12/29/2023

O moço da farmácia (Crônica), de Graciliano Ramos


O MOÇO DA FARMÁCIA

Na cidadezinha de cinco mil habitantes, elevados a dez mil pelo bairrismo, o caixeiro da farmácia publica experiências de boas letras no semanário independente e noticioso, que tira quinhentos números e, por ser pouco noticioso e muito independente, já rendeu sérios desgostos ao diretor. Moléstias, remédios nauseabundos, suspensão da folha, que, depois de quinze dias, três semanas, um mês, volta a circular com mais notícias e menos independência. Vêm daí as relações do ajudante da farmácia com o diretor da folha. Há nela uma seção literária — e foi isto que seduziu o rapaz, homem de raras ocupações e desejos imoderados.

Vira ele em jornal grande uma linha preciosa: “As ruas fustigadas por violentíssimo temporal.” Folheava atento o dicionário pequeno e ficara surpreendido. Ora muito bem. “Fustigadas por violentíssimo temporal.” Que beleza! Nunca ninguém na cidadezinha de cinco mil habitantes, elevados a dez mil pelo bairrismo, havia composto frase tão sonora e difícil. O vocabulário da povoação era minguado, e a sintaxe variava de indivíduo para indivíduo. A filha do telegrafista cantava, desafinada e sentimental: “A brisa corre de manso.” Mas a professora vizinha achava que, sendo brisa uma palavra feminina, devia emendar-se a cantiga: ‘‘A brisa corre de mansa.”

O moço da farmácia decidira servir-se dos temporais e evitar as brisas. Redigira e publicara na folha independente uma coluna verbosa, mas com tanta infelicidade que o promotor, hábil em poesia e gramática, afirmara nas barbearias que aquilo era de Vítor Hugo. Intimado a exibir prova, o bacharel respondera que não se lembrava da passagem plagiada, mas tinha certeza de que havia furto. O autor, brioso, lera todos os livros de Vítor Hugo, alcançara a absolvição e, dono dessa cultura razoável, xingara o promotor em becos e esquinas.

Assim teve princípio a carreira literária do ajudante da farmácia. Adquiriu diversos volumes, encheu-se de regras, estudou metrificação e leu jornais.

Deseja transpor os limites da cidadezinha, mas por enquanto ainda é um escritor municipal. Capricha na organização de contos, manda-os a revistas, aos concursos que se fazem na cidade grande, sonha com prêmios de vulto, com ilustrações vivas, em tricromia. Esforço vão. Ninguém lá fora o enxerga. Zanga-se, julga-se vítima de injustiça. Depois desanima. As histórias arranjadas pacientemente, desmanchadas, refeitas, são ruins. Por quê? Não há ali uma criatura que lhe possa dar explicações. Aprende só — e isto é doloroso. Necessário enorme trabalho para compreender, em seguida esquecer, recomeçar, orientar-se de novo. Evidentemente as lições vistas nos livros estavam erradas. Volta, procura lições diferentes, que abandona. Avança em alguns pontos, em outros permanece ignorante. Não dispensa os temporais que fustigam as ruas.

Bem. Agora é capaz de utilizar brisas e temporais, certo de que a combinação está sofrível. A diretora do grupo escolar pediu-lhe discursos para os meninos que tinham findo o curso primário. Fez uns quatro, que foram preteridos pelos do juiz de direito, um maluco. Está melhorando, sem dúvida. Os chavões do juiz de direito foram recebidos com muito elogio, sinal de que não prestavam. Bobagens de arrepiar.

Provavelmente os temporais que açoitam as ruas também não valem nada. Se valessem, os contos, direitinhos na conjugação e na concordância, teriam sido publicados, com ilustrações de Santa Rosa.

Continua a trabalhar, só, adiantando-se em alguns lugares, emperrando em outros. Tem um bando de nomes na cabeça, mas emprega-os sem discernimento e deforma-os na pronúncia. Envergonha-se de usá-los em conversa, porque ali não os conhecem. Certamente o consideram pedante quando, receoso, larga uma daquelas palavras longas que viu no romance cacete. Cacete, pois não, embora lhe falte coragem para dizer isto. Descobriu num rodapé louvores excessivos ao romance e ficou grogue, matutando, como quem decifra charada. Precisa reler aquela droga, bocejar, cochilar em cima dela. Dirá que é magnífica, está visto. Presumirão que ele sabe julgar. Ainda não sabe, mas saberá.

Tem armazenado noções valiosas, dando por paus e por pedras, vencendo crises de apatia. Ultimamente conseguiu perceber defeitos graves nuns versos e isto o alegrou. Assevera interiormente os seus progressos. Pensa em sujeitos animosos que subiram sozinhos. Como se chamava o carvoeiro que chegou a presidente dos Estados Unidos? Lincoln ou Washington? Um dos dois.

Efetivamente os temporais são chinfrins: arruinaram-lhe os contos. Os temporais e as brisas. É bom livrar-se dessa verbiagem. Mas habituou-se. Que adotará para substituí-la? Impossível achar um conselho. Irá caminhando às apalpadelas, batendo nas paredes. E talvez acerte. Acertará, sem dúvida. Dentro de vinte anos terá os cabelos brancos e os joelhos duros, morderá com dentes postiços e lerá com óculos. Permanecerá solteiro e abstêmio. Mas poderá juntar palavras, modificá-las, envernizá-las. Será um técnico e assinará coisas notáveis. Choca projetos doidos. Não os confessa por temer que o metam a ridículo. Vinte anos, trinta anos quando muito.

— Vejam o Lincoln.

 

Rio de Janeiro, maio de 1941.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.

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