UM MISSIONÁRIO
— Depois da morte do louro, referiu
Alexandre, Cesária começou a aperrear-me pedindo outro.
Eu me encafifei: — “Onde é que vou arranjar
isso, filha de Deus? Que arrelia!” Mas Cesária não me largava de mão: — “Xandu,
veja se me descobre um parente dele. Raça boa não falha, Xandu.” — “Está bem,
está bem.” Procurei informação: na viagem seguinte sondei a velha que me tinha
lambido seiscentos e vinte e dois mil e quinhentos, meses atrás. Perdi o tempo:
o bicho era filho único, solteiro, não conheciam dele primos nem tios. Abri-me
com Cesária:
— “É melhor esquecer-se disso, minha velha.
Vamos deixar de bobagem.” Ora, um dia na cidade, fiquei apreciando, numa sessão
de júri, a cadência do dr. Silva, que botou para fora da cadeia, com muitas
lambanças, oito ou dez protegidos do chefe político. Saí da Intendência, parei
diante da casa vizinha: estavam fazendo lá dentro um discurso igual aos que
tinha ouvido: — “Senhores do conselho de sentença, o meu constituinte não é
criminoso.” E mais isto, e mais aquilo, e tal, enfim, etc. Cheguei a uma
janela, onde várias pessoas se apertavam e batiam palmas: — “Isso mesmo.
Apoiado.” Como a sala da Intendência era pequena, estavam debulhando ali o
resto dos processos, calculei. Engano: a criatura que se esgoelava, sapecando
em cima da gente uma penca de leis, era um papagaio miúdo e feio, de penas
tristes e sujas. Se estivesse calado, não valia cinco tostões. Mas eu, pensando
no desejo de Cesária, ofereci logo cem mil-réis por ele, depois duzentos,
trezentos, quinhentos, afinal o dono, homem de posses curtas, recebeu
dinheirama grossa e me passou a gaiola. — “Você está doido, gritou o papagaio
quando soube que ia viver na fazenda. Morar nas brenhas? Não nasci para isso.”
Mas o jeito que teve foi acomodar-se lá:
— “Está aqui, Cesária, recomendei. Trate bem
este vivente, como se ele fosse cristão. Você nem avalia o que esta coisinha
tem no interior.” Cesária experimentou: — “Papagaio real. Vem de Portugal.
Currupaco, papaco. Dê cá um beijo. Como vai meu louro?” — “Mal, muito obrigado,
respondeu o animal furioso. Isso não é terra de gente.” Cesária se ofendeu,
voltou às boas, viu que o bicho não queria aprender, já sabia tudo. Sabia, meus
amigos, sabia tanto como um tabelião, mas ali passava muitas horas de língua emperrada.
No fim de algumas semanas nem ligávamos importância a ele. — “Currupaco,
papaco. A mulher do macaco”, dizia Cesária querendo animá-lo. E o bicho
respondia sério: — “Deixe essas tolices, dona. Não sou nenhum trouxa.” Meu pai
e meu sogro apareciam às vezes: — “Bom-dia, boa- tarde, sim senhor, como vai a
família?” O papagaio, cochilando na gaiola, disse uma vez chateado: — “Que
gente besta!” Embatuquei ouvindo aquela falta de respeito às visitas. Depois
achei graça. Rezávamos o terço à noite. Os machos se ajoelhavam na esteira,
Cesária e as vizinhas cantavam bem-ditos. O papagaio, lá de cima, na parede,
arregalava o olho e emendava as asneiras que as devotas metiam na ladainha: —
“Está errado.” Passaram-se meses, e Cesária entrou a remoer uns despropósitos:
na opinião dela, era injustiça amarrar-se um ente capaz de fazer defesa no
júri, citando os poréns de lei. Injustiça e desconsideração. Eu respondia: —
“Isso não tem pé nem cabeça, mulher. Crie juízo.” Mas a amofinação continuava:
— “O inocente nunca fez mal a ninguém, Xandu. Bem falante, com miolo para tirar
da cadeia pessoas de maus bofes, vive na corrente.” Perdi a paciência: — “Eu
não lhe disse que o papagaio tinha tirado presos da cadeia.” — “Não tirou
porque não houve confiança nele, gritou Cesária. É miúdo, coberto de penas que
não recebeu água do batismo. Mas fala como o dr. Silva. Foi o que você
explicou. Tenho até vergonha de ver esse infeliz na gaiola, Xandu.” Veio-me uma
ideia esquisita, que vou espichar aqui diante dos senhores. Diga-me uma coisa,
mestre Gaudêncio. Vossemecê, homem sabido que lê nos livros e andou nos
estudos, é quem me vai acabar esta dúvida. Será que as aves de pena e criações
dessa marca têm alma?
— Não acredito não, seu Alexandre, resmungou
o curandeiro aprumando-se. Uns incréus chegam a dizer que os filhos de Deus,
encruados nos mandamentos e nos sacramentos, não possuem almas. É embromação do
tinhoso, já se sabe. Mas alma em bicho do mato, com franqueza, foi coisa que
nunca me bateu a passarinha. Seu Alexandre pensa de outro modo?
— Não pensava não, mestre Gaudêncio. A ponta
de língua de Cesária é que deu esse palpite. Fiquei assim meio lá, meio cá,
especialmente por causa daquele negócio do ensino da ladainha às devotas. —
“Faça o que lhe mandar o coração, mulher de uma figa, destampei. Talvez você
esteja certa.” Cesária tirou o animal da corrente, ele pulou da gaiola e
agradeceu muito sério: — “Nossa Senhora lhe pague, dona. Não me esqueço dos
benefícios que recebo.” Sim senhores, falou assim. E afastou-se emproado,
arrastando os pés, foi examinar o pátio, o chiqueiro das cabras, o bebedouro,
os currais, as veredas e as moitas dos arredores. Gastou uma semana ou mais
nessa vadiagem: só entrava em casa na hora da comida. Levou sumiço de repente,
nunca mais ninguém pôs a vista em cima dele. — “Está aí o que você fez,
Cesária, desatinei. Quinhentos mil-réis esbagaçados. A culpa é sua.” Ela baixou
a cabeça, triste, e gaguejou com voz de choro: — “A culpa é minha, que lastimei
a sorte daquele judeu. Hoje em dia a gente não deve ter pena de ninguém não. O
mundo está cheio de ingratos, Xandu.” — “Acabou-se, atalhei amolado com o
arrependimento da patroa. Não se trata mais disso. O que passou, passou. E de
agora em diante não me entra em casa nem um periquito. Sou caipora com essa
geração excomungada; já me deu dois prejuízos.” Não tornamos a mexer na
história: quem não tem remédio remediado está, como dizem os mais velhos.
Correu tempo, andei para cima e para baixo, do sertão à mata, engordando os
nossos possuídos nos arranjos que os amigos já conhecem. Ora, numa vaquejada,
parei no meio da catinga, espantado com um barulho de arrepiar, e larguei a rês
que se escafedia, ali ao alcance da mão, pega não pega. Falatório comprido, uma
latomia dos pecados. Sim senhores. A princípio não distingui as palavras, e
julguei que aquilo fosse arte do capeta ou assombração de alma penada, porque
em redor não havia casas e os caminhos estavam longe. — “Que trapalhada é esta,
meu Deus?” disse comigo. E logo veio a resposta. Levei a mão à orelha e ouvi
perfeitamente: — “Padre nosso, que estais no céu, santificado seja o vosso
nome, venha a nós o vosso reino...” E a enfiada santa escorreu muito clara até
o arremate, sem nenhum erro. Depois dela vários fregueses, já perto de mim, se
espritaram, um bando deles, uns cem, calculei: — “Ave Maria, cheia de graça, o
Senhor é convosco, bendita sois entre as mulheres...” Fiquei de boca aberta.
Quem estaria fazendo orações ali nos descampados, àquela hora, o sol nas
alturas, o calor medonho queimando as folhas dos paus? Com certeza um lote de
pecadores andava na penitência, procurando salvação, imaginei. Desci do cavalo,
tirei o chapéu, ajoelhei-me, fiz o pelo-sinal e puxei o rosário, disposto a
ajudar os penitentes. Nisso uma nuvem de papagaios voou a poucas braças, por
cima das catingueiras e das imburanas. O que vinha na frente arrumava o
padre-nosso com todos os pontos e vírgulas, e os da rabada gritavam direito a
ave-maria, como na igreja e no catecismo. Levantei-me numa zanga verdadeira.
Cinco ou seis minutos de joelhos, batendo nos peitos, os dedos nas contas, o
juízo a fervilhar. Assuntei no caso. Por isso fiz aquela pergunta, mestre
Gaudêncio. Mas aí me chega uma dificuldade. Ignoro se o papagaio chefe,
esfarinhado em reza, era o mesmo que fazia discurso, trepado nos autos. Acho
que era, mas não posso garantir. Pensei no agradecimento a Cesária: — “Não
esqueço os benefícios que recebo, dona.” E lembrei-me de uma santa missão feita
dois anos antes, na cidade. Seu bispo falava no céu, no inferno, no purgatório.
E quando se atrapalhava, pegava o rosário, dizia aquilo mesmo:
— “Padre nosso, que estais no céu...” Um
cento de beatas, ajoelhadas na grama, respondia com vontade: — “Santa Maria,
mãe de Deus...” O papagaio tinha escutado o sermão, foi o que eu pensei, e
queria mostrar o reino do céu à parentela. Um missionário, com todos os ff e
rr.
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.
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