12/29/2023

Dr. Pelado (Crônica), por Graciliano Ramos


DR. PELADO

Chamava-se Raimundo Pelado, residia em Viçosa, interior de Alagoas, professava a medicina e a poesia. Era um grande mulato risonho e fornido, de bela cor vermelha, mãos rijas, dentes fortes e olhos vivos.

Tinha estudado num seminário e largara a batina em véspera de ordenação, mas nunca foi possível localizar direito esse estabelecimento. Os estudos eram indispensáveis à publicidade literária do homem, publicidade que, feita por via oral, nas esquinas e nos balcões, apresentava falhas, repetições e incongruências. Essa história de ter vivido perto do altar não encerrava originalidade, pois no começo do século, quando Raimundo Pelado floresceu, rábulas, palhaços e atores de companhias vagabundas a utilizavam.

Não era aí que se revelava a imaginação do poeta. Existiam na vida dele muitos casos interessantes: viagens complicadas ao Rio, à Bahia, ao Recife. Tinha visto o Imperador e outras figuras enormes, tinha tido uma discussão notável com certo chefe de polícia de capital graúda. S.M. era pessoa muito simpática. E o chefe de polícia ficara absolutamente arrasado, fato que provocava o espanto dos caixeiros e dos fregueses, nas lojas.

Descendo dessas alturas, Pelado metrificava redondilhas nos bordões e nas primas da viola. É possível que soubesse ler, mas, se sabia, esta prenda nunca lhe serviu. O seu estro se manifestava na linguagem falada, ou antes na linguagem cantada, que Pelado era cantador, inimigo de Pacífico Pacato Cordeiro Manso, natural de Quebrangulo e quase parnasiano.

Cordeiro Manso pensava pouco e devagar. Redigia com dificuldade umas coisinhas meio certas e horríveis, publicadas em folhetos magros, que Raimundo xingava em excesso, pois desdenhava a letra de fôrma e confiava na memória dos homens.

Confiança imerecida. Nenhum literato desocupado se lembrou de colecionar e guardar a larga produção, bem razoável, do mulato de Viçosa. E a safra do adversário, chinfrim, talvez ainda hoje exista, copiada e emendada.

Realmente era no sonho que vivia o grande mulato. Quando o chefe de polícia quis saber o ofício dele, Pelado respondeu:

— Cantar.

— Cantar? Alguém se emprega em cantar?

— Sem dúvida. É melhor que chorar.

Certamente não houve pergunta, não houve resposta, não houve chefe de polícia, mas é como se tivesse havido. Isso explica a natureza do homem. Vivia no sonho. E não podia viver de sonho.

Se fosse tuberculoso e miúdo, possuísse olhos fundos, sustentar-se-ia algum tempo com gemidos e soluços. Infelizmente era corpulento demais — e não tinha jeito para soluçar e gemer. Cantava, mas as suas cantigas, agudas, furavam a carne de Pacífico Pacato Cordeiro Manso, poeta domesticado no alfabeto.

E como sustentava mulher e filhos, robustos, Raimundo Pelado às vezes se ausentava da poesia, entrava na vida ordinária e curava as doenças do próximo.

Na composição de versos, como na de receitas, o que temos dele são notícias conservadas pela tradição e certamente ampliadas. Arrumam-se aí a inteligência e a malícia duma geração matuta, exatamente o que sucede com alguns gênios que houve no Rio em fins do século passado. Não fizeram nada, não escreveram nada, mas deixaram algumas anedotas insossas, que se contavam nos cafés da província, originando gargalhadas, em 1910, e ainda se repetem.

Em momentos de apuro Raimundo Pelado abandonava a cidade e, à frente de uma carga de remédios, servido por arneiro submisso, entrava no sertão num cavalo esquipador, importante, de botas altas, colarinho e gravata, roupa de cassineta, um Chernoviz no bolso da carona. Abria esse volume encorpado em horas convenientes, espiava as gravuras e a letra miúda, estirava o beiço, enrugava a testa — e recebia a consideração dos matutos.

A sua fama se alargava por muitas ribeiras. E na casa onde se hospedava ofereciam-lhe o melhor quarto, matavam para ele a galinha mais gorda. Fazia-se anunciar nos arredores e passava uma semana a combater padecimentos com xaropes em garrafadas enormes, que inspiravam respeito à clientela e se vendiam bem.

Reduzidos os males vizinhos, os seus negócios melhorados, ia percorrer outra zona, aliviar novas macacoas e encher as algibeiras utilizando as gravuras do Chernoviz e as garrafadas.

Regressava ao cabo de seis meses, largava a ciência e dedicava-se inteiramente à sua ocupação natural, a poesia.

Numa dessas viagens dirigiu-se a uma fazenda, onde achou modos lúgubres no dono da casa, olhos úmidos e rosto comprido. A fazendeira estava bamba, e desde a véspera um médico andava a estudá-la.

— Ah! exclamou o viajante alarmado. Que espécie de médico? Quando o outro apareceu, logo serenou: percebeu nele um simples raizeiro, incapaz de assustar alguém. O proprietário dava graças a Deus, que lhe mandava dois doutores tratar a mulher.

— Perfeitamente, decidiu Pelado, dominando a situação. Vamos fazer uma conferência. O colega já diagnosticou?

O outro não entendeu e mudou de conversa. Jantaram e foram ver a doente.

— Examine, colega, disse o curandeiro número um.

— Não, senhor, respondeu Pelado, examine vossemecê, que chegou antes. Eu falo depois.

O sujeito arregaçou as mangas, colocou a mulher em diversas posições, alisou-a, machucou-a, desconjuntou-a, ficou uns minutos com o ouvido colado ao peito dela, procurando batizar a doença. Tinha ouvido falar em trombose — e este nome pareceu-lhe adequado. Ergueu-se, desarregaçou as mangas, franziu a cara e opinou:

— Eu penso que ela tem um trombone.

Pelado encostou a orelha ao corpo da paciente. E, indeciso:

— Não sei não. Se é trombone, deve estar tocando muito longe, porque não ouço nada.

 

Rio de Janeiro, julho de 1942.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.

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