12/29/2023

Funcionário independente (Crônica), de Graciliano Ramos


FUNCIONÁRIO INDEPENDENTE

Naquele ano remoto do princípio do século chegou à cidadezinha de cinco mil habitantes um funcionário inimigo do governo. Sim senhor, um funcionário inimigo do governo, que era o chefe político, deputado estadual, proprietário, senhor de muitos haveres, coronel.

Nunca se tinha visto semelhante coisa: um serventuário vagabundo, sem eira nem beira, dispensável, transferido de Caixa-Prego, declarar guerra a tão firme e antiga instituição. Explicaram-lhe que aquilo não estava direito. Loucura pretender jogar cristas com o governo, que possuía vários engenhos e terra larga, mandava na vontade dos homens, marcava dia santo, deixava d. Carlotinha seca e triste, suspirando, só, na rede estreita, ia para o hotel entender-se com moças aflitas, trazidas à força pelos oficiais de justiça, intermediários em casos de sentimento.

Expuseram tudo muito bem. Mas o empregado novo tinha ideias esquisitas e propensão decidida para o martírio: era uma dessas aberrações que gostam de sofrer, levar pancada, ensanguentar-se.

Evidentemente seria preferível ficar junto da autoridade, elevá-la, jurar que não existia no mundo outra igual. Opinião defensável. Em horas de zanga o deputado e chefe político andava pelas esquinas, feroz, batendo o pé, gritando, espumando, ofendendo os amigos, uns patifes que o comprometiam horrivelmente. Findas, porém, essas explosões, era ótima criatura: ria, estudava os jornais, discutia sintaxe com os meninos, abria o mapa nos balcões, procurando a Rússia e a Coreia, torcendo pelo Japão.

Nos momentos de cólera os amigos se afastavam dele, olhavam-se receosos e desentendidos. Chegada a calma, voltavam aliviados, entravam nas conversas de pronome e infinito, que entretinham os meninos, procuravam no atlas o Japão, a Coreia e a Rússia. E a instrução pública se desenvolvia fora da escola, realmente uma lástima. A professora, atrasada, corrigia a cantiga “A brisa corre de manso”, porque a brisa, fêmea, devia correr “de mansa”. No princípio do século era assim que ela corria no interior, e esse modo de correr influiu grandemente na literatura que hoje temos.

O funcionário mencionado era por desgraça um literato. Os literatos da roça fazem de ordinário sonetos, acrósticos, discursos, dramas, onde se juntam palavras bonitas e inofensivas, pedaços da Revolução Francesa, Tiradentes e Iracema. Esse, um tipo sombrio, buscava nas pessoas e nas coisas o lado mau. Não percebeu no chefe político o riso bonachão e as palestras amáveis: notou que ele se desembaraçava dos adversários a faca e bala, enterrava caboclos vivos e desencaminhava pessoinhas da classe baixa. Encheu-se de furores, entrou firme na moral e tentou vingar d. Carlotinha numa denúncia descabelada que se estampou em quatro colunas na primeira página do jornal de oposição na capital, naturalmente sem assinatura.

Foi um escândalo. E abriu-se na cidadezinha rigorosa devassa para deitar aquele negócio em pratos limpos. Necessário descobrir o autor da enorme safadeza. De outro modo a administração do município ficaria prejudicada. Houve delações, estudou-se com paciência a linguagem de todos os indivíduos capazes de exprimir-se no papel. As suspeitas fervilhavam em torno de cinco ou seis. Subornou-se, pois, o diretor da folha, viu-se o original, examinou-se a letra. E, obtidas as provas, o acusado fez ao acusador uma visita aparatosa que o deixou de pulga atrás da orelha. Convidou-o em seguida para almoçar — e o jornalista diletante reconheceu-se definitivamente perdido. Pediu transferência, esteve a ponto de abandonar o cargo e mudar-se.

Não lhe deram tempo.

Segunda-feira de carnaval a população da cidadezinha se animava, pintada a zarcão e a tisna, molhada pelas bisnagas de bambu que os garotos manejavam. Papangus desenxabidos falavam rouco e fanhoso, circulavam sujeitos vestidos em numerosas saias brancas. Mocinhas não-me-toques se peneiravam nas calçadas. Papai velho, sacudindo o cajado, exibiu as barbas de espanador, e o morcego agitou as asas de guarda-chuva. O homem da iluminação pública andou pelas ruas, de escada no ombro, acendendo os lampiões. E na sede da Filarmônica, aberta para o baile, os bicos de acetilene chiaram.

Nessa altura três mascarados robustos chegaram à porta do funcionário independente, entraram sem cerimônia, quebraram-lhe diversas costelas e deram-lhe muitas chicotadas. A vítima esperneou, debateu-se, afirmou que não tinha escrito nada, pegou-se com todos os santos e enfim soprou desesperadamente um apito. Os soldados correram em alvoroço, afivelando os cintos, mas não acharam o lugar onde se dava o desastre.

No dia seguinte o funcionário estava de cama, pubo, roxo, a cabeça partida, um olho cego, as articulações emperradas. Ficou assim duas semanas, tomou cabacinho, desapareceu. E o comandante do destacamento foi promovido.

O município subiu, prosperou demais. Hoje tem luz elétrica e automóvel. As cabrochas das pontas de rua engendraram filhos brancos. D. Carlotinha engordou, emagreceu, juntou-se ao marido numa catacumba vistosa, onde larga placa de mármore expõe datas, feitos, virtudes.

 

Rio de Janeiro, março de 1942.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.

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