DESAFIO
No interior da
Paraíba viveram há mais de meio século dois cantores famosos, ouvidos com
admiração e respeito em cidades e vilas: Inácio da Catingueira, preto, e
Romano, branco, de boa família, cheio de fumaças. O negro, isento de leituras,
repentista por graça de Deus, exprimia-se com simplicidade, na língua comum do
lugar. O branco exibia conhecimentos: andara uns meses na escola e, em razão da
palmatória e dos cascudos, saíra arrumando algarismos, decifrando por alto o
mistério dos jornais e das cartas. Possuía um vocabulário de que não alcançava
direito a significação e lhe prejudicava certamente o estro, mas isto o elevava
no conceito público. Nos torneios consideráveis reunia palavras esquisitas, de
pronúncia difícil, e atrapalhava o adversário. Processo desleal.
Muitas vezes o
violeiro esgrime versos decorados, um certo número de frases vagas aplicáveis a
situações diversas e destinadas a cansar o antagonista. Se este não é pexote,
defende-se: tem o seu repertório de habilidades e utiliza-o com prudência.
Recorrendo à memória, negaceiam longo tempo, simulando inspiração. De fato
improvisam as respostas necessárias. Livres delas, voltam a pisar terreno
conhecido. A monotonia das rimas — as agudas quase sempre em ar, as graves em
ando — facilita o exercício. E o assunto varia pouco. Um dos homens elogia-se
em excesso e insulta o outro: depois, enquanto suporta injúrias e ouve as
fanfarronices do parceiro, combina ofensas novas e novas bazófias. Cada um,
pois, tem de reserva abundante matéria. Se, porém, o artista matuto larga esse
jogo e usa elementos imprevistos, é quase certo conseguir vitória.
Foi o que
sucedeu num debate realizado, com torcida e aparato, entre Romano e Inácio da
Catingueira, luta que se guardou em letra de fôrma e provocou entusiasmo no
sertão. Nessa pendência o sujeito vitorioso era bem inferior ao vencido — e a
inferioridade salvou-o. Realmente merecia desprezo, coisa que às vezes origina
êxitos absurdos. Vê-se um indivíduo abrir caminho por não ter escrúpulo e os
outros se amoitarem indecisos, examinando a consciência.
Romano,
segundo o costume, iniciou a cantiga expondo os seus títulos e qualidades,
hereditários, pois descendia de poetas enormes, a poesia dele estava na massa
do sangue. Aludiu a triunfos, à glória que o cercava, e afirmou que era doidice
pretender um infeliz pé-rapado, filho de escravos, experimentar-lhe a força.
Inácio
respondeu que lhe faltavam aqueles luxos todos e detestava pabulagens: tinha
pouco, sim senhor, mas o que havia bastava para uns floreios na viola.
Foram-se
esquentando e vieram as ameaças. Romano combatia brutalmente. Inácio
desviava-se dos golpes, ligeiro, e pregava-lhe de quando em quando um espinho
em lugar muito sensível. Fingia humildade, tratava-o, numa cortesia zombeteira,
por meu branco, oferecia-lhe conselhos. Para que soberba, aquela grandeza?
Lorota não dava camisa a ninguém. O mundo estava cheio de quedas, desastres, e
tanto se arriscava o pau como o machado.
Correu uma
hora. As primas se esganiçavam, os bordões zumbiam — e o martelo continuava,
sem vantagem para nenhum dos contendores.
Por fim,
esgotados os recursos ordinários, Romano atirou ao negro a rasteira definitiva:
a sabedoria obtida vagarosamente, inútil em geral, mas preciosa em momentos de
aperto. Numa brochura roída soletrara pedaços de mitologia, extraíra daí um
catálogo regular de deuses e compusera com isto algumas estrofes malucas.
Netuno, Júpiter, Minerva, Plutão, Vulcano, Mercúrio, Vênus etc. juntavam-se
numa versalhada sem pé nem cabeça que arrancava imensos aplausos dos
circunstantes. Romano impava de orgulho e julgava-se irresistível. Lançou,
pois, numa quadra vários nomes de figuras eternas — Apolo, Cupido, Juno — e
completou a sextilha com um desafio arrasador:
Inácio, desata agora
O nó que Romano deu.
Inácio da
Catingueira foi admirável. Entregou os pontos e considerou-se derrotado, num
grito de bom senso que o auditório recebeu como sinal de fraqueza:
Seu Romano, desse jeito
Eu não posso acompanhá-lo.
Se desse um nó em martelo,
Eu iria desatá-lo.
Mas como foi em ciência,
Cante sozinho: eu me calo.
A ironia
resvalou na casca espessa do branco, sem deixar mossa, e as manifestações
populares confirmaram o talento dele com excessivo louvor. O grande homem
revelou-se generoso: encerrou a discussão com palavras de condescendência e
estímulo ao adversário caído.
Nas cantigas
de violeiros, como em outras cantigas, na Paraíba e em toda a parte, saem-se
bem as pessoas que dizem a última palavra. Natural. Quem não fala muito, aos
berros, é incapaz.
Os
descendentes de Inácio da Catingueira cantam em voz baixa, para um número
pequeno de criaturas.
Rio de Janeiro, fevereiro de
1942.
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.
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