D. MARIA
A mãe de d.
Maria perdeu muito cedo o marido, pequeno proprietário sertanejo, e esforçou-se
desesperadamente para cultivar a fazenda, impedir que os vizinhos lhe abrissem
as cercas e metessem animais na roça. Defendeu-se como pôde, conservou-se viúva
e, cabeluda, musculosa, quase transformada em homem, deu uma rija educação
masculina à filha única.
D. Maria
exercitou-se na equitação e no tiro ao alvo, combinou as letras necessárias
para redigir bilhetes curtos, confiou muito na cabeça e nos braços, desenvolveu
os pulmões gritando ordens rigorosas à cabroeira que se derreava no eito,
arrastando a enxada de três libras. Chegando à fase das vigílias e das
olheiras, casou, como era preciso; ligou-se a um ser tranquilo, pouco exigente,
de raça branca, está visto, condição indispensável para não se estragar a
família.
Tornou-se órfã
de mãe, chorou, deitou luto, consolou-se. E, depois da missa do sétimo dia,
afligiu o tabelião e os oficiais de justiça, importunou o juiz, conseguiu
reduzir as custas, tomou conta da herança e entrou a dirigir os negócios em
conformidade com as instruções maternas.
Tudo andou
bem. A lavoura prosperou, construíram-se várias casas, levantou-se uma capela —
e surgiu na fazenda uma povoação que a digna mulher governou, apesar de não lhe
permitirem as leis certos atos. As leis foram cumpridas. D. Maria usava, nas
transações em que a sua firma era insuficiente, um pseudônimo. A princípio o
marido, vaga criatura resignada e silenciosa, tinha alguns préstimos conjugais.
Despojou-se deles. E afinal, encolhido, assinava papéis de longe em longe.
Recebia mesada, escondia-se das visitas, encharcava-se de aguardente na venda
estabelecida a um canto da casa-grande e realizava trabalhos somenos: lavava
cavalos, ia buscar o jornal na agência do correio, transmitia recados.
Aos quarenta
anos, d. Maria, sacudida pelos ventos, queimada pelo sol, era uma bela mulher
de carnes enxutas e olhos vivos, risonha, desembaraçada, franca, possuidora de
opiniões e hábitos esquisitos, muito diferentes das opiniões e dos hábitos das
proprietárias comuns. Aparecia nas feiras da cidade com vastas roupas de
ramagens vistosas, sapatos de homem, xale cor de sangue, enorme cigarro de fumo
picado, forte. Rodeava-a um magote de protegidos, que ela abonava nas lojas,
recomendava ao prefeito, ao chefe político e ao delegado. Não podia votar, mas
dispunha de alguns eleitores que a tornavam capaz de obter sentenças favoráveis
no júri.
Tinha religião
moderada e prática. Ia à igreja pelo Natal e evitava as confissões, mas estava
em harmonia com o vigário. Naturalmente. Estava em harmonia com todas as
autoridades. Mandava rezar novenas na capela do povoado, dedicava a S.
Sebastião e a outros santos valiosas festas que reuniam os habitantes dos
arredores. Jogavam bozó e sete e meio, rodavam nos cavalinhos, dançavam,
bebiam, compravam fitas e espelhos nos baús de miudezas. Desenvolvia-se o
comércio do lugar. E a natalidade aumentava. Aumentava fora das normas e da
conveniência, mas d. Maria não se incomodava com preceitos. Necessário o
crescimento da população. Necessários trabalhadores na roça e fregueses na
venda.
Essa criatura
enérgica exprimia-se em linguagem bastante livre e adotava um código moral
próprio. Não estava isenta de preconceitos, mas os preconceitos eram
individuais. Os pecados ordinários não tinham para ela nenhuma significação.
Considerava culpados os indivíduos que de qualquer modo lhe causavam prejuízo:
devedores velhacos, serviçais preguiçosos, ladrões de galinhas. Aos outros
viventes manifestava indulgência. E era madrinha de todos os meninos que
nasciam pelas redondezas. As pessoas sisudas encolhiam os ombros e toleravam
certas derrapagens dela.
— Fraquezas de
d. Maria.
Disparate,
pois não consta que d. Maria se houvesse, em situações difíceis, revelado
fraca. Realmente não podiam acusá-la: progresso na fazenda, crédito no armazém,
os impostos pagos.
— Somos
palmatória do mundo?
Só lamentavam
que a extraordinária mulher falasse tão claramente, sem nenhum respeito às
ideias alheias.
— Fraquezas.
Pouco antes de
1930 Lampião chegou ao município e esteve uma semana rondando a cidade,
procurando meio de assaltá-la. Aboletou-se na terra de d. Maria, passou algum
tempo divertindo-se e mandando espiões examinar a defesa da rua. Descontente
com as observações, retirou-se e foi pedir a bênção do Padre Cícero.
Sábado, como
de costume, d. Maria apeou-se na feira, de xale vermelho e cigarro, cercada por
numerosos protegidos. E sujeitos de olho arregalado se aproximaram dela.
— Como é, d.
Maria? A senhora viu Lampião?
— Claro.
Hospedou-se em minha casa.
— Em sua casa,
d. Maria? Que desgraça!
— Qual é a
desgraça? Bom homem. Tudo correu direito. Hospedei os mais importantes. O pessoal
miúdo acomodou-se nos ranchos dos moradores. Matei gado, preparei muita comida.
Bons tipos. Pagaram tudo certinho. Beberam a cerveja e a cachaça que havia,
caíram num furdunço louco e dançaram como uns condenados.
— Dançaram?
— É.
Convidamos as moças da vizinhança. Naturalmente não pudemos dar pares a cento e
vinte caboclos Vieram umas trinta.
— Que horror.
d. Maria! Coitadas! Como ficaram essas moças? D. Maria abriu a boca num espanto
verdadeiro. Em seguida largou uma risada:
— O senhor tem
perguntas! Parece criança. Como haviam de ficar? Imagine. Tolice, nenhuma delas
se julga diminuída. Os cabras estavam sujos, mas despejaram frascos de perfume
na cabeça e na roupa. E distribuíram voltas de ouro, cortes de seda, notas de
cem mil-réis. As meninas gostaram. Vão achar casamento.
Rio de Janeiro, dezembro de
1941.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...