UM GRAMÁTICO
Em Patos, no
estado da Paraíba, surgiu há tempo um gramático. Ignoramos a data do
aparecimento e o nome do homem se perdeu. Ali por volta de 1930 obteve
notoriedade, foi discutido com interesse e algazarra nas redações e nos cafés.
Não era um
tratadista maçudo e compacto, desses que valorizam minúcias e gastam centenas
de páginas adivinhando textos velhos: era um vulgarizador amável e conciso,
amigo de afirmações curtas, isentas de fel e vinagre. Se ele tivesse lido
muitos cartapácios, arruinando os olhos e o espírito verrumando os clássicos,
catalogando erros e acertos, seria intransigente, áspero, brigaria com outros
indivíduos que, apoiados nas mesmas autoridades antigas e carunchosas,
manejassem opiniões contrárias. E encouraçar-se-ia na aspereza e na intransigência
— por lhe faltar convicção e recear cair em heresia.
Nada disso. A
ciência dele era resumida e tranquila, corajosa por necessidade, livre de
vacilações, como em geral a dos sertanejos nordestinos.
Quando alguém,
naquela região dura de espinho, deseja construir uma casa, pega lápis e papel,
traça firme as paredes, as portas, as janelas, o copiar, as salas e as
camarinhas. Escolhe o material e dirige os carpinteiros e os pedreiros, que
executam, sem regras complicadas, uma espécie de habitação. Não se consulta
arquiteto. Realmente não existe arquiteto no lugar. Se existisse, porém, seria
desprezado, pois quem vai morar na casa é o proprietário — e não há razão para
submetê-la ao gosto de pessoas estranhas. As paredes ficam baixas, as portas e
as janelas pequenas, os quartos escuros. Foi assim que sempre se fez e não se
modifica a tradição.
O juiz de
Direito, no júri, em falta dum rábula, confia a defesa do réu miserável ao
boticário. O boticário se julgaria desprestigiado se recusasse o convite
alegando o exercício ordinário de ocupações diferentes.
O chefe
político recebe uma descompostura no jornal. Tranca-se e passa dias compondo a
resposta, enérgica e longa, que é publicada na matéria paga. Ninguém a
compreenderá direito. Poderiam ter sido invocados os serviços do promotor ou do
tabelião. Mas estes não realizariam a encomenda razoavelmente: diriam coisas do
ofício deles e esqueceriam outras, e o nosso articulista bisonho pretende
vingar-se utilizando armas próprias, furando o almaço com raiva e força, dando
murros na mesa.
Esse tabaréu
diletante da gramática, parente dos três exemplos mencionados, notou alguns
problemas de linguagem e decidiu resolvê-los. Em vez, porém, de buscar a
companhia dos seus semelhantes e examinar aquisições anteriores, fechou-se e
refletiu, como nobres figuras antigas que acharam a verdade no isolamento e na
meditação.
Quando
regressou ao convívio dos homens, trazia vários cadernos rascunhados em duro
labor, frutos que amadureceram num folheto de quarenta páginas, onde as letras,
falhadas e graúdas, esmorecem no papel amarelo. Nada aí se discute, nada se
explica. Exatamente como se o autor, redigindo um largo decreto, eliminasse as
considerações e entrasse logo a articular. De fato a pequena brochura é uma
série de mandamentos — arrola as expressões que se devem usar, condena as que
não devem ser usadas.
Em geral o
gramático de Patos desaprova o que se refere à fecundação e a certas
necessidades fisiológicas, julgadas por ele incorretas. O seu processo é muito
sumário. Divide a folha por um traço vertical — e o que fica à esquerda está
errado, o que vem à direita está certo. Às vezes não existe palavra conveniente
para traduzir o ato inconveniente. Recomenda-se então um circunlóquio. Deitar
ao mundo uma criatura em duas sílabas é feio. Indispensável enfaixar o
recém-nascido em locução respeitosa.
Esse ente
pudibundo chega a sugerir a supressão de vocábulos capazes de insinuar-nos
ideias desonestas. Buraco, por exemplo. Se aceitássemos o conselho,
restringiríamos bastante o dicionário. Mas teríamos decência, limpeza, a
aprovação de alguns críticos literários que, nestes últimos tempos, vivem
descobrindo obscenidades na prosa vulgar de romances inofensivos.
— Safadezas.
Eu, nos meus livros, jogo todas as patifarias, mas por meios indiretos. Nunca usei
palavrões de canalha, graças a Deus.
— Faz muito
bem, doutor.
Essas duas
falas são de escritores modernos e temperantes, é claro, não do sujeito da
Paraíba, casto por dentro e por fora. Tipo admirável. Foram provavelmente os
intuitos morais que lhe deram aquela segurança, a certeza de estar indicando
aos outros o bom caminho.
No seu modesto
repositório de ensinamentos dignos não achamos evasivas nem dúvidas. Para falar
verdade, ele se mostra indeciso num ponto, mas livra-se da dificuldade com
prudência. Deu uma topada na crase, emperrou. E assim se manifesta sobre o
desgraçado fenômeno:
— Terrível. Como os senhores não poderiam entender isso, vão deitando acento em cima de qualquer a. É o que devem fazer. Algumas vezes hão de acertar.
Lição desprovida
de originalidade. Personagens muito mais importantes que o gramático da Paraíba
adotam esse princípio.
Rio de Janeiro, junho de
1942.
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.
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