretendente. Às vezes não é superior e apenas deseja furtar-se aos incômodos tradicionais da boda. Não se combina o lance romanesco, mas há quase uma combinação tácita. A heroína deixa de ser fiscalizada convenientemente e uma noite roubam-na, conforme os processos clássicos. Um grupo de cavaleiros, amigos do protagonista, vai buscá-la, com armas e galhardia, encontra-a perto de casa, decidida à fuga. Leva-a, trata-a com especiais atenções e deposita-a em lugar honesto, insuspeito. Ninguém a ofende. Convencionou-se, todavia, que ela está poluída, e daí em diante, até a viuvez, que lhe restitui a pureza comprometida, nenhum sujeito decente, isto é, nenhum proprietário, desejaria aceitá-la.

Há negociações, regulares, estatuídas. Executado o simulacro de conquista, o depositário vai entender-se com o patriarca inimigo, que se declara vítima dum ultraje e não quer saber de conversa: a filha ingrata perdeu-se, é mão cortada. Pouco a pouco o homem brabo se amacia: escuta objeções ponderosas, reage, afinal, ainda carrancudo, permite o casamento, porque o mal está feito e não há remédio. Submete-se ao desastre, mas conserva-se de fora, escapa às amolações e à festa. Os gastos, miúdos, ficam a cargo do noivo.

Em seguida tudo se reorganiza. Um dia os culpados chegam de supetão, exigem a bênção, que nada custa e se concede, a princípio em voz baixa, mais tarde naturalmente. Tornam-se todos amigos.

— Um pai nunca deixa de ser pai, não acham?

Efetivamente houve apenas uma violência fingida, que indivíduos direitos usam com frequência. Os cambembes não precisam dela: juntam-se por aí, como brutos. E casam-se depois no cordão, se se casam.

 

Rio de Janeiro, junho de 1941.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.

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