FUNCIONÁRIO INDEPENDENTE
Naquele ano
remoto do princípio do século chegou à cidadezinha de cinco mil habitantes um
funcionário inimigo do governo. Sim senhor, um funcionário inimigo do governo,
que era o chefe político, deputado estadual, proprietário, senhor de muitos
haveres, coronel.
Nunca se tinha
visto semelhante coisa: um serventuário vagabundo, sem eira nem beira,
dispensável, transferido de Caixa-Prego, declarar guerra a tão firme e antiga
instituição. Explicaram-lhe que aquilo não estava direito. Loucura pretender
jogar cristas com o governo, que possuía vários engenhos e terra larga, mandava
na vontade dos homens, marcava dia santo, deixava d. Carlotinha seca e triste,
suspirando, só, na rede estreita, ia para o hotel entender-se com moças
aflitas, trazidas à força pelos oficiais de justiça, intermediários em casos de
sentimento.
Expuseram tudo
muito bem. Mas o empregado novo tinha ideias esquisitas e propensão decidida
para o martírio: era uma dessas aberrações que gostam de sofrer, levar pancada,
ensanguentar-se.
Evidentemente
seria preferível ficar junto da autoridade, elevá-la, jurar que não existia no
mundo outra igual. Opinião defensável. Em horas de zanga o deputado e chefe
político andava pelas esquinas, feroz, batendo o pé, gritando, espumando,
ofendendo os amigos, uns patifes que o comprometiam horrivelmente. Findas,
porém, essas explosões, era ótima criatura: ria, estudava os jornais, discutia
sintaxe com os meninos, abria o mapa nos balcões, procurando a Rússia e a
Coreia, torcendo pelo Japão.
Nos momentos
de cólera os amigos se afastavam dele, olhavam-se receosos e desentendidos.
Chegada a calma, voltavam aliviados, entravam nas conversas de pronome e
infinito, que entretinham os meninos, procuravam no atlas o Japão, a Coreia e a
Rússia. E a instrução pública se desenvolvia fora da escola, realmente uma
lástima. A professora, atrasada, corrigia a cantiga “A brisa corre de manso”,
porque a brisa, fêmea, devia correr “de mansa”. No princípio do século era
assim que ela corria no interior, e esse modo de correr influiu grandemente na
literatura que hoje temos.
O funcionário
mencionado era por desgraça um literato. Os literatos da roça fazem de
ordinário sonetos, acrósticos, discursos, dramas, onde se juntam palavras
bonitas e inofensivas, pedaços da Revolução Francesa, Tiradentes e Iracema.
Esse, um tipo sombrio, buscava nas pessoas e nas coisas o lado mau. Não
percebeu no chefe político o riso bonachão e as palestras amáveis: notou que
ele se desembaraçava dos adversários a faca e bala, enterrava caboclos vivos e
desencaminhava pessoinhas da classe baixa. Encheu-se de furores, entrou firme
na moral e tentou vingar d. Carlotinha numa denúncia descabelada que se
estampou em quatro colunas na primeira página do jornal de oposição na capital,
naturalmente sem assinatura.
Foi um
escândalo. E abriu-se na cidadezinha rigorosa devassa para deitar aquele
negócio em pratos limpos. Necessário descobrir o autor da enorme safadeza. De
outro modo a administração do município ficaria prejudicada. Houve delações,
estudou-se com paciência a linguagem de todos os indivíduos capazes de
exprimir-se no papel. As suspeitas fervilhavam em torno de cinco ou seis.
Subornou-se, pois, o diretor da folha, viu-se o original, examinou-se a letra.
E, obtidas as provas, o acusado fez ao acusador uma visita aparatosa que o
deixou de pulga atrás da orelha. Convidou-o em seguida para almoçar — e o
jornalista diletante reconheceu-se definitivamente perdido. Pediu transferência,
esteve a ponto de abandonar o cargo e mudar-se.
Não lhe deram
tempo.
Segunda-feira
de carnaval a população da cidadezinha se animava, pintada a zarcão e a tisna,
molhada pelas bisnagas de bambu que os garotos manejavam. Papangus desenxabidos
falavam rouco e fanhoso, circulavam sujeitos vestidos em numerosas saias
brancas. Mocinhas não-me-toques se peneiravam nas calçadas. Papai velho,
sacudindo o cajado, exibiu as barbas de espanador, e o morcego agitou as asas
de guarda-chuva. O homem da iluminação pública andou pelas ruas, de escada no
ombro, acendendo os lampiões. E na sede da Filarmônica, aberta para o baile, os
bicos de acetilene chiaram.
Nessa altura
três mascarados robustos chegaram à porta do funcionário independente, entraram
sem cerimônia, quebraram-lhe diversas costelas e deram-lhe muitas chicotadas. A
vítima esperneou, debateu-se, afirmou que não tinha escrito nada, pegou-se com
todos os santos e enfim soprou desesperadamente um apito. Os soldados correram
em alvoroço, afivelando os cintos, mas não acharam o lugar onde se dava o
desastre.
No dia
seguinte o funcionário estava de cama, pubo, roxo, a cabeça partida, um olho
cego, as articulações emperradas. Ficou assim duas semanas, tomou cabacinho,
desapareceu. E o comandante do destacamento foi promovido.
O município
subiu, prosperou demais. Hoje tem luz elétrica e automóvel. As cabrochas das
pontas de rua engendraram filhos brancos. D. Carlotinha engordou, emagreceu,
juntou-se ao marido numa catacumba vistosa, onde larga placa de mármore expõe
datas, feitos, virtudes.
Rio de Janeiro, março de
1942.
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.
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