12/29/2023

Desafio (Crônica), de Graciliano Ramos


DESAFIO

No interior da Paraíba viveram há mais de meio século dois cantores famosos, ouvidos com admiração e respeito em cidades e vilas: Inácio da Catingueira, preto, e Romano, branco, de boa família, cheio de fumaças. O negro, isento de leituras, repentista por graça de Deus, exprimia-se com simplicidade, na língua comum do lugar. O branco exibia conhecimentos: andara uns meses na escola e, em razão da palmatória e dos cascudos, saíra arrumando algarismos, decifrando por alto o mistério dos jornais e das cartas. Possuía um vocabulário de que não alcançava direito a significação e lhe prejudicava certamente o estro, mas isto o elevava no conceito público. Nos torneios consideráveis reunia palavras esquisitas, de pronúncia difícil, e atrapalhava o adversário. Processo desleal.

Muitas vezes o violeiro esgrime versos decorados, um certo número de frases vagas aplicáveis a situações diversas e destinadas a cansar o antagonista. Se este não é pexote, defende-se: tem o seu repertório de habilidades e utiliza-o com prudência. Recorrendo à memória, negaceiam longo tempo, simulando inspiração. De fato improvisam as respostas necessárias. Livres delas, voltam a pisar terreno conhecido. A monotonia das rimas — as agudas quase sempre em ar, as graves em ando — facilita o exercício. E o assunto varia pouco. Um dos homens elogia-se em excesso e insulta o outro: depois, enquanto suporta injúrias e ouve as fanfarronices do parceiro, combina ofensas novas e novas bazófias. Cada um, pois, tem de reserva abundante matéria. Se, porém, o artista matuto larga esse jogo e usa elementos imprevistos, é quase certo conseguir vitória.

Foi o que sucedeu num debate realizado, com torcida e aparato, entre Romano e Inácio da Catingueira, luta que se guardou em letra de fôrma e provocou entusiasmo no sertão. Nessa pendência o sujeito vitorioso era bem inferior ao vencido — e a inferioridade salvou-o. Realmente merecia desprezo, coisa que às vezes origina êxitos absurdos. Vê-se um indivíduo abrir caminho por não ter escrúpulo e os outros se amoitarem indecisos, examinando a consciência.

Romano, segundo o costume, iniciou a cantiga expondo os seus títulos e qualidades, hereditários, pois descendia de poetas enormes, a poesia dele estava na massa do sangue. Aludiu a triunfos, à glória que o cercava, e afirmou que era doidice pretender um infeliz pé-rapado, filho de escravos, experimentar-lhe a força.

Inácio respondeu que lhe faltavam aqueles luxos todos e detestava pabulagens: tinha pouco, sim senhor, mas o que havia bastava para uns floreios na viola.

Foram-se esquentando e vieram as ameaças. Romano combatia brutalmente. Inácio desviava-se dos golpes, ligeiro, e pregava-lhe de quando em quando um espinho em lugar muito sensível. Fingia humildade, tratava-o, numa cortesia zombeteira, por meu branco, oferecia-lhe conselhos. Para que soberba, aquela grandeza? Lorota não dava camisa a ninguém. O mundo estava cheio de quedas, desastres, e tanto se arriscava o pau como o machado.

 

Correu uma hora. As primas se esganiçavam, os bordões zumbiam — e o martelo continuava, sem vantagem para nenhum dos contendores.

Por fim, esgotados os recursos ordinários, Romano atirou ao negro a rasteira definitiva: a sabedoria obtida vagarosamente, inútil em geral, mas preciosa em momentos de aperto. Numa brochura roída soletrara pedaços de mitologia, extraíra daí um catálogo regular de deuses e compusera com isto algumas estrofes malucas. Netuno, Júpiter, Minerva, Plutão, Vulcano, Mercúrio, Vênus etc. juntavam-se numa versalhada sem pé nem cabeça que arrancava imensos aplausos dos circunstantes. Romano impava de orgulho e julgava-se irresistível. Lançou, pois, numa quadra vários nomes de figuras eternas — Apolo, Cupido, Juno — e completou a sextilha com um desafio arrasador:

Inácio, desata agora
O nó que Romano deu.

Inácio da Catingueira foi admirável. Entregou os pontos e considerou-se derrotado, num grito de bom senso que o auditório recebeu como sinal de fraqueza:

Seu Romano, desse jeito
Eu não posso acompanhá-lo.
Se desse um nó em martelo,
Eu iria desatá-lo.
Mas como foi em ciência,
Cante sozinho: eu me calo.

A ironia resvalou na casca espessa do branco, sem deixar mossa, e as manifestações populares confirmaram o talento dele com excessivo louvor. O grande homem revelou-se generoso: encerrou a discussão com palavras de condescendência e estímulo ao adversário caído.

Nas cantigas de violeiros, como em outras cantigas, na Paraíba e em toda a parte, saem-se bem as pessoas que dizem a última palavra. Natural. Quem não fala muito, aos berros, é incapaz.

Os descendentes de Inácio da Catingueira cantam em voz baixa, para um número pequeno de criaturas.

 

Rio de Janeiro, fevereiro de 1942.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.

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