RECORDAÇÕES DE UMA INDÚSTRIA MORTA
Era uma vez um
sertanejo que se chamava Gouveia e se mantinha comprando peles de bode na
catinga, vendendo-as em povoações do interior, em dias de feira. Negócio
difícil. Os armazenistas fixam peso mínimo para a mercadoria aproveitável: o
que fica abaixo é refugo. Em consequência os matutos se defendem derramando
chumbo miúdo nas orelhas murchas das peles, tapando os buracos depois com cera.
O nosso
pequeno comprador aperfeiçoou-se nesse truque, imaginou outros, conheceu todos
os segredos do ofício, adquiriu tanta habilidade que poderia, segundo afirmavam
os tabaréus, esfolar uma cabra viva sem que ela percebesse que estava sendo
esfolada.
O êxito
vertiginoso do homem justificou a malícia cabocla. Saiu da capoeira,
estabeleceu-se na cidade, passou a infligir a criadores e intermediários as
regras a que se havia sujeitado em tempos duros. Cresceu rapidamente, engrossou
demais. E como, no dizer dos roceiros, a água corre para os rios e daí para o
mar, tornou-se rio, foi desaguar na capital, onde se espraiou em excesso e
virou mar.
No comércio de
exportação, Gouveia fez diversas viagens à Europa, hospedou-se em hotéis de
luxo, fingiu extasiar-se na ópera e conseguiu arranhar duas ou três línguas
necessárias ao débito e ao crédito.
A fortuna
repentina lhe proporcionou inimigos fortes. Os colegas apertaram-no, a política
interveio na briga, interesses públicos relacionaram-se com melindres de
família. Gouveia desacatou um cidadão poderoso e fugiu, largando bens aos
credores, que tiveram prejuízo de mais de noventa por cento.
Absolutamente
pelado, foi plantar-se no sertão, pelado também, no lugar mais triste do mundo,
ermo que só dava cascalho e espinho, e planeou aí uma indústria audaz, quase
impossível por lhe faltar capital e ter o nome estragado na liquidação
horrível. O conhecimento das línguas e o domínio que exercia sobre as vontades
alheias forneceram-lhe os recursos indispensáveis. Associou-se a um carcamano e
a um gringo, com esses dois testas de ferro organizou a razão social, importou
maquinismo, chamou técnicos e iniciou a fabricação num ambiente de clara
desconfiança. Na verdade o produto dele, nacional e cambembe, se distanciava do
que vinha nos porões dos transatlânticos, bem empacotado, bem rotulado, com
larga fama entre os consumidores, resistente e made in England. Mas isso foi no
princípio. Endireitou-se, levantou a cabeça e em poucos anos entrou
violentamente no mercado, oferecendo-se por preço baixo, alarmando o intruso
considerável, trade mark. O carrascal, fértil em seixos, mandacaru,
xique-xique, transformou-se em jardim e pomar, com água farta chegada em tubos
do rio próximo. E numa cachoeira notável, mencionada sempre com respeito,
admiração e inércia, turbinas foram acordar alguns cavalos da manada que lá
dormia o sono dos séculos.
A metade
nórdica da firma, toda escrita em consoantes, permaneceu longe, na civilização,
embolsando os lucros, áspera, fechada, invisível. A parte meridional, composta
de vogais e maleável, foi arrastada para o local da exploração, onde Gouveia a
torturava, a manejava despoticamente e, simulando escorar-se na moleza e nos
arrepios dela, estirava pelos arredores uma autoridade sem limites.
Arame farpado
cercava a fábrica e a vila operária. E os agentes do governo, funcionários da
prefeitura, soldados de polícia, detinham-se nas cancelas, porque lá dentro não
eram precisos.
Estava tudo em
ordem, ordem até excessiva, as casas abrindo-se e fechando-se no horário, os
deveres conjugais observados com rigor, o cinema exibindo fitas piedosas, as
escolas arrumando nas crianças noções convenientes. Apito de manhã, apito ao
cair da noite, instrumentos e pessoas em roda viva, tudo melhorando, a procura
superior à oferta. Definitivamente escorraçada a mercadoria trade mark.
Nesse ponto
surgiram alguns sujeitos louros, de chapéu alto e fala emperrada, meteram-se
num automóvel, mergulharam no sertão, dirigiram-se a Gouveia e pretenderam, com
salamaleques e razões várias, apoderar-se da fábrica. Não se combinaram.
Gouveia respondeu em quatro línguas — na dele, na dos visitantes, nas dos
sócios — que a transação era inexeqüível. Os tipos louros acenderam os
cachimbos e disseram:
— Ya. Bene.
All right. Pois não.
Em seguida
voltaram à carga, ofereceram soma exorbitante. Nada obtendo, acomodaram-se no
automóvel, sumiram-se e regressaram ao cabo de uma semana, agregados a
cavalheiros sutis que se interessavam no arranjo por patriotismo. Receberam
friamente a recusa do carcamano silencioso e do gringo invisível e abstrato. E
despediram-se:
— Good-bye. Arrivederci.
Mas não se
reviram. Algum tempo depois Gouveia recebeu um tiro de emboscada no coração.
Fez-se o enterro, declamou-se o discurso fúnebre, expediram-se os telegramas
necessários, publicou-se a notícia nos jornais, rezou-se a missa do sétimo dia,
realizou-se o inventário e prenderam-se dois cabras de somenos valia. Um tentou
fugir e morreu. O outro foi indultado e penetrou no funcionalismo. Um profundo
esquecimento cobriu Gouveia, amortalhou a indústria aparecida com audácia no
sertão, entre imburanas, catingueiras, rabos-de-raposa e coroas-de-frade. Certa
companhia estrangeira apossou-se das máquinas, rebentou-as, jogou-as no rio. Os
cavalos, despertos por Gouveia, adormeceram de novo na cachoeira magnífica,
celebrada em prosa, imortalizada em verso, apontada com orgulho, sinal da nossa
grandeza.
Rio de Janeiro, outubro de
1942.
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.
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