HISTÓRIA DE
UMA BOTA
Quando os amigos chegaram, o dono da casa
estava sentado na pedra de amolar, pregando uma correia nova na alpercata.
Levantou-se e foi acabar o trabalho escanchado na rede, resmungando aperreado,
misturando assuntos:
— Caiporismo. Louvado seja Nosso Senhor Jesus
Cristo, seu Gaudêncio. Hum! Entretido, nem ouvi a salvação de vossemecês. Que
estrago! Para sempre seja louvado, seu Libório. Como vai essa gordura?
Boa-noite, seu Firmino. Tome assento.
Os visitantes acomodaram-se. Das Dores e
Cesária vieram da cozinha e arrumaram-se na esteira.
— A vida é um buraco, meus amigos, murmurou
Alexandre. De volta da feira, dei uma topada, esfolei o dedo grande, rebentei a
correia desta infeliz e andei légua e meia com um pé calçado e outro no chão.
Estava aqui pensando no meu tempo de rico. Dinheiro no baú, roupa fina e um
quarto cheio de sapatos de toda a versidade.
— E botas com esporas de prata, acrescentou
Cesária.
— Isso mesmo, concordou Alexandre. Botas com
esporas de prata e de ouro, penduradas no torno. Agora é a desgraça que se vê:
um pedaço de sola amarrado no casco, espinhos, rachaduras no calcanhar. Não
somos nada não, seu Libório.
Baixou a cabeça, esteve um minuto remexendo
os beiços, monologando. Pouco a pouco desanuviou-se, um sorriso franziu-lhe a
cara, o olho torto brilhou:
— Por falar em bota, lembrei-me do aperto em
que me vi há muitos anos, quando furava mundo. Tomei um susto dos diachos, e,
pensando nisso, ainda me arrepio. Se quiserem escutar, abram os ouvidos. Se não
estiverem com disposição, usem de franqueza: calo a boca, seu Libório pega na
viola e canta aí umas emboladas para a gente.
— Não senhor, escusou-se o cantador, modesto.
Fale vossemecê.
Todos afirmaram que estavam curiosos,
Alexandre tossiu, temperou a goela:
— Bem. O caso se deu numa das primeiras
viagens que fiz à mata. Se não me engano, foi a primeira. Esperem, vou ver se
me recordo.
Ficou um instante em silêncio, gesticulando,
o olho torto fixo na telha.
— Isso, prosseguiu. Foi na primeira. Comprei
dessa feita um papagaio sabido para Cesária, um bicho de tanta cadência como
nunca se viu.
— O senhor falou nele, atalhou o cego. Um
papagaio que tinha astúcias de cristão e valia um conto de réis.
— Não é verdade, seu Firmino, retorquiu
Alexandre enfadado. Quem já viu papagaio de conto de réis? Esse que os amigos
conhecem custou seiscentos e vinte e cinco mil e trezentos e saiu caro. Detesto
exageros. Guardo as minhas conversas na memória, tudo direito. E se comprei o
papagaio por seiscentos e vinte e cinco mil e trezentos, por que haveria de
aumentar o preço dele? Responda, seu Firmino.
— Não sei não, murmurou o cego. O senhor é
quem sabe.
— Pois é, continuou o dono da casa. Mas nós
estamos gastando palavra à toa. Não interessa mexer num vivente miúdo, que se
finou há muitos anos e o urubu comeu. Vamos ao negócio que prometi contar a
vossemecês. Como já disse, foi para as bandas de Cancalancó.
— O senhor não disse isso não, rosnou o
preto.
— Não disse? Pois fica dito, seu Firmino,
tornou Alexandre. Foi na beira de um riacho, em Cancalancó, numa noite escura
de meter medo no olho. Propriamente não era de noite: era de madrugada. Eu
tinha corrido o sertão de cima a baixo, vendendo bois. No fim de seis meses
havia um lucro enorme, dinheiro de papel em quantidade enchendo os bolsos da
carona. E nesse dia, no termo de Cancalancó, decidi voltar para casa, porque já
me aborrecia de tanto caminho, andava com a cabeça cheia de contas e muita
saudade da patroa. Derrubei as cargas na beira do rio, arranjou-se uma
fogueira, os tangerinos prepararam a comida e começaram a inventar lambanças,
enquanto jantavam. Na cidade eu me hospedava em hotel caro e dormia em colchão
fofo, mas ali no mato o jeito que tinha era arrumar-me no chão. Foi o que fiz.
Mastiguei um punhado de farinha seca, um pedaço de carne de sol e uma rapadura,
rezei minhas orações, tirei as botas e espichei-me na areia, vestido, com o
rifle na mão, a carona cheia de notas servindo-me de travesseiro. Os animais
ficaram roendo grama, peados de três pés para não se afastarem. Estive uma hora
ouvindo as emboanças dos rapazes acocorados em redor do fogo. Depois eles se
calaram, fizeram camas por baixo das catingueiras e pegaram no sono. Estava-se
armando chuva, um calor medonho amolecia a gente, até as folhas das baraúnas
tinham preguiça de bulir. A lua apareceu desconfiada e logo desapareceu. Uma
nuvem engrossou na cabeça da serra, outra juntou-se a ela, veio uma terceira,
espalhou-se, afinal o céu ficou todo coberto e não havia uma estrela para
remédio. Um pretume dos diabos. A princípio, com luz do fogo, ainda enxerguei
os arrieiros e os tangerinos que dormiam debaixo dos paus, as malas de couro e
os surrões de mantimento, a minha sela e o par de botas. Mas as labaredas
esmoreceram, as brasas cobriam-se de cinza, os tangerinos e os arrieiros, as
malas e os surrões de matalotagem, a sela e o par de botas sumiram-se. Estou
aqui desenterrando estas miudezas, e vossemecês pedem a Deus que eu me cale.
Seu Firmino dá cada cochilo que faz pena e já abriu a boca três vezes, coitado.
— Eu? Que invenção! protestou o cego
endireitando-se no cepo que lhe servia de cadeira. Sou lá capaz de cochilar
ouvindo uma história que o senhor conta? Continue, seu Alexandre. Escutei
perfeitamente. Uma noite escura e de chuva.
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